RESUMO
Objetivo:
Compreender a vivência de enfermeiros que atuam na Unidade de Terapia Intensiva com pacientes infectados pela COVID-19.
Método:
Pesquisa qualitativa, ancorada na fenomenologia social de Alfred Schütz, que entrevistou 20 enfermeiros atuantes em Unidades de Terapia Intensiva de hospitais públicos e privados, entre julho e setembro de 2020. Os dados foram analisados de acordo com o referencial teórico-metodológico adotado e com a literatura pertinente à temática.
Resultados:
Os enfermeiros apontam demandas relacionadas às condições de trabalho, valorização e capacitação profissional, além do apoio à saúde física e mental, considerando-se a intensidade do cuidado vivenciado durante a pandemia.
Conclusão:
A compreensão da vivência dos enfermeiros mostrou que houve necessidade de adaptação a esse novo modo de cuidar que inclui o espaço físico, novos protocolos institucionais, uso contínuo de equipamentos de proteção e cuidado diferenciado requerido pelos pacientes. Isso gerou a necessidade de conviver com situações que interferiam em sua saúde, bem como na motivação para realização de projetos para a vida profissional, após a pandemia pelo novo coronavírus.
DESCRITORES
Coronavirus; Unidades de Terapia Intensiva; Enfermagem de Cuidados Críticos; Estresse Psicológico; Prática Profissional
ABSTRACT
Objective:
To understand the experiences of intensive care unit nurses who provide care to patients with COVID-19.
Methods:
Qualitative study grounded in Alfred Schütz’s social phenomenology in which 20 nurses who work in intensive care units at public and private hospitals were interviewed between July and September 2020. Data were analyzed according to the adopted theoretical-methodological framework and the literature related to the subject.
Results:
The interviewed nurses mentioned demands about working conditions, professional recognition and training, and support to physical and mental health, which proved necessary considering the care intensity experienced by these professionals during the COVID-19 pandemic.
Conclusion:
Learning the nurses’ experiences evidenced the need to adjust to a new way of providing care that included the physical space, new institutional protocols, continuous use of protective equipment, and patients’ demand for special care. This originated the necessity to be around situations that interfered with their health and motivated them to carry out professional projects after the COVID-19 pandemic.
DESCRIPTORS
Coronavirus; Intensive Care Units; Critical Care Nursing; Stress, Psychological; Professional Practice
RESUMEN
Objetivo:
Comprender la experiencia de enfermeros actuantes en Unidad de Terapia Intensiva con pacientes infectados por COVID-19.
Método:
Investigación cualitativa basada en la fenomenología social de Alfred Schütz, entrevistándose a 20 enfermeros actuantes en Unidades de Terapia Intensiva de hospitales públicos y privados, entre julio y setiembre de 2020. Datos analizados según referencial teórico-metodológico adoptado, y con literatura correspondiente al tema.
Resultados:
Los enfermeros manifiestan demandas relacionadas a condiciones laborales, valoración y capacitación profesional, además del apoyo a la salud física y mental, considerando la intensa atención practicada en pandemia.
Conclusión:
La comprensión de la experiencia de los enfermeros mostró que fue necesario adaptarse a ese nuevo modo de cuidar, que incluye espacio físico, nuevos protocolos institucionales, uso permanente de equipos de protección y atención diferenciada requerida por los pacientes. Esto generó necesidad de convivir con situaciones que interferían en su salud y en la motivación para realizar proyectos para la vida profesional luego de la pandemia por el nuevo coronavirus.
DESCRIPTORES
Coronavirus; Unidades de Cuidados Intensivos; Enfermería de Cuidados Críticos; Estrés Psicológico; Práctica Professional
INTRODUÇÃO
Os enfermeiros são profissionais indispensáveis no cuidado ao paciente crítico, uma vez que atuam ininterruptamente na manutenção do seu bem-estar e suporte para as funções vitais. Como líderes da equipe de enfermagem, mostram-se fundamentais para o sucesso da hospitalização e recuperação dos pacientes(11. Nobre RAS, Rocha HMN, Santos FJ, Santos AD, Mendonça RG, Menezes AF. Application of Nursing Activities Score (NAS) in different types of ICUs: an integrating review. Enfermería Global. 2019;18(4):485-28. DOI: https://doi.org/10.6018/eglobal.18.4.362201
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).
O paciente crítico hospitalizado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) demanda uma gama de intervenções que envolvem o uso de tecnologias avançadas de cuidado pelo enfermeiro, bem como alto padrão de conhecimento, atenção e competências específicas. Esse cuidado é baseado no suporte de saúde, a partir das evidências da manifestação dos sinais e sintomas, e no uso de equipamentos invasivos, como ventilação mecânica, hemodiafiltração renal e administração medicamentosa(22. Wax RS, Christian MD. Practical recommendations for critical care and anesthesiology teams caring for novel coronavirus (2019-nCoV) patients. Can J Anaesth. 2020;67:568-76. DOI: https://doi.org/10.1007/s12630-020-01591-x
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).
O principal motivo para a indicação de cuidados intensivos em relação à COVID-19 é a necessidade de suporte ventilatório, uma vez que cerca de dois terços dos pacientes preenchem os critérios para a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), caracterizada pelo início agudo de insuficiência respiratória hipoxêmica com infiltrados bilaterais(33. Wang D, Hu B, Hu C, Zhu F, Liu X, Zhang J, et al. Clinical characteristics of 138 hospitalized patients with 2019 novel coronavirus–infected pneumonia in Wuhan, China. JAMA. 2020;323(11):1061-9. DOI: https://doi.org/10.1001/jama.2020.1585
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).
No âmbito da assistência aos pacientes com COVID-19, diante do acelerado aumento do contágio, além das habilidades para lidar com a complexidade inerente a esse setor, os enfermeiros têm vivenciado situações peculiares no cotidiano assistencial. Destacam-se o tormento de decisões difíceis de triagem, medo frente a aspectos desconhecidos da doença, dor pela perda de pacientes e colegas, além do risco de infecção para si e familiares(44. The Lancet. COVID-19: protecting health-care workers. The Lancet. 2020;395(10228):922. DOI: http://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30644-9
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).
Ademais, ressalta-se o aumento da demanda de trabalho, associado à escassez de recursos humanos e materiais, impactando o desgaste profissional(55. Alharbi J, Jackson D, Usher K. The potential for COVID-19 to contribute to compassion fatigue in critical care nurses. Journal of Clinical Nurse. 2020;19(15-16):1-3. DOI: https://doi.org/10.1111/jocn.15314
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). A exaustão física e mental leva esses enfermeiros a ajustarem-se psicologicamente para o enfretamento da rotina de trabalho, o que inclui a capacidade de a equipe de saúde se apoiar(66. Sun N, Wei L, Shi S, Jiao D, Song R, Ma L, et al. A qualitative study on the psychological experience of caregivers of COVID-19 patients. Am J Infect Control. 2020;48(6):592-8. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ajic.2020.03.018
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).
Desvelar o significado da realidade vivenciada na perspectiva dos enfermeiros, a partir das relações intersubjetivas com pacientes acometidos pelo novo coronavírus que ocorrem no ambiente físico e social da UTI, poderá ampliar a visibilidade acerca da importância desses profissionais no referido contexto assistencial.
Nessa perspectiva, a presente investigação norteou-se pela seguinte questão: como é a vivência de enfermeiros que atuam na UTI com pacientes infectados pela COVID-19?
Objetivou-se compreender a vivência de enfermeiros que atuam em UTI com pacientes infectados pela COVID-19.
MÉTODO
Desenho do Estudo
Pesquisa qualitativa fundamentada na fenomenologia social de Alfred Schütz. A intensidade do cotidiano vivenciado pelos enfermeiros durante a pandemia pelo novo coronavírus motivou a utilização deste referencial teórico-metodológico como alicerce desta investigação, que oportuniza a compreensão da vivência desses profissionais, indispensáveis na linha de frente do combate à COVID-19.
Para a compreensão do fenômeno (“experiências e expectativas dos enfermeiros que atuam em UTI com pacientes infectados pela COVID-19”), foram utilizados os seguintes conceitos: mundo social, intersubjetividade, acervo de conhecimentos, situação biográfica, interação, motivação humana para a ação (motivos para e motivos porque) e tipificação(77. Schütz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.). Tais conceitos subsidiaram os achados e a discussão do presente estudo.
A intersubjetividade permeia o cotidiano das pessoas no mundo social, em uma determinada situação biográfica – posição do homem no contexto social – com um acervo de conhecimentos que permite a elas agirem, influenciando e sendo influenciadas. A interação presente na intersubjetividade caracteriza-se não apenas pelo ambiente físico, sociocultural em que as situações cotidianas ocorrem, mas também por aspectos morais e ideológicos. As experiências passadas e presentes (motivos porque) e as expectativas (motivos para) constituem-se no fio condutor da ação humana. A compreensão dessa motivação expressa pelo homem viabiliza o desvelar do típico da ação vivida – representação invariante da ação da pessoa/grupo que a torna homogênea, abstendo-se das características individuais e seu reconhecimento dentro de um determinado grupo social, contexto de compartilhamento de vivências semelhantes no mundo da vida(77. Schütz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.).
Local
O cenário desta investigação foi o ambiente relacional de atuação do enfermeiro junto às pessoas infectadas pelo novo coronavírus e internadas em UTIs de hospitais públicos e privados, localizados na cidade de São Paulo, SP, Brasil.
Participantes
Participaram deste estudo 20 enfermeiros atuantes em UTIs, no atendimento aos pacientes com COVID-19.
Critérios de Seleção
Selecionaram-se para este estudo enfermeiros atuantes em UTIs de hospitais públicos ou privados, na assistência a pacientes com COVID-19; independentemente do turno, tempo de atuação, sexo e estado civil. Foram excluídos aqueles que atuavam unicamente na área gerencial ou que estavam afastados do ambiente de trabalhado por quaisquer motivos, durante a coleta dos dados.
Coleta de Dados
A condução da coleta dos dados se deu partir do referencial teórico-metodológico da fenomenologia social. A abordagem dos enfermeiros foi direcionada àqueles que atendiam aos critérios de inclusão, demostraram interesse em fazer parte da pesquisa e se dispuseram a ceder o depoimento voluntariamente.
A fim de aproximar-se dos primeiros participantes, a pesquisadora principal realizou contato telefônico com profissionais do seu conhecimento para convidá-los a participar da investigação, apresentar os objetivos, procedimentos e aspectos éticos envolvidos na pesquisa. Assim que optaram por participar do estudo, a data e horário para a realização da entrevista on-line foram agendadas e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) enviado digitalmente via Google Forms. Após a devolução deste, uma via assinada pela pesquisadora foi encaminhada aos participantes.
A coleta de dados foi realizada entre julho e setembro de 2020, utilizando-se da entrevista fenomenológica(88. Jesus MCP, Capalbo C, Merighi MAB, Oliveira DM, Tocantins FR, Rodrigues BMRD, et al. The social phenomenology of Alfred Schütz and its contribution for the nursing. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(3):736-41. DOI: https://doi.org/10.1590/S0080-623420130000300030
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), na modalidade on-line, por meio de plataformas digitais e com o recurso de chamada de vídeo/videoconferência para possibilitar a interação entre os participantes e a pesquisadora principal que conduziu todas as entrevistas e realizou a transcrição de todos os depoimentos.
A obtenção dos depoimentos foi orientada pelas seguintes questões fundamentadas no conceito de motivação humana pertinente ao referencial adotado: Fale sobre a sua experiência no cuidado aos pacientes infectados pela COVID-19 internados em UTI. Qual a sua expectativa profissional para além dessa fase de pandemia da COVID-19? A primeira pergunta buscou apreender as experiências passadas e presentes (motivos porque), e a segunda, as expectativas dos enfermeiros (motivos para) no contexto do cuidado em UTI voltado aos pacientes com COVID-19. Ademais, foram coletados dados sociodemográficos sobre a formação acadêmica e atuação profissional dos participantes. Apenas os áudios das entrevistas foram gravados com a autorização dos enfermeiros, e a imagem dos mesmos não foi utilizada para fins de pesquisa.
Ao final de cada entrevista, solicitava-se que o participante indicasse outros enfermeiros, do seu conhecimento, que atuavam, em UTI da cidade de São Paulo, de hospital público ou privado, no combate à COVID-19, para possível participação na investigação. Utilizou-se, portanto, da técnica snowball sampling (“Bola de Neve”) para a composição da amostra da pesquisa(99. Polit DF, Beck CT. Fundamentos da pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para a prática da enfermagem. 9ª ed. São Paulo: Artmed; 2018.). Nenhum enfermeiro convidado se recusou a participar da pesquisa ou retirou-se dela após ceder o depoimento. Todos os entrevistados foram incluídos no estudo, e a coleta dos dados foi encerrada quando o objetivo da investigação foi alcançado e as inquietações da pesquisa foram respondidas. O alcance do objetivo foi constatado quando o conteúdo dos relatos foi considerado suficiente para o aprofundamento, a abrangência e a diversidade do conteúdo estudado(1010. Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Quaitativa [Internet]. 2017 [cited 2021 Feb 20];5(7):1-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/82
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), o que ocorreu ao se totalizarem 20 depoimentos. O tempo de duração médio das entrevistas foi de 27 minutos.
Análise e Tratamento dos Dados
Não foi utilizado software para o tratamento dos dados, sendo este conduzido pela pesquisadora principal e pelas docentes envolvidas na investigação. Dessa forma, os dados foram categorizados e analisados conforme as etapas indicadas em estudo teórico fundamentado pela fenomenologia social de Alfred Schütz(88. Jesus MCP, Capalbo C, Merighi MAB, Oliveira DM, Tocantins FR, Rodrigues BMRD, et al. The social phenomenology of Alfred Schütz and its contribution for the nursing. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(3):736-41. DOI: https://doi.org/10.1590/S0080-623420130000300030
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) e adaptadas à presente investigação: obtenção dos depoimentos com sua transcrição na íntegra; leitura e releitura das entrevistas, a fim de apreender o significado da vivência de cuidar de pacientes na UTI infectados pela COVID-19; seleção dos trechos que contêm aspectos comuns das experiências e expectativas dos participantes; agrupamento das falas que expressam os “motivos porque” e “motivos para” da vivência dos enfermeiros em categorias temáticas. Estas foram submetidas à análise compreensiva e à discussão dos resultados a partir dos conceitos da fenomenologia social e da literatura relacionada ao tema.
Vale ressaltar que não houve validação das entrevistas, considerando-se que o acesso ao contexto motivacional do entrevistado diante da vivência estudada é realizado pelo destaque único de um momento em que este exterioriza suas intencionalidades para o pesquisador(88. Jesus MCP, Capalbo C, Merighi MAB, Oliveira DM, Tocantins FR, Rodrigues BMRD, et al. The social phenomenology of Alfred Schütz and its contribution for the nursing. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(3):736-41. DOI: https://doi.org/10.1590/S0080-623420130000300030
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).
Esta pesquisa atendeu aos passos recomendados pelos Critérios Consolidados para Relatar uma Pesquisa Qualitativa (COREQ)(1111. Souza VRS, Marziale MHP, Silva GTR, Nascimento PL. Translation and validation into Brazilian Portuguese and assessment of the COREQ checklist. Acta Paulista Enfermagem. 2021;34:eAPE02631. DOI: https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO02631
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).
Aspectos Éticos
A investigação respeitou os preceitos éticos da Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre pesquisa com seres humanos, tendo sido o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição proponente, sob o parecer número 4.163.589 de 20 de julho de 2020. Para preservação do anonimato dos participantes, as entrevistas foram identificadas com a letra E (Enfermeiro), seguida do número correspondente à ordem de participação e local de atuação (hospital público ou privado).
RESULTADOS
Entre os participantes, dez atuavam em hospitais públicos e dez, em hospitais privados, sendo que 17 eram mulheres e três homens, com idade entre 28 e 54 anos. O tempo de formação superior e o de atuação em UTI estavam entre dois e 31 anos. Apenas uma participante não recebeu formação para atuar no cuidado a pessoas com COVID-19.
Cabe mencionar que o exercício da organização das falas dos participantes mostrou que tanto as experiências e expectativas dos enfermeiros dos hospitais públicos quanto daqueles atuantes em hospitais privados eram similares. Sendo assim, optou-se por categorizá-las em conjunto.
A análise das entrevistas possibilitou o desvelar de três categorias que expressam a vivência dos enfermeiros na UTI com pacientes infectados pela COVID-19, emergindo as características típicas da ação vivida por esse grupo social: “Adaptando-se ao novo modo de cuidar em Unidade de Terapia Intensiva”, “Convivendo com situações que interferem na saúde física e mental” e “Projetando a vida profissional após a pandemia”.
Adaptando-Se ao Novo Modo de Cuidar em Unidade de Terapia Intensiva
Os enfermeiros referiram que a demanda aumentada pelo atendimento em UTI devido aos casos de COVID-19 dificultou o cuidado pelos profissionais, considerando que o espaço físico teve de ser adaptado para o atendimento a essa doença:
Tivemos que adaptar toda a UTI (…). (…) mudamos toda nossa dinâmica de trabalho, não tínhamos lugar para nos paramentar (E15 – hospital público).
O hospital que trabalho foi dividido por área física de acordo com a demanda e ampliando os leitos conforme foram aumentando os casos. (…) decidiram isolar um andar específico para o paciente com COVID, só que não imaginávamos que teríamos tantos casos, por isso foram abertas novas UTIs. (…) tivemos que mudar toda estrutura (E11 – hospital privado).
Os enfermeiros relataram o desgaste de usar continuamente o Equipamento de Proteção Individual (EPI), imprescindível ao cuidado de pacientes com COVID-19:
Usar a máscara o tempo todo mudou a forma de trabalhar na UTI. Ficou mais estressante. Reinalando meu próprio oxigênio me dá dor de cabeça, calor e às vezes até tontura (E4 – hospital privado).
A máscara N95 é muito ruim para respirar. Me falta o ar, a comunicação é mais difícil porque os colegas não nos ouvem. Temos que falar mais alto e tudo isso vai cansando mais (E14 – hospital público).
Os entrevistados mencionaram que a gravidade dos pacientes com COVID-19 requer um cuidado diferenciado da rotina da Unidade:
(…) sempre lidei com pacientes graves, mas aqueles com COVID-19 são piores. São muitas bombas, muitas drogas que eu nem conhecia (…). Os pacientes ficam em posição prona, usam muitos equipamentos, tubos, cateteres (E2 – hospital público).
(…) apesar de na UTI a demanda de trabalho ser alta, o paciente com COVID-19 é muito mais grave. A doença tem características específicas, como instabilidade rápida, hipo e hipertensão, alteração do padrão respiratório, aumentando a demanda (E8 – hospital privado).
A necessidade de adaptação aos novos protocolos assistenciais ao paciente com COVID-19 na UTI foi relatada pelos enfermeiros:
(…) tivemos que criar e reformular protocolos para atender às demandas do paciente com essa doença (…) fomos descobrindo, adaptando e criando juntos tudo que podíamos fazer. Acredito que a essência do cuidar foi mantida, mas com o olhar foi bem específico porque não sabíamos nada da doença (E20 – hospital privado).
(…) foram criados protocolos para o tratamento do paciente com COVID-19 (…). Fomos nos adaptando, tentando pegar as melhores práticas nacionais e internacionais para proporcionar mais benefícios do que danos aos pacientes (E3 – hospital privado).
Convivendo com Situações Que Interferem na Saúde Física e Mental
Para os participantes, a gravidade do paciente com COVID-19 levou ao desgaste físico que impacta o emocional:
(…) a COVID-19 gera sobrecarga física, exigindo mais dos profissionais. Todo dia tem posição de prona, supina, os pacientes têm lesões de pele, é muito difícil (E19 – hospital privado).
(…) tenho trabalhado muito, os pacientes são muito graves (…) a alta demanda de trabalho não nos permite comer, ir ao banheiro, nada. (…) as pessoas não estão aguentando mais trabalhar (…) aumentou muito a carga física e psicológica (E6 – hospital público).
Os participantes relataram que a incerteza em relação ao cuidado dos pacientes com COVID-19 gerou medo de contaminação, afetando sua saúde mental:
(…) o que mais me impactou foi o medo de me contaminar e passar para minha família. […] no trabalho, eu passei a ter mais cuidado, não tiro a máscara em momento algum, só para refeição e faço sozinha (E9 – hospital privado).
(…) para nós o mais difícil foi o emocional porque não sabíamos o que enfrentaríamos, se pegaríamos e levaríamos para nossa família, podendo até vir a nos contaminar e morrer. A parte mais complicada foi gerenciar o emocional (E18 – hospital público).
Vivenciar o adoecimento de colegas de trabalho contribuiu com o desgaste emocional, segundo os enfermeiros:
(…) muitos profissionais adoeceram, se contaminaram. Eu via as pessoas adoecendo do meu lado. Trabalhei junto com alguém hoje e, no dia seguinte, ele estava contaminado (…) tivemos enfermeiros que ficaram internados em UTI, vários deles. Teve um que foi traqueostomizado (E1 – hospital público).
(…) vi muitos colegas adoecendo, me deixava mais preocupado, mais tenso, às vezes, dá uma crise de ansiedade (…) mexeu e ainda mexe muito comigo, interferiu demais na minha vida pessoal (E5 – hospital público).
O fato de os familiares manterem o distanciamento social e não estarem presentes junto aos pacientes graves com COVID-19 também foi considerado fator gerador de desgaste emocional para os enfermeiros:
(…) a família não podia ver a pessoa internada, o paciente ficava sozinho, os que eram conscientes ficavam ansiosos e com medo. E a família também porque passavam o dia todo esperando por uma informação. Isto foi o mais triste para mim, uma tristeza imensa. Me desgastou emocionalmente (E17 – hospital privado).
(…) os pacientes ficam sozinhos devido à família não poder visitar e nós não temos muito tempo para dar-lhes atenção e conversar, essa situação me deixou muito triste e ansiosa (E13 – hospital público).
Os participantes referiram que, com o passar do tempo, a instituição disponibilizou o contato on-line ou por ligação telefônica para os familiares interagirem com os pacientes com COVID-19, minimizando o sofrimento de ambos:
(…) ver a tristeza da família e dos pacientes era estressante, mas aos poucos fomos desenvolvendo visitas virtuais, mas acho muito difícil o paciente ficar aqui sozinho, sem notícias (E7 – hospital privado).
(…) quando aqueles pacientes mais idosos não conseguiam mexer no celular, eu os ajudava a ligar para a família e, muitas vezes, este foi o último contato porque, logo depois, foi entubado e veio a óbito, mas pelo menos conseguiu se despedir (…) (E6 – hospital público).
A identificação do corpo via celular e a ausência de velório dos pacientes com COVID-19 impactaram emocionalmente os enfermeiros:
(…) uma das coisas mais difíceis da minha vida foi fazer o reconhecimento do corpo com a família por vídeo. Isso vou levar para sempre na minha vida, meu psicológico ficou muito abalado (E16 – hospital privado).
(…) nunca imaginei vivenciar tantos óbitos juntos. O número de óbitos foi muito alto e a família não tinha mais contato e nem podia enterrar, velar, não vivenciaram o processo da morte, de luto (E10 – hospital público).
Apesar do sofrimento emocional e desgaste físico, os enfermeiros apontaram resistir e superar as dificuldades, mantendo-se na linha de frente do cuidado ao paciente com COVID-19:
(…) no começo, eu chorava muito. Teve dias de eu entrar no carro, dar a volta, parar o carro e só chorar. Não sei se o choro foi por medo, por estresse, mas depois acabava limpando o rosto, dando meia volta e ia trabalhar (E12 – hospital público).
(…) no começo, era bem desgastante, mas agora sinto que fomos nos adaptando (…). O que antes era bem difícil hoje faz parte da nossa rotina (E4 – hospital privado).
Projetando a Vida Profissional Após a Pandemia
Vivenciar a pandemia da COVID-19 estimulou os enfermeiros a desejarem ampliar seus conhecimentos teóricos e práticos na área da enfermagem:
(…) para a minha vida profissional, quero estudar mais, continuar na enfermagem (…) somos mais valorizados quando temos conhecimento daquilo que fazemos, conseguimos respeito (E7 – hospital privado).
(…) espero continuar estudando. Esta pandemia me mostrou a importância de estudar e me desafiar (…). Aprendi que tenho que olhar melhor meu paciente para dar uma assistência adequada e desenvolver melhor a relação com a equipe (E14 – hospital público).
O desejo da valorização profissional por meio da meritocracia foi mencionado pelos participantes:
(…) gostaria que a instituição desse mais oportunidades de crescimento por meritocracia e não por indicação, principalmente por aumento financeiro. Ter um bônus no final do ano que ajudasse a pagar um curso de pós, ter mais investimento e que contasse para o plano de carreira (E8 – hospital privado).
(…) tem que ter avaliação constante por competência (…) incentivo por parte dos gestores para tratar o paciente com dignidade e quem não atender aos critérios ser transferido da instituição (E1 – hospital público).
Foi verbalizada a expectativa de deixar a profissão devido a fatores como a grande carga emocional imposta aos enfermeiros ou mesmo por não vislumbrarem perspectivas de crescimento profissional:
(…) estou repensando em sair da enfermagem. É uma profissão bacana que me trouxe muitas coisas boas, muitos amigos, mas é muito pesado até pela carga emocional. Vou continuar até aguentar mais um pouco, mas quero repensar (E9 – hospital privado).
(…) comecei a ter outros objetivos porque não tenho mais perspectivas de crescimento profissional (E17 – hospital privado).
(…) espero, em mais uns dois anos, fechar este ciclo, que foi difícil (E20 – hospital privado).
DISCUSSÃO
A análise dos depoimentos oportunizou a compreensão da atuação dos enfermeiros entrevistados, cujas vivências contemplam suas experiências (motivos porque) e expectativas (motivos para) de atuar na UTI junto aos pacientes com COVID-19. Essa vivência aponta o significado expresso de um grupo de profissionais. Para a fenomenologia social, a experiência humana é situada no contexto das relações sociais, sendo caracterizada pela situação biográfica e pelo acervo de conhecimentos construídos ao longo da vida, com propósitos e objetivos comuns. Nesse sentido, a intersubjetividade própria do contexto social torna compartilhados esses propósitos e objetivos, fazendo emergir um sentido social(77. Schütz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.).
A experiência vivenciada (motivos porque) mostrou que, diante do elevado número de pacientes acometidos pelo coronavírus que careciam de cuidados intensivos, houve necessidade de adaptar um novo ambiente para o atendimento, fazendo com que os serviços de saúde convertessem os demais setores hospitalares em UTIs ou ampliassem as unidades existentes. Corroborando esses resultados, estudo desenvolvido em um hospital de Nova Iorque, Estados Unidos, mostrou que a ampliação e/ou adaptação dos leitos de cuidados intensivos geraram limitações no trabalho em unidades que não foram originalmente projetadas como UTIs. Entre essas limitações, os profissionais ressaltaram a ausência de postos de enfermagem centralizados, dificuldade para acomodação dos leitos para adultos em unidades pediátricas e ausência de suprimentos. Ademais, algumas das UTIs ampliadas estavam distantes dos serviços essenciais como farmácia e laboratório(1212. Keene AB, Shiloh AL, Eisen L, Berger J, Karwa M, Fein D, et al. Critical care surge during the COVID-19 pandemic: implementation and feedback from frontline providers. Journal of Intensive Care Medicine. 2021;36(2):233-40. DOI: https://doi.org/10.1177/0885066620973175
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).
O elevado risco de contágio do novo coronavírus pelos enfermeiros que cuidam dos pacientes com a COVID-19 acentua-se no ambiente da UTI, portanto, a utilização contínua dos EPIs mostra-se indispensável, incluindo a colocação de máscaras faciais, face Shields, óculos, aventais e luvas. O uso ininterrupto desses equipamentos foi relatado como desgastante, em razão do incômodo e desconforto gerados. Investigação realizada, em um hospital de Cingapura, com 158 trabalhadores da linha de frente da COVID-19 converge para esses achados, pois identificou que 81% apresentavam cefaleia associada ao uso constante de EPIs, especialmente a máscara N95. Os profissionais relataram sensação de pressão, peso e dor nos locais afetados e a maioria (91,3%) referiu que o aumento do uso de EPI impactou negativamente o desempenho no trabalho(1313. Ong JJY, Bharatendu C, Goh Y, Tang JZY, Sooi KWX, Tan YL, et al. Headaches associated with personal protective equipment: a cross-sectional study among frontline healthcare workers during COVID-19. Headache. 2020;60(5):864-77. DOI: https://doi.org/10.1111/head.13811
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).
A gravidade do paciente com COVID-19 também foi ressaltada pelos participantes do presente estudo, influenciando o aumento da intensidade do cuidado. Resultados semelhantes foram encontrados em investigação realizada em três hospitais da Bélgica, em que se evidenciou que o tempo da assistência de enfermagem foi significativamente maior no cuidado aos pacientes com COVID-19, quando comparado ao dos demais pacientes. Entre os fatores que aumentaram esse tempo, estavam a necessidade de mais cuidados com a higiene, mobilização, monitoramento e hemofiltração venosa contínua(1414. Bruyneel A, Gallani MC, Tack J, d’Hondt A, Canipel S, Franck S, et al. Impact of COVID-19 on nursing time in intensive care units in Belgium. Intensive Crit Care Nurs. 2021;62:102967. DOI: https://doi.org/10.1016/j.iccn.2020.102967
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).
Diante do desconhecimento de aspectos relativos à COVID-19, especialmente em relação à fisiopatologia da doença, foram necessárias a criação e as adaptações de protocolos assistenciais no âmbito da UTI. O desenvolvimento desses protocolos, baseados em recomendações internacionais, justifica-se na medida em que, acrescidos aos cuidados convencionais prestados na UTI, os profissionais que cuidam de pacientes com COVID-19 precisam atentar para a não dispersão de aerossóis no ambiente, realização de heparinização, paramentação e desparamentação, posicionamento em prona, entre outros procedimentos(1515. World Health Organization. COVID-19 clinical management living guidance [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2021 Feb 10]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/clinical-management-of-COVID-19
https://www.who.int/publications/i/item/...
).
À luz da fenomenologia social, o acervo de conhecimentos dos enfermeiros, constituído ao longo da vida e caracterizado especialmente por elementos técnicos da formação profissional, coloca-os em uma situação biográfica específica, nesse cenário de pandemia pela COVID- 19. Nesse momento, evidencia-se a necessidade de que os profissionais ampliem os conhecimentos em relação ao atendimento às pessoas acometidas pelo novo coronavírus, considerando-se a gravidade da doença e aspectos singulares do cuidado. Os enfermeiros, com seus conhecimentos e habilidades, mostram-se indispensáveis no enfretamento da pandemia, inclusive no contexto dos cuidados intensivos. No entanto, a interação social travada nesse contexto é considerada difícil e com reflexos negativos na saúde física e mental dos profissionais.
No âmbito da saúde mental, ressaltou-se o medo da contaminação no ambiente de trabalho. Pesquisa qualitativa com enfermeiros de cuidados intensivos de um hospital na Espanha, em confluência com os resultados encontrados, verificou que o medo foi a emoção mais relatada pelos participantes ao lidarem com pacientes com COVID-19. Este estava relacionado à elevada transmissibilidade da doença e à alta taxa de agravamento dos casos e de mortalidade e influenciou o atendimento ao paciente e o aumento nos níveis de ansiedade dos profissionais(1616. Fernández-Castillo RJ, González-Caro MD, Fernández-García E, Porcel-Gálvez AM, Garnacho-Montero J. Intensive care nurses’ experiences during the COVID-19 pandemic: a qualitative study. Nurs Crit Care. 2021;26(5):397-406. DOI: https://doi.org/10.1111/nicc.12589
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).
Segundo os participantes, aspectos intrínsecos ao cuidado crítico de pacientes com COVID-19 afetam a saúde mental e física dos enfermeiros, o que está intimamente relacionado com a gravidade da doença e sobrecarga de trabalho. Ratificando esse achado, pesquisa realizada com 557 enfermeiros em Madrid, Espanha, encontrou relatos de cargas de trabalho elevadas e grande número de pacientes sob os cuidados de um único enfermeiro durante a pandemia pelo novo coronavírus. Ademais, 44,9% mencionaram que sempre se sentiam emocionalmente exaustos ao final do turno de trabalho(1717. González-Gil MT, González-Blázquez C, Parro-Moreno AI, Pedraz-Marcos A, Palmar-Santos A, Otero-García L, et al. Nurses’ perceptions and demands regarding COVID-19 care delivery in critical care units and hospital emergency services. Intensive Crit Care Nurs. 2021;62:102966. DOI: https://doi.org/10.1016/j.iccn.2020.102966
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).
O desgaste emocional por vivenciar o adoecimento de colegas de trabalho também foi ressaltado pelos enfermeiros. Pesquisa realizada nos Estados Unidos e Reino Unido identificou que, em comparação com a comunidade em geral, os trabalhadores de saúde da linha de frente apresentaram 12 vezes mais chances de testar positivo para a COVID-19(1818. Nguyen LH, Drew DA, Graham MS, Joshi AD, Guo CG, Ma W, et al. Risk of COVID-19 among front-line health-care workers and the general community: a prospective cohort study. Lancet Public Health. 2020;5(9):e475-83. DOI: https://doi.org/10.1016/S2468-2667(20)30164-X
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).
Outra questão que impactou a saúde mental dos enfermeiros foi o distanciamento dos familiares dos pacientes hospitalizados na UTI. A ausência de visitas às pessoas em tratamento para COVID-19 tem ocasionado sofrimento emocional para pacientes, familiares e profissionais de saúde, uma vez que impede que as famílias confortem seu ente querido e se comuniquem com a equipe de saúde. A restrição das visitas aos pacientes representa um fardo psicológico adicional para os enfermeiros da UTI, aumentando os sentimentos de impotência e culpa(1919. El-Hage W, Hingray C, Lemogne C, Yrondi A, Brunault P, Bienvenu T, et al. Les professionnels de santé face à la pandémie de la maladie à coronavirus (COVID-19): quels risques pour leur santé mentale? Encephale. 2020;46(3):S73-S80. DOI: https://doi.org/10.1016/j.encep.2020.04.008
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). Os profissionais, por sua vez, precisam lançar mão de soluções tecnológicas que facilitem o senso de conexão entre as famílias e os pacientes e com a equipe da UTI. Entre essas possibilidades, ressalta-se a realização de ligações telefônicas, chamadas de vídeo ou visitas virtuais à UTI(2020. Azoulaya E, Kentish-Barnesa N. A 5-point strategy for improved connection with relatives of critically ill patients with COVID-19. Lancet Respir Med. 2020;8(6):e52. DOI: https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30223-X
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).
A necessidade do distanciamento permanece no momento do óbito, pois os familiares não podem se despedir do ente afetado pela COVID-19 ou velá-lo. O fato de não conseguir preparar os familiares para a possível morte dos seus entes eleva também o sofrimento daqueles que cuidam. A impossibilidade de se preparar ou se despedir de um ente que evolui a óbito pela COVID-19 é relatada como uma experiência traumática, podendo tornar o enlutamento mais doloroso e até mesmo incompleto, capaz de desencadear sofrimento psicológico e um processo de luto complicado(2121. Oliveira-Cardoso EA, Silva BCA, Santos JH, Lotério LS, Accoroni AG, Santos MA. The effect of suppressing funeral rituals during the COVID-19 pandemic on bereaved families. Rev Latino Am Enfermagem. 2020;28:e3361. DOI: https://doi.org/10.1590/1518-8345.4519.3361
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).
Os enfermeiros relataram que, apesar das dificuldades, foram capazes de ajustarem-se à situação de modo a dar continuidade aos cuidados aos pacientes. Esse aspecto foi observado em pesquisa realizada em um hospital de Jiangmen, China, que encontrou elevados níveis de resiliência, força e otimismo entre enfermeiros que atuavam na linha de frente contra a COVID-19. A resiliência foi negativamente correlacionada com sintomas obsessivo-compulsivos e depressão, ressaltando a importância desse posicionamento para a preservação da saúde mental dos profissionais(2222. Ou X, Chen Y, Liang Z, Wen S, Li S, Chen Y. Resilience of nurses in isolation wards during the COVID-19 pandemic: a cross-sectional study. Psychol Health Med. 2021;26(1):98-106. DOI: https://doi.org/10.1080/13548506.2020.1861312
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).
Ressalta-se que, na experiência do grupo entrevistado, é relatada a influência negativa da interação dos enfermeiros com pacientes, familiares e ambiente de trabalho, ocasionada pelo alto grau de transmissibilidade e gravidade da doença, pela obrigatoriedade do uso de equipamentos que promovem o distanciamento social, além da sobrecarga de trabalho. Todos esses fatores impactam a saúde física e mental. De acordo com a fenomenologia social, a interação humana é fundamental para o estabelecimento de relações sociais positivas no mundo da vida. Estas caracterizam-se por um contexto de motivação subjetivo no qual indivíduos estabelecem uma orientação recíproca entre si, compartilhando intencionalidades convergentes(77. Schütz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.).
A vivência com pacientes internados em UTI acometidos pela COVID-19 inclui planos para a vida profissional dos participantes. Essa motivação remete o homem a olhar para o futuro e estão relacionadas com o acervo de conhecimentos e a situação biográfica no momento que este projeta a ação que deseja vivenciar(77. Schütz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.).
As competências requeridas para a prática profissional com os pacientes acometidos pela COVID-19 internados na UTI estimularam, nos enfermeiros, o desejo de melhorar suas habilidades e conhecimentos na área da enfermagem. Destaca-se, nesse âmbito, a importância da educação permanente dos profissionais para a melhoria contínua da assistência. Pesquisa realizada com 147 profissionais de enfermagem de um hospital no Sul do Brasil evidenciou que um programa de educação permanente melhorou a qualidade (72,7%) e a assertividade (89,0%) das tarefas realizadas no cotidiano assistencial e aumentou a autoconfiança no trabalho (66,6%)(2323. Sade PMC, Peres AM, Zago DPL, Matsuda LM, Wolff LDG, Bernardino E. Avaliação dos efeitos da educação permanente para enfermagem em uma organização hospitalar. Acta Paulista de Enfermagem. 2020;33:1-8. DOI: https://doi.org/10.37689/acta-ape/2020AO0023
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).
Outra questão que emergiu dos depoentes foi o desejo de serem valorizados profissionalmente por meio da meritocracia, visto que esse critério não foi utilizado nas avaliações de desempenho, nas instituições em que atuavam. Também, em pesquisa qualitativa com enfermeiros de hospitais do Irã, identificou-se que a falta de meritocracia fazia parte de suas rotinas, o que os levava a pensar em mudar de local de trabalho, pedir demissão ou mesmo deixar a profissão. Ademais, os enfermeiros percebiam que a falta de atenção à meritocracia representava indiferença por parte da gestão com o trabalho desenvolvido e os deixava com a sensação de inutilidade(2424. Valizadeh L, Zamanzadeh V, Habibzadeh H, Alilu L, Gillespie M, Shakibi A. Threats to nurses’ dignity and intent to leave the profession. Nurs Ethics. 2018;25(4):520-31. DOI: https://doi.org/10.1177/0969733016654318
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).
Ressalta-se que o alto impacto emocional vivenciado no cotidiano dos enfermeiros os motivou a realizarem planos para abandonarem a profissão. Corrobora esse achado investigação com 320 enfermeiros de UTI realizada no Irã que encontrou altos níveis de burnout entre os participantes, com exaustão emocional em 70% e somente 49% de realização pessoal. O esgotamento profissional apresentou relação diretamente significativa com a intensão de deixar o trabalho(2525. Rivaz M, Tavakolinia M, Momennasab M. Nursing professional practice environment and its relationship with nursing outcomes in Intensive Care Units: a test of the structural equation model. Scand J Caring Sci. 2020;34(2):609-15. DOI: https://doi.org/10.1111/scs.12877
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).
Iniciativas para melhorar o cenário de trabalho na UTI podem impactar positivamente o bem-estar dos enfermeiros, com resultados favoráveis na retenção desses profissionais nessa realidade de trabalho e na qualidade da assistência. De acordo com a fenomenologia social, a realidade social pode ser modificada pela ação humana a partir de suas intencionalidades. Considerando que planos e objetivos são elementos que formam o sistema relacional entre aqueles que compartilham o mesmo tempo e espaço no mundo social, o desejo por alterar a realidade é fundamentado a partir do que já foi experienciado(77. Schütz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.).
Os resultados desta pesquisa trazem como contribuição para o avanço do conhecimento científico a identificação dos aspectos intersubjetivos inscritos na atuação de enfermeiros na UTI com pacientes acometidos pela COVID-19, no que tange às condições de trabalho, à valorização e capacitação profissional, além do apoio à saúde física e mental, considerando-se a intensidade do cuidado vivenciado durante a pandemia. Salienta-se a imprescindibilidade do fortalecimento de políticas públicas que vislumbrem o atendimento às demandas apresentadas por esses enfermeiros.
Como limitação, destaca-se que a presente investigação reflete a compreensão da atuação profissional de um grupo social específico de enfermeiros cujas experiências e expectativas típicas podem diferenciar-se de outras realidades, impedindo a generalização dos resultados encontrados.
CONCLUSÃO
Na perspectiva da fenomenologia social, a experiência do enfermeiro na UTI com pacientes com COVID-19 mostrou que houve necessidade de adaptação ao novo modo de cuidar nesse ambiente, no que diz respeito à habituação ao espaço físico da unidade e aos novos protocolos institucionais, assim como ao uso contínuo de EPI e cuidado diferenciado requerido pelos pacientes com COVID-19. Isso gerou a necessidade de conviver com situações que interferiram na saúde física e mental, envolvendo o medo de contaminação, a gravidade dos pacientes, a vivência do adoecimento de colegas de trabalho, o distanciamento entre os familiares e os pacientes, incluindo o contato e a identificação do corpo via celular.
Mostrou também que enfermeiros, após a pandemia da COVID-19, têm como expectativas ampliar os conhecimentos teóricos e práticos na área da enfermagem e receber valorização profissional por meio da meritocracia. No entanto, para outros participantes, a ausência de perspectivas, de crescimento profissional e o desgaste emocional envolvidos no cuidado motivaram o desejo de abandonar a profissão. Esses achados demonstram a importância de investir no apoio ao enfermeiro para atuar nesse ambiente hospitalar, no que diz respeito à adoção de medidas estruturais e organizacionais que considerem o seu bem-estar e, também, no aprimoramento dos programas de capacitação profissional, a fim de instrumentalizá-los para a assistência de enfermagem no âmbito da pandemia da COVID-19.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Set 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
28 Abr 2021 -
Aceito
05 Ago 2021