Open-access Portador Heterozigoto Composto de Hipercolesterolemia Familiar Causada por Variantes no LDLR

Resumo

A hipercolesterolemia familiar (HF) é uma doença genética causada por um defeito primário no gene que codifica o receptor da LDL. Mutações diferentes no mesmo gene caracterizam um heterozigoto composto, mas pouco se sabe sobre o fenótipo dos portadores. Portanto, neste estudo, descrevemos o rastreamento em cascata de uma família brasileira com essa característica. O caso-índice é um homem de 36 anos, com colesterol total (CT) de 360 mg/dL (9,3 mmol/L) e concentração de LDL-c de 259 mg/dL (6,7 mmol/L), além de xantomas de tendão de Aquiles, obesidade e pré-hipertensão. A genotipagem identificou as mutações 661G>A, 670G>A e 682G>A, no exon 4, e 919G>A, no exon 6. A mesma mutação no exon 4 foi observada no filho do caso-índice (7 anos), que também tem hipercolesterolemia e xantomas tendinosos, ao passo que a filha do caso-índice (9 anos) apresenta mutação no exon 6 e hiperlipidemia, sem xantomas. Em suma, este relato permite uma melhor compreensão acerca da base molecular da HF no Brasil, um país multirracial, onde é esperada uma população heterogênea.

Hipercolesterolemia familiar; Hiperlipoproteinemia Tipo II; Triagem genética em cascata; Genotipagem; Aterosclerose; Heterozigoto Composto

Abstract

Familial hypercholesterolemia (FH) is a genetic disease caused by a primary defect in the LDL-receptor gene. Distinct variants in the same gene characterize a compound heterozygote, but little is known about the phenotypes of the carriers. Therefore, herein, we describe the cascade screening of a Brazilian family with this characteristic. The index case, a 36-year-old male, had a total cholesterol level of 360 mg/dL (9.3 mmol/L) and LDL-c value of 259 mg/dL (6.7 mmol/L), in addition to Achilles tendon xanthomas, obesity and prehypertension. Genotyping identified the variants 661G>A, 670G>A, 682G>A in exon 4 and 919G>A in exon 6. The same variant in exon 4 was found in the index case’s son (7-y), who also had hypercholesterolemia and xanthomas, while the index case’s daughter (9-y) had the variant in exon 6 and hyperlipidemia, without xanthomas. In summary, this report allows for a better insight into the molecular basis of FH in Brazil, a multi-racial country where a heterogeneous population is expected.

Familial hypercholesterolemia; Hyperlipoproteinemia Type II; Genetic Cascade Screening; Genotyping; Atherosclerosis; Compound Heterozygous

Introdução

O aumento dos níveis plasmáticos de colesterol total (CT) e da lipoproteína-colesterol de baixa densidade (LDL-c) ocorre em pacientes com formas graves e precoces de hipercolesterolemia familiar (HF), uma doença genética geralmente resultante de mutações no gene LDLR, que codifica o receptor LDL.1 A detecção da mutação patogênica é o padrão ouro para o diagnóstico de HF, e a forma mais eficiente de triagem é o rastreamento dos parentes de um paciente já diagnosticado (caso-índice).1

A presença de mutações distintas no mesmo gene caracteriza o indivíduo como heterozigoto composto.2-4 Embora as consequências clínicas das mutações heterozigotas e homozigotas sejam descritas frequentemente, pouco se sabe sobre os fenótipos de portadores heterozigotos compostos.2-4 A grande sobreposição de fenótipos dentro do espectro de portadores de mutação relacionadas à HF pode explicar a subnotificação dos heterozigotos compostos e sugere que este diagnóstico é facilmente perdido.2

Levando-se em consideração que encontramos apenas um relato de heterozigoto composto para HF no Brasil,5 descrevemos neste estudo o rastreamento de uma família brasileira com essa característica. Os métodos aplicados estão descritos no Arquivo Suplementar 1.

Resultados

Todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido do protocolo de pesquisa, incluindo os testes genéticos, e o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina aprovou o estudo (CAAE: 54585416.1.0000.0121).

O Arquivo Suplementar 2 mostra a árvore genealógica do caso-índice (indivíduo I) e seus familiares. O indivíduo I é um homem de 36 anos de idade. Apesar de fazer uso diário de 20 mg de Sinvastatina, o caso-índice apresentou CT de 360 mg/dL (9,3 mmol/L), um valor de LDL-C de 260 mg/dL (6,7 mmol/L), correspondente a 80,4% da fração pequena e densa da LDL (sd-LDL), medida após a precipitação das demais lipoproteínas apoB6 (Arquivo Suplementar 1). Também apresentou concentrações plasmáticas elevadas de não-HDL-c, triglicérides e ApoB, além de níveis baixos de HDL-c. O paciente é fumante, sedentário (Arquivo Suplementar 3), obeso com obesidade abdominal e pré-hipertenso. O ultrassom Doppler carotídeo não mostrou aumento da espessura íntima-média, o que não exclui aterosclerose subclínica. Infelizmente, neste estudo, a aterosclerose coronária subclínica não foi avaliada através de angiografia por tomografia computadorizada (TC). Foram identificados xantomas de tendão de Aquiles, e o diagnóstico clínico de HF foi definitivo.

O caso-índice e sua esposa (indivíduo II) relataram histórico familiar de parente de primeiro grau com doença da artéria coronariana (DAC) precoce e concentrações elevadas de CT, mas nenhum caso de doença cardiovascular (DCV) precoce.

O genótipo LDLR do caso-índice revelou três mutações no exon 4 (661G>A, 670G>A, 682G>A) e uma no exon 6 (919G>A).

O indivíduo II não apresentava sinais ou sintomas de HF e não tinha diagnóstico clínico. O rastreamento genético em cascada permitiu a identificação da mutação 919G>A na filha do caso-índice (indivíduo III; 9 anos), e as mutações 661G>A, 670G>A, e 682G>A no filho (indivíduo IV; 7 anos), tendo sido confirmado, assim, o diagnóstico de HF. Ambos os filhos apresentaram hipercolesterolemia (CT 394 and 332 mg/dL (10,2 e 8,6 mmol/L); LDL-c 329 e 286 mg/dL (8,5 e 7,4 mmol/L), e sd-LDL-c 63,5 e 90,5% para os indivíduos III e IV, respectivamente), com índices elevados de ApoB, indicando um padrão mais aterogênico. Além disso, o indivíduo IV apresentava xantomas na mão direita (interdigitais) e no cotovelo esquerdo (Arquivo Suplementar 3). Nenhum dos filhos estava sob tratamento hipolipemiante, e não havia sinais de DAC clínica. O ultrassom com Doppler não revelou nenhuma obstrução na artéria carótida nos indivíduos dessa família. Embora seja provável que eles não tivessem DAC, não é possível afirmar com 100% de certeza devido à falta da angiografia por TC.

Neste estudo, o diagnóstico de FH foi realizado com base nos critérios da Dutch Lipid Clinic Network (DLCN). Deve-se salientar que esse critério é útil apenas para adultos e o diagnóstico nas crianças pode ser subestimado. Levando-se em consideração o critério, mas não o teste genético, os indivíduos I e IV obtiveram 14 pontos e o diagnóstico foi de HF clínica. Por outro lado, o sujeito III obteve apenas oito pontos (diagnóstico provável). Após a identificação das variantes através do teste genético, todos os três sujeitos tiveram mais que oito pontos e foram considerados portadores de HF.

Discussão

O caso-índice apresentou quatro mutações no gene LDLR, o que caracteriza um heterozigoto composto. O caso-índice provavelmente apresentou um fenótipo leve de HF devido à terapia hipolipemiante. Além disso, apresentava comorbidades, tais como obesidade e hipertensão, o que pode complicar o prognóstico. A aterosclerose coronária subclínica não foi avaliada neste estudo. O rastreamento em cascata permitiu a identificação de dislipidemia e o diagnóstico da HF nos filhos do caso-índice. Curiosamente, todos os indivíduos estudados apresentaram níveis elevados de sd-LDL, ao contrário de relatos anteriores, que mostraram uma prevalência de partículas grandes e flutuantes de LDL em pacientes com HF.7 Estudos adicionais são necessários para esclarecer este achado.

A mutação 661G>A substitui o códon GAC por AAC, modificando o aminoácido aspartato por asparagina, na posição 221 da cadeia proteica. Consequentemente, ocorre a substituição de um aminoácido carregado negativamente por um aminoácido fracamente bipolar, o que afeta a atividade de ligação proteína-ligante.8

A mutação 670G>A corresponde à troca do códon GAC pelo AAC na posição 224 da cadeia proteica, levando à substituição do aminoácido aspartato pela asparagina. A mutação gera um receptor r com menos de 2% de sua atividade normal.9

No caso da mutação heterozigota 682G>A, o códon GAG é substituído pelo AAG, levando à substituição do ácido glutâmico por lisina na posição 228. Essa mutação origina a troca de um aminoácido básico por um aminoácido ácido, o que prejudica o transporte do receptor da LDL do retículo endoplasmático para a superfície celular.10 resultando em um receptor LDL com menos de 2% de sua atividade normal.11 As mutações na extremidade 3’ do exon 4 do gene LDLR são uma causa muito comum de HF, e alterações de base única idênticas nessa região curta ocorrem em diferentes populações, especialmente em dinucleotídeos CG. Assim, é pouco provável que a mutação tenha sido herdada de um ancestral comum.11

A mutação 919G>A modifica o códon GAT, correspondente ao aspartato, para AAT, correspondente à asparagina, na posição 307 da cadeia proteica.12 A análise in silico indicou que essa mutação é provavelmente patogênica. O exon 4 não foi genotipado na filha do caso-índice e ela pode ter mutações semelhantes às do pai. Apesar dos níveis similares de lipídios séricos, ao contrário do pai e do irmão, a filha (indivíduo IV) não apresentou xantomas.

As mutações 661G>A, 670G>A e 682G>A foram classificadas como patogênicas/provavelmente patogênicas de acordo com o ClinVar. Por outro lado, a mutação 919G>A possui interpretações conflitantes de patogenicidade (provavelmente patogênico/significado incerto). No entanto, deve-se observar que achados in silico não provam a patogenicidade.13

Há relatos de que mutações homozigotas ou heterozigotas compostas no LDLR, além de mutações duplas no LDLR, estão associadas a níveis mais elevados de LDL-c, xantomatose mais extensa e DAC prematura mais grave em relação às mutações heterozigotas simples.3,4 Entretanto, todos os indivíduos que participaram deste estudo apresentaram fenótipos leves. Contudo, o caso-índice e seus filhos não foram submetidos à avaliação para a presença de aterosclerose coronária subclínica. Todos os indivíduos foram encaminhados a um cardiologista para receberem tratamento e acompanhamento apropriados.

Não podemos afirmar se um diagnóstico genético “duplo” teria relevância clínica quando os pacientes já foram diagnosticados e estão sendo tratados adequadamente com terapia hipolipemiante.2 No entanto, é de importância clínica perceber que essa população deve ser informada sobre a importância da sua herança genética, uma vez que a herança de distúrbios monogênicos combinados é mais grave e está associada a um maior risco de desenvolvimento de DCV, requerendo, assim, maior cuidado.2

Os achados relatados neste estudo ajudam a elucidar as bases moleculares da HF no Brasil, uma vez que há apenas nove estudos disponíveis sobre o rastreamento molecular da HF5 e, levando-se em consideração que este é um país multirracial, é esperada uma população heterogênea. O objetivo desta pesquisa é contribuir para o diagnóstico genético e o aconselhamento de pacientes com HF.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Programa de Pós-Graduação em Farmácia da Universidade Federal de Santa Catarina pelo apoio financeiro.

Referências

  • 1 Watts GF, Gidding S, Wierzbicki AS, Toth PP, Alonso R, Brown WV, et al. Integrated guidance on the care of familial hypercholesterolaemia from the International FH Foundation. Int J Cardiol 2014;171:309-25.
  • 2 Sjouke B, Defesche JC, Hartgers ML, Wiegman A, Roeters van Lennep JE, Kastelein JJ, et al. Double-heterozygous autosomal dominant hypercholesterolemia: Clinical characterization of an underreported disease. J Clin Lipidol 2016; 10(6):1462-9.
  • 3 Al-Allaf FA, Alashwal A, Abduljaleel Z, Taher MM, Bouazzaoui A, Abalkhail H, et al. Compound heterozygous LDLR variant in severely affected familial hypercholesterolemia patient. Acta Biochim Pol. 2017;64(1):75-9.
  • 4 Hartgers ML, Defesche JC, Langslet G, Hopkins PN, Kastelein JJP, Baccara-Dinet MT, et al. Alirocumab efficacy in patients with double heterozygous, compound heterozygous, or homozygous familial hypercholesterolemia. J Clin Lipidol. 2018; 12(2):390-6.
  • 5 Mehta R, Zubirán R, Martagón AJ, Vasquez-Cárdenas A, Segura-Kato Y, Tusié-Luna MT, et al. The panorama of familial hypercholesterolemia in Latin America: A systematic review. J Lipid Res. 2016; 57(12):2115-29.
  • 6 Cavalcante LS, Silva EL. Application of a modified precipitation method for the measurement of small dense LDL-cholesterol (sd-LDL-C) in a population in southern Brazil. Clin Chem Lab Med. 2012; 50(9):1649-56.
  • 7 Raal FJ, Pilcher GJ, Waisberg R, Buthelezi EP, Veller MG, Joffe BI. Low-density lipoprotein cholesterol bulk is the pivotal determinant of atherosclerosis in familial hypercholesterolemia. Am J Cardiol. 1999;83(9):1330-3.
  • 8 Ebhardt M, Schmidt H, Doerk T, Tietge U, Haas R, Manns M-P, et al. Mutation analysis in 46 German families with familial hypercholesterolemia: Identification of 8 new mutations. Hum Mutat. 1999;13(3):257.
  • 9 Hobbs HH, Brown MS, goldstein JL. Molecular genetics of the LDL receptor gene in familial hypercholesterolemia. Hum Mutat. 1992;16(6):445-66.
  • 10 Leitersdorf E, Tobin EJ, Davignon J, Hobbs HH. Common low-density lipoprotein receptor mutations in the French Canadian population. J Clin Invest. 1990;85(4):1014-23.
  • 11 Pimstone SN, Sun XM, Souich C, Frohlich JJ, Hayden MR, Soutar AK. Phenotypic variation in heterozygous familial hypercholesterolemia: a comparison of Chinese patients with the same or similar mutations in the LDL receptor gene in China or Canada. Arterioscler Thromb Vasc Biol. 1998;18(2):309-15.
  • 12 Duskova L, Kopeckova L, Jansova E, Tichya L, Freiberger T, Zapletalova P, et al. An APEX-based genotyping microarray for the screening of 168 mutations associated with familial hypercholesterolemia. Atherosclerosis. 2011;216(1):139-45.
  • 13 U.S. National Library of Medicine. National Center for Biotechnology Information. ClinVar [website]. (Access November 12 2019). Available from:< https://www.ncbi.nlm.nih.gov/clinvar/variation>
    » https://www.ncbi.nlm.nih.gov/clinvar/variation
  • Vinculação Acadêmica
    Este artigo é parte de tese de Doutorado de Heloisa Pamplona Cunha pela Universidade Federal de Santa Catarina.
  • *
    Material suplementar
    Para informação adicional, por favor, clique aqui.
  • Fontes de Financiamento
    O presente estudo foi parcialmente financiado pelo CNPq, CAPES. PROAP-CAPS da UFSC e Sanofi/Genzyme.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Set 2020

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2019
  • Revisado
    31 Dez 2019
  • Aceito
    22 Jan 2020
location_on
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro