O XLII Congresso Brasileiro de Educação Médica, realizado em novembro passado em Vitória, trouxe variados temas e reflexões, cuja divulgação e análise demandariam mais de um número da revista. Um resultado tão positivo num congresso é o reflexo direto do contínuo aperfeiçoamento de nossa capacidade de nos organizar em eventos científicos, possibilitando evidenciar esta riqueza de abordagens teóricas e proposições políticas. Gostaríamos, entretanto, de destacar algumas das reflexões discutidas naquele contexto, sem que isso represente, necessariamente, uma avaliação de valor.
Consideremos um aspecto polêmico na área de educação: os conteúdos fundamentais transmitidos por meio de qualquer sistema de ensino. Podemos pensar nos conteúdos fundamentais como um conjunto de noções que se evidenciam através da prática do profissional em determinado campo de sua atividade. Michael Apple ratifica que o currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos que simplesmente está sendo utilizado nos textos e nas salas de aula de uma nação. Ele sempre faz parte de uma seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo. "É produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo"11. Apple MW. Repensando Ideologia e Currículo. In: AF Moreira & TI Silva (org.) Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez; 1994. p.39-59. O conhecimento acadêmico não é um conjunto isolado e estático de informações, mas, sim, comprometido com determinada visão de mundo, dependente de determinado processo de investigação do real, e chega até a universidade racionalmente produzido, elaborado e sistematizado por meio de determinado processo de pesquisa, desenvolvido no contexto de uma dada concepção de educação e de sociedade.
No caso da Educação Médica, esses conteúdos são uma das explicações de por que os médicos, uma vez formados, direcionam sua prática às especializações; dedicam mais atenção aos problemas de saúde individual do que aos coletivos, deixando em segundo plano, em sua prática, os fatores psicológicos e sociais como determinantes no adoecer. Este questionamento quanto ao marco conceituai tem sido alvo de preocupação de educadores médicos em todo o mundo há várias décadas e voltou a aparecer no último congresso da ABEM, realizado em Vitória (ES).
O enfoque do desenvolvimento técnico da medicina no Brasil continua sendo alvo de debate nas escolas médicas. Formar um médico significa, entre outras coisas, formar um aprendiz no manejo de técnicas, procedimentos e instrumentos. O trabalho médico, porém, não se esgota em sua natureza técnica, mas apresenta dimensões onde se expressam valores de ordem moral ou ética, ideológica ou econômica. E sua maior capacidade de trabalhar em equipe demonstra sua melhor compreensão da sociedade onde se insere.
A organização dos conteúdos curriculares e a metodologia educacional a ser utilizada contribuem para a configuração do marco conceituai da Educação Médica, assim como contribuem para a estrutura social e econômica, a ideologia prevalecente do profissional e a estrutura de poder internacional. Os alunos percebem, de maneira consciente ou não, a existência de tais modelos, e os adotam ou desprezam, na medida em que reforçam ou entram em conflito com o resto da estrutura e com o papel que pretendem desempenhar em seu interior.
Os debates sobre as reformas curriculares na saúde, mais precisamente nas reformas dos currículos de medicina, têm experimentado uma gama de opções metodológicas e de técnicas de abordagem didático-pedagógicas. Na maioria das vezes, estas abordagens têm se afirmado na apropriação de métodos de transmissão das aprendizagens e na construção de relações de fundo "psicologizante" do processo formativo. Entretanto, muitas vezes, se esquecem de que o processo educativo, em geral, e a didática, em particular, estão e sempre estiveram vinculados à difusão de conteúdos "culturalizadores", que se materializam por meio dos assuntos e temas abordados, e das formas de explicar os processos de produção e reprodução social22. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989..
Desse modo, as linguagens e os métodos didático-pedagógicos, separados dos questionamentos sobre os conteúdos adequados e pertinentes às práticas, correm o risco de criar leituras unilaterais das práticas e dos saberes profissionais, contribuindo de maneira sutil para legitimar e manter os currículos normativos, distantes, portanto, da realidade dos profissionais.
Ao falarmos sobre processos de escolarização e métodos e conteúdos culturais que se manejam nos centros de ensino, chamamos a atenção para o distanciamento existente entre a realidade e a prática profissional. Com isso, é preciso insistir na necessidade de contemplar as questões socioculturais e os problemas cotidianos das práticas profissionais como elementos centrais das atividades curriculares nos diversos cenários de aprendizagem. Os conteúdos orientados a partir da realidade social traduzem as funções que se deseja que o aluno cumpra em relação à vida cotidiana, aos indivíduos, à cultura e à sociedade, contextualizadas numa perspectiva histórica e crítica.
A partir dessa linha de argumentação, podemos entender a organização de currículos com base na integralidade como uma alternativa para contribuir para transformar os processos de trabalho, valorizando a discussão pedagógica e vinculando-a ao contexto da consolidação dos modelos tecnoassistenciais inovadores em saúde. Esta emerge como uma proposta contra-hegemônica àquelas orientadas por uma visão maximizadora de recursos e restritiva do ponto de vista da edificação da cidadania, da integralidade e da eqüidade que os serviços de saúde podem produzir33. Oliveira GS; Koifman L. Integralidade do currículo de medicina: inovar/ transformar, ·um desafio para o processo de formação. In: Marins JJN, Rego R, Lampert JB, Araújo JGC (org.). Educação Médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades". Hucitec, São Paulo, Rio de Janeiro: ABEM, 2004. p. 143-164..
O processo de construção do currículo no seu dia-a-dia passa a ser entendido como uma prática reflexiva, dia lógica e articuladora, que assegura a consolidação de núcleos de vontade coletivos, respeitando as características particulares locais e de cada momento da formação. Assim como a construção de uma forma orgânica de educação e avaliação permanentes, buscando garantir bases seguras de construção de temas e propostas pedagógicas baseados nos problemas cotidianos vividos por docentes, discentes e profissionais de saúde, a partir das necessidades reais do conjunto da população.
Estes valores estabelecem um salto qualitativo no reconhecimento e reprodução das necessidades de saúde, sem que isto signifique a dicotomia (entre o biológico e o social) típica dos modelos de saúde pública e da clínica tradicionais. E que o processo formativo possibilite aos profissionais atuarem com criatividade, ética e maior eficácia, efetividade e equidade.
Este movimento de formação estaria de acordo com o que Mattos44. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Mattos RA, Pinheiro R (org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, JMS, ABRASCO; 2001. p.39-64. sinaliza ao descrever o conceito de integralidade, no qual destaca três grandes grupos de sentidos ou dimensões: a primeira é o momento da atenção, da relação direta entre o médico e seu paciente; a segunda é o estabelecimento de uma rede de serviços que responda à totalidade das demandas dos usuários; e a terceira dimensão se vincula à configuração de políticas de saúde.
Tais sentidos incorporam as contribuições das teorias explicativas da crise da saúde (cultural, política e gerencial) e permitem a aproximação de uma nova concepção de reestruturação de modelos tecnoassistenciais em saúde, baseada na criatividade e na inovação necessárias em cada contexto, orientadas pela busca constante da integralidade das práticas.
O momento vivido pelo setor saúde - do qual a convocatória da 12a Conferência Nacional de Saúde (2003) pode ser considerada um dos marcos (o relatório final se encontra on line na página do Ministério da Saúde) - reforçou a necessidade de refletirmos sobre a construção e a solidificação dos pressupostos do SUS a partir dos fundamentos do movimento da Reforma Sanitária Brasileira, em particular com o resgate do papel dos gestores dos três níveis de governo, da sociedade civil organizada e das instituições formadoras de Recursos Humanos em Saúde, como aqueles que podem efetivamente alterar os cenários assistenciais e de formação historicamente consolidados.
Esse debate ainda não se esgotou, e o último congresso da ABEM demonstrou bem a atualidade de tais reflexões.
Portanto, para o novo ano que agora começa, 2005, a REBEM renova a disposição de criar e ampliar o espaço para a discussão e aprofundamento das principais questões da Educação Médica e da formação em saúde.
Feliz Ano Novo!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
-
1Apple MW. Repensando Ideologia e Currículo. In: AF Moreira & TI Silva (org.) Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez; 1994. p.39-59
-
2Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
-
3Oliveira GS; Koifman L. Integralidade do currículo de medicina: inovar/ transformar, ·um desafio para o processo de formação. In: Marins JJN, Rego R, Lampert JB, Araújo JGC (org.). Educação Médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades". Hucitec, São Paulo, Rio de Janeiro: ABEM, 2004. p. 143-164.
-
4Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Mattos RA, Pinheiro R (org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, JMS, ABRASCO; 2001. p.39-64.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Jul 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2004