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PONTO DE VISTA

Proíbo, logo assisto

Max Grinberg

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência Max Grinberg InCor Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 05403-000 - São Paulo, SP max.grinberg@incor.usp.br

"Proibimos no presente para manter esperanças no futuro"

Benefício sem malefício, um ideal na Medicina; Não-maleficência mais do que beneficência, uma realidade bioética no cotidiano do médico1-3.

Já faz muito tempo que Hipócrates (460 a.C. 377 a.C.) nos deixou a mensagem "... não prejudique o paciente..."; ela se tornou um símbolo da ética médica e, transmitida geração a geração, recentemente, ganhou status de princípio da bioética4. É um conselho sobre responsabilidades e uma estratégica de segurança.

Cada progresso da ciência médica exige acautelar-se contra retrocessos na humanização. Descasos com o tratar sociável e mais humano não deixam de ser uma forma de iatrogenia.

Pelo princípio da Não-maleficência, o médico deve abster-se de causar um dano intencional5-7; o propósito em salvaguardar de iatrogenia, dever juramentado à Formatura, realiza-se à beira do leito sob algumas formas: não iniciar o sabidamente prejudicial (inclui condutas classe 3), evitar o que é duvidoso e que está mais para classe 2b do que 2a (ausência de beneficência) e não insistir perante mau resultado apesar de ser conduta classe 1 (Não-maleficência prioritária à beneficência).

Atuando tal e qual um superego, a Não-maleficência é filtro da ética para selecionar e reter aquelas com probabilidade de enquadramento no art. 29 do Código de Ética Médica como um ato de imprudência. Evitar aplicar o que a maioria dos colegas não faria não necessariamente é Não-maleficência, mas, altamente majoritária, é a concepção que nos educa desde a Faculdade. É básica na concepção de diretrizes médicas.

Não-maleficência desestimula os arroubos de criatividade à margem dos preceitos éticos, das comprovações por pesquisas e do bom senso. Assim, ela serve como alerta para que as asas do caduceu de Hermes não sejam usadas quando há tentação para certos vôos "à margem do científico". Curiosamente, quanto menos elas são utilizadas, mais milhas éticas são acumuladas.

O cenário da prática da Não-maleficência costuma ter dois ambientes: o circunstancial e o exigido.

No primeiro, há o encontro do paciente e sua situação clínica com um perfil ético, honestidade, sigilo e eficiência do médico. Conjunturas infelizes acontecem e acionam os Conselhos Éticos de Medicina a aplicarem advertências e censuras.

No segundo realizam-se os ajustes das atitudes após se proceder à triagem de conhecimentos e de capacitações; as adaptações acontecem com base tanto em convicções sobre a distinção entre mal necessário (amputar um membro gangrenado) e desnecessário (optar por um fármaco sabidamente alergênico na história daquele paciente), quanto em conveniências socioeconômicas daquela relação médico-paciente. Primum non nocere os rins em insuficiência aguda, não aplicando contraste radiológico; o estômago recém vítima de uma gastrite medicamentosa, suspendendo a droga antiinflamatória; o campo operatório interrompendo o uso de fármaco que há anos impede um tromboembolismo. Bioprótese será preferível à prótese metálica que não puder ser protegida por condições pessoais e de infra-estrutura para bom controle de anticoagulação prolongada.

Em nome da prudência clínica, evita-se "empurrar" o paciente numa ladeira escorregadia8,9, recomendando-se restrições; elas soam como antinegligência. A bem da verdade, uma parte delas parece não figurar limites precisos de real utilidade; por vezes, é a memória de um caso malsucedido que dá "base prática" suficiente para o médico não querer arriscar uma repetição.

As restrições, desta maneira, suscitam reflexões sobre o paternalismo justificado. São, em geral, abstenções de hábitos pelo paciente, à guisa de minimizar quaisquer chances de um risco tornar-se um evento. Elas costumam ser verbalizadas de modo objetivo sem muita consideração com eventuais danos sociais ao paciente. O privilégio com a evolução clínica, com a vida do paciente e com opinião de familiares é postura clássica, mas de certo é passível de conflitos com a definição de dano no New Dictionary of Medical Ethics: nada é danoso a não ser que seja sentido como ruim para quem sofre, significando que dano é um conceito subjetivo.

Proibições justificam-se pela atenção do médico com o acaso, o desconhecido e as incertezas, três fantasmas que assombram o exercício profissional. Diríamos que deixar de fazer é uma forma de saber-viver uma fase difícil pretendendo o prazer, não o do momento, obviamente, mas aquele de um futuro livre do risco. O paciente que, afinal, concorda que valeu a pena o sacrifício, assim gratifica o médico, mas não nos esqueçamos que não houve grupo controle, muito menos o paciente foi controle de si mesmo. Privar-se de algo rotineiro pode, todavia, ser entendido pelo paciente como mais danoso do que atrasar a cura. Há os gripados obedientes e há os desobedientes com o repouso recomendado, querendo nos lembrar da pluralidade de motivações que permeia o exercício da autonomia.

Assim, o dia-a-dia do médico testemunha renúncias: a ligada ao próprio repúdio à imprudência, em prol da Não-maleficência e a ligada a comportamentos do paciente, em função de uma antinegligência.

"Não corra, não coma, não viaje, não trabalhe, não jogue, não se estresse" costumam ser recomendados, quando não se dispõe ainda dos elementos seguros para uma conduta pró-ativa. É a orientação para o momento, etiquetada como "de bom senso", reativa a um zelo - quem sabe um eufemismo para excesso de autoridade ou mesmo egocentrismo em certas ocasiões - com o "pelo sim, pelo não". É uma conduta "só por enquanto".

Esta modalidade de resguardo a supostos desencadeantes de eventos pela combinação da circunstância clínica com peculiaridades da vida do paciente, tem como exemplo um presumido primum non nocere o coração: quando ele é incluído na lista de órgãos suspeitos de causar dor torácica, desaconselha-se exigí-lo numa atividade física que não propedêutica, até o esclarecimento etiopatogênico. A intenção pelo risco-evento zero caberia no "... não prejudique o (órgão do) paciente..."

O filósofo francês René Descartes (1596-1650) chegou à conclusão que uma consciência clara de seu pensamento provava sua própria existência. Consciente do risco do paciente, o médico prova a razão da sua existência. Parafraseando o célebre Cogito, ergo sum, "Penso, logo existo": Proíbo, logo assisto... o paciente a não assistir ao evento.

Prudência pela proibição

"O cardiologista tem proibição que a própria bioética reconhece"

A ética da prudência que se preocupa com as conseqüências previsíveis acolhe a intenção de risco-evento zero. Costuma-se praticar este zelo pelo futuro, inclusive, com um componente de defesa profissional.

Atitudes associadas à avaliação de chances são com freqüência o calcanhar de Aquiles pelo qual a sociedade imerge o médico em tribunais de ética.

As incertezas sobre o futuro determinam a proibição, afinal nunca se sabe se quem está a nossa frente será aquele "apenas" 1% que confirmará a estatística.

O cenário da atitude restritiva costuma ser uma situação clínica onde a tríade propedêutica, sons, números e imagens não dá suficiente clareza diagnóstica.

Os personagens interagem, fazendo o médico um papel habitual e o paciente sua estréia. Recorde-se que o médico está sempre envolvido em reforços ao valor de uma proibição justificada, não somente pela vivência clínica da "ciência das incertezas e da arte das probabilidades", como também pelo condicionamento ao Código de Ética Médica, onde 112 (77%) dos 145 artigos têm como caput é vedado ao médico.

Conduta-época

O aforismo de Peter (quadro I) é uma conduta-época do tipo proibição-época 10,11. Ele dá uma medida histórica dos conflitos, entre o desejo do paciente e a autoridade do médico. A conduta restritiva representava a responsabilidade do médico em preservar a vida da mulher cardiopata falando mais alto do que o instinto pela descendência. Paternalismo praticado em função da ausência de solução conciliatória dos interesses.


Desde então, a extraordinária melhora da relação risco da gestação-benefício à cardiopatia transformou o aforismo numa curiosidade da Medicina. Atualmente, coração de mãe sempre cabe na Cardiologia.

A lição aprendida é: médico produz o progresso científico e disponibiliza beneficência por meio de cuidados competentes, o que contribui para compatibilizar objetivos na relação médico-paciente. É obra maior do médico, fruto do seu desejo em aperfeiçoar a Medicina, pois não se pode esquecer que é o médico que faz a Medicina e não a Medicina que faz o médico.

Os progressos fortalecem o princípio da autonomia, especialmente nos atendimentos eletivos; criam-se condições para antever benefícios, compromissar-se com os meios e honrar a decisão tomada perante acidentes de percurso; é forma de estimular certas competências ocultas em quem foi educado sob a heteronomia.

Já o paternalismo parece ter ficado mais presente em situações de emergência12, até porque o sistema costuma estar estruturado no predomínio da heteronímia.

Cada um faz os ajustes que entende convenientes nesta escala bioética entre paternalismo e autonomia.

Conduta-momento

"O cardiologista esmera-se em olhar o momento do coração para enxergar o futuro do paciente"

Conduta-momento é aquela que seria "só por enquanto". Ela é aplicada nos primórdios de um período de observação, expectativa de utilidade em antecipação ao ideal esclarecimento clínico-laboratorial, ou na seqüência de um tratamento, em meio a ajustes. A conduta-momento inclui a opinião do bom senso, aquela que reage pela percepção da ponta do iceberg e aguarda o refinamento da pluralidade de diagnósticos e terapêutica admissível na parte submersa.

Esta conformidade com o possível pode dar segurança ao paciente como um elo entre a sua habitualidade de saúde e a conscientização de que a doença de fato aconteceu.

A conduta-momento é compromisso prioritário do médico com meios, mas que se faz sensível à expectativa do paciente pelo resultado, independentemente do período necessário para se compor uma terapêutica específica. Ademais, ela é "eterna enquanto dura", na condição de provisória com a mesma responsabilidade ética da definitiva.

O tipo proibição-momento é a conduta-momento que, em meio a obscuridades, privilegia o risco-evento zero. Neste ponto, a intenção é evitar desde desconfortos até a morte13.

Cada proibição-momento é sempre uma mexida no caleidoscópio da relação médico-paciente; acontece por força da necessária sensibilidade profissional aos traços da personalidade de quem será o objeto da restrição. A imagem "de momento" resultante determina a modalidade do vínculo: ora os contornos são percebidos como "doutor, o que o senhor disser eu cumpro", ora como "doutor, isso eu não posso aceitar".

A proibição-momento, até pelo fato de estar longe de ser a solução "etiopatogênica", é sempre um teste para o exercício da autonomia. Como ela embute uma lógica difusa, ocorre uma certa grandeza de crédito aos prós e contras que pode ser diferentemente vislumbrada pelo paciente; há quem ouse selecionar o contra e diga "só paro de tomar minhas cervejinhas se os exames derem alguma coisa" e há quem aquiesce e simplesmente aceita os prós com as reticências de vai que... ou por desencargo de consciência.

A proibição-momento que foi rejeitada pelo paciente como rigorosa para a sua rotina pode soar, subseqüentemente, como "ele não seguiu a minha orientação", na visão que tende ao paternalismo, ou como "ele resolveu assumir os riscos", na óptica da autonomia.

Por isto, a proibição-momento deve representar consenso médico-paciente, aliando um "paternal" zelo pelo risco-evento zero com um "autonômico" direito ao livre arbítrio. Desta forma, a lógica da proibição fica no campo da ética e, tanto quanto possível, afastada da visão de um tabu, cujo desrespeito exige a "purificação" por um bode expiatório... o médico, por exemplo.

A intenção de determinar um caminho que leve ao objetivo mais ou menos sob consenso resulta em pactos. São vínculos que se estabelecem após os pressupostos da proibição terem sido pesados. Os ajustes são facilitados pelas boas práticas da comunicação. O equilíbrio é a harmonia do aconselhado com o desejado.

Evento no descumprimento

"Mas o paciente assim quis, a última palavra foi dele, justifica o doutor, mas o familiar rebate de primeira: " foi mesmo, a última para o senhor, antes de falecer...".

A relação médico-paciente/família costuma abalar-se quando a decisão do paciente em descumprir a proibição aconselhada pelo médico, materializa-se no evento que ele entendia como algo que "só acontece com o vizinho".

Choques de palavra contra palavra produzem estilhaços verbais e os fragmentos de letras e sílabas se juntam em novas palavras e devolvem a agressão. O atrito entre a oportunidade que o paciente teve para exercer o seu livre arbítrio e a incapacidade em ser autêntico quando do evento, resulta num tipo de ferida que expõe a pluralidade da natureza humana11.

Nestas ocasiões, abre-se a temporada de caça a culpados e uma das armas relacionadas tem como munição o desnível de informação entre médico e paciente. A mira aponta no alvo de uma imagem de ineficiência e a trava do gatilho é o Código de Ética Médica. Quando o tiro sai pela culatra, o reclamante sente-se como vítima de corporativismo. Faz parte...

A afirmação de que o médico sabe mais sobre doença e o paciente mais sobre o doente, seria um argumento equalizador?

Numa visão de parceria com simetria, o paciente-modelo do médico que valoriza os preceitos da bioética é o que aprecia a missão do médico-conselheiro e, ao mesmo tempo se vê bem informado pelo médico-consultor sem a sensação de estar sendo subjugado por imposições do médico-executor.

A falta de familiaridade com o risco assumido por parte do "desobediente" representaria uma censura ao respeito do médico pelo direito à autonomia exercido pelo paciente14. O raciocínio heteronômico funciona como: os não médicos são leigos; pacientes são não médicos; logo, os pacientes são leigos. A contrapartida autonômica deste silogismo é que gente tem valores, logo pacientes têm valores e responsabilidades pela decisão.

Numa discussão, o conceito de leigo e a verbalização dos valores moldam-se de acordo com interesses (quadro II).


Observam-se também alegações de desnível de poder 4. Cada médico se vê com um grau de autoridade para aplicar uma proibição-momento perante a responsabilidade profissional; ela pode representar desde reter o paciente agradecido num pronto atendimento até a figuração do cárcere privado numa enfermaria. Neste último caso está a conceituação da alta a pedido, uma literal saída para uma proibição-momento que envolve a questão do livre arbítrio perante antagonismos aparentemente inconciliáveis.

O desnível de poder é inversamente proporcional a um número imaginário daqueles travessões de início de diálogo; a abundância destes sugere que decisões tiveram impacto nivelado de forças opinativas bilaterais.

O papel do prontuário

Na frustração com a perda da aposta com as realidades da vida, incompreensões por parte do paciente/família vêm à tona e geram conflitos; em conseqüência, surgem demandas éticas e judiciais.

É o comportamento na relação médico-paciente que reforça a pertinência do princípio Ana Karenina para a relação médico-paciente. Segundo o escritor russo Leon Tolstoi (1828-1910), todos os bons resultados se parecem, mas cada mau resultado é peculiar ao seu modo.

Modos é que não faltam na Medicina, ligados à doença, ao médico e ao paciente. Infinitas são as combinações, não somente porque cada paciente tem a sua doença, como também porque há discrepâncias de atitudes entre médicos e para mesmo médico em diferentes ocasiões.

Vale lembrar que não há vacina contra denúncia com base no art. 29 do Código de Ética Médica contra um profissional que foi honesto na dúvida, sigiloso quanto ao acordo e eficiente na condução das limitações da Medicina. Ganhos secundários infestam os protestos injustificados, uma atividade febril de reclamantes, onde quem sente calafrios é o médico.

Sem a proteção da imunização social, o médico precisa do seu próprio sistema de imunidade ética; suas defesas estão cristalizadas na qualidade da informação que ele registrou no prontuário.

Por isso mesmo é que as lembranças sobre decisões tomadas perante uma proibição-momento, e os ajustes que formam várias versões, evaporam-se ou liqüefazem-se perante a insatisfação com o evento. Assim, é sempre bem-vinda a solidez do prontuário. Sólido e solidário, pois pela interdependência de interesses, é bom que ele seja um desejo de fidelidade com simplicidade e de prudência com justiça.

O prontuário é a certidão de vida que registra uma conduta-momento que pretendeu adiar a certidão de óbito. Ou melhor, que pretendeu "proibí-la por enquanto".

REFERÊNCIAS

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3. Grinberg M. Conheço & Aplico & Comporto-me. Identidade bioética do cardiologista. Arq Bras Cardiol 2004; 83: 91-5.

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5. Beauchamp TL. Methods and principles in biomedical ethics. J Med Ethics 2003: 29: 269-74.

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12. Larkin GL, Fowler RL. Essential ethics for EMS: cardinal virtues and core principles. Emerg Med Clin North Am. 2002; 20: 887-911.

13. Father Kevin O'Rourke. Medical error: some ethical concerns. The best protection against error remains the physician's traditional sense of professional responsibility. Health Prog. 2004; 85: 28-31.

14. Gomez CJ, Gomez RJ, Luna MA. Is bioethical training useful in preparing doctors to take decisions in the emergency room? Med Law. 2004; 23: 551-66.

Recebido para publicação em 26/01/05

Aceito em 29/04/05

  • Correspondência
    Max Grinberg
    InCor
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
    05403-000 - São Paulo, SP
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Out 2005
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