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O ensino da cirurgia: a necessidade de uma visão humanística

Surgical education: the need of a humanistic vision

Resumos

A fragmentação e "compartimentalização" do conhecimento médico não são as únicas causas das dificuldades encontradas na formação de cirurgiões. O abandono do ensino médico vinculado às ciências humanas (sociais) tem levado a formação de profissionais que entendem as ciências biológicas sem entender as ciências da vida. O afastamento da realidade cotidiana, cultural e individual cria condições para o não entendimento da singularidade e subjetividade de cada ser humano. O cirurgião tem, frequentemente, sido erroneamente descrito como portador de qualidades negativas, mas que na verdade remetem a um caráter mais firme e resoluto. De outra forma não é preciso dom para operar, mas empenho, esforço e determinação. O ensino problematizador possibilita a construção de um conhecimento crítico que leva o indivíduo a intervir na realidade que vivencia, de forma transformadora, objetiva e consciente. Esta construção crítica e humanística do conhecimento só poderá se instituir por intermédio de um ensino contextualizado sociocultural e historicamente, não apenas técnico, biocêntrico e hospitalocêntrico.

Educação médica; Ética; Virtudes; Personalidade


The fragments and compartments of medical knowledge are not the only causes of difficulty found to form surgeons. The abandon of medical education associated with human science (social science) has formed professionals that understand biological science but don't understand life science. The distance from individual and cultural everyday reality enables one to not understand uniqueness and differences of each human being. Surgeons frequently have been described as someone endowed with bad qualities which actually just represent a tough and daring aspect. In other words, you don't need to be gifted to operate. All you need is effort, hard work and determination. Education built with problems produces a critical knowledge that makes an individual intervene in reality that physicians lives in a transformer, conscious and objective way. The critical and humanistic construction of knowledge will only be possible if teaching includes historical and socio-cultural characteristics and not only bio-centric and hospital-centric ones.

Medical, education; Ethics; Virtues; Personality


ENSINO

O ensino da cirurgia: a necessidade de uma visão humanística

Surgical education: the need of a humanistic vision

Cleber Soares Júnior, TCBC-MGI; Carlos Augusto Gomes, TCBC-MGII; Fernanda Pardo de Toledo Piza SoaresIII

IProfessor convidado da Disciplina de Cirurgia Gastroenterológica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).-MG-BR

IIProfessor assistente da Disciplina de Cirurgia Gastroenterológica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)- ).-MG-BR

IIIProfessora da Faculdade de Nutrição da Universidade Presidente Antônio Carlos

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Cleber Soares Júnior E-mail: cleberdoc@ig.com.br

RESUMO

A fragmentação e "compartimentalização" do conhecimento médico não são as únicas causas das dificuldades encontradas na formação de cirurgiões. O abandono do ensino médico vinculado às ciências humanas (sociais) tem levado a formação de profissionais que entendem as ciências biológicas sem entender as ciências da vida. O afastamento da realidade cotidiana, cultural e individual cria condições para o não entendimento da singularidade e subjetividade de cada ser humano. O cirurgião tem, frequentemente, sido erroneamente descrito como portador de qualidades negativas, mas que na verdade remetem a um caráter mais firme e resoluto. De outra forma não é preciso dom para operar, mas empenho, esforço e determinação. O ensino problematizador possibilita a construção de um conhecimento crítico que leva o indivíduo a intervir na realidade que vivencia, de forma transformadora, objetiva e consciente. Esta construção crítica e humanística do conhecimento só poderá se instituir por intermédio de um ensino contextualizado sociocultural e historicamente, não apenas técnico, biocêntrico e hospitalocêntrico.

Descritores: Educação médica. Ética. Virtudes. Personalidade.

ABSTRACT

The fragments and compartments of medical knowledge are not the only causes of difficulty found to form surgeons. The abandon of medical education associated with human science (social science) has formed professionals that understand biological science but don't understand life science. The distance from individual and cultural everyday reality enables one to not understand uniqueness and differences of each human being. Surgeons frequently have been described as someone endowed with bad qualities which actually just represent a tough and daring aspect. In other words, you don't need to be gifted to operate. All you need is effort, hard work and determination. Education built with problems produces a critical knowledge that makes an individual intervene in reality that physicians lives in a transformer, conscious and objective way. The critical and humanistic construction of knowledge will only be possible if teaching includes historical and socio-cultural characteristics and not only bio-centric and hospital-centric ones.

Key words: Medical, education. Ethics. Virtues. Personality.

A FORMAÇÃO DO CIRURGIÃO

O que é preciso saber para se tornar um bom cirurgião?1. Não se pode responder a esta pergunta com poucas palavras. Sir Heneage Ogilvie destacava que "existem quatro estágios na formação do cirurgião: ele deve ser encontrado, ele deve ser qualificado, ele deve ser treinado, e a ele devem ser dadas oportunidades" 2.

Lord Moynihan enfatizou que "a cirurgia não é somente a ação de operar habilmente. Necessita reunir a seu serviço, qualidades de espírito e coração, que atinjam o mais alto pináculo do esforço humano. Um doente não pode nos oferecer um tributo mais elevado que o de confiar sua vida e sua saúde, e implicitamente a felicidade de toda sua família. Para sermos dignos dessa confiança, precisamos nos submeter, durante toda a vida à constante disciplina do esforço infatigável em busca do saber, e da mais reverente devoção para cada detalhe, em todas as operações que praticamos" 3.

A cirurgia é mais técnica ou mais arte? Assumindo-se que o cirurgião se embasa principalmente em técnica e ciência, as qualidades que poderiam ser consideradas mais importantes estão vinculadas à racionalidade, busca pela simplicidade, trabalho, perseverança e metodicidade. De outra forma, considerando a cirurgia como arte acima de tudo, as virtudes principais compreenderiam aquelas nas humanidades: dedicação, beneficência e não-maleficência, direito a autonomia, lealdade, coragem, eloqüência, tolerância, temperança, prudência e justiça. É preciso deixar claro que a medicina desde Hipócrates, já continha os valores de arte e técnica, e a palavra grega "téxun" etimologicamente traduz estes dois significados 4. Paracelso reconhecia que a medicina não era apenas ciência, mas também uma arte. Ele já observava que ser médico não era somente compor medicamentos, mas ao contrário, entender os processos da vida5,6. Bernard Shaw era categórico em afirmar que a Medicina é arte, não ciência7, assim como Lord Moynihan: "Nada no artesanato de qualquer arte é mais perfeito e belo do que a arte da cirurgia"8.

O cirurgião deve possuir treinamento nas "ciências humanas" antes de buscar as ciências biológicas, fisiologia, anatomia, bioquímica, infectologia, radiologia e medicina interna. A importância do humanismo deve ser enfatizada, segundo Van Wyck "... ela promete mais que o mero sobreviver. Promete vida, sabedoria, concepção espiritual da existência, liberdade de inteligência (...) deixe-nos escolher os três grandes interesses que o homem deve ter - literatura (especialmente a poesia), história e artes"2. Parafraseando Gould, "não há muito que eu possa fazer com um aluno que desconhece a análise da multivariância e a lógica (...); mas também não é possível formar um bom cientista (no nosso caso um bom médico) - embora eu possa forjar um tecnocrata razoável - se o indivíduo em questão nunca lê nada além dos periódicos profissionais de sua área de atuação"9.

Edgard Morin claramente expressa que o primeiro objetivo na formação de estudantes e profissionais deve ser "a adequação de todas as disciplinas, científicas e humanistas, às finalidades educativas fundamentais, que acabam sendo ocultadas pelas fragmentações disciplinares e pelas compartimentalizações entre estas duas diferentes culturas: 1) formar espíritos capazes de organizar seus conhecimentos em vez de armazená-los por uma acumulação de saberes, "antes uma cabeça bem feita que uma cabeça muito cheia", dizia Montaigne; 2) ensinar a condição humana (...); 3) ensinar a viver (...); 4) refazer uma escola de cidadania"10.

Além do treinamento científico, o cirurgião deve possuir qualidades do corpo e da mente. Em seu capítulo sobre a evolução da cirurgia, Moseley relata a belíssima descrição dos atributos do cirurgião, discursada por Hutchison aos estudantes do London Hospital Medical College, palestra intitulada "Seven Gifts" (Sete Dons) 2, 11:

"Boa saúde ... uma constituição que esteja apta a resistir à fadiga e a infecção"

"Sorte ... alguns homens devem todo ou quase todo seu sucesso à sorte, mas se você não a possui, lembre-se de que trabalho árduo e paciência podem substituí-la em grande parte"

"Inteligência ... mas se eu não a tenho, devo dedicar-me através com um dom extra de diligência"

"Serenidade ... não há qualidade mais essencial a vocês doutores, que irão freqüentemente se deparar com o imprevisto e com as emergências desconcertantes; uma quantidade parcimoniosa desta característica vai prevenir vocês de desgastes por aborrecimentos que são inescapáveis na prática médica"

"Um senso de justiça, primeiramente para com seus pacientes - justiça também para com seus irmãos de profissão"

"Um senso de beleza ... a doença é feia ... você vai necessitar de um senso de beleza como compensação e uma forma de escape; como um saneador de impertubável influência"

"Um senso de humor ... vai te ajudar a se conduzir frente à imaginação (fantasias) dos seus pacientes"

Parte destes princípios enunciados por Hutchison podem ser encontrados nos textos do Corpus Hippocraticum, o que mostra uma preocupação desde muito cedo com a formação médica. Em Do Médico, pode-se ler que "o aspecto exterior do médico requer que tenha boa compleição (física) e que seja também robusto, conforme sua própria natureza..."e também "quanto às coisas do espírito, (mostrar) sensatez, não apenas em relação ao silêncio, mas também (em relação) a uma vida muito regular, o que importa muito para uma boa reputação. O caráter deve ser honesto e bom, assim sendo, (deve ser) também sério e cordial em todas as coisas... deve ser compenetrado, mas sem aspereza, que pode transparecer presunção e misantropia..." 4,6.

Alguns aspectos do trabalho do cirurgião parecem eternos. Há quatro séculos eles tinham os mesmos objetivos que seus colegas de hoje. Aurelius Cornelius Celsus escreveu em seu Proemium (volume VII) no primeiro século d.C.: "um cirurgião deve ser jovem ou de alguma forma mais próximo da juventude que da idade adulta; com a mão forte e firme que nunca trema, e pronto a usar a mão esquerda tão bem quanto a direita; com visão nítida e clara, e espírito corajoso; repleto de piedade, de forma que deseje curar seu paciente, porém que não seja comovido por seus clamores, para ir rápido demais, ou cortar menos que o necessário; mas fazendo tudo como se os clamores do paciente não o emocionassem" 6,12. E também: "o médico experiente não toca de imediato o paciente; senta-se ao seu lado, mira-o com atenção e, se o doente está com medo, acalma-o com palavras gentis antes de proceder ao exame físico" 13.

Thomas Vicary, no século XVI descreveu quatro fatores que o cirurgião deve procurar para atingir a perfeição: que ele aprenda, que ele seja experiente, que seja habilidoso, que seja amável. Paracelsus, no mesmo século, disse que ao julgar você age como médico, mas ao tratar age como cirurgião, não podendo haver cirurgião que não seja médico12,14,15. No século XIX, Henry Bigelow advertia quanto ao exagerado senso de valor, e do "drama" que a popularização das operações e a magnitude das mesmas pode proporcionar12. O próprio Hipócrates já afirmava que "o doente não está procurando ostentação, e sim ajuda" 4.

O cirurgião personifica a disciplina, a retidão e também a compaixão. Um tipo de compaixão pelos pacientes e pelas famílias destes que difere em muito das outras profissões e das outras áreas. Um sentimento que permite que se abra um tórax, um abdome, uma caixa craniana. Não apenas piedade, mas um compartilhamento da dor que não é passivo em suas intenções, mas deliberadamente ativo. Que sofre junto, mas que auxilia, que ajuda, que opera, literalmente com paixão. Whipple considera que a cirurgia é o ramo mais antigo da terapêutica16,17. Nada que causasse um sofrimento despropositado, perduraria por tanto tempo.

Várias das especialidades médicas lidam com situações em que é possível uma completa caracterização fisiopatológica da doença antes de se iniciar o tratamento. Isto nem sempre é verdade para a cirurgia. Muitas vezes é necessário agir sem conhecer todos aspectos implicados. Desta forma, a cirurgia está mais relacionada com a possibilidade do erro, e também do fracasso. Ela é definitivamente uma medicina de meios e não de fins. Harken diz que os cirurgiões precisam incorporar quatro componentes da ética médica: beneficência (a obrigação do bem), não-maleficência (a obrigação de não fazer o mal), autonomia (reconhecimento do direito do paciente participar e decidir sobre seu tratamento) e justiça (importância de relatar tudo para o paciente e sua família). Faz-se necessário mais do que isto18.

Segundo John Finley "a maturidade da mente é a capacidade de suportar a incerteza"18. Talvez esta seja a principal característica do cirurgião, o que define a especialidade. James Thomas explica que mesmo este aspecto traz conotações negativas, mas que os cirurgiões não se incomodam. Ao contrário, um sentimento de orgulho se apresenta. Na verdade eles têm sido descritos como arrogantes, dominadores, frios, impessoais, impacientes, pouco amigáveis, agressivos e autoritários. A presença destes valores não surpreende, mas decepciona, pois em geral os cirurgiões evocam respostas emocionais fortes: auto-suficiência, disciplina, motivação, solidez de caráter.

Thomas relata que o comportamento do cirurgião é similar (ou quer ser igual) ao daqueles que se aventuram por esportes radicais. Uma sensação de querer resolver tudo, uma atitude que transborda confiança19,20. Ele ainda afirma que o conceito de que talvez exista uma personalidade de cirurgião, que predestine aquele médico a esta área, não pode ser comprovado, não obstante alguns cirurgiões acreditam neste conceito. Há discussão sobre a vocação cirúrgica, assim como há para a medicina em geral21. Linn e Zeppa demostraram que os alunos de último ano do curso de medicina, que escolhem a residência de cirurgia, normalmente são aqueles menos afetados pelo stress22. São pessoas que acreditam que os resultados obtidos dependem do seu próprio comportamento e não de destino, sorte ou religião. Baseado em sua experiência pessoal, assim como trabalhos na área, ele suspeita de que, mais importante que uma personalidade característica de cirurgião, o que acontece frequentemente é o aluno imitar a personalidade da faculdade em que está inserido, e a dos seus preceptores.

Isto parece estar correto. Os melhores professores de cirurgia são aqueles que dizem que nem mesmo o melhor por parte do aluno é o bastante. Eles ensinam que deve-se aprender para operar, e não operar para aprender. Eles moldam o temperamento, orientam as atitudes. Conhecem as limitações dos estudantes e residentes, fazem de tudo para que superem fraquezas, e ensinam a não se satisfazerem com o que já fizeram: "(...) deixaram-me saber que não entendiam de tudo, que eu poderia adquirir informações que eles mesmos não possuíam e que meus esforços eram valorizados"23.

A facilidade de acesso ao corpo docente é algo que conta muito na formação de um cirurgião. O decisivo, no entanto, é a força de vontade e a aptidão do estudante. À falta disso, e independente do ambiente de aprendizagem, o fracasso o espera, e não há desculpa que o possa justificar23. Os professores devem estar presentes sempre, testemunhando as tentativas e fracassos até que os discentes possam ser capazes de realizar os procedimentos cirúrgicos com segurança, acompanhar os pós-operatórios, prevenir e tratar as complicações. Sem o preceptor ao lado, quebra-se o pré-requisito da residência24.

O aprendizado da arte cirúrgica ensina que nesta profissão, errar metade não é a mesma coisa que acertar metade. A eide da cirurgia é repleta de escolhas, muitas vezes tem-se que abrir mão de um pequeno benefício imediato em prol de um maior mais tarde25. Habilidade e confiança se aprendem por experiência26, de forma alguma hesitante e humilhante, mas luminosa como todo conhecimento que se adquire.

O trabalho de Schwartz et al. confirma que há similaridades nas personalidades associadas ao cirurgião. Em seu relato, comparando com outras áreas, a cirurgia é onde se encontra o grupo mais homogêneo de profissionais. Segundo seus resultados eles são mais estáveis, extrovertidos, competitivos, práticos, mais ajustados ao stress diário e com menos resposta emocional20. Outros trabalhos falharam em demonstrar esta aptidão sui generis dos cirurgiões.

É esta personalidade a responsável por um comportamento típico no centro cirúrgico, o mesmo que leva ao desenvolvimento de inovações nas técnicas cirúrgicas. Personalidade de cirurgião é um conceito válido e consiste em temperamento, emotividade, atividade e sociabilidade. Segundo psicólogos, o temperamento pode ser considerado imutável, mas a personalidade pode ser dividida em 2 a 16 tipos diferentes; um exemplo é o FFM (Five Factor Model) desenvolvido por Tupes e Christal. Quem pode dizer os fatos que formam nosso caráter? A mente vive de experiências semi-lembradas, modificadas no decorrer do tempo, distorcendo a realidade passada, incluindo e retirando fatos e passagens importantes20,23.

Talvez seja mais importante que uma avaliação segmentaria, um estudo sobre diversos aspectos da profissão médica. O Instituto de Pesquisa (The Reserch Institut) de Oslo é um exemplo de avaliação permanente e independente. Ele averigua critérios de seleção de estudantes de medicina e residentes, aspectos da transição da escola médica para a vida profissional, saúde do médico e saúde no trabalho, dentre outras27. Com isso ele, de certa forma, prevê e trata o estresse psicológico, o desgaste físico e emocional. Além disso ele identifica as aptidões necessárias a cada área, e aqueles que as possuem. De outra forma, o Relatório Flexner mostrou, nos Estados Unidos, como as escolas médicas estavam despreparadas para a formação dos profissionais13.

Talves exista um um rol de características típicas que compõem a mentalidade da classe cirúrgica: (1) capacidade de liderança, (2) capacidade de lidar com a incerteza e com o imprevisto, (3) um tipo especial de relacionamento interpessoal (com outros médicos e com pacientes e famílias). A capacidade de liderança pode ser facilmente confundida com arrogância e autoritarismo; a capacidade de lidar com a incerteza e imprevisto pode ser mal interpretada como uma maior tolerância ao erro; o relacionamento interpessoal pode transparecer

Então como ensinar? Como concatenar personalidade, temperamento, aprendizado?

Iniciamos esta discussão dizendo que o aprendizado da medicina, e da cirurgia implica em ensinar a viver. Com este ponto de vista, transcrevo na íntegra uma explanação de Edgard Morin: "Aprender a viver significa preparar os espíritos para afrontar as incertezas e os problemas da existência humana. O ensinamento da incerteza que caracteriza o mundo deve partir das ciências: elas mostram o caráter aleatório, acidental, até mesmo cataclísmico, às vezes, da história do cosmos, da história da Terra, da história da vida e da história humana (...) e, enfim, a incerteza dos tempos presentes (...) A filosofia, enfim, permitirá especificar os problemas éticos da existência humana"10.

A proposta de ensino problematizadora possibilita a construção de um conhecimento crítico que leva o indivíduo a intervir na realidade que vivencia, de forma transformadora, objetiva e consciente. Esta construção crítica do conhecimento só poderá se instituir por intermédio de um ensino contextualizado sociocultural e historicamente28.

"Isto diz respeito a ensinar o essencial: a arte de organizar seu próprio pensamento, de religar e, ao mesmo tempo, diferenciar. Trata-se de contextualizar e globalizar. Trata-se de fortificar a aptidão para interrogar e a ligar o saber à dúvida, de desenvolver a aptidão para integrar o saber particular em sua própria vida e não somente a um contexto global, a aptidão para colocar a si mesmo os problemas fundamentais de sua própria condição e de seu tempo" 10. O ensino na pós-graduação vai mais longe, ele se propõe a "ensinar o aluno a duvidar do que está fazendo, saber como chegou àquela intervenção, aprender qual foi a pesquisa que originou aquele resultado que levou a decisão de aplicar tal medicação"29.

O problema do ensino médico e da cirurgia tem levado a grandes debates, discussões e livros 30-33. As mudanças das últimas décadas, com o incremento tecnológico, o avanço genético, as técnicas de reprodução assistida, geraram muitas controvérsias dentro da Medicina, mas estas dificuldades nem sempre foram transmitidas aos alunos34. Uma reformulação do currículo tem sido aprimorada com o intuito de melhorar a formação dos alunos, notadamente com vistas a formação generalista30. Entretanto, em algumas situações, se observa que a intenção da reformulação é simplificar, "conter o indispensável, o mínimo que o estudante terá que aprender da matéria para poder continuar o curso que está seguindo"30. Não necessariamente esta visão está correta. Existe uma forma melhor de ensinar: mostrar que o conhecimento é um atributo complexo, pertencente àqueles que se dedicam, mas alcançável. O indispensável é pouco! Principalmente nas ciências da vida. Aprender é difícil. Os professores não podem se contentar em ensinar o mais simples. Nas palavras de Umberto Eco, "poderíamos encorajar as pessoas a aprender a pensar difícil", pois nem a Medicina nem a Cirurgia são fáceis35.

A permanência, ou melhor, a persistência do antigo modelo de ensino, que se caracteriza pela predominância da formação técnica do cirurgião, orientada para ações eminentemente curativas, dissociadas das ciências humanas e sociais, está fadada a criar tecnocratas, robotas, agelasts, entretanto tem seu papel de formação, conquanto ensina que operar é um ato meticuloso, delicado, difícil 33,36,37.

Esta forma de aprendizado cria um caráter que não se conforma facilmente, e que entende a dificuldade do aprender e do praticar. Não obstante, ela não é suficiente. Infelizmente o ensino ainda continua com uma visão reducionista, limitada, dividida e compartimentalizada, como também buscando respostas na simplificação e na lógica28. Um modelo biocêntrico, hospitalocêntrico nas palavras do professor Eduardo Marcondes38.

A perda da humanização na medicina e o excesso tecnológico da assistência resultam em uma atuação mais ligada a estabelecer tratamentos do que realizar cuidados propriamente ditos31. É necessário o resgate da produção de conhecimentos com base na interação com a realidade, a orientação das ações do aluno, identificação do papel do profissional de saúde na sociedade ao assumir um compromisso de mudança diante de novas experiências e do desenvolvimento da capacidade de tomar decisões.

Nossa profissão é prática difícil e fascinante. Encontramos suporte nos conhecimentos científicos e no domínio técnico, ambos adquiridos na escola médica e nos hospitais-escola. O que fascina na profissão médica e principalmente na área cirúrgica, são as dificuldades e os desafios de vencê-las. Acompanhar as mudanças, inovações e descobertas é nossa obrigação31.

John Brown, no século XIX, já havia identificado estas qualidades e dificuldades: "Não pensem que os estudantes de medicina (e os residentes) não têm coração. Eles não são melhores nem piores de que vocês. Superam seus horrores profissionais e fazem seu trabalho, e neles a piedade - como emoção, terminando nela mesma, ou, na melhor das hipóteses, em lágrimas e num longo e profundo suspiro - empalidece, enquanto a piedade, como motivo, é fortalecida e ganha força e objetivo. É bom para a natureza humana que seja assim"8.

Para nós, cirurgiões, a prática é mais importante que o talento. A habilidade pode ser ensinada, tenacidade e determinação não. O aluno que aspira à especialidade cirúrgica deve possuir uma disposição ímpar de se dedicar por períodos longos a práticas difíceis, a exercitar-se26. É assim o treinamento da arte operatória: um processo, a repetição do processo e nesse continuum, acúmulo de experiência, percepção dos detalhes e compreensão de que na repetição, os atos isolados não foram realmente iguais.

Como Doyen disse, "Já é tempo de se reconhecer o fato de que ninguém pode se improvisar em cirurgião, e que não é suficiente, para constituir um operador, estar apto a manipular, mais ou menos habilmente, algumas dúzias de pinças hemostáticas"3.

Recebido em 03/01/2010

Aceito para publicação em 04/02/2010

Conflito de interesse: nenhum

Fonte de financiamento: nenhuma

Trabalho realizado no Hospital Universitário da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG - Brasil.

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  • Endereço para correspondência:
    Cleber Soares Júnior
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Aceito
      04 Fev 2010
    • Recebido
      03 Jan 2010
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