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Prudência na conduta em valvopatia

PONTO DE VISTA

Prudência na conduta em valvopatia

Max Grinberg

Instituto do Coração (InCor) - HCFMUSP, SP, São Paulo - Brasil

Correspondência Correspondência: Max Grinberg Rua Manoel Antonio Pinto, 04 ap. 21A, Paraisópolis CEP 05663-020, São Paulo, SP - Brasil E-mail: max@cardiol.br, grinberg@incor.usp.br

Palavras-chave: Ética Médica, Doença das Valvas Cardíacas / história, Próteses Valvulares Cardíacas.

Recentemente, o artigo 29 do Código de Ética Médica, brasileiro, de 1988, ganhou a primazia de artigo 1°, na versão 20101, por ser, historicamente, o mais infringido. A imprudência é atitude nele tipificada, ao lado da negligência. O destaque traz à mente a integração entre valores humanos e escolhas, saber e sabedoria, motivação e expertise, diálogo e documentação, estado da arte sobre a doença e peculiaridades do doente como essência da prática clínica virtuosa.

Considerando que atuar com ética inclui deliberar com prudência - uma das virtudes essenciais da história da Humanidade -, a busca das razões terapêuticas para o bem melhor do paciente em questão vale-se de um processo de argumentação sobre probabilidades e incertezas acerca do sucesso; a experiência modula a medida das amplitudes e das sutilezas empregadas em cada apreciação sobre benefício conceitualmente aplicável para satisfazer a necessidade clínica versus grandeza dos riscos de adversidade.

Se o processo mecanicista de obtenção das melhores evidências científicas utiliza-se do reducionismo na concepção da pesquisa no voluntário de pesquisa (exclusões em função do objetivo)2, a excelência assistencial requer, também, pensar em eliminações de métodos terapêuticos em função das melhores evidências clínicas obtidas desde o paciente. Em decorrência, cumpre-se um dos requisitos - a informação clínica - para a aplicação da chamada Medicina Personalizada, que invoca o tratamento mais individualizado possível (os demais são dados genéticos, genômicos e ambientais)3,4.

Deste modo, a beira do leito que lida no limite máximo possível da prudência, haja vista não existir iatrogenia zero, afiança que o que é "prudentemente" escolhido é para fazer e o que é "prudentemente" afastado não é para fazer estará em conformidade com a ética. Em outras palavras, o leque que foi aberto pelas opções tecnocientíficas será fechado na realidade clínica do caso em condutas indicadas ("prudentes"), não indicadas ("fronteiriças") e contraindicadas ("imprudentes"). Um método pode ser classificado nas três categorias em momentos distintos da história natural de um mesmo paciente.

Dentro desta óptica, a ponderação sobre a prudência antecede a preocupação com o zelo (antônimo de negligência), aliás, a ordem observada no acima referido primeiro enunciado do Conselho Federal de Medicina sobre o que é vedado ao médico brasileiro. A subordinação das habilidades a uma atmosfera de prudência acresce valor social à Medicina. Comportamentos de violação da prudência são impensáveis em face da expansão das adversidades ao paciente que envolve a multiplicação de causas de doenças, métodos diagnósticos e modalidades de tratamento5.

De fato, a complexidade tanto dos aspectos biocientíficos, quanto daqueles socioeconômicos associados a ato médico, provoca permanente desafio, caso a caso, à abrangência de aplicação dos meios terapêuticos, suposta nos textos de comunicação científica. Assim, o exercício de prudência, ao anteceder a execução de certo procedimento (farmacoprescrição, cirurgia), faz valer o senso crítico do médico sobre a melhor perspectiva de bem para o futuro do seu paciente. Muito embora não se possa assegurar o resultado de nenhuma estratégia de condução terapêutica, a chance da esperada reprodução do mesmo cresce pelos ajustes ao reconhecimento das limitações - qualitativas ou quantitativas - proporcionadas pelas peculiaridades clínicas do paciente, especialmente impactos de comorbidades. Como ilustração do compromisso da prudência com não adversidades para o futuro clínico, fármacos podem se tornar desaconselhados ou precisar de modificações na dose rotineira pela prudência da investigação das funções hepática e renal.

Uma vez de posse do benéfico/não maléfico destacado ao caso, o pensamento volta-se para a dimensão do presente, ou seja, a execução, o que expressa zelo (não negligência). Esquemas como os algoritmos que organizam caminhos de acordo com circunstâncias pré-estabelecidas dão a ideia da sequencia prudência-zelo. Exemplo é o chamado "watchful waiting", que é uma atitude de prudência em face de uma combinação de circunstâncias que tranquiliza - na medida do possível - sobre o prognóstico, mas que, quando transformado em indicação de procedimento, emerge o zelo com a sua realização em prazo conveniente.

Percebe-se que o uso cotidiano de rotinas predispõe a que haja um by-pass mental pela prudência, entendida como já constante da recomendação e faz predominar a visão de não negligenciar o que deve ser feito. Neste particular, o entendimento que uma adversidade "faz parte" precisa ser bem cuidado na diferença entre o que é eliminável (prescrever alternativa ao enalapril, caso venha a ocorrer tosse) e o que é inevitável, embora controlável (elevação do nível de creatinina sérica pelo uso de alta dose de diurético em situação de insuficiência cardíaca grave). É a boa qualificação do raciocínio clínico pari passu com os entendimentos da anamnese e exames físico e complementar que dá excelência ao real, contínuo e humano exercício da prudência.

Considerando a resolução terapêutica em valvopatia, a mentalização exercida pelo cardiologista que lhe assegure que a conduta consentida incluiu a prudência - pedágio final do roteiro RESOLVA6 -, é aval de progressão para o status de conduta legítima, aquela que expressa relação médico-paciente harmônica com a ética.

A prudência aplicada ao portador de uma doença indelével, como a valvopatia, é a arguta conselheira sobre a fidelidade ao futuro, que coloca em primeiro plano de atenção a precaução sobre o que poderá acontecer pela aplicação terapêutica, a partir do conhecimento de causas e efeitos. Ela é fator de solidez na construção do binômio-alicerce risco inevitável-benefício desejável para a deliberação em valvopatia.

A fase primeira da história natural do modelo reumático das valvopatias é peculiar em Cardiologia, pois ela é marcada pela manutenção da classe funcional I/II, apesar da evolução morfológica das lesões valvares. Nela, a inação terapêutica do cardiologista, porque simplesmente endossa o proveito clínico proporcionado pela remodelação cardíaca, é atitude de prudência, entendendo que há desnecessidade de complementar com farmacoterapia o competente "tratamento da natureza" que acontece. De tal sorte, é creditado à prudência privilegiar a carência da manifestação clínica ao estado morfológico avançado da lesão valvar observada por vários anos. Aguardar um momento prescritivo dos recursos disponíveis da Medicina com mais equilíbrio entre o bem concebível da correção hemodinâmica e a segurança dos métodos a serem utilizados no portador da valvopatia é conjugar prudência e realidades do prognóstico sobre qualidade e duração da vida. Nesta linha de pensamento, a hierarquia de procedimento de prudência, com seu justo encaixe à conta do futuro do portador a/oligossintomático de valvopatia, concentra-se na supressão de agravos etiopatogênicos, por meio de antibioticoprofilaxia para nova atividade reumática (quando couber) e para endocardite infecciosa.

A história contemporânea do conhecimento em valvopatia foi forjada com um poderoso sentido de prudência. Exemplo emblemático é a criação dos 10 mandamentos para a prótese valvar ideal, uma coleção de inquietudes (ainda não resolvidas completamente) do pioneiro cirurgião Dwight Emary Harken (1910-1993) e cols7. Deve ser creditada à elaboração motivada na prudência, a sua conversão num clássico da literatura em Cardiologia, ou seja, ter se tornado autêntico representante do vínculo de experiências e ideias entre gerações de médicos, no mais claro sentido hipocrático.

Tipos de conduta suportados por uma varredura crítica na literatura científica acerca de valvopatia, e etiquetados segundo as modalidades de doenças valvares quanto à dimensão de efeito e probabilidade de certeza do mesmo, têm sido reunidos em diretrizes. Como não poderia deixar de acontecer, estas sistematizações, que devem ser periodicamente revistas, incluem o senso de prudência para o coletivo dos pacientes, quer pela exclusão de dados e opiniões publicados em diversos periódicos, julgados inapropriados para, sequer, serem considerados, quer pelo entendimento da necessidade de apresentar explicitamente como impropriedade de escolha. Todavia, não basta num universo infinito de combinações nosológicas.

É nítida a hierarquia da prudência na formulação das 7 questões essenciais da avaliação do portador de valvopatia visando à intervenção destacadas na diretriz 2012 da European Society of Cardiology and the European Association for Cardio-Thoracic Surgery8, a saber: a) a valvopatia é em grau importante?; b) o paciente é sintomático?; c) os sintomas estão ligados à valvopatia?; d) qual é a expectativa de vida do paciente e da sua qualidade de vida?; e) os benefícios esperados pela intervenção (versus evolução natural) suplantam os riscos?; f) quais são as preferências do paciente?; g) há recursos locais suficientes para a realização do planejado?. Sobre este último item e porque a prudência inclui considerar o incerto da destreza do recurso humano, avaliação de mais de 50.000 operações sobre a valva mitral concluiu que o volume de casos de um cirurgião é fator independente dos resultados dos hospitais e sugeriu que a identificação dos processos que determinam melhores resultados aos cirurgiões mais operadores é fator de prudência9. Por outro lado, a relação plástica da valva mitral/implante de prótese mitral aumenta à medida que cresce o volume de operações sobre esta valva num determinado hospital10.

O caráter intrínseco da prudência na não recomendação revela-se na dimensão de efeito III (inutilidade, ineficácia e até prejudicial) das diretrizes organizadas por Sociedades de Cardiologia; ele expressa a reprovação na associação prudência e moral, embora não isenta de dúvidas, por se associar à probabilidade de certeza C. A prudência da não recomendação envolve um sentido deontológico, ou seja, ignorar aconselhamento "oficial" a não aplicação expõe a indícios de infração ao nosso código de ética, em princípio, desatenção às evidências de má relação risco-benefício ao atendimento das necessidades do portador de valvopatia. Ademais, apreciações jurídicas de desobediência a diretrizes têm contraponto em documentada conformidade ao melhor interesse às especificidades clínicas do paciente.

À medida que o cardiologista envolve-se com as dimensões de efeito I, IIa e IIb, o binômio ser prudente-ser moral atua pelo compromisso com uma visão integrada das morbidades do portador de valvopatia. Enquanto a aplicação das classes I e IIa parte de uma conotação de recomendação prudente desde que não haja um óbice individual, a classe IIb apresenta maior grau de conflito entre evidências, e como a inutilidade e a ineficácia não podem ser descartadas, implica em menor atestado "oficial" de prudência no uso.

Sendo a prudência matéria-prima do intelecto do cardiologista, enxergar o paciente além da valvopatia, no trajeto Conduta Recomendável - Conduta Legítima5, traz o sentido da responsabilidade profissional com a hierarquia do componente ontológico da ética, aquele que emerge do ser médico e está implícito no juramento hipocrático.

Em conclusão, a resolução perante valvopatias é exercício cauteloso pró-prognóstico e contra-adversidade terapêutica no contexto do estado da arte, que exige intimidade com as melhores evidências científicas e olhar individualizado, evitando, assim, reduzir o portador de valvopatia à impessoalidade de apenas um diagnóstico/tratamento constante num índice remissivo.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa, Redação do manuscrito e Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Grinberg M.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 31/08/12, revisado em 09/11/12, aceito em 09/11/12.

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  • Correspondência:

    Max Grinberg
    Rua Manoel Antonio Pinto, 04 ap. 21A, Paraisópolis
    CEP 05663-020, São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013
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