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A biopolítica educacional e o governo de corpos transexuais e travestis

Educational biopolitics and the government of transsexual and transvestite bodies

La biopolítica educativa y el gobierno de cuerpos transexuales y travestis

Resumos

Este texto se propõe a dialogar com alguns conceitos de Michel Foucault para pensar a transexualidade na escola por meio da invenção do dispositivo da sexualidade, de um de seus deslocamentos - o dispositivo da transexualidade -, bem como a refletir sobre os agenciamentos biopolíticos da instituição escolar com vistas ao controle e ao governamento dos corpos e subjetividades trav e trans. Problematiza a utilização do nome social por travestis e transexuais nas escolas, por um lado vista como uma conquista e, por outro, como uma estratégia biopolítica de governo e controle dos corpos e subjetividades dessas/es personagens. Apresenta, ainda, uma provocação em relação às possibilidades de escape dos agenciamentos biopolíticos da escola.

Transexualidade; Escolas; Estado; Biopolítica


This paper proposes a dialogue of the contemporary issue of transexuality in schools, based on some concepts of the philosopher Michel Foucault, in order to reflect on the issue through the device of sexuality, of one of its shifts, i.e., the device of transexuality, as well as on the biopolitical agency of the school which aims to control and regulate the trans/trav bodies and subjectivities. The research also discusses the use of social names by transvestites and transexuals in schools; seen, on one hand, as an achievement by social and identity movements and, on the other hand, as a biopolitical strategy of the government to control the bodies and the processes of subjectivity of such individuals. Finally, it presents a challenge in relation to the possibilities to escape the biopolitical agency from the school.

Transexuality; Schools; State; Biopolitics


Este texto se propone a dialogar con algunos conceptos de Michel Foucault para pensar la transexualidad en la escuela por medio de la invención del dispositivo de la sexualidad, de uno de sus desplazamientos -el dispositivo da transexualidad-, así como sobre los agenciamientos biopolíticos de la institución escolar con miras al control y al gobierno de los cuerpos y subjetividades trav e trans. Problematiza la utilización del nombre social por travestis y transexuales en las escuelas, por un lado vista como una conquista y, por otro, como una estrategia biopolítica de gobierno y control de los cuerpos y subjetividades de esos(as) personajes. Presenta asimismo una provocación en lo que se refiere a las posibilidades de escape de los agenciamientos biopolíticos de la escuela.

Transexualidad; Escuelas; Estado; Biopolítica


A escola e a presença trans/trav

Na contemporaneidade, com o advento do "sujeito de direitos" e a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 (BRASIL, 1990), algumas personagens das sexualidades, que se manifestam fora da norma heterossexual, têm se organizado em busca do acesso às políticas públicas, dentre as quais a educação. Em 2008, com a realização da I Conferência Nacional LGBT, o movimento social de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais - LGBT - assumiu para si a demanda pela utilização do nome social nos registros escolares de travestis e transexuais, até então circunscrita ao movimento de travestis e transexuais (BRASIL, 2000). A Conferência utilizou uma justificativa, incorporada e transformada em narrativa comum do movimento social, que consiste em dizer que por apresentarem um nome civil em desacordo com o gênero e a aparência de seus corpos, tais indivíduos não tiveram as mesmas condições de frequentar a escola e adquirir a formação mínima exigida pelo mercado de trabalho formal. Consequentemente, essa situação de exclusão escolar atribuiu a esses indivíduos um único tipo de inserção, isto é, a prostituição.

Essa discussão do movimento LGBT pautou vários órgãos governamentais e, atualmente, dois municípios (Belo Horizonte e Fortaleza), 11 estados da Federação (Pará, Maranhão, Paraná, Alagoas, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Santa Catarina, Goiás, São Paulo, Bahia e Tocantins) e o Distrito Federal1 1 Neste texto, a análise se dará em relação às normatizações específicas da educação básica. Existem outras referentes à administração pública e à educação superior, que não serão contempladas. Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/nomesocial.php. Acesso em: 22 set. 2014. possuem alguma regulamentação para a utilização do nome social de travestis e transexuais nas escolas. É importante ressaltar, entretanto, que cada estado implementa essa ação de forma diferente. Além do nome social nos registros escolares, no estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, a Coordenação de Políticas Públicas para LGBT instituiu também a carteira de nome social2 2 Disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2012/05/tarso-institui-carteira-de-nome-social-para-travestis-e-transexuais-no-rs.html>. Acesso em: 22 set. 2014. para travestis e transexuais, isto é, um documento físico semelhante à carteira de identidade comum, com valor de registro civil, que traz a inscrição do nome social e o número do registro geral de travestis e transexuais.

A Resolução n. 12 publicada no Diário Oficial da União de 12 de março de 2015, elaborada pelo Conselho Nacional de Combate a Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - CNCD LGBT3 3 A presidenta do CNCD LGBT, na data da consulta, é Janaína Barbosa de Oliveira, ativista do movimento lésbico e negro. Para saber mais sobre o CNCD LGBT, acessar: <http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cncd-lgbt>. Acesso em: 12 mar. 2015. -, espaço institucional ligado à Secretaria de Direitos Humanos - SDH -, da Presidência da República, composto por ativistas do movimento social LGBT e por profissionais do governo federal, apresenta posicionamentos e orientações explícitas sobre questões importantes, direcionadas a todos os níveis e modalidades de ensino. Tais como: a ampliação do público ao qual está relacionada; o uso do banheiro escolar de acordo com a "identidade de gênero"; a forma de utilização do nome social nas escolas e o reconhecimento da "identidade de gênero" de pessoas trans menores de 18 anos. Com essa regulamentação, uma presença trans tem-se feito sentir cada vez mais nos tempos e espaços escolares.

No entanto, a imposição dessa presença às instituições escolares não acontece sem um esforço da própria instituição em regulá-la. Pessoas que fabricam seus corpos e identidades de gênero, de modo diferente daquele atribuído a partir da genitália ao nascer, e que ousam adentrar os espaços e tempos escolares como estudantes, em geral, "causam" estranhamentos, incômodos, curiosidades e mexericos, perturbando a ordem da escola. Corpos e subjetividades fabricadas a partir da subversão das rígidas normas de gênero da sociedade ocidental contemporânea circulando pela escola. Diante dessa situação, por muito tempo impensável, as personagens habituais desse "palco", que compõem a denominada comunidade escolar, se perguntam: como é possível a presença desses corpos na escola? Desse modo, a presença trans na escola constitui-se em um acontecimento. Para Denise Mairesse (2003MAIRESSE, Denise. Cartografia: do método à arte de fazer pesquisa. In: FONSECA, Tania Mara Galli; KIRST, Patrícia Gomes (Org.). Cartografias e devires: a construção do presente. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003., p. 261-262):

O acontecimento fala por si e rompe com todas as certezas e evidências do que nos parece mais sagrado. Nesse sentido, o acontecimento rompe com a linearidade do tempo, funda um tempo outro no qual presente, passado e futuro coexistem. Desafia as lógicas cartesianas de progresso e evolução, e inventa outros caminhos nunca imaginados.

É por meio da invenção de caminhos nunca antes imaginados que Stefannys, Rafaellys e muitas/os outras/os adentram as escolas com as normativas dos órgãos competentes em mãos e exigem: respeito, aceitação, inclusão e, sobretudo, o uso do nome social nos registros escolares. - "Porque agora é lei!", dizem elas.

Tanto nos movimentos sociais quanto nas escolas, a maioria das representações foi feita, por muito tempo, por mulheres transexuais e travestis. Talvez em razão da busca masculina por invisibilidade, ou por se constituírem em alvo de uma educação com fronteiras de gênero bem delimitadas, assim como demonstrado por Dayana Brunetto Carlin dos Santos (2010SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos Santos. Cartografias da transexualidade: a experiência escolar e outras tramas. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010., p. 44). Desde 2010, alguns deslocamentos têm acontecido na representatividade de homens trans nos movimentos sociais e em outros espaços públicos. Atualmente já é possível acessar grupos de discussão, de produção de conhecimento e de atuação política que antes eram restritos aos homens trans. Com as redes sociais em pleno funcionamento, o movimento nacional de homens trans se mobilizou e, em 2015, por meio do Instituto Nacional de Transmasculinidades - Ibrat -, realizou o 1º Encontro Nacional de Homens Trans - ENAHT -, cujo tema, emblemático para o que se deseja demonstrar, foi "Da invisibilidade à luta!", em São Paulo.4 4 Disponível em: <http://encontronacionaldehomenstrans.blogspot.com.br/> Acesso em: 20 mar. 2015.

Diante da solicitação de matrícula por parte de um/a estudante transexual ou travesti na escola, a instituição acata, num primeiro momento. - "Afinal, agora é lei!". E, concomitantemente, se coloca em estado de alerta e vigilância. Nesse momento, potencializam-se as funções de controle (CÉSAR, 2004CÉSAR, Maria Rita de Assis. Da escola disciplinar à pedagogia do controle. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004., p. 150, 153) e governamento (VEIGA-NETO, 2007______. As duas faces da moeda: heterotopias e emplazamientos curriculares. Educação em revista, Belo Horizonte, v. 45, p. 249-264, jun. 2007b.a, p. 72) de corpos na instituição escolar. Alvoroçam-se as rotinas e dinâmicas, e a escola se coloca a pensar e a criar outras estratégias para lidar com a situação de forma que o controle e a ordem sejam preservados, a qualquer custo, em um exercício biopolítico (FOUCAULT, 2008______. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008b.a) com vistas à captura de novos corpos, para torná-los produtivos e viáveis, assim como fez uma biopolítica da saúde,5 5 No campo da saúde, os agenciamentos biopolíticos estão em pleno funcionamento, uma vez que os corpos foram capturados e estão sob controle: as instituições da saúde determinam, a partir de seus pressupostos, quem é ou não verdadeiramente transexual e quem fará ou não a cirurgia. Sobre isso, ver: Portaria n. 1.707, de 18 de agosto de 2008, Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, instituída pela Portaria n. 675/GM, de 31 de março de 2006, disponíveis em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/default.cfm>. Acesso em: 22 set. 2014. nos últimos anos.

Notoriamente, o problema não é questionar a importância de tais conquistas dos movimentos sociais, pois se compreende que é a partir delas que a presença trans tem se feito sentir nas escolas. Entretanto, a inquietação consiste em desconfiar da suposta causalidade dessas relações e refletir sobre as formas de configuração das redes de poder-saber-controle que articulam essa e outras tramas em um agenciamento biopolítico do dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.) e de um de seus desdobramentos - o dispositivo da transexualidade (BENTO, 2006BENTO, Berenice. A (re)invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, Clam, 2006.). Senão vejamos: os movimentos sociais pautam as instituições para que os sujeitos trans sejam incluídos nas escolas, por meio da utilização de seus nomes sociais. As normativas são elaboradas, e a partir delas as instituições escolares produzem estratégias de controle e governamento dos corpos, apagando a diferença, criando, em conjunto com os saberes psicológicos, a verdade sobre o sexo de transexuais e travestis, e interditando determinados espaços a esses corpos e subjetividades transformados, aos quais ainda consideram abjetos (BUTLER, 2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-172., p. 161).

A invenção da transexualidade

Questionar a transexualidade antes do século XX parece não fazer sentido, uma vez que até esse momento, transexuais não existiam como sujeitos. O/a transexual consiste em um objeto inventado, como uma "espécie", com diagnóstico e tratamento específicos, em meio a disputas de poder. Assim, é importante ressaltar que antes de 1950 não existiam definições ou caracterizações específicas para transexuais, isto é, não havia diferenciação entre transexuais, travestis e homossexuais" (SANTOS, 2010SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos Santos. Cartografias da transexualidade: a experiência escolar e outras tramas. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010., p. 81).

A invenção da experiência transexual como uma patologia e suas relações com a escola apresentam um traçado histórico singular. Para sua compreensão é preciso desconfiar do que é tido como uma questão resolvida ou natural. A disputa entre o isomorfismo e o dimorfismo sexual, a desterritorialização de uma leitura cultural fundada no gênero, passando pela invenção das categorias feminino e masculino, e pela reterritorialização da diferença numa biologia e numa moral, assim como o dispositivo da sexualidade e seus deslocamentos, e ainda o entendimento da escola como um empreendimento biopolítico estão imbricados nas redes de poder-saber que constituíram as condições de possibilidade para que uma questão político-epistemológica sobre a transexualidade e a escola pudesse ser colocada, contemporaneamente. Nesse sentido, foi preciso articular alguns conceitos para sustentar esta trajetória de análise.

Thomas Laqueur (2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.) demonstrou que os anatomistas, até o século XVIII, trabalhavam com a ideia de que existia apenas um corpo e pelo menos dois gêneros. Para Laqueur (2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 130), "[t]oda uma tradição clínica incluía as partes verificáveis de um modelo de uma só carne".

Ainda que nesse contexto histórico não faça sentido falar em diferença sexual, os conhecimentos que produziam uma diferenciação entre os corpos já haviam sido mobilizados, isto é, as representações anatômicas dos corpos partiam do pressuposto de que o homem seria o modelo.

Esse modelo do sexo único se orientava em direção a uma maior ou menor perfeição, sendo que o corpo masculino estaria mais próximo desse conceito, ao passo que a mulher era definida como um homem imperfeito (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 189).

Nesse contexto histórico, as possibilidades de variações entre as mulheres - das agressivas às delicadas - e homens - dos bravos aos efeminados - criavam um campo amplo e múltiplo de alternativas para se colocar no mundo e um papel social reconhecível, tanto de mulher como de homem. Laqueur (2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 170) afirma que aquilo que estaria em jogo no isomorfismo sexual seria o gênero e não o sexo. Segundo esse autor: "Em outras palavras, o sexo antes do século XVII era ainda uma categoria sociológica e não ontológica" (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 19).

Laqueur apresenta uma compreensão social do gênero na medida em que o sexo único poderia representar um dos dois papéis sociais delimitados, o masculino ou o feminino, com algumas possibilidades de transgressão. Nessa lógica social, a mulher foi fixada em uma posição inferior. Para Laqueur (2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 170-171), "o sexo não era problema. As criaturas com pênis externo eram consideradas meninos e tinham todos os privilégios e obrigações dessa condição, e as que tinham pênis interno eram relegadas à categoria inferior de meninas". Assim, a posição do pênis, interna ou externa, constituía-se em um sinal distintivo, dentre outros atributos sociais do nascimento.

O que estava em jogo no isomorfismo sexual, portanto, era evitar que uma mulher assumisse o lugar de um homem e, com isso, alcançasse os privilégios que essa posição social possibilitava. As transgressões representavam uma ameaça e eram punidas (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 172). Nesse contexto ainda não se cogita a respeito do sexo como sinônimo de verdade sobre o corpo e o sujeito, o que só aconteceria no século XIX. No entanto, a ideia de um corpo sexuado se desenhou, ainda nos séculos XVII e XVIII, nesse solo epistemológico.

As preocupações em relação às práticas sexuais se intensificaram a partir do século XVIII. Segundo Foucault (1988______. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2007., 2007), o século XVIII trouxe mudanças significativas tanto na ordem social, política, econômica, como no campo epistemológico e no funcionamento do poder.

As formas de definição do corpo antes centradas no gênero social, no século XVIII, se deslocaram voltando-se para um corpo que seria o resultado de uma natureza. Importa pensar, entretanto, que esse deslocamento, ou seja, a passagem do isomorfismo ao dimorfismo sexual ocorreu em meio a uma rede de disputas de poder no campo político. Para Laqueur (2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 192):

Dois sexos incomensuráveis eram e são, tanto os produtos da cultura como era e é o modelo de sexo único. [...] O sexo único, repito não morreu. Mas, encontrou uma poderosa alternativa: uma biologia da incomensurabilidade na qual a relação entre o homem e a mulher não era inerentemente uma relação de igualdade ou desigualdade mas de diferença, que exigia interpretação. O sexo, em outras palavras, substituiu o que nós poderíamos chamar de gênero como uma categoria basicamente fundamental. Na verdade, uma estrutura onde o natural e o social podiam ser claramente distinguidos entrou em ação.

Essa articulação de saberes produziu a diferença sexual a partir da qual somos classificadas/os. A compreensão de que as categorias de feminino e masculino foram inventadas em posições opostas sob condições específicas é fundamental para se pensar como as redes de poder-saber engendraram a construção da experiência transexual. Segundo Laqueur (2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 193-194, grifos do autor), "[n]o final do século XVII e ao longo do século XVIII a ciência passou a considerar, em termos aceitáveis à nova epistemologia, as categorias masculina e feminina como sexos biológicos opostos e incomensuráveis". A invenção das categorias "feminino" e "masculino" nos discursos e nas práticas sociais construiu os sujeitos sexuados e suas posições na sociedade. É somente a partir da invenção dos sexos, como descrita por Thomas Laqueur (2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.), que se torna possível a produção de novos sujeitos pelo discurso médico-psicológico, dentre os quais, o/a transexual. Dessa forma, é possível compreender que o dimorfismo sexual funciona como um mecanismo que enreda a todas e todos nós nas redes de poder-saber sobre o corpo, o sexo, o gênero e a sexualidade.

Para Foucault (1988FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.), o jogo que articula a verdade sobre o sexo e o prazer mobiliza a produção de saberes e prazeres que, distantes de consolidar um sexo reprimido ou oculto, evidenciam um sexo produtivo, implicado na construção das subjetividades modernas.

Com o advento da modernidade,6 6 De acordo com Alfredo Veiga-Neto (2007a), Foucault chama de Modernidade o período histórico após a Revolução Francesa (1789). "Mas, é preciso entender que, para Foucault, modernidade designa menos um período da História e, mais uma atitude [...]" (VEIGA-NETO, 2007a, p. 64). o saber sobre o sexo e seus prazeres passa a ocupar um lugar central nas indagações médico-científicas. Os jogos de saber-prazer circulam na sociedade moderna, em um movimento duplo, importando saber como está o nosso sexo, ao mesmo tempo em que o sexo "é suspeito de saber a quantas andamos nós" (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988., p. 88).

Dessa maneira, Foucault reescreve uma importante história dos corpos, dos sexos e dos prazeres, escrutinados pelos discursos e pelas práticas institucionais que os sustentam, isto é, pelo dispositivo da sexualidade. Segundo Foucault, foi por meio de um dispositivo de controle de corpos articulado por diversas estratégias que surgiu uma sexualidade. Essa sexualidade serviu de fundamento para discursos e práticas regulatórias que produziram os próprios sujeitos e uma hierarquização entre eles. Esta hierarquização estruturou-se por meio da patologização das condutas.

A invenção do sujeito homossexual torna-se fundamental também para se pensar sobre os processos de medicalização dos corpos e das práticas sexuais. É somente a partir da invenção dessa personagem que a pergunta sobre a normalidade adquire algum sentido. Para Foucault (1988FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988., p. 129): "A medicina das perversões e os programas de eugenia foram, na tecnologia do sexo, as duas grandes inovações da segunda metade do século XIX".

Os homossexuais passam a ser definidos a partir de uma ideia de sexualidade desviante. Essa invenção do homossexual como o perverso sexual encontra-se implicada na construção do sujeito transexual como alguém portador de uma patologia (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988., p. 50).

Com a invenção do dispositivo da sexualidade, o funcionamento do poder se altera e emerge, assim, um poder normalizador. Esse tipo de poder tem no exame seu instrumento mais eficiente e produz o "anormal" como um problema teórico e político relevante (FOUCAULT, 2001______. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 52-53). Com isso, pode-se pensar que a partir do momento em que foi possível perguntar pela normalidade, foram produzidos vários sujeitos "anormais", o que fortaleceu o discurso médico-psicológico e seus efeitos de patologização sobre as experiências (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988., 2001).

A possibilidade de se perguntar pela normalidade constituiu-se na condição de possibilidade histórica também para a invenção da transexualidade. Como um dos desdobramentos do dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.), o dispositivo da transexualidade organiza os saberes, as práticas e os discursos que as sustentam produzindo a patologização da experiência transexual e uma personagem: a/o verdadeira/o transexual. Berenice Bento (2006BENTO, Berenice. A (re)invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, Clam, 2006., p. 136), ao analisar essa experiência, explicita que o dispositivo da transexualidade "não é algo homogêneo; seus saberes internos formam um conjunto heterogêneo, que busca sua eficácia por vários caminhos".

No interior do dispositivo da sexualidade, a invenção do dispositivo da transexualidade se deu por meio da proliferação de publicações médicas sobre o tema (BENTO, 2006BENTO, Berenice. A (re)invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, Clam, 2006.). Os saberes produzidos pela psicologia e biologia sobre a experiência transexual funcionaram conjuntamente, produzindo poder e controle, na criação do diagnóstico da/o transexual verdadeira/o. O sujeito transexual surge na história como um "doente mental". Segundo Bento (2008______. O que é transexualidade? São Paulo: Brasiliense, 2008. (Primeiros Passos, n. 328)., p. 77), "[a] sua inclusão no Código Internacional de Doenças, em 1980, foi um marco no processo de definição da transexualidade como uma doença".

A análise da instalação de um regime de heterossexualidade, construída como a norma social ideal em termos de sexo, gênero e desejo, assim como analisada por Judith Butler (2008______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.) em suas teorizações, também é importante nessa trajetória.

Dessa forma, é possível compreender que somos todas e todos alvos de investimento desses mecanismos de poder que visam à produção da heterossexualidade hegemônica como única possibilidade viável e inteligível. Para Butler (2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-172.), a heterossexualidade como matriz de significação de corpos, gêneros e desejos realiza um movimento duplo, em que produz os corpos que podem ser considerados sujeitos, como também os que não o são. Esses processos de produção encontram-se articulados, isto é, na produção do corpo-gênero-desejo inteligível, são produzidos também os corpos externos ao ideal regulatório. Assim, não heterossexuais são fundamentais. Segundo Butler (2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-172., p. 155, grifos da autora):

Esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são sujeitos, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas inóspitas e inabitáveis da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do inabitável é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito.

Com isso, se produz também, por meio da reiteração da heterossexualidade, uma territorialização em que corpos normatizados ocupam o centro e os demais, outros espaços. Nesse sentido, para Swain (2002SWAIN, Tânia Navarro. Feminismos e práticas sexuais: quais os desafios? Caderno Espaço Feminino, Florianópolis, Editora UFSC, v. 9, n. 10/11, p. 9-34, 2001/2002., p. 18):

A utilização da categoria gênero e a naturalização da heterossexualidade delimitam a legitimidade de seus espaços discursivos; tudo que ultrapassa as margens é desviante e apresentado como tal. Desta zona de sombra desabrocha o que eu chamaria de práticas patogênero, as que recebem o estigma da doença, da vergonha, da inversão da ordem natural do mundo.

É na perspectiva daquilo que Swain define como patogênero que se materializam as/os transexuais, isto é, corpos e gêneros que questionam os padrões heteronormativos.

A lógica do "heteroterrorismo", como denominado por Bento (2008, p. 31) propiciou, juntamente com a patologização da transexualidade, um entendimento de que transexuais precisam das cirurgias de transgenitalização para exercer a sexualidade "correta", ou seja, a heterossexual.

A presença trans na escola e os agenciamentos de uma biopolítica educacional

Os efeitos de poder que engendram os processos de exclusão de transexuais são potencializados quando a análise é deslocada para as instituições, a exemplo da escola. As escolas não suportam trabalhar com transexuais, pois empreendem toda uma maquinaria com vistas a estabelecer e reiterar a norma heterossexual. Talvez pelo afastamento das normas operado por essa experiência, pois uma vez iniciado o processo de transexualização, com a ingestão de hormônios, a colocação de próteses ou a retirada de partes do corpo, dificilmente se retrocede às normas de gênero e sexualidade. Esses são sujeitos que escapam à eficiente política de governo de corpos e subjetividades no funcionamento da maquinaria escolar. Nesse sentido, Maria Rita de Assis César (2008______. Quatro intervenções para uma pedagogia queer. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 31., 2008, Caxambu, MG. Anais..., p. 1-13. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/GT23-4614--Int.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014.
http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1t...
, p. 11) problematiza:

Se a presença de alunos e alunas homossexuais e bissexuais dentro da escola já é um incômodo, então, a partir daquela perspectiva, a experiência da transexualidade se torna verdadeiramente insuportável do ponto de vista da instituição escolar, pois, diante de seus corpos transformados, a fala competente da instituição não vê esperança de retorno à norma heterossexual. Assim, aquilo que resta é o afastamento desses corpos indesejáveis, isto é a expulsão, que hoje se constitui em um elemento importante da evasão escolar.

A compreensão desses processos de exclusão da experiência transexual também requer conceitos específicos uma vez que a instituição escolar é entendida como uma invenção do final do século XVIII. Desse modo, tanto a escola como a transexualidade são tomadas como construções históricas da modernidade.

Para que as narrativas comuns e as performances 7 7 O termo performances está em itálico porque refere-se à teoria da performatividade, desenvolvida por Judith Butler (2008). Assim, afasta-se da ideia de performance das artes cênicas. Uma explicação sobre a teoria da performatividade dos gêneros encontra-se no decorrer deste texto. de transexuais sobre a experiência escolar sejam localizadas na instituição escolar, faz-se necessária uma análise da escola e de sua construção na modernidade, assim como sobre os deslocamentos contemporâneos que dizem respeito a essa instituição. Desse modo, é fundamental para esta análise considerar a invenção da escola como instituição disciplinar e a forma como suas práticas e discursos foram e são engendrados em meio a relações de saber-poder para a produção de corpos dóceis, úteis e governáveis (FOUCAULT, 2007______. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.).

Dentre os deslocamentos contemporâneos, destaca-se, sobretudo, a pedagogia do controle, isto é, um conjunto de transformações em meio a rupturas e deslocamentos históricos que no Brasil se deu nos anos de 1990 do século XX (CÉSAR, 2004CÉSAR, Maria Rita de Assis. Da escola disciplinar à pedagogia do controle. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.). Não somente na escola, mas também nas instituições em geral, essa nova conformação social, denominada por Gilles Deleuze (1992DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. In:. DELEUZE, Gilles Conversações. São Paulo: 34, 1992. (Coleção TRANS).) de "sociedade de controle", imbrica as instituições na produção de subjetividades distintas daquelas engendradas pela escola disciplinar da modernidade (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.). Segundo Sylvio de Sousa Gadelha Costa (2009GADELHA COSTA, Sylvio de Sousa. Governamentalidade neoliberal: teoria do capital humano e empreendedorismo. Educação e Realidade, v. 34, n. 2, p. 171-186, maio/ago. 2009., p. 177, grifo do autor), "[o] indivíduo moderno, a que se qualificava como sujeito de direitos, transmuta-se, assim, num indivíduo microempresa: Você S/A". As formas de "governamento" dos corpos estão centradas em atender às demandas do mercado, em que produtos, metas e resultados passam a se constituir em preocupações, ou seja, a forma de governamentalidade passa de liberal à neoliberal.

A escola é aqui pensada como empreendimento biopolítico, que implica uma potencialização do governo dos corpos e dos prazeres. Com isso, os agenciamentos biopolíticos da instituição escolar deslocam-se para uma governamentalidade neoliberal, isto é, se a sociedade passa do seu modelo disciplinar para o controle, a escola passa a ser pautada pela governamentalidade neoliberal. A escola contemporânea situa-se nas relações entre a biopolítica e essa nova forma de governamentalidade neoliberal. É agenciada pelas biopolíticas e, com isso, tomada como um campo de investimento que pode potencializar a produção e o consumo. Nessa perspectiva, a escola como empreendimento biopolítico contemporâneo objetiva capturar os corpos para torná-los viáveis para a produção e para o consumo (CÉSAR, 2010). Esse consumo se orienta para a satisfação imediata dos desejos, que cedem espaço a outros, tão logo sejam satisfeitos. Para Karla Saraiva e Alfredo Veiga-Neto (2009SARAIVA, Karla; VEIGA-NETO, Alfredo. Modernidade líquida, capitalismo cognitivo e educação contemporânea., Educação e Realidade v. 34, n. 2, p. 187-202, maio/ago. 2009., p. 193), os produtos procurados são "leves, voláteis, descartáveis".

Nesse sentido, estar na escola atualmente significa ser gestora/r de si, por meio de investimentos no corpo, o que, de acordo com Foucault (2008b), foi denominado de capital humano. Segundo Saraiva e Veiga-Neto (2009SARAIVA, Karla; VEIGA-NETO, Alfredo. Modernidade líquida, capitalismo cognitivo e educação contemporânea., Educação e Realidade v. 34, n. 2, p. 187-202, maio/ago. 2009., p. 199), "[g]erir seu capital humano é buscar estratégias de multiplicá-lo. À escola caberia ensinar essas técnicas de gestão". Isto é, a escola contemporânea está imbricada pela teoria do Capital Humano, uma vez que funciona "como um investimento cuja acumulação permitiria não só o aumento da produtividade do indivíduo-trabalhador, mas também a maximização crescente de seus rendimentos ao longo da vida" (GADELHA COSTA, 2009GADELHA COSTA, Sylvio de Sousa. Governamentalidade neoliberal: teoria do capital humano e empreendedorismo. Educação e Realidade, v. 34, n. 2, p. 171-186, maio/ago. 2009., p. 177).

Naquilo que se refere à sexualidade e à transexualidade, são engendrados práticas, discursos e saberes por meio do controle, ou seja, a escola contemporânea, como empreendimento biopolítico, constrói uma rede de poder-saber-controle, além de gerenciar e capturar os corpos sexuados, transmutando-os em corpos que produzem e consomem.

Na esteira das ocorrências do cotidiano escolar acontecem as experiências que desafiam, desestabilizam e subvertem as normas de gênero, como a travestilidade e a transexualidade. A visibilidade desses sujeitos intensifica-se na medida em que na sociedade de controle ou na governamentalidade neoliberal o princípio da inclusão se coloca como imperativo. Entretanto, travestis e transexuais, embora atendam a parte das demandas desse imperativo, quebram regras com seus corpos, isto é, as normas binárias do gênero, e essa quebra pode ser percebida por meio da transformação de seus corpos. Para esses sujeitos a possibilidade de resistência em relação à visibilidade torna-se complexa, ou seja, pensando como Veiga-Neto (2000) ao refletir sobre a sociedade de controle, seus corpos são de cristal, isto é, produzem uma visibilidade absoluta, sendo que a sua não correspondência entre corpo e gênero encontra-se corporificada (SANTOS, 2010SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos Santos. Cartografias da transexualidade: a experiência escolar e outras tramas. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010., p. 107).

A autora norte-americana Eve Kosofsky SedgwickSEDGWICK, Eve Kosofsky. A Epistemologia do Armário. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, p. 19-54, jan./jun. 2007. Dossiê Sexualidades Disparatadas., em texto condensado a partir de seu livro homônimo intitulado A epistemologia do armário (2007), produz uma crítica ao "armário", ao demonstrar que esse mecanismo pode ser compreendido como a instauração de uma ordem sexual - estabelecida desde o final do século XIX - que delimita os espaços de forma binária para todas as experiências sexuais. Essa ordem acaba por garantir às experiências heterossexuais o espaço público e às não heterossexuais, o privado. Para a autora, "[o] armário é a estrutura definidora da opressão gay no século XX" (SEDGWICK, 2007SEDGWICK, Eve Kosofsky. A Epistemologia do Armário. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, p. 19-54, jan./jun. 2007. Dossiê Sexualidades Disparatadas., p. 26). Na leitura de Tiago Duque (2013DUQUE, Tiago. Gêneros incríveis: identificação, diferenciação e reconhecimento no ato de passar por. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.), a problematização do armário de Sedgwick constitui-se em um regime histórico de visibilidade e de conhecimento.

Na sua importante obra História da Sexualidade I - a vontade de saber, Michel Foucault (1988FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.) demonstrou como as relações de poder tramadas entre as distintas discursividades sobre o sexo produziram os saberes, instituídos como verdades, e as subjetividades ao longo da história das sociedades ocidentais. É a partir dessas teorizações que tomo a relação entre visibilidade e saber como uma ferramenta teórica interessante para pensar sobre as experiências da travestilidade e da transexualidade em relação à possibilidade de um "armário trans".8 8 Termo utilizado e problematizado por Tiago Duque (2013, p. 02). Para as análises propostas nesta reflexão, esse possível armário trans adquire sentido como um dispositivo de controle e regulação dos corpos e subjetividades travestis e transexuais - uma estratégia biopolítica (FOUCAULT, 2008a______. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.).9 9 Com esse posicionamento teórico e diante das múltiplas possibilidades das experiências de fabricação de corpos e subjetividades trans, das resistências aos processos de normalização e regulação, a reflexão proposta segue aberta. A intenção aqui não é a de mapear todas, ou a maioria, das experiências de saída do armário trans, mas sim discutir suas potencialidades. O conceito de sexo também ocupa lugar central nessa trama de saber-poder-controle. Nessa perspectiva, sexo é entendido como: "parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa" (BUTLER, 2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-172., p. 153). Para Judith Butler:

O sexo é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o alguém simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural. (2000, p. 154-155, grifos da autora)

Com isso, o que se coloca em jogo é a viabilidade dos corpos na cultura. A instalação de um regime de heterossexualidade, construída como a norma social ideal em termos de sexo, gênero e desejo, também compõe essa trajetória analítica e foi analisada por Butler (2008______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.) em suas teorizações. Para a autora, o processo de construção da heterossexualidade produziu uma matriz de inteligibilidade cultural:

[...] [a matriz heterossexual consiste na] grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados. [...] [essa matriz é caracterizada por um] modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade. (BUTLER, 2008, p. 215-216)

Essa matriz heterossexual investe, por meio de redes de saber-poder-controle, tanto sobre os corpos construídos no interior da norma que, com isso, adquirem algum sentido, quanto naqueles fabricados em seu exterior.

A matriz de inteligibilidade cultural que constrói corpos, sexos, gêneros e desejos por meio da heterossexualidade concede caráter de viabilidade aos constructos produzidos no interior da norma. Isso se dá antes mesmo desses corpos serem designados como humanos. Segundo Butler (2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-172., p. 160-161, grifos da autora):

A atividade dessa generificação não pode, estritamente falando, ser um ato ou uma expressão humana, uma apropriação intencional, e não é, certamente, uma questão de se vestir uma máscara; trata-se da matriz através da qual toda intenção torna-se inicialmente possível, sua condição cultural possibilitadora. Nesse sentido, a matriz das relações de gênero é anterior à emergência do humano.

Assim, pode-se compreender que antes mesmo de serem considerados como "humanos", os sujeitos são sexuados e generificados. Entretanto, é na demarcação da própria norma regulatória que surgem possibilidades de escape e de (re)materialização dos corpos, sexos, gêneros e desejos (BUTLER, 2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-172.). Nesse sentido, para a autora:

[...] o sexo é produzido e, ao mesmo tempo, desestabilizado no curso dessa reiteração. Como um efeito sedimentado de uma prática reiterativa ou ritual, o sexo adquire seu efeito naturalizado e [sic] contudo, é também, em virtude dessa reiteração, que fossos e fissuras são abertos, fossos e fissuras que podem ser vistos como as instabilidades constitutivas dessas construções, como aquilo que escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode ser totalmente definido ou fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma. Esta instabilidade é a possibilidade desconstitutiva no próprio processo de repetição, o poder que desfaz os próprios efeitos pelos quais o sexo é estabilizado, a possibilidade de colocar a consolidação das normas do sexo em uma crise potencialmente produtiva. (BUTLER, 2000, p. 163-164, grifos da autora)

Essa crise produtiva da norma regulatória inventa meios para que performances subversivas de gênero aconteçam. A transexualidade e a travestilidade, por se constituírem como experiências que se materializam pela ambiguidade, acabam por "borrar" as fronteiras do que se entende por feminino e masculino, produzindo feminilidades em corpos masculinos ou vice-versa. Pensar em corpos construídos como femininos, com pênis e que se colocam no mundo de forma feminina, desestabiliza algumas das certezas produzidas pelas redes de poder-saber-controle, em especial, naquilo que se refere à diferença sexual e à prática heterossexual naturalizada. Se for somente a partir da diferença sexual que o feminino e o masculino tornam-se inteligíveis, a experiência transexual, por exemplo, quando analisada por esse prisma, torna-se inviável, impensável, perturbadora. Para Berenice Bento (2008, p. 18):

Diante da experiência transexual, o[/a] observador[/a] põe em ação os valores que estruturam os gêneros na sociedade. Um homem de batom e silicone? Uma mulher que solicita uma cirurgia para tirar os seios e o útero? Mulheres biológicas10 que tomam hormônios para fazer a barba crescer e engrossar a voz? Ela é ele? Ele é ela?

Nessa perspectiva, essa experiência parece adquirir sentido apenas quando pensada para fora dos padrões binários, pois protagoniza o impensável em termos de sexo e de gênero feminino e masculino. O que está em jogo na experiência transexual é a própria humanidade, uma vez que os processos de construção dos corpos, gêneros e desejos de transexuais propõem uma desordenação do mundo generificado, ao se constituírem como corpos abjetos. Para Butler (2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-172., p. 161, grifos da autora):

Nós vemos isto mais claramente nos exemplos daqueles seres abjetos que não parecem apropriadamente generificados; é a sua própria humanidade que se torna questionada. Na verdade, a construção do gênero atua através de meios excludentes, de forma que o humano é não apenas produzido sobre e contra o inumano, mas através de um conjunto de exclusões, de apagamentos radicais, os quais, estritamente falando, recusam a possibilidade de articulação cultural. Portanto, não é suficiente afirmar que os sujeitos humanos são construídos, pois a construção do humano é uma operação diferencial que produz o mais e o menos humano, o inumano, o humanamente impensável. Esses locais excluídos vêm a limitar o humano com seu exterior constitutivo, e a assombrar aquelas fronteiras com a persistente possibilidade de sua perturbação e rearticulação.

As experiências transexuais, por localizarem-se na fronteira, no ambíguo e "entre" os gêneros e os corpos possíveis e viáveis, são ininteligíveis, isto é, impensáveis. Ainda que as teorizações sobre a categoria analítica do gênero sejam indispensáveis para a discussão sobre as constituições dos padrões de feminino e masculino que inventaram o modelo de sociedade no qual estamos todas e todos inseridas/os, talvez seja relevante pensar além. Isto é, tanto a cuidadosa fabricação de identidades femininas em corpos compulsoriamente identificados como masculinos quanto a construção de identidades normativas, na qual se pressupõe uma relação causal entre corpo, sexo, gênero e desejo, produzem uma cópia da cópia. Judith Butler (2008) analisou a performatividade parodística de gênero nos processos de fabricação empreendidos pelas drags. Guacira Lopes Louro (2004LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.) localiza essas personagens como experiências ligadas ao espaço público. Para a autora:

A drag é, fundamentalmente, uma figura pública, isto é, uma figura que se apresenta e surge como tal apenas no espaço público. [...] A drag assume, explicitamente, que fabrica seu corpo; ela intervém, esconde, agrega, expõe. Deliberadamente, realiza todos esses atos não porque pretenda se fazer passar por uma mulher. A drag propositalmente exagera os traços convencionais do feminino, exorbita e acentua marcas corporais, comportamentos, atitudes, vestimentas culturalmente identificadas como femininas. O que faz pode ser compreendido como uma paródia de gênero: ela imita e exagera, aproxima-se, legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia. (LOURO, 2004, p. 84-85, grifos da autora)

As análises de Judith Butler a respeito da experiência das drags enfatizam a performance. O conceito de performance utilizado nesta reflexão se distancia daquele elaborado no campo da dramaturgia ou do teatro. Transexuais, mulheres e homens, hetero, homo e bissexuais, conforme se descrevem, sempre realizarão performances de gênero e da identidade desejada e/ou construída nos processos de transformação. Esse conceito adquire importância para a discussão proposta neste texto a partir das teorizações de Judith Butler (2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-172.), as quais possibilitam compreender que as identidades de gênero e sexuais serão sempre performativas. Para Butler (2008, p. 196-197, grifos da autora):

No lugar da lei da coerência heterossexual, vemos o sexo e o gênero desnaturalizados por meio de uma performance que confessa sua distinção e dramatiza o mecanismo cultural da sua unidade fabricada. [...] trata-se de uma produção que, com efeito - isto é, em seu efeito -, coloca-se como imitação. [...] No lugar de uma identificação original a servir como causa determinante, a identidade de gênero pode ser reconcebida como uma história pessoal/cultural de significados recebidos, sujeitos a um conjunto de práticas imitativas que se referem lateralmente a outras imitações e que, em conjunto, constroem a ilusão de um eu de gênero primário e interno marcado pelo gênero, ou parodiam o mecanismo dessa construção.

Ao pensar na experiência transexual e em outras que subvertem a ordem generificada do mundo a partir de um diálogo com as teorizações sobre gênero pode-se questionar, como Butler (2008), se as categorias produzidas pelo gênero não fixam o pensamento na lógica binária e hierárquica que se propõem a superar, naturalizando de outra forma o corpo, o sexo, o gênero e o desejo. Essa naturalização acaba por produzir, muitas vezes, outra regulação de corpos e prazeres.

A teoria da performatividade dos gêneros proposta por Judith Butler parece potente para compreender a produção realizada pelas/os transexuais, por exemplo. Para a autora, todas as práticas e discursos são performáticos, ou seja, não há um a priori ou uma "essência" quando se pensa em sexo, em gênero e em desejo. Ao contrário, as performances de gênero possibilitam um deslize da compreensão do sexo como constructo biológico e uma compreensão performativa desse mesmo sexo, bem como do gênero (BUTLER, 2008______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.). A partir disso, é possível perceber que não há sentido na consolidação de sujeitos fixos, como "mulher", "mulheres", "homem" ou "homens", bem como "travesti" e/ou "transexual". Cada subjetividade construída consiste em uma performance de gênero.

Nessa perspectiva, muito mais do que perceber um armário trans fixado pela ordem normativa e binária de gênero e sexualidade, a análise das experiências de saída desse armário pode potencializar a discussão, pois essas experiências talvez possam oferecer uma pluralidade potente de sentidos. Mario Carvalho (2014CARVALHO, Mario. O "armário trans": entre regimes de visibilidade e lutas por reconhecimento. In: COELHO, Maria Thereza Àvila Dantas; SAMPAIO, Liliana Lopes Pedral (Org.). Transexualidades: um olhar multidisciplinar. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2014, p. 241-254., p. 252, grifos do autor), ao analisar algumas dessas situações, no seu campo de pesquisa, afirma:

Creio que o melhor caminho para se explorar o armário trans é pelas situações de saída do armário ou de outing. Como podemos perceber, sair do armário tem sentidos distintos nas duas situações [analisadas]: iniciar as transformações corporais e revelar-se trans durante uma interação social. Além dessas, outros momentos se configuram como saídas voluntárias ou involuntárias do armário, tais como ter que apresentar documentos com o nome e sexo assignados ao nascer ou uma simples ida ao médico.

As experiências de fabricação do corpo transexual no gênero identificado11 11 Para Berenice Bento (2006, 2008), o gênero identificado, gênero de destino ou gênero adquirido consiste naquele pelo qual a/o transexual reivindica ser reconhecida/o. Já o gênero atribuído seria aquele ligado estritamente à genitália, com o qual a/o transexual nasceu. (BENTO, 2006BENTO, Berenice. A (re)invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, Clam, 2006., 2008), embora sejam múltiplas e singulares, parecem promover as situações de saída do armário trans, ou outing trans, uma vez que passam a visibilizar e materializar o corpo e a identidade fabricada. Em suas análises sobre a experiência transexual e a escola, a pesquisadora Dayana Brunetto Carlin dos Santos (2010SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos Santos. Cartografias da transexualidade: a experiência escolar e outras tramas. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010., p. 155) demonstrou, por meio das narrativas de transexuais e travestis, a existência de uma relação entre a faixa etária em que transexuais realizam as intervenções visíveis em seus corpos e o nível de escolaridade dos sujeitos. Isto é, quanto mais cedo os processos de fabricação dos corpos e identidades trans visíveis são empreendidos, menor o grau de escolaridade dos sujeitos. Talvez seja possível pensar a partir dessas fabricações de corpos e identidades trans sobre um outing trans, uma vez que as participantes dessa pesquisa que iniciaram os processos de fabricação do corpo e identidade "mais tardiamente", nas palavras das próprias entrevistadas, realizavam experimentações no gênero identificado que poderiam passar despercebidas ao grande público e as exibiam em espaços coletivos privados, nos quais poderiam "ficar mais à vontade". Para a autora:

Na narrativa de Luisa (GD), transexual, o ocultamento da experiência é uma marca importante: "Ingeri hormônios, fiz depilação e todo tipo de coisas que poderiam ficar camufladas, escondidas. Assim, eu fui durante uns dez, quinze anos. Há cinco anos, com trinta e nove, eu me assumi e tomo hormônios regularmente. Não tenho prótese nem silicone industrial, mas no ano passado fiz umas aplicações de metacril e botox no meu rosto. E estou me preparando para a cirurgia". [...] Poder-se-ia pensar se essa produção em segredo não estaria relacionada com a possibilidade de se construir dentro do armário. Entretanto, segundo ela: "[e]u me assumi como transexual há cinco anos. Antes eu tinha identidade e corpo masculino. Os efeitos dessas estratégias que adotei foram mínimos e serviram apenas para minha satisfação pessoal. Mas eu era um gay mais afeminado". (Luisa, GD). (SANTOS, 2010, p. 154)

Pode-se compreender por essa narrativa, comum a outras entrevistadas da pesquisa (SANTOS, 2010SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos Santos. Cartografias da transexualidade: a experiência escolar e outras tramas. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010., p. 154), que a permanência no armário está atrelada a uma identidade nomeada diferentemente da identidade trans. Nesse sentido, a saída do armário para essas experiências de travestilidade e transexualidade parece coincidir com os processos visíveis de fabricação do corpo e da identidade trans.

Essas experiências de outing trans parecem também estar intrinsecamente relacionadas ao conceito de passabilidade, como desenvolvido por Tiago Duque em sua tese de doutorado. Para o autor, a passabilidade refere-se à performatividade do gênero e da sexualidade. Um exercício diário, inclusive para as mulheres transexuais que já realizaram a cirurgia de transgenitalização,12 12 De acordo com Berenice Bento (2006, p. 48, grifo da autora), "'[r]edesignificação' [sexual] é o nome adotado oficialmente para as intervenções cirúrgicas nos transexuais". Utilizo a expressão cirurgias de transgenitalização por entender que esse termo aproxima-se da afirmação dos corpos e das subjetividades fabricadas pelas/os transexuais. por exemplo, para produzir uma expressão de gênero identificado convincente, na percepção dos sujeitos que as realizam (DUQUE, 2013DUQUE, Tiago. Gêneros incríveis: identificação, diferenciação e reconhecimento no ato de passar por. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013., p. 20-27). Talvez esse exercício diário de convencer, isto é, de se fazer inteligível em relação à performance de gênero, esteja atrelado à tentativa de escape do espectro da abjeção (BUTLER, 2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 151-172., 2008).

No entanto, a possibilidade de permanecer no armário para esses sujeitos é colocada em cheque no momento em que as instituições acionam qualquer prática de identificação civil, como na comprovação de identidade para a efetivação da matrícula escolar ou para embarcar no aeroporto. Nessas situações, esses sujeitos-corpos ficarão presos a uma ultravisibilidade que os define subjetivamente como inadequados. Nessa perspectiva, para Mario Carvalho (2014CARVALHO, Mario. O "armário trans": entre regimes de visibilidade e lutas por reconhecimento. In: COELHO, Maria Thereza Àvila Dantas; SAMPAIO, Liliana Lopes Pedral (Org.). Transexualidades: um olhar multidisciplinar. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2014, p. 241-254., p. 253):

A problemática do "armário trans" não é apenas circunscrita ao estima [sic] social de um indivíduo em questão, mas exige respostas de diversas instituições modernas envolvidas na manutenção/produção da incomensurabilidade dos sexos, para usar um termo de Laqueur (2001). Em um jogo de tensões entre sistemas de visibilidade, de conhecimento e de poder, tais instituições (medicina, religião, justiça, sistema educacional etc.) se apresentam ativamente na carpintaria do armário, dando sentido às diferentes díades da crise epistemológica da modernidade. [...] Mas não sem resistência.

Na escola, a experiência de visibilidade que se instaura a partir da pedagogia do controle (CÉSAR, 2004CÉSAR, Maria Rita de Assis. Da escola disciplinar à pedagogia do controle. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.) é a do excesso, pois são corpos e identidades para os quais a possibilidade da existência do armário está atrelada à não solicitação de comprovação de identidade, o que na contemporaneidade é impensável. Embora sejam múltiplas e apresentem várias nuances, as experiências travestis e transexuais são engendradas para fora dos limites do armário, porque travestis e transexuais fabricam seus corpos e identidades fora do armário, isto é, muitas vezes, nas ruas, nas pistas, nas calçadas, nas casas de cafetinagem e prostituição.

O olhar inquisidor e escrutinador sobre os corpos e identidades trav e trans constrói um aparato acusatório para essas personagens.

Ao analisar as relações possíveis entre homofobia e esporte, Rodrigo Braga do Couto Rosa (2010ROSA, Rodrigo Braga do Couto. Enunciações afetadas: relações possíveis entre homofobia e esporte. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.) elaborou o conceito de cristaleira, por meio de uma descrição das relações de poder-saber empreendidas pelo caso do jogador do São Paulo Futebol Clube, Richarlyson. O autor observa que a heterossexualidade é constituída como uma condição social a priori para atletas. A menos que estes "deslizem" e forneçam indícios contrários ou que se instaure a dúvida em relação à heterossexualidade, elas/es são, sob o olhar de todas/os, um/a heterossexual fora de qualquer suspeita. O jogador não se assumiu gay em momento algum. Pelo contrário, negou ser gay veementemente em todas as suas declarações. Mas, a suspeita de que fosse gay instaurou um processo de potencial visibilidade para a sua sexualidade como um desvio (ROSA, 2010ROSA, Rodrigo Braga do Couto. Enunciações afetadas: relações possíveis entre homofobia e esporte. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., p. 138-151, grifos meus).

Em relação aos corpos e subjetividades trans e trav, nem mesmo a cristaleira é suficiente, pois o aparato transparente construído pelos olhares sobre esses corpos parece se assemelhar mais a um olhar de amplo alcance, que penetra a vestimenta, desnudando esses corpos e chegando até a sua genitália. O olhar lançado a esses sujeitos é um olhar genitalizado que irá inquirir sobre a desconformidade entre corpo e genitália. Aquilo que se constrói no entorno dos corpos e identidades trans e trav parece se assemelhar a uma gigantesca lupa, ou uma espécie de lente de aumento que procura ver os órgãos e as práticas sexuais, centrando-se na suspeita de uma genitália diferente da esperada. Procura-se enxergar a genitália em desarmonia com a fabricação do gênero empreendida. A cirurgia de transgenitalização e a alteração do nome nos documentos, importantes para os sujeitos, não parecem importar nesse contexto do olhar, considerando que as transexuais cirurgiadas e que possuem documentos alterados também são alvo de diagnóstico e escrutínio. Nesse sentido, na sociedade de controle, os próprios corpos de transexuais é que se tornaram de cristal.

As relações entre a escola e tais experiências estabelecem-se no campo do estranhamento e, em geral, da tensão. Segundo a narrativa oficial do Movimento Social LGBT, a escola contemporânea tem sido eficiente em apagar as diferenças e em propagar a exclusão e as violências, pois objetiva a todas e todos como iguais na diversidade. Entretanto, por meio de uma reflexão sobre a diferença, a presença dessas experiências na escola contemporânea poderá ser tomada como um acontecimento. Para Carlos Skliar (2008SKLIAR, Carlos (Org). Derrida & a educação. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. (Pensadores & Educação)., p. 21-22),

[...] é a partir de uma incapacidade, a partir de um não-conhecimento, a partir da impossibilidade para responder a essa pergunta, que alguma coisa acontece ali, no lugar onde não há lugar, faz-se acontecimento. Alguma coisa torna-se acontecimento, pois o impossível se torna possível.

Com isso, o que se percebe é que a simples presença desses sujeitos perturba e desestabiliza o empreendimento biopolítico da escola, uma vez que diferentemente da saúde, a escola não encontrou ainda meios de capturar esses corpos e torná-los viáveis para o consumo e a produção. Dentro do imperativo da inclusão escolar, a presença trans na escola deflagraria um processo de reorganização da instituição sobre modulações até então impensadas. Entretanto, isso não ocorre, produzindo, ao contrário, os processos de exclusão (CÉSAR, 2010).

Corpos e identidades transexuais operam uma desconstrução no sistema corpo-sexo-gênero por meio de estratégias que, possibilitadas pela própria produção regulatória, desestabilizam a escola e perturbam a ordem das coisas. Esses efeitos determinam, muitas vezes, a rejeição e a exclusão desses sujeitos, justamente porque se produzem fora da norma e fogem ao controle (CÉSAR, 2009).

Nesse sentido, procurar alternativas para se pensar a partir da diferença e da multiplicidade como uma expressão da alteridade (ARENDT, 1987ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.; VEIGA-NETO, 2007______. As duas faces da moeda: heterotopias e emplazamientos curriculares. Educação em revista, Belo Horizonte, v. 45, p. 249-264, jun. 2007b.b) consistiria em um desafio para a educação e para a escola. Talvez assim seja possível traçar meios para resistir e escapar aos tentáculos do "monstro do controle". Com isso, talvez, a educação se constitua em uma possibilidade, como um ato político de resistência e liberdade, em meio às incertezas e à fluidez, produzindo um enfrentamento à pedagogia da tolerância.

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  • ______. As duas faces da moeda: heterotopias e emplazamientos curriculares. Educação em revista, Belo Horizonte, v. 45, p. 249-264, jun. 2007b.
  • 1
    Neste texto, a análise se dará em relação às normatizações específicas da educação básica. Existem outras referentes à administração pública e à educação superior, que não serão contempladas. Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/nomesocial.php. Acesso em: 22 set. 2014.
  • 2
    Disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2012/05/tarso-institui-carteira-de-nome-social-para-travestis-e-transexuais-no-rs.html>. Acesso em: 22 set. 2014.
  • 3
    A presidenta do CNCD LGBT, na data da consulta, é Janaína Barbosa de Oliveira, ativista do movimento lésbico e negro. Para saber mais sobre o CNCD LGBT, acessar: <http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cncd-lgbt>. Acesso em: 12 mar. 2015.
  • 4
    Disponível em: <http://encontronacionaldehomenstrans.blogspot.com.br/> Acesso em: 20 mar. 2015.
  • 5
    No campo da saúde, os agenciamentos biopolíticos estão em pleno funcionamento, uma vez que os corpos foram capturados e estão sob controle: as instituições da saúde determinam, a partir de seus pressupostos, quem é ou não verdadeiramente transexual e quem fará ou não a cirurgia. Sobre isso, ver: Portaria n. 1.707, de 18 de agosto de 2008, Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, instituída pela Portaria n. 675/GM, de 31 de março de 2006, disponíveis em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/default.cfm>. Acesso em: 22 set. 2014.
  • 6
    De acordo com Alfredo Veiga-Neto (2007a), Foucault chama de Modernidade o período histórico após a Revolução Francesa (1789). "Mas, é preciso entender que, para Foucault, modernidade designa menos um período da História e, mais uma atitude [...]" (VEIGA-NETO, 2007a, p. 64).
  • 7
    O termo performances está em itálico porque refere-se à teoria da performatividade, desenvolvida por Judith Butler (2008). Assim, afasta-se da ideia de performance das artes cênicas. Uma explicação sobre a teoria da performatividade dos gêneros encontra-se no decorrer deste texto.
  • 8
    Termo utilizado e problematizado por Tiago Duque (2013, p. 02).
  • 9
    Com esse posicionamento teórico e diante das múltiplas possibilidades das experiências de fabricação de corpos e subjetividades trans, das resistências aos processos de normalização e regulação, a reflexão proposta segue aberta. A intenção aqui não é a de mapear todas, ou a maioria, das experiências de saída do armário trans, mas sim discutir suas potencialidades.
  • 10
    Atualmente, com a produção de saberes dos movimentos sociais de transexuais, dentre os quais o transfeminismo, utiliza-se o conceito de mulheres cis para designar as feminilidades em corpos não transexuais ou travestis (ALVES, 2014). Maiores informações sobre essas discussões em: <http://transfeminismo.com> Acesso em: 12 set. 2014.
  • 11
    Para Berenice Bento (2006, 2008), o gênero identificado, gênero de destino ou gênero adquirido consiste naquele pelo qual a/o transexual reivindica ser reconhecida/o. Já o gênero atribuído seria aquele ligado estritamente à genitália, com o qual a/o transexual nasceu.
  • 12
    De acordo com Berenice Bento (2006, p. 48, grifo da autora), "'[r]edesignificação' [sexual] é o nome adotado oficialmente para as intervenções cirúrgicas nos transexuais". Utilizo a expressão cirurgias de transgenitalização por entender que esse termo aproxima-se da afirmação dos corpos e das subjetividades fabricadas pelas/os transexuais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    Out 2014
  • Aceito
    Jun 2015
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