PONTO DE VISTA
Necessidades e preferências do portador de cardiopatia valvar
Max Grinberg; Antonio Sergio Santis Andrade Lopes
Instituto do Coração-InCor HC FMUSP, São Paulo, SP - Brasil
Correspondência Correspondência: Max Grinberg Rua Manoel Antonio Pinto, 04 / 21 A, Paraisópolis CEP 05663-020, São Paulo, SP, Brasil E-mail: max@cardiol.br, grinberg@incor.usp.br
Palavras-chave: Doença das Valvas Cardíacas; Qualidade de Vida; Participação do Paciente; Bioética.
Introdução
A deliberação sobre conduta em prol da boa qualidade de vida do portador de cardiopatia valvar crônica ao longo da história natural da enfermidade é sustentada por quatro fundamentos das boas práticas1,2: 1 - Identificação da necessidade clínica do paciente; 2 - Seleção de recomendação útil e eficaz segundo o estado da arte; 3 - Rigor com segurança da harmonia orgânica na aplicação de benefício conceitual; 4 - Realidades de preferência do paciente.
A identificação da necessidade clínica do paciente compreende: a) atualização cardiodiagnóstica valvar e não valvar; b) avaliação prognóstica do momento evolutivo; c) identificação de comorbidades à cardiopatia. O uso direto dos órgãos dos sentidos (audição, palpação e inspeção) e a informação por meio de traçados, números e imagens respondem pela captação da necessidade clínica do paciente, que, essencialmente, vincula-se a peculiaridades etiológicas e ao desenrolar fisiopatológico da cardiopatia valvar.
A seleção de recomendação útil e eficaz segundo o estado da arte inclui: a) farmacoprofilaxia da doença reumática, da endocardite infecciosa e do tromboembolismo; b) farmacoterapia cardiovascular para alívio da carga hemodinâmica e controle de repercussões sobre distribuição hídrica corpórea, função miocárdica e ritmo cardíaco; c) mudança de hábitos de vida; d) intervenção corretiva sobre a qualidade do abrir e fechar valvular. Mesmo método (implante de prótese valvar, por exemplo) distribui-se em distintas dimensões de utilidade durante a evolução da necessidade clínica (grau importante de insuficiência aórtica ainda em classe funcional I/II ou já evoluída para restrição expressiva da qualidade de vida, por exemplo), sustentados por probabilidade de certeza embasada, na maioria das recomendações, em opiniões de especialistas (nível C em diretrizes).
O rigor com a segurança clínica do paciente na aplicação do benefício conceitual para o momento da cardiopatia valvar exige que prevenção e tratamento ocorram com a máxima preservação dos órgãos saudáveis e com a melhor convivência com comorbidades crônicas. Nas últimas duas décadas, inserem-se mais pontuações nos escores de risco no portador brasileiro de cardiopatia valvar, em função da elevação progressiva da média etária por ocasião das intervenções invasivas3.
O Foco no paciente
Identificação da necessidade clínica, seleção de recomendações e rigor com segurança dão qualidade ao processo de triangulação entre o rapidamente renovável acervo científico e tecnológico da medicina, a base moral da assistência ligada às indispensáveis capacitação e expertise profissionais do cardiologista e a expressão clínica do portador de cardiopatia valvar. Dados indicativos, fatos sugestivos e evidências favoráveis, assim reconhecidos por meio da experiência coletiva da literatura e/ou da vivência à beira do leito, sustentam a excelência desse vínculo essencial medicina-médico-portador de cardiopatia valvar.
Nas combinações da atenção à doença, assim determinados, a participação do paciente é, fundamentalmente, a de um emissor de sinais e sintomas diagnósticos e de um receptor de contramovimentos terapêuticos visando ao etiopatogênico e ao fisiopatológico. Mas o ser humano portador de cardiopatia valvar vai além, ele apresenta-se com preferências de atitude4-6 manifestas por: a) iniciativa por consulta inicial; b) veracidade da subjetividade clínica; c) escolha do tipo de prótese valvular; d) comparecimento a seguimentos de consulta e exames evolutivos e e) aderência à conduta consentida, farmacológica e não farmacológica. Elas resultam de um processo mental sobre o mérito da triangulação acima referida a cada etapa do tratamento e da vontade em se submeter.
Este quarto componente da deliberação admite o direito que o portador de cardiopatia valvar tem de consentir ou não com o que seria aplicável no curto prazo a sua necessidade clínica, inclusive de rever a decisão a qualquer momento, e de fazer ou não fazer "para toda a vida" cada conduta que afirmara consentido, muitas vezes de modo repetido.
Ressalte-se que muitos aspectos do racional do manejo da cardiopatia valvar - interfaces entre prevenção, tratamento e prognóstico, por exemplo - não são tão naturais para o ser humano não versado. Afinal, os cardiologistas os apreendem na graduação, sujeitam-se a reaprendizados pelo profissionalismo e, nem sempre, explicações tornam-nas compreendidos em suas essências por quem possui a doença, mas não conhece as singularidades.
É no mínimo curioso como a conduta em cardiopatia valvar - durante muitos anos da sua história natural, já no estágio de lesão importante, mas com qualidade de vida preservada (rotulado como 'assintomático'), de modo distinto ao da prática com muitas outras doenças - é a de "aproveitar" as mudanças patológicas expressivas da arquitetura cardíaca - a chamada remodelação natural - como benefício bastante para a boa qualidade de vida do paciente1,2. É fundamentação clássica no processo de deliberação da conduta, porque: a) não há a sensação de estar doente; b) inexistem fármacos atuantes sobre o tecido valvar; c) próteses valvulares não atingiram o nível ideal; e d) a conduta expectante não compromete o prognóstico. Em decorrência, vários questionamentos surgem sobre o peso relativo da responsabilidade profissional do médico em identificar e pessoal do portador de cardiopatia valvar em informar.
Assim, o saber complexo do cardiologista - o qual lhe dá competências tão diversificadas quanto sujeitas a restrições ético-legais - é colocado à disposição do pluralismo de uma população que, embora doente, não é obrigada ao usufruto da medicina. E como a negligência e a imprudência com o próprio cuidar da doença valvar não têm o mesmo sentido da infração profissional, os comportamentos "clinicamente inadequados" do paciente, expressões de livre arbítrio, precisam ser tolerados pelo mesmo cardiologista que valoriza ao extremo possível o zelo e a prudência.
Consentimento e recusa, aderência e descumprimento ao mesmo estado da arte oferecido representam vontades do paciente subordinadas aos seus estados afetivos e deles provêm razões suficientes para o universo de pacientes - uma minoria, é verdade, mas numericamente expressiva - que não deseja mais passar pelo desconforto mensal da antibioticoprofilaxia da doença reumática, que se satisfaz com os efeitos benéficos dos primeiros comprimidos de um fármaco redutor de carga hemodinâmica e que reluta contra a ideia de controle laboratorial periódico de anticoagulação oral. Em outras palavras, o cotidiano da deliberação e do cumprimento pelo portador de cardiopatia valvar inclui lidar com heterogeneidades de disposição para ser afetado pela tecnociência da medicina e que nada tem a ver com confiança no médico.
Modernamente, o princípio da autonomia reafirma o quanto a afetividade da condição humana é componente essencial da adequação ética7. Aprendeu-se que a procura por uma outrora "ofensiva" segunda opinião facilita ao paciente aceitar igual primeira opinião, em função de mudanças pessoais do impacto desagradável inicial, que acontecem pelo fator "tempo de absorção do impacto" entre as duas opiniões. Em contraponto, e realçando que o médico também tem o direito à autonomia, o transtorno hipocondríaco e a síndrome de Münchausen (transtorno factício com o objetivo de gerar atenção médica relacionado a uma necessidade de estar enfermo)8 lembram que, quando pensamentos do paciente são orientados para irrealidades diagnósticas, eles se tornam inadmissíveis de serem comungados pelo médico.
A preferência do paciente situa-se, pois, numa dimensão da tomada de decisão complementar à da formada pela disponibilidade de recursos da ciência e da tecnologia frente às necessidades clínicas. A primeira vale no individual e a segunda, no coletivo.
Neste sentido, os afetos de cada portador de cardiopatia valvar causam aumento ou redução da potência de agir face ao tecnocientífico. Pioras clínicas tendem à receptividade ao recomendado, enquanto melhoras tendem à inação.
Hot-cold empathy gap
Atribui-se ao chamado "hot-cold empathy gap" a influência dos estados afetivos do paciente sobre oscilações de "compliance"9. Eles incluem: a) percepção de estar com uma necessidade clínica; b) recordação do quanto já sofreu com desconfortos; c) direcionamento dos objetivos que almeja numa conduta; d) competência para análise de riscos e benefícios; e) grau de satisfação com o presente do estado de saúde; f) intensidade da valorização do futuro.
Estando o portador de cardiopatia valvar em situação "hot", afetado que está por sintomas que o fazem sentir-se prejudicado na qualidade de vida, a sua preferência tende à procura por consulta, ao consentimento à recomendação médica, à premência da aplicação do método terapêutico e à redução da importância momentânea da sua rotina de vida. Há um aspecto de caráter ético a considerar, porque a situação "hot" traz dificuldades em vislumbrar uma mudança imediata para "cool", o portador de cardiopatia valvar fica vulnerável a eventuais proposições à margem das boas práticas.
Na situação inversa, em que o portador de cardiopatia valvar está "cool", confortável apesar da sua doença, ocorre uma lacuna de natureza prospectiva que tende a inibir a percepção sobre pontos futuros da história natural da cardiopatia valvar que o cardiologista conhece e em relação aos quais se esforça por tomar providências.
É de se notar o paralelismo que ocorre entre, de um lado, a afetividade do paciente e a sua percepção de necessidade e, de outro, a distinção médica entre boa e má qualidade de vida como base clássica para tomadas de decisão em cardiopatia valvar. É reforço para a linha de pensamento que descredencia uma recomendação rotineira de intervenção cirúrgica durante a fase a/oligossintomática da história natural da cardiopatia valvar, só porque há certas conclusões científicas de bons resultados.
No mundo real, desarmonias no âmbito da relação cardiologia-cardiologista-portador de cardiopatia valvar, ditadas pelo estado afetivo do paciente ocorrem mais comumente no decorrer do prolongado tempo de validade de condutas consentidas, resultando num paradoxo entre o desejo pelo melhor prognóstico e o desejo de viver bem. O "watchful waiting" que se enquadraria como negligência do médico passa a ser a realidade, e o cardiologista só tardiamente saberá da quebra do compromisso por parte do paciente, na ocasião do agravamento inexorável da história natural da cardiopatia valvar.
Conclusão
Análises do valor moral de sequentes tomadas de decisão em momentos distintos da cardiopatia valvar não podem desconsiderar os inevitáveis encontros entre a racionalidade de evidências científicas, com conotação heteronômica, e movimentos autonômicos pendulares afetivo-dependentes de preferências do paciente. Uma cultura transdisciplinar por parte do cardiologista facilita a aplicação dos saberes além da ciência médica em prol do assumir/julgar corretamente/bem comunicar-se, a tríade que fornece a boa justificativa para a manutenção do vínculo médico-paciente em meio a variações de convergência entre comportamento humano e estado da arte.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Vinculação Acadêmica
Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
Recebido em 18/06/12; revisado em19/10/12; aceito em 19/10/12.
Referências bibliográficas
- 1 Tarasoutchi F, Montera MW, Grinberg M, Barbosa MR, Piñeiro DJ, Sánchez CRM, et al; Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretriz brasileira de valvopatias - SBC 2011 / I Diretriz Interamericana de Valvopatias - SIAC 2011. Arq Bras Cardiol. 2011;97(5 supl. 3):1-67.
- 2 Grinberg M, Tarasoutchi F, Sampaio RO. Roteiro para resolução de valvopatia (Resolva). Arq Bras Cardiol. 2011;97(4):e86-90.
- 3 Grinberg M, Accorsi TA. Estenose aórtica no idoso: perspectiva brasileira. Arq Bras Cardiol. 2009;92(2):e36-9.
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- 5 Rees C. Iatrogenic psychological harm. Arch Dis Child. 2012;97(5):440-6.
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- 7 Singer P, Kuhse H. Bioethics and the limits of tolerance. J Med Philos. 1994;19(2):129-45.
- 8 Asher R. Munchausen's syndrome. Lancet. 1951;1(6650):339-41.
- 9 Loewenstein G. Hot-cold empathy gaps and medical decision making. Health Psychol. 2005;24(4 Suppl):S49-56.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Mar 2013 -
Data do Fascículo
Dez 2012