Open-access ESSENCIALISMO MEREOLÓGICO, CORPOS E PESSOAS

RESUMO

A ideia de reduzir o discurso sobre corpos ao discurso sobre agregados é motivada por meio de uma série de problemas metafísicos envolvendo a noção de corpo. Em seguida, duas estratégias de redução são apresentadas. Na primeira, cada corpo é identificado a uma construção lógica envolvendo mundos possíveis e instante do tempo. Na segunda, corpos são tratados como ficções lógicas. A viabilidade de ambas as estratégias é defendida. Embora uma decisão sobre qual das duas é preferível não seja tomada, um aspecto relevante para a comparação é salientado: a segunda abordagem conduz a uma encruzilhada desagradável quanto à natureza das pessoas.

Palavras-chave Essencialismo mereológico; essência; objeto material; pessoa

ABSTRACT

The idea of reducing the discussion on bodies to a discussion on aggregates is motivated by a number of metaphysical issues involving the notion of body. Two reductive strategies are then presented. The first one identifies bodies to logical constructions based on possible worlds and a moment in time. The second one treats bodies as logical fictions. Then, feasibility of both strategies is defended. Even though a final decision about which is preferable is not reached, one relevant comparative aspect is emphasized: the second approach leads to an unpleasant choice regarding the nature of people.

Keywords Mereological essencialism; essence; material object; person

1. Paradoxos da corporeidade

Pode parecer óbvio que muitos objetos têm partes não-essenciais, i.e., partes que eles poderiam existir sem ter. Meu piano, por exemplo, nem sempre teve exatamente os mesmos martelos que têm hoje. Ora, os martelos de um piano parecem ser partes do piano. E se o piano de fato existiu sem ter um certo martelo como parte, então certamente ele pode existir sem tê-lo como parte. Mas mesmo no caso de um piano que tenha exatamente os mesmos martelos do início ao fim da sua existência, parece claro que ele poderia ter tido um martelo trocado em algum momento e que, portanto, ele poderia ter existido sem ter aquele martelo como parte.

Já outros objetos materiais parecem ter todas as suas partes essencialmente. Por exemplo, considere a massa de água dentro de um copo num determinado instante. Parece claro que se eu retiro, acrescento ou substituo qualquer quantidade de água do copo, então, ao final, eu não tenho mais, estritamente falando, a mesma água dentro do copo. E como a identidade das moléculas de água, isto é, das partes mínimas de água, também parece depender da identidade das suas partes, e assim por diante, segue-se que todas as partes de uma massa de água são essenciais para ela.1

Vamos chamar de agregados os objetos materiais deste segundo tipo e de corpos aqueles objetos materiais que têm partes não-essenciais.

O mundo parece conter tanto corpos quanto agregados. Notadamente, paus e pedras, mesas e cadeiras, plantas e animais, ou seja, as “coisas”, tanto naturais quanto artificiais, tanto vivas quanto inanimadas, parecem ser corpos. Mas, apesar de intuitiva, a ideia de que alguns objetos materiais são corpos também pode facilmente parecer paradoxal. Suponha que algo x pudesse existir com uma certa parte A a menos. Então parece se seguir que ou bem duas coisas distintas podem ter exatamente as mesmas partes num determinado instante, ou bem que algo pode se tornar idêntico a uma parte própria sua. Mas a primeira ideia é altamente controversa e a segunda é absurda: coisas distintas não podem se tornar idênticas. (Esse argumento remete ao antigo paradoxo de Dion e Theon. Cf. Long & Sedley (1987), pp. 171-172; Burke (1994)).

Um outro tipo de problema surge quando nós nos perguntamos que partes do objeto seriam não-essenciais. Um certo carro poderia ter sido criado com outra embreagem, mas será que ele poderia ter sido criado com outro motor? Aparentemente, não; mas qual o princípio para distinguir as partes essenciais das não-essenciais? Similarmente, um carro parece poder sobreviver a uma troca de embreagem, mas não a uma troca de motor; mas como distinguir as partes substituíveis das outras? Suponha que todas as partes possam ser trocadas, desde que a troca seja “gradual”. Se, depois que todas as partes do carro tiverem sido trocadas, as partes originais forem remontadas, qual dos dois carros será idêntico ao carro original? Não parece muito atraente dizer que essas questões não têm uma respostas determinada, tampouco que elas têm uma resposta, mas que ela é incognoscível para nós. (Essas perguntas remetem, é claro, ao problema do navio de Teseu mencionado por Plutarco (Vida de Teseu, 23. 1) e refinado por Hobbes em De Corpore, 11.7.)

Partes não-essenciais também parecem conflitar com o princípio bastante plausível de que duas coisas distintas do mesmo tipo não podem coincidir, i.e., ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Pois suponha que um objeto possa perder uma de suas partes. Por que nós não deveríamos reconhecer igualmente a existência de um outro objeto, com as mesmas partes do primeiro, mas que não poderia perder aquela parte? Por exemplo, um piano parece poder perder uma de suas cordas. Mas nós podemos dizer que algo é um piano-completo se, e somente se, ele é um piano e está com todas as cordas. Com base em que nós poderíamos rejeitar a ideia de que pianos-completos são um tipo de instrumento que, ao contrário de pianos, não podem perder nenhuma corda? Talvez o conceito de piano-completo não seja muito “natural”; mas tampouco o conceito de piano representa alguma “espécie natural”; e, de todo modo, atrelar a existência das entidades do universo aos conceitos que parecem naturais a uma determinada espécie habitando uma galáxia qualquer cheira a “chauvinismo metafísico”. Mas se não há uma base para rejeitar pianos-completos como um tipo de coisa, segue-se que onde quer que haja um piano com todas as cordas, há, na verdade, dois instrumentos musicais coincidentes: o piano e o pianocompleto, com condições distintas de identidade e persistência. E é claro que nós não precisaríamos parar em dois: há o piano 1-completo, que pode perder apenas a primeira corda, o 2-completo, etc. Ou seja, não apenas o princípio da não-coincidência é falsificado, como há uma multiplicação indefinida de entidades coincidentes. (Cf. o exemplo semelhante em Van Cleve (1986)).

Há basicamente duas maneiras de tentar resolver esses problemas. A primeira consiste em se aferrar à intuição de “senso comum” da existência de partes não-essenciais e em rejeitar alguns dos outros princípios envolvidos neles. Por exemplo, no caso do problema inicial com a perda de partes, nós podemos negar que a parte “x menos A” já exista como uma “parte nãoseparada” no mundo atual. Alternativamente, pode-se sustentar que as partes de “x menos A” compõem um todo nos dois mundos, mas não o mesmo todo. Ou, ainda, podemos aceitar a possibilidade de que corpos distintos tenham as mesmas partes num determinado momento. Um problema com esse tipo de abordagem, além da implausibilidade intrínseca que pode haver na rejeição dessas teses, é que ela dificulta consideravelmente o desenvolvimento de uma mereologia modal, i.e., uma teoria geral da relação parte/todo que leve noções modais e temporais em consideração. (A primeira resposta é defendida, por exemplo, por Van Inwagen (1990, 2006). A segunda parece ter sido o tipo de resposta preferida do próprio Crisipo (Long; Sedley, 1987, pp. 171-172) e foi retomada por Burke (1994). A terceira ideia aparece em vários autores, por exemplo Wiggins (1968)).

Uma segunda abordagem consiste em concluir que, estritamente falando, todas as partes de um todo são essenciais e em tentar dar alguma explicação das aparências em contrário. Em outras palavras, nessa abordagem nós adotamos o princípio do chamado essencialismo mereológico, formulado por Chisholm (1976) da seguinte maneira:

Essencialismo mereológico

Necessariamente, para quaisquer objetos x e y: se x é em algum momento parte de y, então, necessariamente, x é parte de y quando quer que y exista.2

É evidente que, na presença do essencialismo mereológico (daqui por diante apenas ʻessencialismoʼ), a construção de uma mereologia modal fica substancialmente simplificada. Mas é evidente também que isso seria de pouco valor se essa teoria não pudesse de algum modo se aplicar às “coisas”. É simplesmente óbvio que, em algum sentido, é verdade que um piano pode ter suas peças trocadas, que uma pessoa não troca de corpo a cada respiração, etc. Não é possível acreditar realmente numa teoria que simplesmente negue essas “platitudes do senso comum”, e nós certamente queremos poder acreditar na nossa filosofia.

Mas aceitá-las não equivale a aceitar a ontologia mais imediatamente sugerida por elas. Aceitar que 2 + 2 = 4 não equivale a aceitar o platonismo matemático, embora essa seja a ontologia mais imediatamente sugerida pela nossa maneira de descrever esse fato. Do mesmo modo, aceitar que carros podem ter suas peças trocadas não equivale a aceitar uma ontologia de corpos. Mas tampouco é imediatamente evidente como construir uma interpretação dessas platitudes consistente com o essencialismo. Assim, a tarefa central do essencialista é descrever uma tal interpretação ou, em outras palavras, formular uma redução ontológica do discurso sobre corpos ao discurso sobre agregados.

Neste artigo, eu não me proponho a decidir entre essas duas alternativas, mas apenas a explorar a opção essencialista. (Uma decisão responsável só poderá ser tomada uma vez que as duas possibilidades tiverem sido exploradas a fundo e o essencialismo é claramente sub-explorado.) Discutirei uma estratégia de redução “proxy” (em que cada corpo é identificado a um certo agregado) e uma estratégia “não-proxy” (em que a referência a corpos é definida “contextualmente”). Eu concluo que ambas as estratégias são viáveis, embora envolvam uma série de dificuldades, muitas das quais não poderão ser abordados aqui. A estratégia não-proxy é ontologicamente mais parcimoniosa (com essa economia ontológica sendo paga, como de costume, na moeda da ideologia) e rejeita de modo mais decidido os casos de coincidência. Ela conduz, porém, a uma encruzilhada difícil quanto à natureza das pessoas, que as formas proxy de redução evitam. (Para uma apresentação geral da distinção entre reduções proxy e não-proxy, ver Fine (2003). Eu explorei a possibilidade de uma análise não-proxy da referência a proposições em Santos (2008)).

2. Duas estratégias essencialistas

Apesar de contra-intuitivo, o essencialismo mereológico tem uma longa e distinta tradição, que remonta às origens da filosofia. Considere, por exemplo, a tese heraclítica de que “não é possível entrar duas vezes num mesmo rio, pois outras águas estão sempre fluindo”.3 Essa tese certamente aponta para a tese mais geral de que um objeto não pode ser constituído por massas diferentes de matéria em instantes diferentes do tempo. E esta última é sem dúvida muito próxima do essencialismo, pois parece difícil conceber alterações de constituição material sem alterações mereológicas; inversamente, se as partes materiais de um objeto podem se alterar, então a matéria que o constitui pode se alterar também.

Ao considerar as discussões mais antigas, é bom ter em mente que, a rigor, o essencialismo precisa ser distinguido de uma tese mais fraca, que podemos chamar de eternalismo mereológico. O eternalismo afirma que as partes de um objeto não podem se alterar de um instante para o outro, mas deixa em aberto a possibilidade de alteração de um mundo possível para o outro. Mais precisamente: o eternalista afirma apenas que, em qualquer mundo em que x exista, ele tem as mesmas partes ao longo de toda a sua existência; fica em aberto a possibilidade de as partes (permanentes) de x em um mundo w1 serem distintas das partes (permanentes) de x em um mundo w2. Se essa última possibilidade é afirmada, temos um eternalismo não-essencialista.

O eternalismo não-essencialista tem alguma plausibilidade no caso específico dos eventos: como eventos são estendidos no tempo, não faria nem mesmo muito sentido qualificar temporalmente a relação de parte entre um evento e os sub-eventos que o compõem. Por exemplo, não parece fazer sentido perguntar quando a Batalha de Stalingrado é parte da II Guerra Mundial: um evento simplesmente “é” parte do outro. Mas, ainda assim, é possível sustentar que a II Guerra Mundial poderia ter ocorrido, e, portanto, existido, sem que uma certa batalha tivesse ocorrido.

Portanto, se todos os objetos temporais puderem ser reduzidos a eventos, o eternalismo não-essencialista torna-se uma posição geral possível. Na tradição, porém, essa possibilidade é geralmente ignorada, em parte porque a distinção entre tempo e modalidade não era feita de maneira tão explícita quanto hoje, em parte porque a ideia de extensão temporal não havia sido ainda claramente articulada. Nós vamos retornar mais abaixo à distinção entre eternalismo e essencialismo. Por enquanto, vamos assumir a posição tradicional de que os objetos temporais são todos “continuantes”, i.e., que eles existem “inteiramente” em cada momento da sua existência. Dada essa suposição, o eternalismo nãoessencialista não parece ter nenhuma plausibilidade: se um continuante pode existir sem uma parte, porque ele não poderia perdê-la? Note que a posição inversa, o essencialismo não-eternalista, é claramente incoerente: se x não pode existir sem ter y como parte, então certamente não é possível que x tenha y em alguns instantes da sua existência e não em outros.

Na filosofia moderna, a distinção entre essencialistas e não-essencialistas não segue a divisão entre empiristas e racionalistas. De fato, Locke, no Ensaio sobre o Entendimento Humano, fez uma distinção clara entre massas de matéria, que ele considerou mereologicamente imutáveis, e seres vivos, que ele considerou mereologicamente mutáveis (Locke, 1689, II, xxvii). Na nossa terminologia, Locke pode ser considerado o locus classicus da tese de que o mundo contém tanto agregados quanto corpos. Tanto Leibniz quanto Hume, no entanto, eram essencialistas mereológicos. Nos Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, Leibniz nos diz que todos os “corpos” (‘coisas’, na nossa terminologia), orgânicos ou não, “permanecem o mesmo apenas em aparência” e que “nós não podemos dizer, com completa fidelidade à verdade das coisas, que o mesmo todo continua a existir se uma parte se perde” (II, xxvii). Hume, por sua vez, afirma no seu Um Tratado sobre o Entendimento Humano que “na nossa maneira comum de pensar”, nós tomamos como um mesmo objeto persistente o que na verdade é “uma sucessão de objetos relacionados” (I, IV, 6).

Assim, Leibniz e Hume parecem concordar não apenas quanto ao essencialismo - a rigor quanto ao eternalismo, mas estamos supondo que as duas teses são equivalentes -, mas também quanto à explicação das nossas intuições em contrário: para ambos, o fato de que diversos objetos estão relacionados espaço-temporalmente de uma certa maneira é “confundido” com o fato de que um mesmo objeto persiste de um instante para o outro. E Hume sugere uma razão pela qual essa confusão ocorre: a transição de um objeto para outro não é, em geral, perceptível.

Em outras palavras, Leibniz e Hume estão não apenas afirmando o essencialismo mereológico, mas também propondo um certo modo de reduzir corpos a agregados. Para eles, se eu afirmo que a mesa sobre a qual eu estou escrevendo neste momento é a mesma sobre a qual eu escrevi ontem, isso não é, estritamente falando, verdade; mas há um certo fato “próximo” que minha afirmação até certo ponto captura: o fato de que o agregado em forma-de-mesa sobre o qual eu escrevo agora está espaço-temporalmente relacionado da maneira adequada ao agregado em forma-de-mesa sobre o qual eu escrevi ontem. Na terminologia contemporânea, a sugestão é que mesas são “ficções lógicas” construídas com base em uma multiplicidade de objetos que tem “forma-de-mesa” em diferentes instantes. Como não há, no fim das contas, um objeto único real correspondendo a cada mesa, também se diz atualmente que essa seria uma redução “não-proxy” do discurso sobre mesas.

Essa ideia foi retomada recentemente por Chisholm (1976) e, em parte, por Van Inwagen (1990). Nós voltaremos a ela mais abaixo. É importante notar, porém, que essa estratégia redutiva não é a única à disposição do essencialista. É possível também tentar identificar cada corpo a algum agregado, redefinindo a relação de parte de modo correspondente. Em outras palavras, é possível adotar uma estratégia proxy de redução. Na filosofia contemporânea, essa estratégia tem sido, mais popular do que a estratégia heraclítico-lebniziana. Vamos em seguida examinar uma maneira específica pela qual ela pode tentar ser implementada.

3. Corpos como funções

Em The Philosophy of Logical Atomism (1918) Russell diz que ʻPiccadillyʼ é, à primeira vista, o nome de uma porção da superfície terrestre, mas que “se você quiser defini-la, você teria que defini-la como uma série de classes de objetos materiais, a saber aqueles que, em diversos momentos, ocupam aquela porção da superfície da terra” (p. 191).

Uma maneira de reconstruir o raciocínio implícito nessa passagem envolve o essencialismo mereológico. Por que a rua Piccadilly precisaria ser identificada a uma série de classes de objetos materiais, e não a um único objeto material? Uma resposta possível é que, nesse caso, Piccadilly seria um corpo, i.e., o tipo de objeto material cujas partes podem se alterar ao longo do tempo. Se supusermos agora que Russell não tinha simpatia pela ideia de flexibilidade mereológica, fica fácil entender por que ele desejaria ter uma análise da relação entre Piccadilly e seus objetos constituintes que revelasse uma constância e uma estabilidade subjacentes.

Mas se é essa a ideia, então há um problema com a noção geral de “objeto material” empregada por Russell. Suponha que nós queiramos dizer que Piccadilly é feita de paralelepípedos. Ora, intuitivamente, paralelepípedos são corpos. Assim, o problema colocado por Piccadilly surge novamente para os “objetos materiais” que a constituem nos vários instantes. A mesma estratégia precisaria, agora, ser aplicada aos paralelepípedos, e assim por diante, até atingirmos um nível de objetos materiais que sejam agregados. Um tal nível parece ser atingido quando chegamos às moléculas e átomos. Assim, para simplificar, nós poderíamos identificar Piccadilly com uma série de classes de átomos.4

Mas pode não parecer adequado atar a análise metafísica dos corpos a uma certa concepção empírica de matéria. Além disso, átomos são, intuitivamente, o tipo de agregado cuja existência depende não apenas da existência das partes, mas também do modo como elas estão relacionadas. Se o elétron deixa de orbitar o próton num átomo de hidrogênio, o átomo parece deixar de existir. Seria desejável ter uma teoria ainda mais simples, em que os agregados são todos “livres”, no sentido de que o arranjo das suas partes é irrelevante para a sua existência.

Eu sugiro, então, que nós empreguemos a noção de massa de matéria. Se a matéria é atomística, uma massa é a soma mereológica de certas partículas fundamentais. Se, por outro lado, a matéria for uma substância homogênea, então uma massa é simplesmente uma parte qualquer, coesa ou espalhada, dessa substância. Seja como for, massas são agregados livres: elas existem necessariamente e sempre que suas partes todas existirem. Piccadilly pode agora ser identificada com a série das massas de matéria que a constituem nos vários instantes do tempo. Mais precisamente, podemos identificar Piccadilly à função que leva dos vários instantes do tempo para a massa de matéria que, intuitivamente falando, constitui Piccadilly naquele instante (e para o conjunto vazio, digamos, nos instantes nos quais Piccadilly não existe fisicamente).

Generalizando, nós poderíamos tentar definir um corpo como uma função de instantes do tempo para porções de matéria que existam no dado instante (o conjunto vazio sendo considerado uma espécie de “porção nula” de matéria que existe sempre). E nós poderíamos, então, definir uma relação de “parte temporalmente flexível” entre corpos:

o corpo f é uma parte temporalmente flexível do corpo g em t sse f(t) ≤ g(t).

(Aqui, ‘≤’está expressando uma relação básica atemporal de parte. A mesma ideia poderia ser implementada tomando-se pode base uma relação triádica ‘x ≤t y’ (x é parte de y em t) para a qual o eternalismo fosse explicitamente assumido. Nesse caso, a relação triádica temporalmente flexível seria equivalente a ‘f(t) ≤t g(t)’). É fácil ver que, nesse sentido, é possível que um corpo tenha uma certa parte flexível em t1 e não em t2, sem que isso implique que, no sentido fundamental, as coisas possam trocar de partes. Ao distinguir dois sentidos de ʻparteʼ, um fundamental e um derivado, a análise compatibiliza (até certo ponto, como já veremos) o essencialismo mereológico com a existência de corpos.

A ideia de constituição material também pode ser facilmente analisada. Uma massa de matéria x constitui um corpo f em t sse x = f(t). E podemos dizer que um corpo f existe em t sse f(t) não é o conjunto vazio.5

Até certo ponto é fácil ver, também, como, nessa visão, os paradoxos que listamos inicialmente seriam respondidos. Considere, como exemplo, o caso da perda de uma parte. Na visão russelliana, nada perde realmente uma parte. (As partes de uma função, quaisquer que elas sejam exatamente, são sempre as mesmas.) O que ocorre é que um corpo f é constituído por uma massa ou porção de matéria x em um instante t1 e uma por sub-massa de x em um instante posterior t2. Há também um outro corpo g que já era constituído por essa submassa em t1 e continua a ser constituído por ela em t2. Em t2, f e g “coincidem”; mas essa ideia agora pode ser explicada em termos não problemáticos: a coincidência de dois corpos f e g em um instante t é simplesmente o fato de que f(t) = g(t).

É importante não confundir nossa noção técnica de corpo com o sentido comum desse termo, no qual ele significa aproximadamente o mesmo que ʻcoisaʼ. Uma coisa é um corpo no qual os valores da função estão “unificados” de uma maneira apropriada. Quine (1950) fala em uma relação de “cofluvialidade” que relacionaria as diversas partes temporais momentâneas de um rio. Um análogo dessa relação, no contexto russelliano, seria a relação ʻ<m1, t1> é co-fluvial a <m2, t2>ʼ, onde m1 e m2 são massas de matéria. Um corpo f é um rio se {<m, t>: f(t) = m} é um conjunto de pares maximalmente inter-relacionados pela relação de co-fluvialidade, isto é, um conjunto em que todos os pares são co-fluviais a si mesmos e aos outros pares no conjunto e que não está propriamente contido em nenhum outro conjunto de pares cofluvialmente inter-relacionados.6

A mesma estratégia pode agora ser aplicada ao “sortal limite”, a saber ʻcoisaʼ. A relação de unificação, nesse caso, poderia ser expressa por ʻ<m, t1> é equi-coisal a <m, t2>ʼ. Normalmente, massas equi-coisais vão cair também sob algum sortal mais restrito; mas é possível imaginar um corpo que muda radicalmente de forma ao longo do tempo, mas de maneira “contínua”, de modo que nós quereríamos dizer que há uma mesma coisa presente ao longo da mudança, sem saber classificá-la sob algum sortal mais restrito.

Mas se essa construção lida bem com a flexibilidade temporal, ela claramente falha no caso modal. Se uma casa é simplesmente uma função de instantes do tempo para massas de matéria, então, para que a casa pudesse não ter tido um tijolo como parte em t, teria que ser possível que uma certa função não tivesse tido um certo valor para um certo argumento. Como funções são conjuntos, isso significa que conjuntos teriam que poder ter membros diferentes em mundos possíveis diferentes, uma ideia extremamente implausível. Entre rejeitar a rigidez do pertencimento e rejeitar a rigidez da relação de parte, a segunda opção seria claramente preferível.

Uma solução viável para esse problema é introduzir uma ontologia de mundos possíveis e definir um corpo modal como uma função de mundos possíveis para corpos no sentido acima (nos mundos em que, intuitivamente, o corpo não existe, a função pode dar como resultado o conjunto vazio). Ou, mais convenientemente, poderíamos definir um corpo modal como uma função de pares <w, t> para massas de matéria, onde a massa associada ao par <w, t> existe no instante t do mundo w. Assim, podemos definir uma noção de parte modalmente flexível (também chamada às vezes de “parte cósmica”), análoga à noção de parte temporalmente flexível:

o corpo f é uma parte modalmente flexível do corpo g no instante t do mundo w sse f(<w, t>) ≤ g(<w, t>).

(Estamos supondo que o essencialismo é explicitamente assumido para a relação básica de parte). Nesse sentido, é fácil ver que o tijolo pode ser uma parte modalmente flexível da casa no instante t em um mundo w1, mas não no mesmo instante em um mundo w2: a massa que constitui o tijolo em <w1, t> é parte da massa que constitui a casa em <w1, t>; mas a massa que constitui o tijolo em <w2, t> não é parte da massa que constitui a casa em <w2, t>.7

Vemos assim que parece ser possível identificar os corpos a certas construções lógicas feitas a partir de massas de matéria, portanto a partir de agregados. Vale notar que a redução acima é neutra com relação às diversas concepções de mundos possíveis e também com relação às duas concepções dominantes de persistência, i.e., o perdurantismo e o endurantismo. Pois nada na noção de um corpo modal impede o perdurantista de analisar massas de matéria como somas de fatias temporais, muito embora uma vez que a presente teoria tenha sido adotada, talvez não haja razão suficiente para fazê-lo.8

Mas é claro que há diversas objeções filosóficas que podem ser levantadas contra essa construção. Por exemplo, ela será claramente inaceitável para um cético sobre conjuntos ou mundos possíveis. Por um cético, aqui, não me refiro a alguém que não acredite na existência de tais entidades, mas a alguém que ache que não é possível nem mesmo fazer sentido do discurso sobre conjuntos ou mundos. Mas, mesmo deixando o ceticismo de lado, podemos ver que esse tipo de construção liga o estatuto ontológico dos corpos ao estatuto ontológico de “entidades platônicas” como conjuntos e mundos possíveis. O próprio Russell (1918) observa que coʻʼmo, para ele, “classes têm a natureza das ficções lógicas”, Piccadilly também será, no fim das contas, uma ficção lógica. Essa conexão entre corpos e entidades metafísicas parecerá certamente indesejável para muitos. O tipo de redução que discutiremos em seguida promete fazer essencialmente o mesmo que faz Russell, mas sem identificar corpos a conjuntos ou a somas de “fatias temporais”.

Uma segunda objeção à redução que acabamos de esboçar diz respeito aos supostos casos de coincidência mereológica. Nós vimos que o russelliano pode dar uma explicação de como dois corpos distintos podem ter exatamente as mesmas partes e ocupar exatamente o mesmo lugar num determinado instante: cada um deles é na verdade uma função de instantes para massas de matéria e ocorre de ambos terem a mesma massa como valor em um determinado instante. Nesse aspecto, o russelliano se assemelha ao perdurantista, para quem dois corpos coincidem em t se a fatia de um em t é idêntica à fatia do outro em t. Pode-se objetar, porém, que ambos esses tratamentos produzem resultados aberrantes quanto à contagem de corpos. Por exemplo, se nós nos imaginarmos diante de Dion após a amputação do pé, tanto o russelliano quanto o perdurantista parecem obrigados a reconhecer que nós estamos diante de três coisas em forma de homem-com-o-pé-esquerdo-amputado, a saber, Dion, Theon e uma certa massa de matéria. Mas para muitos sem dúvida parece óbvio que há apenas uma coisa presente. Ou, se considerarmos um caso em que uma pessoa se divide em duas, parece que ambos teriam que dizer que antes da fissão havia duas pessoas presentes: o perdurantista porque os estágios anteriores à fissão são comuns às duas pessoas; e o russelliano porque as massas constituintes anteriores à fissão são as mesmas para ambos. Como veremos, numa redução não-proxy esse problema é evitado.9

4. Corpos como ficções lógicas

Leibniz e Hume, como vimos, pareciam pensar que uma análise “ficcional” dos corpos era possível. No capítulo III de Person and Object (1976), Chisholm tenta desenvolver com algum rigor essa ideia. Ele chama de entia successiva as entidades que podem ser constituídas por massas diferentes de matéria em instantes diferentes do tempo. E ele afirma que “nós podemos expressar as informações que nós temos sobre o ens successivum em enunciados que se referem apenas às coisas particulares que os constituem (‘do duty for them’)” (p. 98).

Temos aqui, portanto, um enunciado explícito da ideia que encontramos prenunciada em Leibniz e Hume. A ideia de Chisholm é empregar os recursos da lógica moderna para mostrar de modo mais claro que essas paráfrases dos enunciados sobre entia successiva são sempre possíveis. E dado que nossas afirmações podem ser parafraseadas em termos que se referem apenas aos agregados que, intuitivamente falando, constituem os corpos nos diversos momentos de sua existência, os corpos eles mesmos, como entidades que existem “para além” desses diversos agregados, podem ser dispensados da nossa ontologia.

Chisholm formula uma série de definições interessantes e as usa para analisar algumas frases sobre tipos específicos de corpo, como mesas. Sua ideia é que esses exemplos são suficientes para nos convencer de que uma paráfrase adequada é sempre possível.10 Mas surge então a questão de se é possível formular, de modo geral, certas condições que garantam que todos os enunciados sobre corpos podem ser parafraseados numa linguagem que se refira apenas a massas de matéria. Até certo ponto podemos ver que a resposta é afirmativa. Suponha que, na linguagem dos corpos, nós estejamos dispostos a fazer as duas seguintes afirmações:

1) Para todo corpo c, existe ao menos uma massa m e um instante t tais que m constitui c em t.

2) Para toda massa m e todo instante t, existe no máximo um corpo c, tal que m constitui c em t.

Se a nossa “teoria ingênua de corpos” contiver essas duas afirmações, então estariam dadas as condições mínimas para uma redução não-proxy (contextual, frase-por-frase) das afirmações sobre corpos a afirmações sobre massas. Em A Subject with no Object (1997) Burgess & Rosen ilustram essa situação com o caso dos organismos e das espécies biológicas. Para toda espécie há (presente, passado ou futuro) algum organismo daquela espécie; e todo organismo pertence a exatamente uma espécie. Assim,

3) Há exatamente duas espécies de carnívoro vivendo nesta casa pode ser reformulada como

4) ∃x∃y (x e y são animais carnívoros não-co-específicos vivendo nesta casa & ∀z (z é um animal carnívoro nesta casa → (z é co-específio a x ⊦ z é co-específico a y))).

Nós só precisamos, é claro, aceitar a relação de co-especificidade, cujo significado intuitivo é que duas coisas “pertencem a uma mesma espécie”, como uma relação compreensível independentemente da quantificação sobre espécies. Essa relação de co-especificidade será empregada sempre que a identidade entre espécies estiver em questão. É importante notar que se um organismo pudesse pertencer a mais de uma espécie, essa tradução falharia: 4) poderia ser verdade e ainda assim poderia haver mais de duas espécies vivendo na casa.

No caso dos corpos, a situação é ligeiramente mais complicada, porque a relação de constituição material que empregamos acima não relaciona corpos e massas, e sim corpos e massas em instantes do tempo. Por isso, para facilitar a leitura, vamos introduzir algumas convenções. Vamos empregar variáveis a, b, c,... para corpos; variáveis α, β, γ, ... para massas; variáveis t, t1, t2 para instantes do tempo e ‘α Ct y’ para significar ‘α constitui a em t’. Assim, 1) e 2) podem ser simbolizadas como

1*) ∀a ∃α ∃t α Ct a

2*) ∀α ∀t ~∃a ∃b (α Ct a & α Ct b & a ≠ b)

Correspondendo à noção de co-especificidade nós precisamos agora de uma relação de equi-corporeidade ou “parentesco corporal” entre “massas-em-instantes”, ‘αt P βt1’, cujo significado intuitivo é ‘α constitui um corpo em t e β constitui um corpo em t1 e eles são idênticos’. É claro que essa caracterização é apenas heurística e que nós precisamos assumir que a noção é compreensível independentemente da quantificação sobre corpos.11 Na presença de 2) o significado intuitivo da relação de parentesco garante que ela se comporta como uma relação de equivalência, no sentido de que a) toda massa que constitui um corpo em um instante t é “parente” de si mesma em t; b) se α em t é parente de β em t1, então β em t1 é parente de α em t e, por fim, c) se α em t é parente de β em t1 e β em t1 é parente de γ em t2, então α em t é parente de γ em t2. (É apenas na prova de c) que 2) é empregada).

Se existem β e t1, tais que αt P βt1, nós dizemos que α é corpórea em t (Cαt).

A relação de parentesco suscita diversas questões difíceis. Antes de entrarmos nelas, vejamos um exemplo do uso dessa noção na análise de enunciados sobre corpos. Uma característica central da noção de corpo é que corpos podem persistir ao longo de alterações na sua constituição material. Os enunciados 5) e 6) abaixo refletem essa característica e podem ser analisados como 5*) e 6*):

5) Este corpo aqui agora é o mesmo que estava aqui há uma hora. 5*) Esta massa aqui agora é parente da massa que estava aqui há uma hora. 6) Existem dois corpos a e b, tais que: a é parte de b em t e a não é parte de b em t1.

6*) ∃α ∃β (Cαt & Cβt & α ≤ β & ∃γ∃δ (γt1 P αt & δt1 P βt & ~γ ≤ δ))

É claro que no dia a dia nós raramente falamos propriamente em corpos, mas sim em corpos de tipos específicos, como mesas, cadeiras, organismos de várias espécies, etc. Mas esses conceitos não parecem introduzir dificuldades fundamentalmente novas. Se a noção de parentesco corporal é legítima, então as diversas noções “sortais” de parentesco (“co-mesalidade”, “co-pessoalidade”, etc.) serão legítimas também. No caso da noção de pessoa (e, de fato, de qualquer tipo de objeto material consciente), há problemas adicionais, é claro, pois a identificação de uma pessoa com o seu corpo é controversa. Mas ao menos a noção de “constituir o mesmo corpo de pessoa” parece que estaria assegurada. Nós retornaremos à questão da identidade pessoal mais abaixo.

Quanto às noções que expressam propriedades e relações entre corpos, elas parecem poder ou bem ser “diretamente transferidas” para massas, ou bem ser analisadas em termos de propriedades diretamente transferíveis. Assim, por exemplo, “é vermelho” é um predicado diretamente transferível: um corpo é vermelho em um instante se, e somente se, a massa que o constitui naquele instante é vermelha; “foi vermelho do passado” pode ser analisado em termos de “é vermelho”: um corpo foi vermelho no passado se, e somente se, alguma massa parente num instante passado da massa que o constitui hoje é vermelha naquele instante, etc. E se um predicado de corpos, F, resistir a toda definição natural, resta sempre a possibilidade de assumir como básico um predicado F′ de massas cujo significado intuitivo é ‘constitui um corpo que é F’.

Nós podemos ver agora como os casos de coincidência seriam tratados nessa abordagem. Considere o célebre exemplo do pedaço de barro adquirido na segunda e moldado em forma de estátua na terça. Na terça, todo corpo que é parte do pedaço é parte da estátua e vice-versa. O que isso significa, porém, é que qualquer massa corpórea que for (eternamente) parte da massa que constitui o pedaço na terça é também parte da massa que constitui a estátua na terça, e vice-versa. Ou seja, para o sentido básico de ʻparteʼ continua valendo o princípio de extensionalidade: se dois objetos têm as mesmas partes, eles são idênticos. Até aí, a presente abordagem não vai além das reduções proxy que vimos anteriormente. Mas, ao contrário do perdurantismo e do russellianismo, na redução não-proxy não há nenhum sentido literal em que se pode dizer que há dois corpos diante de alguém que contemple a estátua na terça. Há apenas uma entidade material diante da pessoa, a saber, uma certa massa de matéria. Essa massa constitui o mesmo pedaço de barro que outras massas em outros momentos, assim como constitui a mesma estátua que outras massas em outros momentos; mas, estritamente falando, não há uma entidade “pedaço de barro” nem uma entidade “estátua”. Há apenas massas em diversas relações de constituição com outras massas.

Mas nem tudo são rosas. Quando nós consideramos enunciados modais sobre corpos, surgem dificuldades. Considere

7) Algum corpo vermelho agora poderia não ser vermelho agora.

O melhor que nós podemos fazer com o aparato que introduzimos até aqui parece ser:

7*) ∃α ∃t (Cαt & Vαt & ◊ ~Vαt),

onde Vαt significa ‘α é vermelho em t’. Supondo que haja algum corpo vermelho agora, 7) e 7*) são ambas verdadeiras; mas 7*) não é exatamente o que nós quereríamos dizer. Pois ela afirma que a massa que constitui o corpo agora poderia não ser vermelha, e isso pode ocorrer com essa massa constituindo um outro corpo. Se, per impossibile, todo corpo vermelho fosse necessariamente vermelho, 7) seria falsa mas 7*) poderia ainda ser verdadeira, porque a massa poderia ser não-vermelha ao constituir um outro corpo. O que nós quereríamos realmente dizer é algo como: ‘Alguma massa α corpórea e vermelha em um instante t é tal que, possivelmente, alguma massa não-vermelha constitui em t o mesmo corpo que α atualmente constitui’.

O conceito de identidade produz casos ainda mais problemáticos. Considere

8) Se dois corpos são idênticos, eles são necessariamente idênticos.

Nenhuma das duas paráfrases a seguir seria correta:

8a*) ∀α∀t∀β∀t1 (αt P βt1 → ◻αt P βt1)

8b*) ∀α∀t∀β∀t1 (αt P βt1 → ◻ ∀γ ∀δ ∀t2 ∀t3 ((γt2 P αt & δt3 P βt1) → γt2 P δt3))

8a*) falha porque qualquer massa corpórea α poderia nem mesmo ser corpórea e, nesse caso, obviamente não constituiria o mesmo corpo que nenhuma outra massa. 8b*) falha porque massas equi-corpóreas não são necessariamente equi-corpóreas. O que nós queríamos dizer é algo como “Se duas massas ‘constituem o mesmo corpo’ num determinado instante, então, necessariamente, qualquer massa que constitua o mesmo corpo que a primeira atualmente constitui, constituirá o mesmo corpo que qualquer massa que constitua o mesmo corpo que a segunda atualmente constitui’.

Esses problemas significam que as condições 1) e 2) não são suficientes para a redutibilidade do discurso sobre corpos? Sim e não. 1) e 2) garantem que um certo teorema de redutibilidade das afirmações de primeira-ordem sobre corpos e massas para afirmações só sobre massas pode ser provado. (Ver Burgess; Rosen (1997): I.B.3.). Assim, as afirmações modais podem ser capturadas se elas forem, primeiramente, traduzidas para a linguagem de primeira-ordem dos mundos possíveis. Nesse caso, ao invés da relação quaternária ‘αt P βt1’ nós teríamos uma relação de seis lugares ‘αt, wt1, w1’ que relaciona massas em instante de mundos possíveis. Mas essa solução torna a análise ontologicamente “pesada” e, conseqüentemente, elimina uma das vantagens centrais que nós esperávamos que ela tivesse sobre as análises proxy aventadas na seção 3.12

Uma outra ideia é tomar como legítima a noção ‘αt é parente de βt1 tal como βt1 atualmente é’ (αt P@ βt1). A ideia intuitiva, é claro, é que αt P@ βt1 sse αt constitui o mesmo corpo que βt1 constitui no mundo atual. Fora de contextos modais essa alteração não faria diferença; mas na presença de operadores modais ela nos permitiria dizer o que nós quereríamos dizer nos casos problemáticos acima sem, contudo - essa é a esperança, de todo modo - nos comprometermos com uma ontologia de mundos possíveis. Eis como ficaria a paráfrase de um enunciado central da nossa concepção intuitiva sobre corpos.

9) Algum corpo a é parte de um corpo b agora mas poderia não ser.

9*) ∃α ∃t ∃β (Cαt & Cβt & α ≤ β & ◊ ∃γ∃δ (γt P@ αt & δt P@ βt & ~γ ≤ δ))

Ou seja, a ideia de que um corpo é parte de outro num determinado momento mas poderia não ter sido parte naquele momento torna-se a ideia de que uma massa corpórea m1 é parte de outra massa corpórea m2 em um instante t, mas que, possivelmente, alguma massa que, em t, “constitui o mesmo corpo” que m1 atualmente constitui em t, não é parte de alguma massa que, em t, “constitui o mesmo corpo” que m2 atualmente constitui em t.

Vale notar que, estando ou não implicitamente comprometida com a existência de mundos possíveis, esta nossa última paráfrase parece constituir um claro avanço com relação à proposta de Chisholm (1976). Pois Chisholm afirma: “To say, then in the loose and popular sense, that my car could now be a thing having a certain tyre will be to say that something that now constitues a part of my car could be joined with something that now constitutes the tyre” (p. 156).

Essa proposta parece produzir resultados errados: o que agora constitui uma certa parte do meu carro (uma certa massa) poderia estar ligado (joined) ao que agora constitui Júpiter. Podemos imaginar que as duas massas constituem em algum momento um planeta muito parecido com Júpiter neste momento. Mas obviamente não é correto afirmar que meu carro poderia se tornar algo que tem Júpiter como parte. Além disso, parece que meu carro poderia ter um certo pneu como parte agora sem que a massa que constitui parte dele agora estivesse ligada à massa que constitui o pneu agora, já que ele e o pneu poderiam estar constituídos por outras massas agora.

A ideia de Van Inwagen (1990) para lidar com enunciados modais sobre artefatos é mais próxima da nossa, mas também é insatisfatória. Ele considera, como um exemplo, a afirmação ʻEsta casa poderia ter sido maiorʼ e sugere a paráfrase “Estas coisas arranjadas em forma-de-casa (arranged housewise) são os objetos de uma história de manutenção que é tal que ela poderia ter tido objetos que coletivamente ocupassem mais espaço do que essas coisas de fato ocupam” (p. 133).

Uma “história de manutenção”, ele nos explica, é um evento complexo constituído pelas atividades de um grupo de seres inteligentes, que agem de acordo com certas regras a fim de manter o arranjo de certos objetos. Essa ideia se aproxima da nossa na medida em que os objetos da história de manutenção no mundo atual são, por assim dizer, comparados a objetos possíveis da mesma história num outro mundo. Mas, em primeiro lugar, ela não é realmente compatível com o essencialismo, porque essas histórias claramente teriam partes não-essenciais, já que elas poderiam envolver objetos distintos e, portanto, consistir de ações distintas. Isso não é um problema para Van Inwagen, claro, mas é um problema para nós. Além disso, a ideia se aplica apenas a artefatos. Ela não nos diz nada sobre outros corpos, nem mesmo sobre outros corpos naturais não-vivos como pedras, o que seria de se esperar. Estranhamente, em (1990) Van Inwagen discute apenas a paráfrase de enunciados sobre artefatos. Podemos também notar, incidentalmente, que a ideia parece ser incompatível com a mereologia do próprio Van Inwagen. Pois esses eventos parecem ser algum tipo de objeto complexo não-vivo, justamente o que o seu princípio de composição proíbe.

5. Duas objeções

Há ao menos duas objeções importantes que podem ser levantadas contra as paráfrases que acabamos de propor. Em primeiro lugar, pode-se objetar que a suposição 2) acima é falsa.13 Quando um pedaço de barro é moldado na forma de uma estátua, por exemplo, haveria dois corpos, uma estátua de barro e um pedaço de barro, sendo constituídos pela mesma massa de matéria. A razão para essa conclusão é simples: a estátua e o pedaço de barro parecem ter propriedades diferentes. O pedaço existia antes da moldagem, por exemplo, mas não a estátua. Não me proponho a entrar aqui numa discussão longa sobre exemplos desse tipo. Observarei apenas que, em primeiro lugar, para muitos filósofos a ideia de que dois corpos possam ocupar o mesmo lugar num dado instante soa extremamente implausível. Além disso, esses exemplos podem ser resistidos e explicados, independentemente de qualquer visão essencialista sobre a relação parte/todo. Por exemplo, Van Inwagen (1990), que não é de modo algum essencialista, sugere que a propriedade de ser uma estátua é simplesmente uma propriedade possuída pelo pedaço de barro quando quer que este tenha “a forma apropriada” (p. 126). Essa me parece ser uma ideia bastante natural. Nesse sentido, a estátua, isto é, este corpo com “forma-deestátua”, já existia antes de receber essa forma, embora evidentemente ele não existisse como uma estátua anteriormente à modelagem. Há um sentido em que ʻEsta estátua já existia antes de ser uma estátuaʼ é uma afirmação contraditória, pois esta coisa não era uma estátua antes de receber a forma de estátua. Mas há também um sentido em que a afirmação pode ser verdadeira, pois esta coisa, que é uma estátua agora, poderia já existir antes de receber a sua forma atual, portanto antes de ser uma estátua.

A tese 2) pode também ser questionada com base em casos de fusão e fissão. Se uma ameba se divide em duas, uma “filha” da direita e uma “filha” da esquerda, num instante t, alguém poderia sugerir que uma certa massa, que constitui a ameba antes de t, constitui um mesmo corpo tanto que alguma massa que constitui a filha da direita, quanto que alguma massa que constitui a filha da esquerda. Mas essa sugestão é implausível. Dependendo das especificidades do caso, o mais natural será dizer que o corpo que se divide ou bem sobrevive como um dos dois “filhos” ou bem deixa de existir em algum momento da divisão. No caso da ameba, e da divisão celular de modo geral, o mais natural é, sem dúvida, dizer que havia um único corpo originalmente e que ele deixa de existir em algum momento do processo de divisão. (Cf. Van Inwagen (1990), Cap. 14).

Uma segunda objeção sustentaria que o emprego das noções de parentesco não é legítimo, na medida em que elas só podem ser realmente compreendidas por meio da quantificação sobre corpos. Essa objeção se aplica, na verdade, a ambas as estratégias de redução consideradas acima.

De um certo ponto de vista filosófico, isso pode não parecer um grande problema. Quine, por exemplo, insiste em diversos pontos da sua obra que qualquer noção, por mais intuitivamente complexa que seja, pode ser vista como uma noção básica, desde que sua complexidade interna seja tratada como meramente acidental e nenhum uso lógico seja feito dela.14 Mas, ainda que, do ponto de vista formal, não haja dúvidas de que ele tenha razão, do ponto que vista filosófico parece desejável que nossas noções básicas sejam naturais e que nós tenhamos a sensação de que elas podem realmente ser compreendidas por si mesmas, ou ao menos independentemente do que vier a ser definido em termos delas. Um exemplo simples que ilustra bem esse ponto é o das funções de verdade. É possível tomar ʻnem p nem qʼ como uma noção básica e definir, por exemplo, negação e conjunção em termos dela; mas é muito mais natural definir ʻnem p nem qʼ como ʻnão-p & não-qʼ. É difícil escapar da impressão de que ʻnem p nem qʼ tem uma análise conceitualmente correta em termos de ʻeʼ e ʻnãoʼ.

Outro exemplo interessante é o do sistema do Aufbau (1928) de Carnap. Carnap assume uma única relação como básica. No entanto, do ponto de vista conceitual, essa relação é evidentemente muito complexa: ela obtém entre x e y sse x e y são experiências e são reconhecidas como sendo similares por meio de uma comparação de y com uma memória de x (p. 170). Talvez seja possível definir, por exemplo, um predicado ʻx é uma memóriaʼ a partir dessa relação; mas embora a definição possa ser perfeita do ponto de vista formal, é difícil de evitar a sensação de que haveria uma circularidade conceitual envolvida nela.

Surge, então, a questão de saber se as relações de parentesco podem receber uma explicação natural, que não envolva quantificação sobre corpos. A ideia tradicional nesse ponto é tentar explicá-las em termos de relações de continuidade espaço-temporal entre massas. Podemos imaginar uma mesa, por exemplo, como um enxame de pequenas partículas. Ao longo do tempo, essas partículas vão sendo substituídas. Se nós considerarmos dois momentos próximos, as massas constituintes terão muitas partículas em comum. Se consideramos momentos mais distantes, por outro lado, as massas podem não ter mais nenhuma partícula em comum, mas elas estarão ligadas por uma série de massas em grande medida coincidentes. (Cf. Broad, 1949, p. 393; Russell, 1948, p. 488; Chisholm, 1976, cap. III.)

Mas aqui surgem diversos problemas difíceis. Há uma grande controvérsia sobre se alguma análise da persistência em termos de continuidade pode realmente ser bem-sucedida. (Shoemaker, 1979, por exemplo, sustenta que essa análise são, no fim das contas, circulares.) Entre aqueles que acreditam em tais análises, há uma divisão entre os que pensam ser possível suprir uma análise da persistência das coisas em geral e aquele que pensam que isso só pode ser feitos para conceitos “sortais” mais restritos.15 Evidentemente não há espaço para abordar todas essas controvérsias aqui. Vou me limitar a discutir brevemente um problema diretamente relevante para a estratégia não-proxy.

Nós queremos explicar a relação de parentesco corporal, ‘existe um corpo que α constitui em t e β constitui em t1’, em termos de uma relação de continuidade espaço-temporal entre as massas α e β. Mas nós vimos que, no caso específico da estratégia não-proxy, parece ser necessário assumir também que uma massa não constitui mais de um corpo em um dado momento. Em outras palavras, não pode ser possível que α constitua em t o mesmo corpo tanto que β em t1 quanto que γ em t2, sem que β em t1 constitua o mesmo corpo que γ em t2. Como a relação de parentesco é claramente simétrica e reflexiva, essa exigência equivale à exigência de que ela seja também transitiva.

O problema é que a explicação da ideia de parentesco em termos da ideia de continuidade ameaça tornar a relação intransitiva. Pois em casos de fusão e fissão parece claramente haver continuidade. Se a minha mesa se dividisse em duas como uma ameba, parece que seria possível conectá-la passo a passo tanto à filha da direita quanto à filha da esquerda.

Nós podemos esclarecer a natureza desse problema comparando-o com uma discussão bem conhecida sobre identidade pessoal. Lewis (1976) introduz duas relações entre objetos momentâneos: o que ele chama de “relação I”, a saber, a relação em que dois objetos momentâneos estão se, e somente se, eles são fatias de uma mesma pessoa, e a “relação R” que relaciona dois objetos momentâneos se, e somente se, eles são mentalmente contínuos e conectados. E Lewis afirma que as duas relações são necessariamente equivalentes. Ou seja, a persistência de uma pessoa no tempo pode ser explicada em termos de uma relação de continuidade mental. Essa explicação, porém, tem como consequência a possibilidade de um objeto momentâneo ser uma fatia de mais de uma pessoa. Se, agora, transpusermos isso para o presente esquema, em que fatias são substituídas por massa-em-instantes, teremos uma violação da tese 2).

Não parece haver muito que o essencialista não-proxy possa fazer aqui, a não ser suplementar sua análise com alguma cláusula que impeça que a relação obtenha em casos de fusão e fissão. Essas cláusulas são conhecidas na literatura como “non-branching clauses”. A definição de “constituir a mesma mesa que” proposta por Chisholm (1976, Cap. III) inclui uma cláusula non-branching, mas por razões que não discutirei aqui ela não me parece ser bem-sucedida. Uma ideia simples, proposta por Brueckner (1993), se adaptada ao caso dos corpos, produziria o seguinte (onde, para simplificar a leitura, escrevemos ‘αt’ ao invés de ‘α em t’):

αt P βt1 =df. αt e βt1 são espaço-temporalmente contínuos e, além disso, não há γe t2, tal que (αt é contínuo a γt2 & βt1 não é contínuo a γt2) ou (βt1 é contínuo a γt2 e αt não é contínuo a γt2).

Dado que a relação de continuidade é simétrica e reflexiva, essa definição garante a transitividade da relação de parentesco.16

6. Pessoas na estratégia não-proxy

Há um problema adicional que surge, nessa segunda estratégia, com respeito à noção de pessoa. Pois, se pessoas são corpos, a abordagem não-proxy torna sua persistência no tempo tão fictícia quanto a persistência de mesas e cadeiras. Nesse ponto, Leibniz e Hume voltam a discordar, como de costume. Leibniz responde à objeção postulando uma alma simples, que seria o que cada um de nós realmente é.17 Hume, por outro lado, parece simplesmente negar que nós tenhamos qualquer ideia de um “eu”, mesmo como algo momentâneo.18

Nenhuma das duas opções, porém, é muito atraente. A perplexidade com uma posição como a de Hume é evidente, pois embora ele não negue a existência de estados subjetivos (“impressões”, “percepções”), ele parece negar a existência de um sujeito desses estados. Mas mesmo uma posição atenuada, na qual nós nos enganamos apenas quanto à persistência dos sujeitos, não quanto à sua existência, parece extremamente problemática. O antigo “paradoxo do devedor” é um exemplo do tipo de problema que teríamos que enfrentar: ao ser cobrado, o devedor nega que tenha sido ele quem contraiu a dívida, pois nós somos corpos e a persistência dos corpos de um instante para o outro é ilusória. Ao reclamar do murro que recebe em resposta, seu credor lhe diz que, pelo mesmo motivo, não foi ele quem o agrediu. Ou seja, que sentido faz responsabilizar alguém por suas ações se a persistência das pessoas consiste, na verdade, de uma série de pessoas distintas se sucedendo?

Chisholm (1976, p. 108) formula um problema semelhante. Que sentido faria eu me preocupar mais com a dor que eu sentirei no futuro do que com as que outros sentirão, se quem sentirá as “minhas” dores futuras é realmente outra pessoa relacionada a mim de certo modo e não, literalmente falando, eu mesmo? Ou então: que sentido faz eu me preocupar mais com a minha sobrevivência do que com a de algum outro, se a “minha” sobrevivência é simplesmente uma questão de haver uma outra pessoa no futuro relacionada a mim de uma certa maneira?

Um autor para quem esses problemas são menos sérios do que parece é Parfit. Parfit (1971) defende que as questões importantes que envolvem identidade pessoal podem ser “separadas” da questão da identidade e que “depois que nós tivermos feito isso [...] a questão sobre identidade não tem mais importância” (p. 9). Por exemplo, segundo Parfit “o que importa” na sobrevivência é apenas a “continuidade psicológica”. O que nós queremos é que haja um “eu futuro” psicologicamente contínuo ao nosso “eu atual”. Não importa se esses dois “eus” são literalmente idênticos. Do mesmo modo, o meu interesse especial no que ocorrerá comigo no futuro derivaria inteiramente do meu desejo de que meus desejos presentes se realizem.

Mas se o que importa não é identidade, então não haveria nenhum grande problema em identificar as pessoas a seus corpos e dar um tratamento “ficcional” à identidade corporal ao longo do tempo. Duas pessoas seriam “a mesma” se, e somente se, duas massas em forma-de-pessoa estivessem numa relação de “continuidade pessoal”, como quer que essa relação fosse compreendida. Falar em uma mesma pessoa existindo ao longo do tempo seria falar em diversas massas co-pessoais se sucedendo. Estritamente falando, eu estaria me referindo a algo distinto a cada vez que dissesse ʻeuʼ; mas isso não seria razão para desespero, já que o que importa na sobrevivência e nas nossas motivações para agir não é a identidade stricto sensu, mas apenas a identidade no sentido frouxo em que duas massas co-pessoais são “a mesma pessoa”.

Mas, sem dúvida, a ideia de que não é a identidade stricto sensu o que importa em questões de sobrevivência e motivação vai parecer claramente errada a muitas pessoas. Aqui, portanto, o reducionista do tipo proxy parece levar alguma vantagem. Pois sejam quais forem os detalhes da sua redução, ao menos haverá uma entidade com a qual ele pode se identificar. Ou, ao menos, uma entidade com a qual ele pode identificar seu corpo. Se, ainda assim, ele quiser negar que pessoas sejam, estritamente falando, idênticas a seus corpos, não será porque, estritamente falando, corpos não existem. Numa redução não-proxy, como a sugerida por Leibniz e Hume, por outro lado, parece que nós teríamos que escolher justamente entre as posições deles a respeito das pessoas e da identidade pessoal: ou bem elas seriam entidades simples, como pensava Leibniz, ou bem a persistência pessoal seria uma ilusão, como pensava Hume. Se é essa a escolha, então me parece que nós deveríamos optar pela posição leibniziana; mas não é uma escolha muito agradável. Em todo caso, não é correto afirmar que o redutivismo a respeito de corpos e o essencialismo mereológico implique, por si mesmo, uma concepção inaceitável da natureza das pessoas e da identidade pessoal. Se a concepção lebniziana for julgada tão inaceitável quando a humeana, o que se segue, no máximo, é que a versão não-proxy da ontologia dos corpos tem consequências inaceitáveis.

  • 1
    Esse exemplo é infeliz, pois é costumeiro pensar em moléculas como sendo capazes de perder a ganhar partes. A ideia que eu pretendia introduzir aqui é a ideia de massa de matéria, que será empregada mais adiante.
  • 2
    Vemos, assim, que o essencialismo mereológico pode ser motivado “negativamente”, como uma reação aos “paradoxos da corporeidade”. Mas há também ao menos um argumento “positivo” importante a seu favor. Em linhas bem gerais, argumenta-se, em primeiro lugar, que o único princípio razoável de composição é o princípio universalista (“Dadas certas coisas, sempre há um todo que elas compõem.”) e, em seguida, que o único “perfil modal” razoável para os todos, dado o universalismo, é justamente o essencialismo mereológico. Para uma defesa da primeira tese ver Lewis (1986), p. 210. Para uma defesa da segunda, cf. Van Inwagen (1990) p. 72. Esse argumento me parece essencialmente correto.
  • 3
    São muitas as fontes dos “fragmentos fluviais” de Heráclito e há uma grande controvérsia sobre quais são confiáveis. Mas pouco importa aqui se a tese do “fluxo universal” era do próprio Heráclito ou de Crátilo ou de algum outro. A citação acima se encontra em Plutarco, Questiones Naturales, 912a.
  • 4
    É duvidoso se moléculas e átomos, no sentido científico do termo, são realmente agregados. Parece que Russell precisaria levar a análise até o nível dos átomos no sentido etimológico de entidades sem partes.
  • 5
    Essas definições têm a consequência de que quaisquer dois corpos são partes flexíveis um do outro nos instantes em que nenhum dos dois existe, pois nesse caso ambos são constituídos pela “massa vazia” de matéria e tudo é parte de si mesmo. Essa consequência pode se evitar se revisarmos ligeiramente a definição de parte flexível, exigindo que os dois objetos existam no instante em questão. Nada no que se segue, porém, depende dessa diferença.
  • 6
    Cf. a definição paralela para pessoas em Lewis (1976). Se e como essas relações podem ser analisadas será discutido mais abaixo. Mas vale notar que parece um pouco injusto exigir do essencialista uma análise de “co-fluvial” mas não exigir do filósofo do senso comum uma análise de “rio”.
  • 7
    Mais uma vez, para obtermos uma noção minimamente realista de “coisa” as diversas massas, nos diversos mundos, teriam que estar “unificadas”. Mas não apenas isso: a relação de unificação teria que “coordenar” as massas nos diversos mundos de tal modo a refletir o que nós julgamos ser possibilidades reais para as “coisas”. Nós teríamos que ter relações como ʻ<m1, t1, w1> é co-fluvial a <m2, t2, w2>ʼ.
  • 8
    A neutralidade dessa construção com relação às diversas concepções de mundo possível é duvidosa, em realidade. Se um mundo possível for pensado como um conjunto maximalmente possível de estados de coisa, como sugere Plantinga (1978), e se o estado de coisas de que Piccadilly é agradável é algo que tem Piccadilly como um constituinte, então o emprego de mundos na construção de Piccadilly seria circular.
  • 9
    Sider (2001) usa esse tipo de objeção em favor da sua “stage theory”, i.e., em favor da ideia de que nós nos referimos cotidianamente não a somas mereológicas de várias fatias temporais, mas a fatias temporais individuais. A teoria que consideraremos a seguir é uma espécie de versão tri-dimensionalista (ou, mais precisamente, neutra) da “stage theory”.
  • 10
    Ao menos no caso dos corpos inanimados. Como veremos, no caso das pessoas Chisholm (1976) tinha uma visão radicalmente diferente e suponho que ele quisesse estender essa visão ao menos para as espécies superiores de animais.
  • 11
    Falar em “massas-em-instantes” é apenas uma conveniência e não há compromisso ontológico com tais entidades aqui. O que nós temos é uma relação quaternária R(α, t, β, t′).
  • 12
    Há também que se considerar a ideia de aplicar uma redução atualista não-proxy à tradução dos enunciados modais sobre corpos para a linguagem dos mundos possíveis. Quanto à possibilidade de uma tal redução do discurso possibilista, cf. Fine (2003).
  • 13
    1) parece ser bem pouco controversa.
  • 14
    Sua famosa eliminação dos nomes próprios, por exemplo, consiste em manobrar todas as ocorrências de um nome N para a posição ʻ= Nʼ para, em seguida, “re-analisar” essas expressões como “termos gerais indissolúveis”. Cf. Quine (1960), pp. 178-179.
  • 15
    Cf., por exemplo, a discussão em Hirsh (1976). Essas discussões são normalmente formuladas em termos de partes temporais, mas em grande medida elas podem ser facilmente transpostas para o nosso esquema de massas-em-instantes.
  • 16
    Para uma crítica dessa definição e uma proposta mais complicada de cláusula non-branching, cf. Gustafsson (2019). Note que nós teríamos também que considerar a extensão desse tipo de relação de continuidade para a versão modalizada que empregamos acima nas paráfrases das afirmações modais sobre corpos.
  • 17
    Organization or configuration alone, without an enduring principle of life which I call ‘monad’, would not suffice to make something remain numerically the same, i.e. the same individual. [...] But as for substances which possess in themselves a genuine, real, substantial unity, and which are capable of actions which can properly be called vital; [...] one can rightly say that they remain perfectly ‘the same individual’ in virtue of this soul or spirit which makes the I in substances which think.Novos Ensaios, xxvii. Ver também Wittgenstein (1921): 5.5421: “Uma alma composta não seria mais uma alma.”; 5.64: “O eu do solipsismo reduz-se a um ponto sem extensão e resta a realidade coordenada a ele”. Chisholm (1991), como de costume, segue Leibniz. Ver também Swinburne (1986).
  • 18
    If any one, upon serious and unprejudiced reflection thinks he has a different notion of himself, I must confess I can reason no longer with him. All I can allow him is, that he may be in the right as well as I, and that we are essentially different in this particular. He may, perhaps, perceive something simple and continued, which he calls himself; though I am certain there is no such principle in me.” Tratado, I, IV, VI.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2019
  • Aceito
    31 Mar 2020
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