EDITORIAL
Biodiversidade, lei de recursos genéticos e política científica
O polêmico acordo entre a BioAmazônia e a multinacional farmacêutica Novartis, visando permitir o acesso aos recursos genéticos da Amazônia, tem sido tema debatido em diversos fóruns do país, inclusive no Congresso Nacional, pois a comunidade científica entende que a prospecção de microrganismos na Amazônia por esta multinacional é lesivo aos interesses dos brasileiros. A aprovação de uma lei que regulamente esses recursos genéticos não pode ser tratada isoladamente, sem considerar a questão da preservação da nossa biodiversidade. Cabe lembrar que atualmente, o perigo mais real que a nossa biodiversidade tem a vista é o projeto de conversão em lei da medida provisória 1.855-42 (1999) que trata da reformulação do Código Florestal. Este projeto de conversão desmonta o código florestal atual e transforma-o num salvo-conduto para a devastação. Dentre os inúmeros escárnios apresentados no projeto podemos citar: redução da área de reserva legal no Cerrado de 50 para 20% e a redução da área de reserva legal na Amazônia de 80 para 50%.
O estudo da biodiversidade, no seu mais amplo aspecto químico, bioquímico, biotecnológico, ecológico e econômico, é o campo de trabalho de centenas de cientistas brasileiros. Entregá-lo aos interesses corporativos internacionais, parece uma falta de bom senso. Não se quer dizer com isso que neste cenário não caibam colaborações científicas internacionais. Até porque, como Brasil detém cerca de 22% das variedades de plantas, animais terrestres e aquáticos do mundo, há espaço para muitas colaborações. Desde os tempos mais remotos, esta incrível biodiversidade tem representado um fabuloso arsenal contra diversas doenças que afetam homens e animais. Até hoje, as florestas constituem a principal fonte de alimento e, portanto, a própria sobrevivência de vários povos brasileiros. Neste aspecto, a Química de Produtos Naturais sempre teve um grande destaque no desenvolvimento científico do país. A indicação do Professor Otto R. Gottlieb para o Prêmio Nobel de Química foi um reconhecimento internacional dos avanços promovidos por esta área da Química no Brasil. Porém, a crescente devastação das florestas promovida pelos interesses escabrosos de empresários, muitos destes incentivados pelo próprio governo, está levando a uma gradual e irreversível perda desta nossa rica biodiversidade, sem que haja tempo e recursos para que os cientistas possam estudar suas potencialidades. Infelizmente o País tende a ignorar esta riqueza, pois cerca de mil espécies são extintas a cada ano (3 por dia). É neste ponto que se baseiam os burocratas da BioAmazônia para promover o leilão dos recursos naturais das florestas brasileiras.
Existem alternativas ao modelo que está sendo proposto pela BioAmazônia e outras empresas similares, que passam principalmente pela definição de uma política científica pois, atualmente, não temos uma política científica nacional. O que temos são algumas instituições isoladas que tentam desempenhar o papel de agências para o desenvolvimento científico do país, como o MCT, o CNPq, a CAPES, a FINEP e algumas FAPs. Porém, a existência dessas instituições, com ações pontuais e diversificadas, não significa uma política científica nacional com prioridades definidas e financiamentos contínuos, afim de manter os projetos e a renovação dos recursos humanos qualificados de geração para geração. Recentemente, o professor Carlos A. L. Filgueiras, no Editorial de Química Nova 23 (2) 2000, fez um comentário que traduz literalmente a ausência de política e fomento à ciência - "fomento da ciência tornou-se algo distante e bastante sovina".
Ações com os recursos provenientes dos fundos setoriais são bem vindas como complementos a uma política estabelecida, senão serão ações improvisadas e passíveis a críticas dos tecnocratas imediatistas.
O estabelecimento de uma política científica que trate simultaneamente da biodiversidade e do acesso aos seus recursos genéticos, assim como de resguardar o campo de trabalho de nossos pesquisadores, deve levar em consideração algumas premissas básicas, como por exemplo: incentivo à produção de plantas e animais nativos (terrestres ou aquáticos) em seus habitats naturais, preservando desta forma as florestas nativas; melhoramento da qualidade genética do nosso rebanho para que se produza mais alimentos, em áreas menores; evitar o contrabando da nossa biodiversidade; aparelhar cientificamente os órgãos federais de fiscalização na Amazônia, para que essa entidade entenda que o contrabando e o narcotráfico são tão ruins para o país como é o biocontrabando; destinar recursos, bolsas de estudo para estas áreas (mestrado e doutorado), bolsa de fixação de recém-doutor do CNPq, FINEP, além de recursos contínuos do fundo do petróleo para o desenvolvimento e a produção de fitoterápicos e animais nativos, economicamente viáveis, com controle de qualidade; respeito ao direito de usufruto exclusivo dos recursos naturais contidos nas áreas indígenas (Documento Final da Conferência dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil aprovado em Coroa Vermelha, Bahia, 21 de abril de 2000); projetos temáticos que valorizem a descoberta de novas plantas e microorganismos na Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, com potencial atrativo econômico, similar ao Projeto Biota da FAPESP em São Paulo.
Enfim, para que algumas destas idéias possam resultar em ações concretas, o governo deve, através dos ministérios específicos, debatê-las com a comunidade científica e com as populações que vivem nestas (destas) florestas, eliminando as soluções e contratos isolados de gabinete.
Vitor Francisco Ferreira
Editor de QN
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Dez 2000 -
Data do Fascículo
Out 2000