PONTO DE VISTA
Síndrome metabólica
Rafael Leite Luna
Instituto de Pós-Graduação Médica Carlos Chagas, Duque de Caxias, RJ
Correspondência Correspondência: Rafael Leite Luna Praia do Flamengo, 374/501 22210-030 Rio de Janeiro, RJ E-mail: rluna@cardiol.br
Palavras-chave: Síndrome metabólica, hipertensão, dislipidemias, diabete melito.
A Evolução da síndrome metabólica
Em 1939, o autor inglês H. Himsworth, na Goulstonian Lecture do Royal College of Physicians, em Londres, mostrou que a absorção de glicose era variável de indivíduo para indivíduo de acordo com a sensibilidade celular à insulina (maior ou menor resistência), sugerindo um mecanismo que mais tarde explicaria o diabete melito tipo 21.
Em 1968, vinte anos após a criação do Projeto Cardíaco de Framingham, ficou evidente que certos fatores poderiam ser, de um modo ou de outro, prejudiciais ao bom funcionamento das artérias. Estava nascendo o importante conceito de fator de risco que, nos trinta anos subseqüentes, revolucionaria a história natural da aterosclerose.
A definição de fator de risco é, portanto, a via que pode conduzir um indivíduo à maior probabilidade de desenvolver uma doença.
Apesar de o artigo de Himsworth ter sido publicado em 1939, somente em 1979 De Fronzo, nos Estados Unidos, descreveu uma técnica adequada e precisa para medir a resistência à insulina, chamando-a de Teste de Fixação Euglicêmica da Insulina; essa técnica possibilitou que essa resistência fosse estudada intensa e extensamente2.
Em 1988, G. Reaven, do Departamento de Medicina Cardiovascular da Universidade de Stanford, na Califórnia, em uma memorável conferência (Banting Lecture), chamou a atenção para o fato de que alguns fatores de risco aparecem com freqüência agrupados em determinados indivíduos. A essa condição deu ele o nome de síndrome da resistência à insulina, pois esses indivíduos tinham pequena sensibilidade à insulina3,4.
Em 1998, a Organização Mundial de Saúde (OMS) desenvolveu um critério de definição para esse quadro, chamando-o, pela primeira vez, de síndrome metabólica, nele incluindo, além da hipertensão arterial e da dislipidemia, também a obesidade e a microalbuminúria5.
Em 2001, o National Institute of Health, por meio do National Cholesterol Education Program (NCEP), reuniu o 3dAdult Treatment Panel (ATP III) e sugeriu um outro critério de definição para a síndrome metabólica, diferente daquele da OMS; a definição americana ficou mais simples e prática do que a do organismo internacional, pois não usava o peso e a microalbuminúria; entretanto, requeria para o seu diagnóstico que houvesse pelo menos três componentes anormais6.
A síndrome metabólica seria, então, um sistema múltiplo de predição de risco cardiovascular baseado em alguns fatores de risco não contemplados em outros sistemas.
Em 2002, Lakka e cols. já mostravam que as doenças cardiovasculares e a mortalidade geral apresentavam-se aumentadas em homens de meia-idade com síndrome metabólica, mesmo em indivíduos sem doença coronariana ou diabete estabelecidos7.
Em abril de 2005, foi publicada a I Diretriz Brasileira de Diagnóstico e Tratamento da Síndrome Metabólica com o apoio da Sociedade Brasileira de Cardiologia8,9.
Avaliação crítica da síndrome metabólica
Em relação à definição
1) A síndrome metabólica não está ainda tão bem-definida e bem-caracterizada, como se assume; cada definição existente apresenta diferentes componentes, variáveis ou fatores de risco, o que a torna por vezes confusa e ambígua10-12;
2) O valor médico do diagnóstico da síndrome não é ainda bem evidente13;
3) Por essas razões, certos autores preferem chamar, hoje em dia, essa entidade de risco metabólico ou de risco cardiometabólico, em vez de síndrome metabólica13.
Generalidades
1) Sendo a síndrome metabólica um escore de predição do risco cardiovascular, haveria razão para nela incluir pacientes com diabete ou doença cardiovascular já clinicamente diagnosticada, quando se sabe que esses doentes nada teriam a ganhar em relação ao benefício de saber do risco ou de um tratamento comprovadamente conhecido?
2) Há estudos sugerindo que, como escore de risco cardiovascular, o escore coronariano de Framingham é superior ao da síndrome metabólica10,12,13; contudo, o estudo ARIC comparou os dois métodos por meio das receptor operating curves encontrando um valor preditivo idêntico14.
Fisiopatologia da síndrome metabólica
1) Embora a resistência à insulina seja a melhor sugestão como base fisiopatológica da síndrome metabólica, existe considerável dúvida de sua existência em todos os pacientes12;
2) Há várias outras sugestões para substrato fisiopatológico da síndrome metabólica, como a inflamação, a obesidade e a hiperglicemia, todas elas ainda necessitando de longas pesquisas para comprová-las como substrato12;
3) Os estados pró-inflamatório e pró-trombótico já são, com freqüência, associados à síndrome metabólica.
Componentes, variáveis ou fatores de risco na definição da síndrome metabólica
1) Os fatores de risco que foram agrupados para definir a síndrome metabólica não estão baseados em nenhum critério definido. É necessário que haja um critério racional na escolha dos componentes da síndrome;
2) A síndrome metabólica ainda não é, como se assume, um marcador de risco cardiovascular muito melhor do que o risco de cada um dos seus componentes somados. O valor de predição da síndrome parece, portanto, menor do que a soma das partes12;
3) Os critérios de definição da síndrome metabólica têm, em geral, quatro ou cinco componentes; teriam eles o mesmo valor ou o mesmo peso numa avaliação de risco? Dito de outra maneira, algumas combinações de componentes ou de fatores carreariam o mesmo risco do que outras combinações? O valor preditivo de cada fator de risco para a doença cardiovascular é, portanto, variável, e depende de cada risco específico existente14;
4) O tratamento da síndrome não é diferente do tratamento de cada um dos seus componentes12;
5) Para ser efetiva, a síndrome metabólica precisa fazer uma análise racional da necessidade de se adicionar à relação dos seus componentes outros fatores de risco como idade, sexo, proteína C-reativa ultra-sensível (PCRus), história familiar ou resistência à insulina15;
6) Sabe-se que a presença de diabete ou de resistência à insulina determina um risco maior do que qualquer um dos outros componentes16.
Agenda para pesquisa
1) Existe a necessidade premente, no estudo da síndrome metabólica, de mais informação fundamental que seja clinicamente importante e criticamente avaliada12;
2) Em todos os aspectos da síndrome metabólica, desde o nome de síndrome, a falta de conhecimento sobre a fisiopatologia, a inclusão ou exclusão de determinadas componentes, a validade de se fazer o diagnóstico clínico, até a inexistência de tratamento da síndrome propriamente dito, há absoluta necessidade de muita pesquisa, mesmo para chamá-la de síndrome ou doença e, também, para esclarecer se o seu conhecimento é realmente útil.
Conclusão
Vimos ao longo dessa exposição como essa brilhante idéia vem se desenvolvendo, embora ainda continue em evolução e não tendo uma definição precisa nem um substrato conhecido que a fundamente. Como dizemos em nosso livro, idéias como essa são tão revolucionárias e estão mudando de tal modo o pensamento tradicional, que já se admite examinar as hipóteses de que a hipertensão seja também uma doença metabólica, e o diabete melito tipo 2, uma doença vascular na qual a elevação da glicemia seria uma manifestação tardia da doença17.
A síndrome metabólica continua sendo uma brilhante idéia cheia de dados controversos.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.
Referências
1. Himsworth HP. The mecanism of Diabetes Mellitus. I, II, III. Lancet.1939; 2: 1-6, 65-8, 118-22.
2. De Fronzo R, Tobin J, Andres R. Glucose clamp technique: a method for quantifying insulin secretion and resistance. Am J Physiol. 1979; 237: E214-E223.
3. Reaven GM. Banting Lecture 1988: role of insulin resistance in human disease. Diabetes. 1988; 37: 1596-607.
4. Reaven GM. The metabolic syndrome: requiescant in pace. Clin Chem. 2005; 51: 931-8.
5. Alberti KGMM, Zimmet PZ for the WHO Consultation: definition, diagnosis and classification of the diabetes mellitus. Part 1. Diabet Med. 1998; 15: 539-53.
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9. Brandão AP, Brandão AA, Berenson GS, Fuster V. Síndrome metabólica em crianças e adolescentes. [editorial]. Arq Bras Cardiol. 2005; 88: 79-81.
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12. Kahn R, Ferrannini E, Buse J, Stern M..The metabolic syndrome: time for a critical appraisal. Diabetes care. 2005; 28: 2289-304.
13. Goldfarb B. ADA/EASD statement cast critical eye on metabolic syndrome: risk may be no more than the some of the parts. DOC News. 2005; 2 (10): 1.
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17. Luna RL. Síndrome metabólica: conceitos atuais. Rio de Janeiro: Revinter; 2006.
Artigo recebido em 24/4/06; revisado em 20/12/06; aceito em 27/12/06.
Correspondência:
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Jun 2007 -
Data do Fascículo
Maio 2007