Open-access POR QUE HISTÓRIA DA MEDICINA?

Raríssima é a escola médica brasileira que dispõe, em suas unidades curriculares, da disciplina História da Medicina. Erroneamente, pelo fato desta disciplina ser considerada irrelevante e desnecessária.

Assim, a cultura médica começa a ser substituída, mais e mais, por uma intrincada estrutura instrumental e por uma consciência eminentemente pragmática e utilitarista.

Por maior que seja o estágio de desenvolvimento técnico-científico das Ciências Médicas jamais poderão prescindir de seus princípios mais tradicionais, próprios e inseparáveis da arte hipocrática da formação humanística de cada médico.

O maior instante da Medicina não foi o seu momento de maior glória tecnológica. Mas, sobretudo, o instante consciente do próprio pensamento médico.

Sendo a Medicina um verdadeiro sistema, necessita de um pensamento largo e dirigido para as mais diferentes áreas do Conhecimento, no sentido de captar o Homem - objeto de nossa atenção - dento de uma visão ampla e mais realista.

Nietzsche afirmava que "a vida tem necessidade dos serviços da História".

É preciso que se entenda que História não é somente descrição. É descrição e valoração.

Na História da Ciência, não interessa apenas o fato ou a época do fato, senão, também, todo um processo intelectual, sua colocação na continuidade da evolução científica antes e depois - e, principalmente, uma critica às consequências do presente. Todavia, é necessário que se faça uma distinção entre historiador e cronista.

Em Medicina, basta lembrar a história da descoberta dos raios de Roentgen, desde seus primórdios até os mais espetaculares recursos atuais em Radiologia Computadorizada, para sentir que a História não ficou apenas ligada ao registro de flagrantes isolados. Tem por finalidade fomentar o raciocínio lógico e estimular o espírito crítico, clareando o entendimento e ordenando as ideias.

Assim, História da Medicina não é somente deleite ou simples curiosidade. É muito mais.

É como o viajante que, tendo deixado sua terra por muitos anos, agora volta com o propósito de tirar todo o proveito do que viu lá fora, cm favor dos seus. É viajar para o passado, comparar com o agora e tirar conclusões para o futuro.

Nada mais lamentável que induzir a mentalidade dos jovens estudantes dizendo que para o médico basta o conhecimento das ciências físicas e naturais e que a cultura humanística é atividade secundária, ou mesmo desnecessária. Não poderia haver afirmação mais perniciosa do que esta num curso de graduação médica.

Não pode ser bom médico quem não sabe dar a razão histórica dos seus saberes e dos seus pensares. Ortega y Gasset afirmou, certa vez, que a incultura dos homens de Ciência é uma das causas de maior fracasso na sua missão universal. E adiantava:

"Cultura não é Ciência; Cultura é um sistema vital de ideias sobre o Mundo e o Homem; e o cientista, ou o profissional, que está plantado no seu Saber e ignorante do resto - é um novo bárbaro, um bárbaro vertical''.

É claro, que só os conhecimentos de História não constituem a solução total para tudo, mas é algo muito significativo.

Marti Ibañez, próximo da morte, escreveu:

"Sendo que a História da Medicina narra a epopéia da luta do Homem através dos séculos para prevenir, aliviar e curar a doença, é uma das mais importantes na formação intelectual e profissional de um médico. Estou plenamente convencido de que o estudo da História da Medicina é, para o estudante primeiro e para o médico depois, um instrumento extraordinário com vistas a conhecer o passado de sua profissão, analisar sobre tal base o presente e vislumbrar seu futuro(..) A História da Medicina deveria ser disciplina obrigatória em todas as Faculdades de Medicina do Mundo".

A partir do momento em que o exercício da Medicina não pode ser visto como um mero ato técnico, necessita ele de um fundo histórico que possa impregnar a alma do médico humanista para que jamais a Medicina seja sepultada sob os escombros da decadência e da insensibilidade.

É necessário que outros conhecimentos dêem ao médico uma noção da continuidade do processo científico. É pena, porém, que nem todos tenham lido de Harvey seu "Exercitatio anatomica de motu cordi et sanguinis in animalibus '', notável exemplo de metodologia científica e fantástica fonte de conhecimentos que o tempo não conseguiu empanar.

Ensina, ainda, a História a interpretar etimologias que haverão de perdurar por muitos séculos. Alguns de nós, por exemplo, ignoram que as artérias sejam assim chamadas porque os antigos acreditavam que nelas circulava o ar. Ou que o nervo frênico seja conhecido como tal porque se admitia estar no diafragma a sede do espírito sensível - o fren dos gregos.

O conhecimento da pré-história e da Medicina dos povos mais antigos coloca o Homem atual frente aos eternos e graves conflitos ante a vida, a doença e a morte.

As fases empírica, mágica e telúrica, que antecederam o estágio científico da Medicina, contribuem com sua parcela de conhecimentos para ajudar a compreender algumas atitudes dos pacientes de agora, condicionados pelo próprio determinismo histórico.

Plínio, em sua "História Natural", descreve as superstições, bruxedos, fórmulas mágicas e intoleráveis medicamentos, práticas essas ainda cm moda entre as populações mais incultas.

Hipócrates, o gênio que arrancou dos deuses a arte de curar para entregá-la aos homens, é outro exemplo notável da eterna validade da observação clínica e do raciocínio lúcido.

Paracelso, o irrequieto, ensinou a destruir falsos dogmas e teorias ultrapassadas.

Lain Entralgo, em “La Historia Clínica” mostra que a História da Medicina tanto contribui para dar razão ao que se sabe, quanto para conquistar o que não se sabe.

E Osler diz que muitos problemas da Medicina moderna só podem ser enfocados com êxito por meio do método histórico.

Os países mais evoluídos sempre contaram com a História da Medicina nos currículos acadêmicos. Na Polônia, até o ano de 1938, estava presente em todas as escolas médicas. Na Alemanha, Itália, França e Espa­nha, muitos são os cursos com essa disciplina. Nos Estados Unidos, em mais da metade de suas escolas e, no México, em nove delas.

No Brasil, ao que nos acode, somente a Universidade Federal da Paraíba, numa iniciativa feliz e oportuna, adotou esta disciplina no currículo mínimo, como matéria autônoma e cm caráter optativo. Mas os alunos fizeram dela urna matéria obrigatória.

Finalmente, deve saber o estudioso de Medicina que sua evolução não é um fenômeno isolado e independente de outros progressos da Ciência e do Pensamento humano. A Medicina deve a Galileu, a Da Vinci, a Lavoisier. Deve a Cervantes, a Rousseau, a Danton. Deve a Gutemberg, a Aristóteles e a Fermi.

E não se diga que ensinar História da Medicina seja contar fatos pitorescos e engraçados. É muito mais.

E ser versado no grego e no latim, na Metodologia do Ensino, na Antropologia e na História Universal.

É ter noções de investigação histórica, de Biblioteconomia, de Arquivologia e de História da Filosofia.

É conhecer, mesmo superficialmente, Museologia, Paleografia, Gliptografia, Sociologia, História da Arte e a epistemologia das Ciências ditas de outras áreas.

Desta forma, pois, é atividade de amplas proporções e de real magnitude, a exigir de quem a cultiva um lastro muito grande de conhecimentos - e uma sentimentalidade muito delicada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 1995
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