Por qualquer que seja o ângulo de análise, prevê-se que a área de saúde deverá passar por intensas transformações nos próximos anos, objetivando, principalmente, a expansão dos cuidados de saúde, para a população rural e das periferias urbanas, e a qualificação da assistência à saúde nos níveis primário, secundário e terciário. Estes dois movimentos de expansão e qualificação deverão ser coetâneos, pois, a melhora do acesso a serviços de saúde pelas populações desassistidas não se poderá delongar por mais tempo; tão pouco, a população urbana poderá esperar mais por melhor atendimento preventivo e curativo, ambulatorial e médico-hospitalar.
Interdependência da assistência, ensino e pesquisa
O encaminhamento de soluções terá que levar em conta as especificidades da área. Entre estas, a interdependência da assistência, ensino e pesquisa é marcante. Não parece existir possibilidade de se equacionar em isolado os problemas que afetam cada um dos elementos desse tripé, sob pena de agravar-se ainda mais a situação do setor como um todo. A promoção da saúde depende fundamentalmente dos recursos humanos disponíveis e a formação destes está, indissoluvelmente, ligada à própria organização da assistência médica e do mercado-de-trabalho. Paralelamente, tanto os serviços, quanto os recursos humanos, somente podem promover melhor saúde pela expansão do conhecimento obtido através da pesquisa, quer básica, quer aplicada.
Assistência
No que tange à assistência médica, uma das maiores preocupações tem sido o dispêndio financeiro. Ora, os gastos no setor terão que crescer, e muito, para atender às necessidades sociais de saúde. É óbvio, entretanto, que esforços deverão ser concentrados na organização e racionalização da prestação da assistência já em curso. Mas, não se deve perder de vista, que, independentemente da reorganização e racionalização, o investimento real em saúde deverá aumentar. E a grandeza deste aumento será em níveis que não parecem estar sendo antevistos pelos planejadores e entendidos da área.
Nos países desenvolvidos é cada vez maior a preocupação com os gastos de saúde, uma vez que alguns deles já dispendem entre 8 a 10% do PIB em assistência médica. A projeção dos EUA é de fechar a década com perto de 12% do PIB aplicado em saúde. No Brasil, estamos gastando menos de 5%. O nosso problema de elevação de gastos é potencialmente muito mais grave, pois, em adição aos problemas comuns a outros países, a desigualdade de acesso até aqui observada, associada a problemas de nutrição, habitação, saneamento e educação, agravam profundamente as necessidades de assistência médica.
O crescimento de gastos com saúde entre nós assume características especiais que promoverão nos próximos anos uma escalada de custos cada vez maior e independente do ritmo inflacionário próprio do setor. Pelo menos cinco fatores concorrerão para isso:
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incorporação inadiável de expressivo contingente populacional rural à cobertura da assistência médica;
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crescimento da demanda de atencão à saúde da população que vem migrando para as periferias urbanas;
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aumento da sobrevida média da população e conseqüente aumento de patologias características da faixa etária mais elevada. Este tópico deverá ter um papel extraordinário nos próximos anos. O brasileiro está vivendo, em média, dez anos menos do que a população de países industrializados. Cada um a dois anos de aumento na expectativa de vida média faz crescer exponencialmente a incidência de doenças crônico-degenerativas na população idosa e, mais ainda, os gastos em saúde;
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necessidade de melhores padrões de assistência médica especialmente ao nível de cuidados primários, equidade de acesso aos demais níveis, além de condições mais adequadas de trabalho e de remuneração dos profissionais de saúde;
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necessidade crescente de incorporação e uso (racional) de novos e dispendiosos procedimentos e equipamentos de saúde, de eficácia e segurança comprovada por adequada avaliação tecnológica.
Ensino
No que tange ao ensino, existem três aspectos que precisam ser equacionados:
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Está cada vez mais claro, que o ensino somente poderá atender adequadamente às necessidades sociais de saúde à medida que os órgãos prestadores de serviços, como a Previdência, o Ministério e as Secretarias de Saúde co-participem das responsabilidades até agora restritas aos órgãos educacionais. Nos países em que a Universidade tem tradição e história secular, o ensino de saúde sempre teve um pé no campus e outro na cidade, uma vez que o ensino não se pode distanciar da assistência e vice-versa. Entre nós, apesar da existência de convênio entre MEC e MPAS-INAMPS, visando a cobrir as despesas referentes ao atendimento ambulatorial e hospitalar da clientela previdenciária, o mesmo é insuficiente por diversos aspectos. Em primeiro lugar, não cobre, discricionariamente, as despesas que as universidades e escolas têm com a assistência. Em segundo, possibilita um nível mais elevado de integração e interação para além das tentativas de ajustes financeiros e contábeis. É fundamental que o País, e em especial os órgãos prestadores de serviços, entendam que o futuro das ações de saúde será em grande parte determinada pelos recursos humanos que estão sendo treinados hoje no meio universitário.
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Um outro entrave, de sérias conseqüências para o ensino, e para o setor saúde como um todo, é o não reconhecimento pela legislação e práticas administrativas em vigor, das especificidades da área de saúde. Assim, a Reforma Universitária, o Estatuto do Magistério e outros documentos legais prescrevem para a área médica os mesmos requisitos das diversas áreas acadêmicas e do conhecimento. Outrossim, atrelam as atividades profissionais aos mesmos regulamentos do DASP para as mais diversas carreiras e atividades. Este tratamento inespecífico, prescrito em regulamentos gerais, ocasiona problemas para o ensino de saúde, bem como retarda a solução de outros. Assim, por exemplo, permanecem as ambigüidades e indecisões relativas ao papel que devem ter a residência, o mestrado, o doutorado e a livre-docência na carreira acadêmica. Os problemas profissionais, salariais e de mercado-de-trabalho decorrente da superposição das atividades de ensino e de assistência médica não são contemplados, gerando a necessidade de o docente compor sua remuneração profissional, primordialmente, através de atividades extra-universitárias.
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Finalmente, é imprescindível que o País adote uma clara opção de colocar o Hospital Universitário, ambulatórios e demais serviços no ápice da qualidade dos serviços de saúde. Os hospitais de ensino perderam a condição de porta de entrada dos avanços técnico-científicos no setor saúde. A política de remuneração aos serviços prestados pelos hospitais universitários ao próprio INAMPS chega a ser menor do que a feita a hospitais privados. A conseqüência deste modo de agir, faz com que os hospitais universitários continuem desaparelhados, enquanto a rede particular é capaz de se equipar com aparelhagem sofisticada que possibilita bom atendimento e maior lucro. Tomando apenas como exemplo a tomografia computadorizada, técnica de indiscutível utilidade, verifica-se que só foi implantada recentemente em uns poucos hospitais universitários, quando a rede particular já estava saturada, atingindo na cidade de São Paulo um índice de aparelho por habitante mais alto do que o visto em qualquer país desenvolvido. A não eleição dos hospitais de ensino (e dos próprios hospitais públicos), como centros de melhor desenvolvimento, é em grande parte responsável por distorções apontadas no setor saúde.
Pesquisa
No que tange à pesquisa, sem investigações científicas metodologicamente corretas e adequadas ao processo de atenção à saúde, não poderão ocorrer, nem atendimento satisfatório às necessidades sociais de saúde, nem racionalização de gastos;
Toma-se necessário o País adquirir capacitação técnica e autonomia na pesquisa diretamente orientada para a elevação dos padrões de cuidados individuais e coletivos de saúde. Este aspecto é fundamental por ser comum a crença que, excetuando as doenças endêmicas prevalentes no hemisfério sul, os países industrializados possuiriam conhecimentos e tecnologias capazes de resolver problemas de saúde dos países em desenvolvimento. Conseqüentemente, bastaria atingir-se um determinado grau de desenvolvimento econômico e de acumulação de capital para importar as soluções já aplicadas nos países industrializados. Esta importação engloba desde a formação de recursos humanos à tecnologia do processo de atendimento à saúde e à aquisição de técnicas e equipamento. Esta tendência, que já vigora na prática da assistência médica de nível mais complexo no Brasil, além de não resolver os problemas de saúde dos países em desenvolvimento, os distorce e agrava e, em adição, retira destes mesmos países as possibilidades de autonomia em um setor básico.
O modo de fomento à pequisa em saúde, preso aos mesmos parâmetros das Ciências Exatas, Engenharia etc ocasiona dissociação entre a realização de investigações científicas e sua finalidade última que, no presente caso, é a elevação dos padrões de saúde da população. Em termos práticos, a pesquisa está dissociada das necessidades de saúde e da prestação de serviços. Em adição, a filosofia do financiamento à pesquisa, baseada no crescimento pelo crescimento da ciência, embora tenha aspectos positivos inegáveis, não pode ser o principal balizamento do desenvolvimento científico da área, como vem ocorrendo. Também merece consideração o fato de que a difusão irrestrita de novas e sofisticadas tecnologias, cujos benefícios aos pacientes carecem ainda de adequada comprovação científica, constitui, de um lado, uma ameaça à ética, e, de outro, o fator mais importante de elevação incontrolável de custos. Se este é hoje um problema central para países desenvolvidos, pior ainda para os outros, que de modo acrítico, velozmente importam, incorporam e criam a demanda para tecnologias que podem até fazer mais mal do que bem, ou que são inócuas. Muitas das tecnologias e procedimentos que hoje contribuem para a escalada de gastos do INAMPS têm utilização e indicações restritas nos países que lhes deram origem.
O uso de procedimentos médicos de diagnóstico e tratamento cuja eficácia, efetividade e segurança não foram adequadamente determinados, é fator de risco para a população e desvia esforços e escassos recursos que poderiam ser melhor aplicados na resolução de problemas prevalentes de saúde. Estes são campos privilegiados e fundamentais para a pesquisa médica no Brasil. Finalmente, considerando a importância, magnitude e características próprias da área, o investimento global em investigações básicas e aplicadas nas ciências da saúde tem sido muito pequeno. Isto vem ocasionando uma situação paradoxal de enorme crescimento da área associado a uma relativa reducão de demanda em bolsas e auxílios. Aos recursos tradicionalmente destina dos às Ciências da Saúde pelo CNPq, FINEP e MEC/CAPES deveriam ser acrescentados recursos adicionais, capazes de influenciar qualitativa e quantitativamente o desenvolvimento científico e tecnológico da área.
Proposições
Muitos dos problemas estão bem identificados, têm soluções já conhecidas e, no entanto, perduram irresolvidos por décadas. Podem ser citadas muitas causas deste retardo. Duas chamam atenção. Uma é a espera de maior desenvolvimento econômico, que, ocorrendo, atenderia às necessidades de saúde. A outra, situada no extremo oposto, diz respeito à profunda compartimentalização existente entre assistência/ensino/pesquisa. Os esforços de encaminhamento de soluções se circunscrevem apenas a organizações de cada um dos três segmentos, isolados, ocasionando resultados precários. As tentativas de soluções articuladas ou harmônicas são penosas e difíceis.
Necessidade de Interlocutor
Adicionalmente, uma dificuldade que parece marcante para o encaminhamento de discussões, entendimentos e soluções, é a inexistência de organização civil que se posicione como interlocutora das questões que afetam de modo integrado a assistência, o ensino e a pesquisa. A Associação Médica Brasileira (AMB) lida, principalmente, com os problemas profissionais, corporativos, dos médicos. A Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) prende-se mais ao ensino da graduação. Outras organizações lidam com situações mais restritas. Por este motivo, surge a necessidade de um interlocutor capaz de encaminhar a implementação das proposições. Este problema poderia ser resolvido pela criação de uma "comissão transição", que poderia ser constituí da sob a liderança de instituições e órgãos, como a AMB, ABEM, ABRASCO, órgãos públicos vinculados à assistência, ensino e pesquisa etc. Caberia a esta comissão de transição tentar implementar soluções para os diversos problemas da área junto às instâncias adequadas do Legislativo, Executivo e sociedade civil. Outrossim, sugerimos que sejam abordados, inicialmente, estes três tópicos:
Novo ordenamento
Revisão da legis lação atual, visando à integração assistência-ensino-pesquisa, o atendimento a peculiaridades de pós-graduação médica e às interrelações profissionais da área. O não equacionamento jurídico e institucional de várias destas questões contribui para a deterioração crescente das condições de trabalho e produtividade do meio médico-acadêmico.
Prioridade para os hospitais de ensino público
Caberá também à entidade proposta intermediar soluções que viabilizem os hospitais de ensino, pois faltam ao País instituições que possam servir de centros de referência, não apenas para padronização de práticas médicas, mas em questões de custo-efetividade, custo-benefício e custo de ato médico, bem como para a qualificação de cuidados, a introdução de novas tecnologias ou de procedimentos médico-cirúrgicos, ou ainda para treinamento-em-serviço visando a formação e atualização dos recursos humanos. No setor médico-hospitalar, os eventos parecem ocorrer aleatoriamente, sem padrões técnicos de referência, prevalecendo os interesses do complexo médico-empresarial e industrial. Numa situação deste tipo, é impossível o País contar com padrões de análise, comparação ou de decisão com base em indicadores técnico-científicos.
Conseqüentemente, é preciso começar a existir, tal como acontece em todos os países desenvolvidos, uma firme opção em privilegiar os hospitais de ensino, ambulatórios e serviços comunitários vinculados às universidades e escolas, bem como os hospitais públicos, como centros preferenciais e de referência para todo o sistema de assistência de saúde. Sem uma opção política do País, pelos hospitais de ensino e hospitais públicos como centros de referência, será impossível ocorrer uma melhor qualificação da assistência. Aliás, será mesmo impossível arriscar uma estimativa sobre o que ocorrerá (ou um diagnóstico sobre o que já está ocorrendo?) com os serviços e com as profissões de saúde no Brasil.
Elaboração de proposta para criação do instituto de pesquisas em saúde
É reconhecida a necessidade de maior investimento e de reorientação na política de desenvolvimento científico e tecnológico da área.
Quanto ao investimento em pesquisa, nota-se que o mesmo é intensamente desproporcional à magnitude da área de saúde, não só por sua importância intrínseca, mas, principalmente, quando se compara o número de instituições, de docentes, alunos, de pós-graduações etc com o de outras áres.
Quanto à reorientação, ressaltam-se as amplas possibilidades, riqueza epistemológica e valor metodológico das investigações orientadas para a resolução de problemas objetivos da saúde, paralelamente ao desenvolvimento de pesquisas básicas.
Ocorre também impossibilidade de resolverem-se problemas de atendimento às necessidades sociais de saúde da população, e mesmo de racionalização de custos assistenciais, sem o desenvolvimento de investigações científicas, metodologicamente corretas, sobre eficácia, efetividade e custo-benefício dos procedimentos, medicamentos e equipamentos de diagnóstico e tratamento.
Diante desta situação, será importante a elaboração de subsídios a serem encaminhados ao Executivo, visando à proposta de Lei ao Congresso para criação de um “Instituto de Pesquisas em Saúde” que deverá funcionar com um percentual fixo dos recursos em despesas e investimentos no setor1 1 Apenas como exemplo, 1% (um por cento) no orçamento do INAMPS de 1984 corresponde, aproximadamente, a 32 bilhões de cruzeiros. . O Instituto poderá ser um organismo, pequeno, ágil, com pouca burocracia, vinculado e utilizando a experiência e infra-estrutura do CNPq (Pesquisa) e SESu-CAPES (formação de recursos humanos). Esse Instituto deverá, em contato estreito com a comunidade científica e com os órgãos responsáveis pela prestação de serviços de saúde, coordenar e fomentar investigações científicas, metodologicamente adequadas, para a resolução de problemas da área, bem como participar da formação de recursos humanos de saúde.
O Instituto de Pesquisas em Saúde seria um órgão meio, que se capacitaria a:
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atender a demanda de ciência e tecnologia de acordo com prioridades claramente definidas pelos órgãos de saúde;
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fomentar, coordenar e orientar a investigação científica e as aplicações de ciência e tecnologia na área;
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apoiar, em articulação com a comunidade científica e de prestação de serviços, as pesquisas orientadas para a resolução de problemas específicos, inclusive na área de tecnologia apropriada e de pesquisas operacionais de serviço;
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promover investigações científicas sobre a introdução de novas tecnologias e de suas aplicações em saúde (avaliação tecnológica);
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aperfeiçoar e ampliar as condições de treinamento de recursos humanos em ciência e tecnologia de saúde;
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avaliar o desenvolvimento de pesquisas e suas repercussões diante dos objetivos originalmente propostos.
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Apenas como exemplo, 1% (um por cento) no orçamento do INAMPS de 1984 corresponde, aproximadamente, a 32 bilhões de cruzeiros.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Jul 2021 -
Data do Fascículo
May-Aug 1985