Open-access A obrigação da promessa em Hume

Resumos

Neste texto examino o sentido da obrigatoriedade da promessa em Hume, especialmente no contexto da sua classificação da virtude do cumprimento das promessas como virtudes artificiais. Nisso a posição de Hume se distingue das posições aristotélica e kantiana em Anscombe e Herman respectivamente. Mas, o problema principal - que não há um motivo natural para o cumprimento das promessas- divide intérpretes de Hume: Cohon e Baier. Defendo, seguindo Baier, que, embora não haja o referido motivo natural, há uma paixão ou motivos eficientes - por certo, não naturais como o motivo natural que nos conduz ao cuidado dos nossos filhos - que é o auto-interesse esclarecido: ele é auto-interesse e assim real e natural num sentido; e é esclarecido porque no reconhecimento de sua correspondência nos outros se engendra um vínculo com o benefício comum, no sentido de "de todos e de cada um".

Hume; obrigação da promessa; virtudes artificiais; auto-interesse esclarecido


In this essay I examine the obligation of promises according to Hume, giving special consideration to his view of the virtue of fulfilling one's promises as an artificial virtue. In this, Hume's position distinguishes itself from the Aristotelian and the Kantian views according to Anscombe and Herman, respectively. However, the main difficulty -that there is no natural motive to the fulfilling of promises, as there apparently should be for every natural obligation - divides the scholars of Hume: Cohon and Baier. I maintain, following Baier, that, in spite of the inexistence of a natural motive to the fulfillment of promises, there is a passion or effective motives - not natural as the natural motive that makes us care about our offspring - that can be called enlightened self-interest: it is a self-interest, and thus far real and natural; it is enlightened because of the recognition of its correspondence in others, which links it to a "common benefit" in the sense of a "mutual advantage".

Hume; obligation of promises; artificial virtues; enlightened self-interest


ARTIGOS

A obrigação da promessa em Hume

André Klaudat

UFRGS. klaudat@ufrgs.br

RESUMO

Neste texto examino o sentido da obrigatoriedade da promessa em Hume, especialmente no contexto da sua classificação da virtude do cumprimento das promessas como virtudes artificiais. Nisso a posição de Hume se distingue das posições aristotélica e kantiana em Anscombe e Herman respectivamente. Mas, o problema principal – que não há um motivo natural para o cumprimento das promessas– divide intérpretes de Hume: Cohon e Baier. Defendo, seguindo Baier, que, embora não haja o referido motivo natural, há uma paixão ou motivos eficientes – por certo, não naturais como o motivo natural que nos conduz ao cuidado dos nossos filhos – que é o auto-interesse esclarecido: ele é auto-interesse e assim real e natural num sentido; e é esclarecido porque no reconhecimento de sua correspondência nos outros se engendra um vínculo com o benefício comum, no sentido de "de todos e de cada um".

Palavras-chave: Hume, obrigação da promessa, virtudes artificiais, auto-interesse esclarecido

ABSTRACT

In this essay I examine the obligation of promises according to Hume, giving special consideration to his view of the virtue of fulfilling one's promises as an artificial virtue. In this, Hume's position distinguishes itself from the Aristotelian and the Kantian views according to Anscombe and Herman, respectively. However, the main difficulty –that there is no natural motive to the fulfilling of promises, as there apparently should be for every natural obligation – divides the scholars of Hume: Cohon and Baier. I maintain, following Baier, that, in spite of the inexistence of a natural motive to the fulfillment of promises, there is a passion or effective motives – not natural as the natural motive that makes us care about our offspring – that can be called enlightened self-interest: it is a self-interest, and thus far real and natural; it is enlightened because of the recognition of its correspondence in others, which links it to a "common benefit" in the sense of a "mutual advantage".

Keywords: Hume, obligation of promises, artificial virtues, enlightened self-interest

1. Meu tema principal é a moralidade da promessa em Hume, a "fidelidade" às promessas, que em seu pensamento é uma virtude artificial (T519)1. Por que exatamente?

Pro forma, Hume, quanto às promessas, expressa uma opinião a mais des-humeana, porque aparentemente kantiana. Diz ele: "Bem, é evidente que nós não temos um motivo que nos leva ao cumprimento [performance of promises] das promessas distinto do senso do dever" (T518)2. Parece claro que aqui se trata do cumprimento do que se prometeu, e não do ato de se fazer promessas. Esse é um dos aspectos a serem considerados quanto à moralidade da promessa: o motivo do seu cumprimento. Mas, quanto à obrigação, não qualificada, de cumprir promessas, Hume tem uma posição, como veremos, bi-partite: há, primeiramente, um motivo determinado para o cumprimento de promessas, e há, num segundo momento, considerações morais a favor do cumprimento delas. Mas serão essas últimas aquelas que podem constituir o motivo genuíno para o cumprimento, digamos, moralmente relevante das promessas, esse que poderia tornar os comportamentos de cumprimento delas manifestações da virtude da fidelidade à palavra empenhada? Ou serão essas considerações morais a favor do cumprimento das promessas somente um dourar extra que apenas reforça o que anteriormente unicamente pode ser o motivo da fidelidade às promessas, a saber, o auto-interesse? Ou ainda: não serão – essas "considerações morais" – nem isso? Humeanos divergem. Mas comecemos com não-humeanos.

2. É algo embaraçoso para humeanos o elogio que E. Anscombe faz à discussão do "lúcido" Hume sobre as promessas e suas obrigações3. Em função de vários elementos da abordagem de Anscombe que são bem anti-humeanos. De modo tipicamente anacrônico, Anscombe imputa a Hume uma distinção quanto às preocupações com as promessas: (1) que tipo de bicho é a promessa? e (2) como que tal coisa existindo pode gerar uma obrigação4. Afirma Anscombe: "Hume tinha duas teses sobre promessas: uma, que uma promessa é ‘naturalmente ininteligível', e a outra que mesmo se (per impossibile) ela fosse ‘naturalmente inteligível', ela não poderia dar lugar naturalmente a qualquer obrigação"5. O problema em geral com a abordagem de Anscombe é que a não-naturalidade da promessa é usada por ela como plataforma para um posicionamento filosófico que visa atacar o empirismo6 e o naturalismo7, com os quais Hume parece estar comprometido. Além disso, há a conhecida resistência de Anscombe à posição de Hume sobre o pensamento abstrato ou sobre o funcionamento da linguagem8. Mas, o que deve ser a fonte de maior embaraço é a opinião de Anscombe de que os principais elementos da posição de Hume sobre as promessas são obteníveis sem a sua orientação filosófica específica: "A correção das conclusões de Hume é independente tanto da sua psicologia e de sua teoria da fundação da moralidade num sentimento peculiar"9.

Anscombe imagina que a preocupação de Hume com as promessas seja a sua: "para tomarmos um caso particular, o que é fazer um contrato? Esse era o primeiro problema de Hume – ele tinha dois – que estava por detrás do seu segundo problema, que era: como é a obrigação criada? O primeiro problema não é sobre a obrigação, ele existe para o conceito anterior à obrigação gerada"10. Bem, o que parece central à posição de Hume é que a respeito das virtudes artificiais ele distingue duas obrigações: uma primeira, natural, e uma segunda, moral. Deve-se, no entanto, notar que embora haja uma obrigação natural em relação às virtudes artificiais em geral, ela não é natural no sentido em que a benevolência envolve um motivo natural e pode, por isso, ser o alvo de um dever11. Mas quanto às distinções de Hume e Anscombe, o que importa é que Hume de modo algum parece limitar a sua obrigação natural a uma obrigação meramente lingüística, isto é, ao que deve ser o caso quando simplesmente falamos significativamente12.

É fato que Anscombe afirma que a correção das conclusões de Hume é independente de suas outras posições filosóficas, e isso em geral pode ser uma avaliação plausível, mas se essa correção diz respeito a outras conclusões, bem, então, é melhor verificar se as conclusões de Hume se seguem das premissas expressas na sua filosofia. Tratarei disso logo abaixo, o que é a minha principal ambição aqui.

3. Passemos antes a uma kantiana: Barbara Herman. A sua sofisticada discussão do valor de se agir pelo motivo do dever ataca o motivo do homem de temperamento simpático com a acusação – não que esse motivo não seja regular ou confiável – mas que ele é inadequado, porque, no fundo, "indiferente à moralidade"13. Quanto à confiabilidade:

Mas se o motivo da simpatia [natural: que ajuda os outros em função de uma inclinação imediata, é a ajuda aos outros que o beneficente deseja oferecer] produz ações corretas, por que não é ele julgado ser um motivo que produz ações com conteúdo moral? (...) É o motivo da simpatia somente afortunado quando ele se manifesta [hits on] numa ação correta? Não faz ele, necessariamente, com que uma pessoa ajude aos outros?14

O ataque principal, no entanto, é desferido considerando-se o que poderia ser chamado de a "intencionalidade correta" da ação moral. Isso, para Herman, não diz respeito à confiabilidade, à força ou mesmo à imparcialidade15 (pontos que, segundo ela, interessariam a Hume), antes que se trata de um motivo que possa "gerar ações moralmente corretas [não] somente por acidente"16. Pois, enquanto a simpatia [o temperamento simpático gerando "inclinações imediatas"] pode nos dar um interesse numa ação que (como soe acontecer) é correta, ela não pode nos dar um interesse em ela ser correta"17. Devemos notar que se trata, pretensamente contra Hume, do que kantianos entendem como altruísmo natural, como um temperamento simpático natural18, e sua ilustração por Herman não deve induzir um humeano a vestir o chapéu. A ilustração é a seguinte:

Suponha-se que eu vejo alguém com dificuldades, tarde da noite, com uma carga pesada junto à porta dos fundos do Museum of Fine Arts. Por causa do meu temperamento simpático eu sinto uma inclinação imediata a ajudá-lo. Não precisamos seguir o exemplo para entender seu propósito: a classe de ações que se seguem da inclinação a ajudar os outros não é um subconjunto da classe de ações corretas ou exigidas por dever [dutiful]19.

Para Hume, ajudar alguém nessas circuntâncias é certamente burrice, é como ele disse no 4º Apêndice ao Enquiry Concerning the Principles of Morals ("Of Some Verbal Disputes"): "Quem alguma vez diria, exceto por ironia, que um tal sujeito era um homem de grande virtude, mas um emérito mentecapto [egregious blockhead]"20.

Talvez seja uma consideração como essa que leva uma humeana, Rachel Cohon, a sustentar destemidamente algo que precisaríamos averiguar se de fato se endereça ao ponto de Herman. Diz Cohon: para se agir virtuosamente ou bem para Hume, "não é suficiente fazer a coisa certa; nós precisamos fazê-lo pelas razões certas"21. As linhas cruzadas parecem ficar estabelecidas ao notarmos que, enquanto para Herman, a "intencionalidade certa" está ligada ao motivo do dever, para Cohon se trata de um motivo natural distinto: "Eu não manifesto minha benevolência ao ajudar um sem-teto se eu o ajudo em função do desejo de melhorar a minha reputação. O que eu faço é certo, mas não benevolente. Uma ação que manifesta a virtude da benevolência é motivada, ao menos em parte, pela preocupação como o bem-estar da outra pessoa. Essa é a razão certa"22.

Não obstante as linhas cruzadas, o certo é que o altruísta trapalhão/estúpido nos fundos do museu em Boston não é o sujeito virtuoso de Hume23.

4. Voltemos a Hume. A mim parece que há 4 tópicos fundamentais no tratamento de Hume da obrigação da promessa. (1) Por que o opositor de Hume, o não-convencionalista, só pode procurar dar conta daquela obrigação via certos "atos mentais" especiais? (2) Por que a posição convencionalista que Hume endossa precisaria envolver o ato mental de querer que uma nova obrigação exista (o que antes havia sido criticado)?24 (3) A indubitável máxima ciceroniana é suspensa em relação à virtude artificial da obrigação da promessa? (4) E, ligado à pergunta anterior, há um motivo não-natural para a obrigação moral do cumprimento da promessa, uma interação entre homens que não podemos entender naturalmente?

5. O problema de Hume é: por que devemos cumprir promessas? Primeiramente, o que são promessas para Hume? Como elas podem criar uma obrigação ab ovo? Promessas são engajamentos entre pessoas25. Ou seja, são contratos entre pessoas para a troca, em geral, de serviços, mas não – como veremos – contratos assinados ou de valor legal. De fato, o alvo de Hume com o termo são todas as formas de comprometimento que envolvem a declaração, a retribuição, a restituição, de comportamentos, serviços ou coisas. "Te encontrarei na saída do espetáculo, prometo", e assim por diante. O problema para Hume é que esses engajamentos envolvem uma forma de obrigação – esse é o dado do problema – que não pode ser explicada sem apelo, segundo ele, a uma situação genuinamente social (T516). Para Hume, mesmo que pudéssemos ler pensamentos, intenções, e assim soubéssemos, ou tivéssemos a confiança de que alguém irá fazer o que diz, sem um contexto propriamente social, nós não teríamos o fenômeno do engajamento, o compromisso.

É por isso que Hume apresenta o não-convencionalista sobre a obrigação da promessa como alguém que procura explicar a origem dessa obrigação apenas nos termos da mentalidade dos envolvidos, sem a referência ao que ele Hume entende como sociedade, o que envolve necessariamente convenções. A cena original do não-convencionalista é a de duas pessoas se aproximando uma da outra e uma dizendo (tendo somente à disposição o sistema de convenções lingüísticas que excluiria performativos, claro, esses que interessam ao caso) "eu prometo". Do que poderia a obrigação depender nesse cenário? Segundo Hume, somente, como possibilidade, de certos "atos da mente" (T516). Hume examina 4 candidatos (T516).

O primeiro, uma resolução. Mas, é claro, que uma resolução de fazer algo não impõe qualquer obrigação. O segundo, um desejo de realizar o prometido. Mas também é claro que podemos estar obrigados mesmo que não desejemos cumprir a promessa. O terceiro, querer a ação de prometemos. Aqui o problema, segundo Hume, é que a vontade, o querer, naturalmente, dizem respeito somente ao que está próximo e não ao que está distante como a ação prometida. O que seria querer a ação de devolver um livro emprestado, digamos, daqui a 10 anos? O quarto, o candidato natural: querer a obrigação contida na promessa. A crítica de Hume agora é mais elaborada, e para atacar um voluntarismo normativo ingênuo Hume se socorre de sua filosofia moral.

Ordinariamente, podemos pensar que estamos comprometidos pelo nosso consentimento, porque assim o faríamos pelo nosso desimpedido arbítrio (T517). Mas, pode mesmo esse voluntarismo moral criar uma obrigação genuína nova, ab initio? Hume pensa que não26. Para articular esse ponto, Hume se socorre do naturalismo e realismo que estão claramente presentes no seu sentimentalismo moral, como por exemplo na "máxima indubitável [undoubted]" (T479), a máxima ciceroniana sobre o primeiro motivo moral, em geral, para as ações vistas como morais, não poder ser o senso da moralidade do motivo. Essa máxima pode ser aplicada paradigmaticamente às virtudes naturais, essas que dependem, para Hume, de nossos "sentimentos naturais de humanidade" (T518). Quanto a essas virtudes, então, um motivo como o dever em relação a certas ações claramente supõe paixões e motivos capazes de produzir as ações independentemente do motivo do dever. Diz Hume:

Nenhuma ação pode ser exigida de nós como nosso dever, a menos que haja implantado em nossa natureza humana alguma paixão ou motivo eficiente capaz de produzir a ação. Esse motivo não pode ser o senso de dever. Um senso de dever supõe uma obrigação antecedente, e onde uma ação não é exigida por qualquer paixão natural, ela não pode ser exigida por qualquer obrigação natural (T518).

E referindo-se ao caso através do seu clássico exemplo, Hume esclarece:

Um pai sabe que é seu dever cuidar dos seus filhos; mas ele também tem uma inclinação natural para tal. E se nenhuma criatura humana tivesse tal inclinação, ninguém poderia estar sob tal obrigação (T518-9).

Voltemos, então, ao voluntarista sobre a obrigação da promessa. Uma promessa, um tal ato, cria uma nova obrigação, que não existia antes. Como a obrigação foi compreendida em termos das nossas respostas sentimentais a certos tipos de ação, a nova, agora criada, obrigação deve se assentar num sentimento novo, agora sentido. Se ainda lembrarmos que para Hume o sentimento ligado ao reconhecimento de uma obrigação é desprazeroso (como se sentirá o pai dotado de humanidade mas que não tem uma inclinação natural de cuidar dos seus filhos?), então poderemos compreender o ataque de Hume ao voluntarista por apelo à inércia, natural, dos sentimentos.

Uma mudança de obrigação supõe uma mudança de sentimento; e uma criação de uma nova obrigação supõe que surja algum novo sentimento. Mas é certo que não podemos naturalmente [como na proposta do não-convencionalista voluntarista] mudar mais os nossos próprios sentimentos do que os movimentos dos céus; nem por um ato singular da nossa vontade, isto é, por uma promessa, tornar qualquer ação agradável ou desagradável, moral ou imoral; que sem aquele ato teriam produzido impressões contrárias, ou teriam sido dotadas de outras qualidades. Seria absurdo, portanto, querer qualquer nova obrigação, isto é, qualquer sentimento novo de dor ou prazer; (...) (T517).

Mas, com o afastamento do último candidato não-convencionalista em que situação nos encontramos?27

6. Aparentemente, numa situação de extrema dificuldade. A máxima ciceroniana e a artificialidade da virtude do cumprimento das promessas parecem tornar o fenômeno impossível. A obrigação moral, o senso do dever, exigiria, em geral, um motivo natural, uma paixão anterior, por um lado; mas, por outro, não há qualquer motivo natural para a obrigação em tela. Por isso, quanto ao último ponto, a sentença des-humeana: "Bem, é evidente que nós não temos um motivo que nos leva ao cumprimento das promessas distinto do senso de dever" (T518), ou seja, só ele resolve, é o que Hume parece dizer. Paradoxalmente, o fenômeno exigiria um motivo do dever que não assenta em qualquer curso natural de nossas paixões. Mas será mesmo?28

Hume não parece se desesperar com a dificuldade. Olhemos com cuidado a conclusão propositiva de Hume.

Mas, como não há naturalmente qualquer inclinação para observarmos promessas distinta do senso de sua obrigação; segue-se que fidelidade não é uma virtude natural, e que promessas não tem uma força antecedente às convenções humanas (T519).

Note-se: embora não haja inclinação natural para o cumprimento das promessas, disso não se segue que o senso de sua obrigação não possa ser devido ao curso de nossas paixões, que, não obstante pautado por convenções, será visto como natural num certo sentido. Se for assim, então, a compreensão do senso do dever deverá ser expandida para além da sua ocorrência paradigmática no caso das virtudes naturais. Nesse sentido, o senso de dever, no caso das promessas, não exige de fato um impossível "motivo natural" com um conteúdo que terá seu sucedâneo no dever moral de cumpri-las, mas somente uma paixão ou motivo eficientes, não necessariamente naturais como o cuidado com os filhos ou a gratidão por favores recebidos. Por isso, a proposta de Hume:

(...) Portanto, atrevo-me a concluir que as promessas são invenções humanas, fundadas nas necessidades e interesses da sociedade (T519).

Vejamos os detalhes.

7. Quanto às necessidades e os interesses da sociedade ligados às promessas, Hume vê a ocasião para continuar a apresentação de sua história natural da sociedade humana como uma "sucessão de soluções" para as dificuldades que os homens enfrentam, num processo de sofisticação crescente em função de que melhorias introduzidas pelas soluções num estágio determinado trazem consigo suas próprias dificuldades exigindo novo cuidado. Tecnicamente, a solução da obrigação da promessa é atender o desideratum de um "comércio auto-interessado" (T521), isto é, trata-se de um engajamento com vistas ao atendimento do interesse próprio. A história natural referida é essa pautada pelo estabelecimento das 3 leis naturais da justiça, sendo a terceira justamente esta da obrigação da promessa. Recuperemos as etapas cruciais, principalmente a partir da sua apresentação na discussão sobre a promessa.

a) A solução para as nossas naturais dependência, fraqueza e carência é, certamente, a sociedade. Mas essa solução se apresenta, como tal, facilmente aos homens somente na situação da sociedade constituída, isto é, ex post facto. A experiência dos ganhos mútuos com a sociedade só é tida pelas crianças que vêem o interesse comum dos seus pais na sua sorte, pais esses atraídos uns para os outros somente por causa do instinto sexual. É o começo anti-bíblico por excelência. Mas os homens são egoístas e de generosidade "confinada", ela é limitada à sua família somente. O problema em relação a esse estado familiar não é o egoísmo, mas o confinamento da generosidade humana. A solução, para que sejamos menos fracos e estejamos mais seguros, e tenhamos nossas necessidades (das nossas famílias naturais) mais satisfeitas, é-nos proporcionada pela reflexão, calcada na experiência, de que obteríamos tais vantagens em relação aos "bens externos" com a convenção da "estabilidade da posse", que torna os homens ao menos "toleráveis uns aos outros" (T520). Essa é a primeira lei natural da justiça.

b) Nossa satisfação ficará muito limitada se nos limitarmos ao que temos ou que podemos produzir ou coletar (podemos ter demais de algo, mais que podemos usar [T520], e carecer de algo outro), cuja posse outros homens nos concedem convencionalmente condicionalmente: se não tomarmos as posses dos outros. A estabilidade da posse é convencionada, mas precária. Mais ainda frente à satisfação restrita que oferece. Solução: a transferência da posse por consentimento (T520), e assim acontecem a troca, a doação e a herança. E homens, desse modo, através dessa convenção, começam a se tornar agora "mutuamente vantajosos" (T520). Essa é a segunda lei natural da justiça.

c) E da seguinte maneira chegamos à terceira lei:

A transferência da propriedade, que é o remédio apropriado para essa inconveniência [NB: uma "inconveniência" somente, essa da limitação na satisfação], não pode remediá-la inteiramente; porque ela só pode ter lugar com relação a tais objetos que estão presentes e são individuais, mas não com tais que estão ausentes ou são gerais (T520).

Imaginem-se os seguintes exemplos, adaptados de Hume: como transferir a propriedade de uma casa de uma de nossas praias, digamos, Rainha do Mar, de 10 toneladas da arroz de Pelotas, de 22 mil litros de vinho de Bento? O famoso exemplo de Hume tem mais a ver com o interior de Dois Irmãos: dois agricultores têm grãos prontos para a colheita em tempos diferentes, eles não são nem um pouco generosos um com o outro; se um decidisse contar com a gratidão do outro para ajudá-lo na sua colheita, então pensaria que certamente ficaria desapontado; por isso deixa-o labutar sozinho, como ele próprio fará, e ambos perdem suas colheitas "por falta de confiança mútua e segurança", afirma Hume30.

Mas como passamos de sermos "mutuamente vantajosos" (sincronicamente, quase) para sermos "vantajosos recíprocos" (T519, diacronicamente, em correspondência, alternadamente)? A expectativa de retorno com base na generosidade de outrem é irrealista, e assim o agricultor eventualmente ajudaria satisfazendo-se com a incerteza do retorno (T519). Mas ninguém se satisfaria com isso. Qual é a solução?

Novamente, uma reflexão baseada na experiência (como a dos agricultores arruinados) nos mostra o que precisamos para que tenhamos a "mesma correspondência de bons serviços" (T521): uma maneira de registrar o propósito de um "comércio auto-interessado". A situação é a seguinte:

(...) Eu aprendo a fazer um serviço a outro, sem nutrir por ele qualquer generosidade; porque prevejo que ele retornará meu serviço na expectativa de outro da mesma espécie, e a fim de manter a mesma correspondência de bons serviços comigo e com outros. De acordo com isso, depois de eu ter servido a ele, e ele estar de posse da vantagem surgida da minha ação, ele é induzido a realizar sua parte, prevendo as conseqüências da sua recusa (T521).

A maneira, então, de registrar o propósito de um comércio interessado, e não baseado na generosidade, é utilizar "certa forma de palavras" (T522) inventadas para justamente nós acordarmos (ou nos comprometermos com) a realização de certas ações. Mas notemos agora que Hume exige um contexto de uso dessas palavras para a realização das promessas:

Quando um homem diz que ele promete qualquer coisa, ele de fato expressa uma resolução de cumpri-la; e juntamente com isso, ao usar essa forma de palavras se sujeita à penalidade de nunca mais se confiar nele em caso de falha [só isso, alguém perguntará]. Uma resolução é o ato natural da mente, que a promessa expressa: mas se não houvesse mais do que uma resolução no caso, as promessas somente declarariam nossos motivos prévios e não criariam qualquer novo motivo ou obrigação (T522; minha ênfase somente em "usar").

O contexto que é de importância para Hume é precisamente esse de um comércio interessado em relação a bens externos. A intersubjetividade do uso das palavras é em Hume tributário da publicidade de comportamentos com relação a esses bens. Se não fosse em função das relações das ações com eles, nós não divisaríamos este "concerto", este "esquema de ações" (T522) que são o veículo dos "bons serviços" num "comércio auto-interessado".

Portanto, o senso do dever em relação à promessa está vinculado à experiência que nos ensina que "os negócios humanos [affairs] seriam conduzidos muito mais para a vantagem mútua caso existissem certos símbolos ou sinais instituídos pelos quais nós poderíamos dar uns aos outros segurança quanto à nossa conduta em qualquer caso [incident] particular" (T522). O senso do dever quanto às promessas está ligado, então, a um interesse em cumprir engajamentos. Afirma Hume na continuação: "Depois que esses sinais foram instituídos, quem quer que os use está imediatamente obrigado [bound] pelo seu interesse a cumprir [execute] seus engajamentos, e deve esperar que nunca mais se confiará nele se ele se recusar a realizar o que prometeu" (T522)31.

Mas, é nesse ponto que a complexidade da posição de Hume se revela, pois é aqui que podemos ver a mencionada expansão da concepção do senso de dever. Esse senso do dever é ligado de fato, por Hume, a um auto-interesse esclarecido (enlightened é o termo de A. Baier32). O auto-interesse é esclarecido porque se vê que sua manutenção está calculadamente vinculada ao "benefício comum". Ele está refletido mutuamente nos indivíduos. Passa-se de um mero "seu interesse" a um "seu interesse" também reconhecido no outro como o mesmo, e por isso merecedor de uma desenvolvida forma de consideração. O que Hume afirma é o seguinte:

(...) Quando cada indivíduo percebe o mesmo senso de interesse em todos os seus semelhantes [fellows] [de interesse no cumprimento de promessas], ele imediatamente realiza a sua parte em qualquer contrato por ter-lhe sido assegurado que eles não falharão nas suas [partes]. Todos eles, em concerto, entram num esquema de ações calculado para o benefício comum, e concordam em ser fiéis [true] às suas palavras; nada mais é exigido para se formar esse concerto ou convenção senão que cada um tenha o senso de interesse no fiel cumprimento de engajamentos, e expresse esse senso aos outros membros da sociedade. Isso imediatamente causa aquele interesse a operar sobre eles; e o interesse é a primeira obrigação para a realização de promessas (T522-3).

Para que reconheçamos que esse interesse (esclarecido) pode ser o motivo primeiro para o cumprimento das promessas, e ser a motivação aprovada para os atos de cumprimento delas, basta não confundirmos – como ensina A. Baier – essa motivação aprovada com as nossas razões para a sua aprovação33. Essas razões olham para além do indivíduo, para – via o esclarecimento do auto-interesse – o benefício comum, no sentido de "de todos e de cada um," e não no sentido de ser o benefício de todos considerados em conjunto, talvez na expectativa de que ele seja discretamente distribuído entre todos.

Parece poder ser desse modo que o senso de dever no caso do cumprimento da promessa não implica uma limitação da máxima ciceroniana, antes um reconhecimento de que o que está em questão não é o motivo natural à la virtudes naturais, mas uma "paixão ou motivo eficientes": o auto-interesse esclarecido – que não é esclarecido naturalmente. Desse modo, a expansão da compreensão do motivo do dever passa a incluir o senso de auto-interesse esclarecido, que para Hume não é natural num sentido, pois é artificial por estar vinculado a convenções humanas, mas que não deixa, mesmo assim, de ser tão natural quanto essas convenções, no sentido de possíveis e efetivas para a inventividade humana.

8. O que vimos até agora diz respeito à obrigação da promessa, digamos, em geral, sem qualificações. Tratou-se da primeira obrigação em relação ao cumprimento da promessa, essa que como vimos pode ser vista como também uma obrigação natural. Mas, há mais em Hume: há ainda uma "nova obrigação", uma especialmente moral, ou que é assim vista pelos outros. Hume, claramente, nutre uma atitude deflacionária em relação a ela. No entanto, procura explicá-la34. Vejamos.

Primeiramente, parece se tratar de uma nova obrigação: "Posteriormente um sentimento de moralidade concorre com o interesse e se torna uma nova obrigação para a humanidade. Esse sentido de moralidade [que presumivelmente faz do cumprimento de promessas uma virtude], no cumprimento de promessas, surge dos mesmos princípios que aquela da abstinência da propriedade dos outros" (T523). Bem, quanto a esse tópico, Hume claramente distinguiu entre uma obrigação natural, a saber, o interesse, e uma obrigação moral, ou o nosso sentimento de certo e errado em relação àquela abstinência (T498). Humeanos distinguem, conseqüentemente, em relação às promessas, o auto-interesse da fidelidade respectivamente. Além disso, considere-se o seguinte resumo que Hume oferece da sua posição, em geral, sobre o tópico da justiça:

Tomando-se o todo, então, devemos considerar esta distinção entre justiça e injustiça como tendo dois fundamentos distintos, a saber, este do auto-interesse, quando os homens descobrem que é impossível viver em sociedade sem se limitar por certas regras; e este da moralidade, quando esse interesse tendo sido uma vez observado como comum a toda a humanidade, e os homens recebendo um prazer da visão de tais ações que tendem para a paz da sociedade, e uma insatisfação de tais que são contrárias a ela. É somente a convenção e artifício voluntários dos homens que fazem o primeiro interesse ocorrer; e portanto nessa medida as leis da justiça devem ser consideradas artificiais. Depois que o interesse foi estabelecido e reconhecido, o senso de moralidade na observância dessas regras se segue naturalmente, e por conta própria, embora seja certo que ele também é aumentado por um novo artifício, e que as instruções públicas de políticos, e a educação privada de pais, contribuem para nos dar um senso de honra e dever na regulação estrita das nossas ações com respeito à propriedade dos outros (T533-4).

Em segundo lugar, em relação à obrigação moral da promessa, a fidelidade, quando queremos explicá-la, Hume dirige nossa atenção para "interesse público, educação e os artifícios dos políticos" (T523). Iconoclasticamente, Hume afirma que nossas dificuldades filosóficas com a obrigação moral da promessa nós ou vencemos ou eludimos (evitamos) (T523). Quanto à dificuldade presente, então, parece que a eludimos ou evitamos com uma ficção, mas nossa situação real seria outra:

Aqui, portanto, nós imaginamos (feign) um novo ato da mente, que nós chamamos o querer uma obrigação; e disso supomos que a moralidade depende. Mas já provamos que não existe tal ato da mente, e conseqüentemente que promessas não impõem qualquer obrigação natural [NB: ligada a atos mentais] (T523).

O que está acontecendo? Quem precisa da ficção que já foi desmascarada? O agente moral instruído pela filosofia humeana da moral? Precisa, esse agente, que o interesse ligado ao "benefício comum" seja visto como "interesse público" (pace a ocorrência em T525), como do grupo, como de uma coletividade? Encontremos Hume no máximo da verve iconoclasta em relação à obrigação moral da promessa:

Eu observarei ainda que, em função de que toda nova promessa impõe uma nova obrigação de moralidade à pessoa que promete, e em função de que essa nova obrigação surge da sua vontade, é uma das operações mais misteriosas e incompreensíveis que pode ser imaginada, que pode ser comparada à transubstanciação ou às ordenações sagradas [que produzem um caráter indelével], nos quais certa forma de palavras, juntamente com certa intenção, muda inteiramente a natureza de um objeto externo, e mesmo de uma criatura humana. (...) Esses mistérios são nessa medida semelhantes (...) (T524).

Note-se bem: Hume postula para uma pretendida apreensão sui generesis da obrigação da promessa, como uma obrigação eminentemente moral, o ato da mente que já foi demonstrado ser impossível naturalmente. Ele postula uma obrigação moral surgindo da vontade. Esse é o novo artifício dos políticos, pais e educadores. Mas será mesmo? Para quem serve isso? Para além do senso de moralidade quanto à observância das regras da justiça, que Hume afirma se seguir naturalmente, por conta própria - aparentemente num ímpeto de auto-ilusão, mas que está atrelado a ideias de "interesse público e conveniência" (T525), que são tributárias da calculada concepção do "benefício comum" – o novo artifício serve para quem? A posição de Baier é a seguinte:

Esses artifícios extras [o senso de honra e dever] serão necessários mais para tornar-nos honestos do que para fazer-nos cumprir nossas promessas, dada a penalidade já posta para a quebra da obrigação [tomamos ele como não-confiável]. Essa passagem [T533] parece admitir que possa existir, ao menos para os engambeláveis [gullible] um senso artificialmente induzido do dever em função do dever [duty for duty's sake], justamente o que a sua "máxima indubitável" parecia ter negado35.

O que é certo é que para Hume esses artifícios extras, os inventados pelos homens – aí incluídos os advogados, mas não os teólogos – são úteis até com vistas ao "benefício comum", o que não ocorre com aqueles outros "mistérios".

Embora esses mistérios sejam nessa medida semelhantes, é notável que eles diferem grandemente em outros particulares, e que essa diferença pode ser considerada como uma forte prova da diferença em suas origens. Como a obrigação da promessa é uma invenção para o interesse da sociedade, ela é torcida [warp'd into] em tantas formas quanto aquele interesse requer, e mesmo entra em contradições diretas antes de perder de vista o seu objeto. Mas como aquelas outras doutrinas monstruosas são meramente a invenção de clérigos, e não têm qualquer interesse público em vista, elas são menos perturbadas no seu progresso por novos obstáculos, e precisa ser reconhecido que depois do primeiro absurdo elas seguem mais diretamente o curso da razão de do bom senso (T524-5).

O caráter deflacionário da posição de Hume quanto à obrigação moral em relação às promessas fica indicado pela comparação geral, mas não fica assim comprometida a moralidade que Hume entende que está ligada ao cumprimento de nossas promessas?36 Não se estivermos certos sobre a natureza do motivo para a observação da promessa identificado por Hume. O que fica comprometido é o etéreo, misterioso, motivo do dever meramente em função do dever – pelo menos este caro a certa visão deontológica da moralidade.

Artigo recebido em 29/11/2011 e aprovado em 30/12/2011

Referências bibliográficas

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  • HUME, David: Uma Investigação sobre os Princípios da Moral (1995) Editora da Unicamp (trad.: José Oscar de Almeida Marques).
  • KANT, Immanuel: Fundamentação da Metafísica dos Costumes (2009) Barcarolla (trad. Guido de Almeida).
  • 1
    Treatise, p.519 na edição de Nidditch/Selby-Bigge para a Oxford University Press (1975). As traduções serão minhas.
  • 2
    Cf. também
    Treatise, p.525: "(...) que promessas não envolvem [
    have no] nenhuma obrigação natural".
  • 3
    Cf. e.g.: "Hume's clarity of mind perceived that this is not so" (RRP, p.98; consultar nota 7
    infra).
  • 4
    Cf. "On Promising and its Justice, and Whether it Need be Respected
    in Foro Interno" [abreviação: PJ], p.91; in:
    Ethics, Religion and Politics (Collected Philosophical Papers, Volume 3), 1981, University of Minnesota Press; pp.10-21.
  • 5
    PJ: p.91.
  • 6
    Cf. PJ: p.92.
  • 7
    Cf. "Rules, Rights and Promises" [abreviação: RRP], p.103; in:
    Ethics, Religion and Politics; pp. 97-103.
  • 8
    Cf. RRP: p.97 e " 'Whatever has a Beginning of Existence must have a Cause' Hume's Argument Exposed" in:
    From Parmenides to Wittgenstein (Collected Philosophical Papers, Volume 1), 1981, University of Minnesota Press; pp. 93-9.
  • 9
    RRP: p. 99. O mesmo vale para a sua posição sobre o funcionamento da linguagem: "Ele viu que uma promessa não era um fenômeno, e assim que 'promessa' não era uma palavra para a qual a sua visão do entendimento iria funcionar de modo algum" (RRP: p.97).
  • 10
    PJ: p.13.
  • 11
    Cf. A. Baier: "Uma 'obrigação natural' em T498 ["The
    natural obligation to justice, viz. Interest, has been fully explain'd; but as to the
    moral obligation, or the sentiment of right and wrong, (...)"] é uma que nãoé ainda uma obrigação moral, pois ainda não foi aprovada ou desaprovada pelo sentimento moral. Mas ela é uma feita por um motivo que 'não é naturalmente inteligível', pois nós precisamos nos remeter a um artifício ou convenção, bem como ao auto-interesse natural, para explicitarmos o motivo pré-moral. Hume nos alertou, em T474-475, que nenhuma palavra é mais ambígua e equívoca que 'natureza', e o seu próprio uso no que se segue mostra essa ambigüidade. Embora ele oficialmente oponha 'natural'à 'artificial', ele também opõe ambos à 'moral' e à 'civil'. 'Motivos naturais' e 'naturalmente inteligíveis' são o que não envolve referências necessárias a qualquer artifício. 'Obrigações naturais' em T498 são aquelas que não envolvem qualquer referência às manifestações do sentimento moral. 'Leis da natureza' são regras de artifícios pré-governamentais, contrastando com as leis. Mas, Hume parece falar não somente ambiguamente, mas com equivocação, quando ele diz que 'onde uma ação não é exigida por qualquer paixão natural, ela não pode ser exigida por qualquer obrigação natural' (T518, repetido em T523). Obrigações naturais aqui parecem excluir obrigações dependentes de artifícios, enquanto que em 498 elas as incluíam. Quanto ao componente
    moral nas promessas, Hume também diz algumas coisas difíceis de entender. Em T518 ele diz 'Se nós pensássemos que promessas não têm obrigação moral, nós nunca sentiríamos qualquer obrigação para observá-las'. Isso parece contradizer tanto a sua explicitação posterior do 'novo' motivo que a sujeição à ameaça de penalidade traz, como também sua afirmação em 523 de que 'depois disso um sentimento de moralidade concorre com o interesse, e se torna uma nova obrigação para a humanidade. Esse sentimento da moralidade, no cumprimento das promessas, surge dos mesmos princípios que a abstinência da propriedade dos outros'. É difícil salvar todos esses fenômenos textuais, mas eu penso que a interpretação que ofereço envolve o mínimo de reconstrução" ("Promises, Promises, Promises", p.174-5n15 in:
    The Cautious Jealous Virtue, Hume on Justice, 2010, Harvard U.P.; pp.163-99).
  • 12
    Cf. Rachel Cohon: "N.B.: Anscombe não pensa exatamente que a obrigação das promessas depende de uma regra distinta das regras da linguagem. Ela pensa que a obrigação das promessas depende de uma regra especial, mas ela é (falando grosseiramente) uma regra da linguagem moral" ("Hume on Promises and the Peculiar Act of the Mind",
    Journal of the History of Philosophy, Vol.44 No.1 January 2006, pp.25-45), p.29n4 [Esse artigo é o capítulo 7 do seu livro
    Hume's Morality, Feeling and Fabrication, 2008, Oxford U.P.]. Não estou certo disso, mas nesse caso a obrigação de Anscombe, essa que não aparece no primeiro problema de Hume (somente apareceria no seu segundo problema), também seria primordialmente lingüística. Para uma visão que me parece congenial a da Anscombe, cf. as observações algo "externas" (não obstante, algo um tanto depreciativas) de S. Cavell: "De onde vem a ideia, que tem tido circulação ao menos de Hume a J.L. Austin, de que prometer é um ato tão especial que as palavras 'eu prometo' são uma espécie de ritual de alta solenidade? Não há nada sagrado sobre o ato de prometer que não é sagrado a respeito de expressar uma intenção, ou a respeito de qualquer outro modo de nós nos comprometermos. As palavras 'eu irei fazer...' ou 'eu irei...' não indicam elas mesmas que tu estás 'meramente' expressando uma intenção e não prometendo. Se é
    importante ser explícito então tu podes ou te engajar nos 'rituais' de dizer 'eu realmente quero...', 'eu certamente tenciono, irei tentar...', ou no ritual de dizer 'eu prometo'.É essa importância que torna as promessas explícitas importantes. Mas tomá-las mais a sério que isso, como o caminho certo [the golden path] para o comprometimento, é tomar nossos comprometimentos ordinários, não-explícitos, como de pouca importância [too lightly]" (
    The Claim of Reason, Wittgenstein, Skepticism, Morality, and Tragedy, 1979, Oxford U.P.; p.298.
  • 13
    "On the Value of Acting from de Motive of Duty" (in:
    The Practice of Moral Judgment, 1993, Harvard U.P.; pp.1-22), p.5.
  • 14
    Op.cit. p.4.
  • 15
    Op.cit. p.5.
  • 16
    Cf. Herman: "A pessoa a quem somos impelidos a ajudar pode estar fazendo o que deveríamos (normalmente) opor e não promover, alguém pode ficar em melhor situação, mesmo moralmente, por não ser ajudado" ("Impartiality and Integrity" in:
    The Practice of Moral Judgment, 1993, Harvard U.P.; pp.23-44), p.30.
  • 17
    "On the Value...", p.5.
  • 18
    Cf. Kant: "(...) ao contrário, a fidelidade às promessas, a benevolência por princípio (não por instinto) têm um valor intrínseco" (
    Fundamentação da Metafísica dos Costumes (p.267 [trad. Guido de Almeida: Barcarolla, 2009], Ak 4:435).
  • 19
    "On the Value...", pp.4-5.
  • 20
    Cf. a edição da Oxford U.P. (1978), p.177. A expressão crítica, em português, é do José Oscar de Almeida Marques na edição da Unicamp em 1995.
  • 21
    "Hume on Promises and the Peculiar Act of the Mind", p.27.
  • 22
    Loc.cit.. Devo, no entanto, registrar: o "bem-estar da outra pessoa" pode bem ser o que o
    motivo do dever captura nesse caso.
  • 23
    Não falarei mais de Kant aqui, mas é interessante notar que quando Kant, na
    Fundamentação, volta aos quatro exemplos tendo em mãos a fórmula do imperativo categórico conhecida como a da humanidade como um fim em si mesmo, ele compara o ataque moral ao outro através da "promessa mentirosa" com"ataques à liberdade e à propriedade dos outros" (p.247; Ak 4:430). Nesses casos, ficaria "muito claro que o transgressor dos direitos dos homens está disposto a servir-se da pessoa de outros como mero meio (...)" (
    idem). Presumo que haja um modo
    kantiano de dar conta desse paralelismo, que não o humeano,é claro.
  • 24
    Cf. Cohon, op.cit., p.26.
  • 25
    No Houaiss,
    engajar é engajamento, é "ato ou efeito de engajar(-se) 1. Contrato para prestação de serviços; ajuste" (p.1147).
  • 26
    Essa pode ser uma das fontes de Anscombe para o seu ataque às análises modernas da obrigação moral como "auto-obrigação", obrigação auto-imposta, em seu famoso "Modern Moral Philosophy" (várias publicações).
  • 27
    Na nota T517n, Hume quer nos fazer acreditar que a ininteligibilidade das promessas como fenômeno natural não depende do sentimentalismo moral, que o racionalismo moral das relações morais também conduz a esse resultado. Basicamente, por causa da criação da nova obrigação, uma nova relação, que não poderia ser produzida como "puro efeito da vontade, sem a menor mudança em qualquer parte do universo". Mas, seria ingênuo aceitar para essa conclusão que a obrigação racionalista pudesse ser explicada em termos da obrigação natural de Hume.
  • 28
    Cohon
    bites the bullet: cf. "Hume on Promises...", p.41n21 (especialmente, a declaração do que ela pretende defender: "No presente trabalho, eu argumento que Hume nunca encontra qualquer motivo não-moral para o cumprimento das promessas em sociedades estabelecidas tal como a nossa, e que ele apela para o redirecionamento do interesse somente para explicar a) o motivo para criar a convenção da promessa e b) o incentivo
    inicial para se cumprir as promessas em comunidades pequenas e novas").
  • The Cautious Jealous Virtue, Hume on Justice
    29 Cf. Annette Baier, "Nature and Artifice, Equity and Justice" (in: ; pp.56-82), pp.72-3
  • 30
    Cf. Hanfling, "How We Trust Each Other" (
    Philosophy 83, 2008; pp.161-77) para como o problema de Hume com a promessa pode ser resolvido, não-humeanamente, por como
    naturalmente desenvolvemos confiança uns nos outros, especialmente p.163.
  • 31
    Quão diferente de Anscombe com a noção central de sua filosofia: de "bem sem o qual não"! Mas quanto aos mal-compreendidos dos filósofos contemporâneos, cf. a resposta de Baier: "Enquanto que filósofos recentes, pensando que compreenderam o fenômeno da linguagem, se deparam com a necessitação ou obrigação não-natural e pensam nela como um fenômeno profundo e de difícil compreensão [
    puzzling], Hume, tendo compreendido a obrigação baseada em artifícios, então, se depara com o papel de sinais e da linguagem, e tinha que explicar a sua contribuição especial naquilo. Era parte de sua genialidade ficar perplexo com o papel da representação, não de tomá-la por suposto. Sua explicação da promessa, tomada com a sua explicação anterior do papel de símbolos na transferência por consentimento, dáà representação na linguagem um papel vital, e mostra como há certas coisas que podemos fazer com palavras somente por atos de representação. Para Hume a representação na linguagem era mais, não menos, um mistério do que a criação da obrigação. Que se pudesse dar à representação lingüística um papel inteligível na criação da obrigação a desmistificava, dava a ela um lugar entre outros artifícios úteis" ("Promises, Promises, Promises", pp.177-8).
  • 32
    Cf. "Nature and Artifice, Equity and Justice", p.72.
  • 33
    Cf. idem.
  • 34
    É possível que essa explicação não diga respeito à visão moral de Hume, ou seja, à moralidade que sua filosofia endossa. O objeto da explicação poderia ser somente uma crença ordinária sobre uma obrigação tida como moral em relação à promessa.
  • 35
    "Nature and Artifice, Equity and Justice", p.73.
  • 36
    Talvez não esta ligada a uma
    inclinação em T518-9. Cf. uma possibilidade discutida por A. Baier: "Hume pode ter enfatizado as esquisitices da promessa, como um artifício, e suas ligações com as superstições da entrega simbólica [
    simbolical delivery], a fim de combater a tendência de vê-la como a fonte fundamental da obrigação. Algumas seções adiante, em "Da fonte da Obediência Civil", ele argumenta contra Hobbes, Locke, e todos os contratualistas, que não há boas razões para assimilar outras obrigações àquela da promessa" ("Promises, Promises, Promises", p.175). Ou seja, Hume está longe de ver a promessa como a "o caminho certo" do comprometimento, mas seu papel é inegavelmente
    central.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      29 Nov 2011
    • Aceito
      30 Dez 2011
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