EDITORIAL
Como era gostoso o meu caldo de cana...
Barbara Maria Ianni; Charles Mady
Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP - São Paulo, SP
Correspondência Correspondência: Barbara Maria Ianni Rua Salete, 335 02016-001 São Paulo, SP E-mail: barbara.ianni@incor.usp.br
... mas a ressaca quinze dias depois quase me matou". Esse pensamento deve ter passado pela cabeça das 25 pessoas que foram contaminadas (das quais cinco morreram) por via oral com Trypanosoma cruzi em Navegantes, Santa Catarina, no início deste ano. Logo em seguida, 26 pessoas foram contaminadas com suco de açaí acrescido do parasita em Igarapé da Fortaleza, Amapá. Portanto, só no primeiro trimestre de 2005, 51 pessoas tiveram quadro agudo de doença de Chagas. Esse fato expôs em todas as manchetes dos grandes jornais e nos noticiários da TV uma forma de transmissão da doença que não é freqüentemente lembrada.
Em relação ao episódio de Navegantes, dez vetores infectados foram encontrados numa palmeira próxima ao quiosque de venda de caldo de cana, um dentro do quiosque, também infectado, e 33 na mata fechada atrás do quiosque, não estando infectados apenas três deles. Também próximo foi encontrado um gambá fêmea com quatro filhotes, todos infectados.
As regiões central e sul do Brasil já foram certificadas pela Organização Pan-Americana da Saúde como tendo a transmissão vetorial do Trypanosoma cruzi controlada, mas o parasita ressurge provocando casos agudos, utilizando outra forma de contaminação, a via oral.
Microepidemias foram registradas (Teutonia, RS1,2;Catolé do Rocha, PB3; Amazônia brasileira4-7), com alta infectividade e algumas mortes, mas a possibilidade de transmissão oral já é fato conhecido há longo tempo. Em 1921, formas tripomastigotas sangüíneas inoculadas oralmente em animais de laboratório levaram ao desenvolvimento da doença8. Em 1933, formas metacíclicas do parasita encontradas nas fezes dos insetos vetores inoculadas por via oral em animais de laboratório também causaram a doença9. Em 1940, foi demonstrada a transmissão entre animais selvagens (predadores e suas presas infectadas)10. Em 1991, em Catolé do Rocha (PB) foram descritos 26 casos agudos provocados por caldo de cana infectado, após uma reunião familiar numa fazenda da região3. Desde 1987 sabe-se que o Trypanosoma cruzi pode permanecer infeccioso por 24 horas no caldo de cana11. As possibilidades aventadas nessa época foram que, durante a moagem da cana, alguns insetos teriam sido triturados, e outra, intrigante, de que a cana estivesse contaminada com secreções de animais silvestres, dentre eles o gambá.
Em 1984 foi publicado um artigo muito interessante demonstrando haver o ciclo do vertebrado e do invertebrado num mesmo animal silvestre, o gambá Didelphis marsupialis12. Os autores encontraram formas epimastigotas multiplicando-se extracelularmente e formas tripomastigotas metacíclicas, características do ciclo do Trypanosoma cruzi na luz intestinal do inseto vetor, na luz de glândulas anais desse animal silvestre, inoculado subcutaneamente com fezes infectadas de triatomídeos. A localização dessas formas do Trypanosoma cruzi na luz de glândulas anais do gambá requer grande adaptação ao meio, mas serve para manter um reservatório a partir do qual o parasita pode ser disseminado para outros tecidos através da corrente sangüínea, além de ser proteção eficiente contra a resposta imune do hospedeiro que, no gambá, é tão eficiente quanto em outros hospedeiros vertebrados, inclusive o homem. No hospedeiro vertebrado, o Trypanosoma cruzi multiplicase intracelularmente na forma amastigota, mas no inseto multiplica-se na luz do trato digestivo como epimastigota, extracelularmente. O parasita não se multiplica como tripomastigota, forma que surge na fase final do ciclo no vertebrado e é utilizada para invadir novas células, ou ficar na corrente sangüínea, transferindo a infecção ao invertebrado. Também no inseto a forma tripomastigota metacíclica é o produto final do ciclo de multiplicação, sendo a forma infecciosa para os mamíferos.
O meio ambiente no mamífero normalmente é adverso às formas de multiplicação no inseto, até pela alta temperatura do corpo12. Epimastigotas são rapidamente lisadas ou fagocitadas e digeridas. Mas com as tripomastigotas metacíclicas isso não acontece. No gambá, a temperatura do corpo não é tão alta como em mamíferos semelhantes, provavelmente propiciando esses fatos.
Na Amazônia, os três primeiros casos foram registrados em 1966, também com contaminação via oral13. Até 2001 havia 148 casos informados na Amazônia brasileira, sendo 121 agudos, com cinco mortes. Somente no Pará, 71 casos foram notificados, incluindo dezessete microepidemias familiares, principalmente por ingestão de suco de açaí contaminado. A palmeira de açaí, juntamente com a de bacaba, cujo suco também é consumido na região e a de babaçu são conhecidas por abrigar triatomídeos na região Norte do Brasil7. Curiosamente, nos treze casos agudos relatados em Abaetetuba (PA), aproximadamente a metade evoluiu com eletrocardiograma normal, característica observada em estudos de campo em outras regiões do Brasil.
Trabalhos com ratos e camundongos inoculados oralmente com Trypanosoma cruzi, obtidos a partir de sangue de camundongos infectados ou fezes infectadas de triatomídeo, mostraram que a infecção era mais grave quando secundária à inoculação via oral de fezes infectadas de triatomídeo, demonstrando que a infecção por tripomastigotas metacíclicas é maior que com a forma sangüínea14. Essas formas também já foram isoladas a partir de urina do vetor após alimentação repetida em camundongos com alta parasitemia15.
Outro ponto intrigante diz respeito a quanto a barreira do suco gástrico pode realmente ser uma barreira. O Trypanosoma cruzi pode invadir e se multiplicar no epitélio da mucosa gástrica murina, o que é visto por alguns pesquisadores como uma possibilidade para o desenvolvimento de uma vacina16. Também já foi observado que formas circulantes tripomastigotas não podem eficientemente iniciar infecção a partir da mucosa, experimentalmente, mesmo com inóculos grandes, a menos que haja defeitos de mucosa ou doença periodontal; por sua vez, inóculos menores de tripomastigotas metacíclicas administrados via oral são muito infectantes17.
Outro interessante experimento foi feito com camundongos infectados por gavagem em comparação com inoculação intraperitoneal das cepas Colombiana e Peruana do Trypanosoma cruzi18. A cepa Colombiana teve alta infectividade, semelhante pelas duas vias, enquanto a Peruana mostrou-se de alta infectividade por via peritoneal e de baixa infectividade quando administrada por gavagem. Nos casos humanos, a influência da cepa durante a transmissão oral ainda não foi comprovada, mas provavelmente também é importante. Nos episódios de Icoaraci (PA) e Catolé do Rocha (PB) foram isoladas cepas encontradas no ciclo silvestre. Como essas microepidemias acontecem em áreas próximas a acótopos silvestres, esse fato reforça a relação com a cepa do parasita.
O encontro de parasitas nas mucosas gástrica e esofágica nesses trabalhos experimentais não é uma constante16, havendo, em alguns deles, como no trabalho citado, apenas grande infiltrado inflamatório.
Outra preocupação em relação à contaminação oral diz respeito à ingestão de carne de caça crua ou malcozida por algumas populações do interior do Brasil, principalmente indígenas19.
Cem anos depois da descrição por Carlos Chagas, ainda nos vemos às voltas com a mesma doença que o eminente médico nosso conterrâneo descreveu em todas as suas nuanças. Mas nós, um século depois, ainda somos incompetentes para interromper sua transmissão por uma via que depende praticamente de higiene no preparo de alimentos. O que será que Carlos Chagas pensaria de nós, no século XXI, às voltas com esses problemas? Será que, agora que o Trypanosoma cruzi saiu do interior do Brasil e ganhou as praias de veraneio de brasileiros com maior poder aquisitivo, a doença de Chagas vai ter visibilidade suficiente e toda a população se mobilizará para seu controle definitivo, tanto quanto é feito com outras doenças infecciosas que penetram mais na mídia? Apenas para lembrar, o simples uso de inseticida praticamente elimina a possibilidade de novas infecções em regiões de risco. É algo para parar e pensar.
REFERÊNCIAS
1. Nery-Guimarães F, Silva NN, Clausell DT et al. Um surto epidêmico de doença de Chagas de provável transmissão digestiva, ocorrida em Teutônia (Estrela-Rio Grande do Sul). Hospital (Rio de Janeiro) 1968; 73: 1767-804.
2. Neves da Silva N, Clausell DT, Nólibos H et al. Surto epidêmico de doença de Chagas com provável contaminação oral. Rev Inst Med Trop São Paulo 1968; 10: 265-76.
3. Shikanai-Yasuda MA, Marcondes CB, Guedes LA et al. Possible oral transmission of acute Chagas' disease in Brazil. Rev Inst Med Trop São Paulo 1991; 33: 351-7.
4. Crescente JA, Valente SAS, Valente VC et al. Ocorrência de 4 casos agudos de doença de Chagas na vila de Icoaraci-PA. Rev Soc Bras Med Trop 1992; 25(supl. I): 29.
5. Valente SAS, Valente VC, Fraiha Neto H. Transmissão da doença de Chagas: como estamos? Considerações sobre a epidemiologia e transmissão da doença de Chagas na Amazônia Brasileira. Rev Soc Bras Med Trop 1999; 25(supl .2): 51-5.
6. Valente VC, Valente SAS, Pinto AYN. Perfil parasitológico e sorológico em microepidemia familiar de doença de Chagas em Abaetetuba, Estado do Pará. Rev Soc Bras Med Trop 2001a; 34: 20-1.
7. Valente SAS, Pimentel, OS, Valente VC et al. Microepidemia familiar de doença de Chagas em Santarém. Primeiro registro no oeste do Pará. Rev Soc Bras Med Trop 2001;34(supl I):19-20.
8. Nattan-Larrier L. Infections à Trypanosomes et voies de penetration des virus, Bull Soc Path Exot 1921; 14: 537-42.
9. Kofoid CA, Donat E. Experimental infection with Trypanosoma cruzi from the intestine of cone-nose bug Triatoma protracta. Proc Soc Exp Biol Med (NY) 1933; 30: 489-91.
10. Dias E. Serviço de estudos de grandes endemias. Transmissão do " Schizotrypanum cruzi" entre vertebrados, por via digestiva. Brasil Med 1940; 54: 775.
11. Soares VA, Dias JCP, Marsden PD, et al. Sobrevivência do T cruzi em caldo de cana: resultados preliminares. Rev Soc Bras Med Trop 1987; 20(supl 2): 38.
12. Deane MP, Lenzi HL, Jansen A. Trypanosoma cruzi: vertebrate and invertebrate cycles in the same mammal host, the opossum Didelphis marsupialis. Mem Inst Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro 1984; 79: 513-5.
13. Pinto AYN, Harada GS, Valente VC et al. Acometimento cardíaco em pacientes com doença de Chagas aguda em microepidemia familiar, em Abaetetuba, na Amazônia Brasileira. Rev Soc Bras Med Trop 2001; 34: 413-9.
14. Calvo Mendez ML, Nogueda Torres B, Alejandre Aguilar R. The oral route: an access port for Trypanosoma cruzi. Rev Latinoam Microbiol 1992; 34: 39-42.
15. Kirchhoff LV, Hoft DF. Immunization and challenge of mice with insect-derived metacyclic trypomastigotes of Trypanosoma cruzi. Parasite Immunol 1990; 12; 65-74.
16. Hoft DF, Farrar PL, Kratz-Owens K et al. Gastric invasion by Trypanosoma cruzi and induction of protective mucosal immune responses. Infect Immun 1996; 64: 3800-10
17. Hoft DF. Differential mucosal infectivity of different life stages of Trypanosoma cruzi . Am J Trop Med Hyg 1996; 55: 360-4.
18. Camandaroba EL, Pinheiro Lima CM, Andrade S. Oral transmission of Chagas' disease: importance of Trypanosoma cruzi biodeme in the intragastric experimental infection. Rev Inst Med Trop São Paulo 2002; 44: 97-103.
19. Prata A. Clinical and epidemiological aspects of Chagas' disease. Lancet Infect Dis 2001; 1: 92-100.
Recebido em 03/05/05
Aceito em 04/05/05
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Jan 2006 -
Data do Fascículo
Dez 2005