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Complicações locais após a injeção de silicone líquido industrial: série de casos

Resumos

OBJETIVO: analisar uma série de casos de pacientes submetidos à injeção de silicone líquido industrial de maneira clandestina e por pessoas não habilitadas. MÉTODOS: análise retrospectiva de prontuários de pacientes atendidos no período de setembro de 2003 a dezembro de 2010. Foram avaliados: sexo, idade, local e volume de silicone injetado, tempo decorrido entre a aplicação e as manifestações clínicas, complicações, tratamento e evolução. Definiu-se como precoce as manifestações ocorridas até 30 dias da injeção e manifestações tardias após este período. RESULTADOS: Foram atendidos 12 pacientes, oito eram do sexo masculino, sendo sete transexuais. O volume injetado variou de 5ml a 2000ml, sendo desconhecido em três casos. Os locais mais frequentemente utilizados para injeção foram a região de coxas e glúteos. Oito casos apresentaram manifestações precoces, com quadros de inflamação e/ou infecção. Foi necessária a realização de desbridamento cirúrgico em cinco casos. Três pacientes com histórico de injeção na região mamária foram submetidas à adenomastectomia. Houve um óbito por quadro de choque séptico refratário. CONCLUSÃO: O uso do silicone líquido industrial deve ser totalmente contraindicado como material de preenchimento e modificação do contorno corporal, podendo apresentar graves complicações e até mesmo óbito.

Óleos de silicone; Fasciite; Transplante de pele; Cicatrização; Infecção dos ferimentos


OBJECTIVE: To analyze a case series of patients who underwent injection of industrial liquid silicone in a clandestine manner and by unauthorized persons. METHODS: We conducted a retrospective analysis of medical records of patients treated between September 2003 and December 2010. Data regarding gender, age, location and volume of silicone injected, time between application and clinical manifestations, complications, treatment and outcome were collected. Early manifestations were defined as occurring within 30 days of injection and late manifestations, the ones arising after this period. RESULTS: We treated 12 patients, eight were male, seven transsexuals. The volume injected ranged from 5ml to 2000ml, being unknown in three cases. The most often used injected sites were the thighs and buttocks. Eight patients had early manifestations, with inflammation and/or infection. Surgical debridement was necessary in five cases. Three patients with a history of injection in the breast region underwent adenomastectomy. There was one death due to refractory septic shock. CONCLUSION: The use of industrial liquid silicone should be completely contraindicated as a filling material and modification of body contouring, and may have serious complications, even death.

Silicone oils; Fasciitis; Skin transplantation; Healing; Infection of injuries


ARTIGO ORIGINAL

Complicações locais após a injeção de silicone líquido industrial - série de casos

Daniel Francisco MelloI; Karen Chicol GonçalvesII; Murilo F. FragaIII; Luis Fernando PerinIV; Américo Helene JrV

IMestre em Cirurgia. Médico Assistente do Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (ISCMSP)

IICirurgiã Plástica

IIIDoutor em Cirurgia. Médico Assistente do Serviço de Cirurgia Plástica da ISCMSP

IVMestre em Cirurgia. Médico Assistente do Serviço de Cirurgia Plástica da ISCMSP

VDoutor em Cirurgia. Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica da ISCMSP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Daniel Francisco Mello E-mail: mello_plastica@ig.com.br

RESUMO

OBJETIVO: analisar uma série de casos de pacientes submetidos à injeção de silicone líquido industrial de maneira clandestina e por pessoas não habilitadas.

MÉTODOS: análise retrospectiva de prontuários de pacientes atendidos no período de setembro de 2003 a dezembro de 2010. Foram avaliados: sexo, idade, local e volume de silicone injetado, tempo decorrido entre a aplicação e as manifestações clínicas, complicações, tratamento e evolução. Definiu-se como precoce as manifestações ocorridas até 30 dias da injeção e manifestações tardias após este período.

RESULTADOS: Foram atendidos 12 pacientes, oito eram do sexo masculino, sendo sete transexuais. O volume injetado variou de 5ml a 2000ml, sendo desconhecido em três casos. Os locais mais frequentemente utilizados para injeção foram a região de coxas e glúteos. Oito casos apresentaram manifestações precoces, com quadros de inflamação e/ou infecção. Foi necessária a realização de desbridamento cirúrgico em cinco casos. Três pacientes com histórico de injeção na região mamária foram submetidas à adenomastectomia. Houve um óbito por quadro de choque séptico refratário.

CONCLUSÃO: O uso do silicone líquido industrial deve ser totalmente contraindicado como material de preenchimento e modificação do contorno corporal, podendo apresentar graves complicações e até mesmo óbito.

Descritores: Óleos de silicone. Fasciite. Transplante de pele. Cicatrização. Infecção dos ferimentos.

INTRODUÇÃO

O uso do silicone líquido industrial como material para modificação estética no contorno corporal é uma prática realizada de forma clandestina há cerca de 60 anos. A maioria dos relatos provém de países da Ásia e América do Sul, sendo que as vítimas são principalmente mulheres e transexuais1-3.

Inicialmente utilizado na forma pura, o silicone passou a ser adicionado a outras substâncias, como óleos vegetais e minerais, com o intuito de aumentar a resposta tecidual local e reduzir a migração relacionada à aplicação de grandes volumes. A fórmula de Sakurai, descrita no Japão, foi a mais conhecida, associando o silicone líquido com óleo de oliva1,2.

Atualmente, ainda é realizada, no nosso país, por pessoas não habilitadas e inescrupulosas, utilizando-se volumes excessivos do produto, na sua apresentação industrial, ou seja, com resíduos e não estéril. A maioria das injeções é feita no tecido celular subcutâneo, porém há casos em que se utilizam injeções intramusculares. O volume é variável, com relatos de utilização de até oito litros em uma única sessão4,5.

Inúmeras complicações são descritas referentes ao uso do silicone líquido e variam desde processos inflamatórios localizados (abscessos, fístulas, granulomas), formação de siliconomas e migração do material a inflamações sistêmicas graves, associadas ou não à infecções. A dificuldade ou até mesmo a impossibilidade em se remover o material injetado e os tecidos fibróticos e cicatriciais adjacentes, dificultam o tratamento4,5.

Devido ao número crescente destas complicações, o uso médico tornou-se restrito. Em 1994, o silicone líquido foi aprovado pelo Food and Drug Administration (FDA) apenas para uso oftalmológico, em casos de descolamento de retina, permanecendo proibido para os demais fins4.

Este trabalho tem como objetivo relatar as complicações, o tratamento e a evolução de uma série de pacientes submetidos à injeção de silicone líquido industrial e , posteriormente, tratados no Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa de São Paulo.

MÉTODOS

Foi realizada análise retrospectiva dos prontuários de pacientes admitidos para tratamento de complicações relacionadas à injeção de silicone líquido industrial, no período de setembro de 2003 a dezembro de 2010.

Foram avaliados os seguintes dados: sexo, idade, local e volume injetado, tempo decorrido entre a aplicação e as manifestações clínicas, complicações, tratamento e evolução.

O tempo decorrido entre a aplicação do produto e as manifestações clínicas foi caracterizado como precoce (<30 dias) e tardia (>30 dias).

RESULTADOS

Foram atendidos 12 pacientes, quatro do sexo feminino e oito do sexo masculino, destes, sete eram transexuais. A média de idade foi 30 anos, variando de 19 a 57 anos (Tabela 1).

As injeções de silicone líquido foram feitas na face - regiões frontal, malar (Figuras 1a e 1b) e lábio superior, mamas, glúteos (Figuras 2a e 2b) e coxas - regiões lateral e posterior (Figuras 3a e 3b).




Todos os pacientes referiram com clareza o tipo de material injetado em seu organismo, realizado em ambiente não hospitalar e por indivíduos não habilitados. Os volumes utilizados variaram de 5ml a 2000ml, sendo desconhecidos em três casos.

Em oito pacientes observaram-se manifestações precoces, relacionadas diretamente à manifestações inflamatórias e infecciosas, sendo observados edema, eritema, alterações cutâneas isquêmicas e fasciites.

Dos quatro pacientes em que foram observadas manifestações tardias, houve um caso de infecção em planos profundos, com necessidade de tratamento cirúrgico, em paciente que permaneceu assintomático por dez anos após a injeção do produto. Nos três casos restantes houve aplicação na região das mamas, com manifestações de mastite crônica, sendo que em duas pacientes houve desenvolvimento de abscessos e fístulas.

Todos os pacientes receberam inicialmente tratamento clínico conservador com anti-inflamatórios não hormonais, corticosteroides e antibioticoterapia sistêmica. Utilizou-se a associação entre oxacilina e gentamicina; em seis casos, considerados graves, também foi utilizado o metronidazol.

A oxigenioterapia hiperbárica foi utilizada em dois casos; no primeiro como complementação ao tratamento clínico, sendo que não houve necessidade de tratamento cirúrgico; no segundo, como complementação após desbridamento cirúrgico, com o objetivo de melhora na granulação da área cruenta para a realização de enxertia de pele parcial.

Em quatro pacientes do grupo de manifestações precoces e em um caso do grupo tardio, foi necessária a realização de desbridamento cirúrgico, devido à presença de isquemia e/ou necrose de pele e tecido subcutâneo ou quadro de infecção estabelecido (abscessos, fístulas e fasciites). A área cruenta resultante foi mantida inicialmente com trocas diárias de curativos e pequenos desbridamentos complementares (Figura 4), até melhora nas condições locais (tecido de granulação), sendo posteriormente realizada a autoenxertia de pele parcial (Figura 5).



Em três pacientes com histórico de injeção do produto nas mamas, foi necessária a realização de adenomastectomia, devido à mastite crônica. Uma destas pacientes apresentava histórico de drenagem de abscesso na mama 15 dias após a injeção do silicone líquido. Foram utilizadas opções distintas de reconstrução para cada caso, com a realização de reconstrução com retalho transverso miocutâneo do músculo reto abdominal (TRAM) bilateral (um caso), mastopexia com o tecido mamário residual (um caso), submetido à adenomastectomia parcial (Figura 6) e utilização de próteses de silicone em um caso.


Houve um óbito devido a quadro de choque séptico refratário, secundário à fasciíte necrótica. Tratava-se de paciente portador de SIDA, em tratamento para sífilis secundária, submetido à injeção de 1000ml (em cada lado), na região posterior da coxa. Após seis dias, houve desenvolvimento de necrose e abscessos locais; evidenciou-se quadro de fasciíte no desbridamento inicial, realizado no segundo dia de internação. Mesmo com a realização de desbridamentos complementares e suporte intensivo não houve melhora clínica, com óbito no quinto dia de internação.

Não foi possível o seguimento de oito dos 11 pacientes após a alta hospitalar, sendo que os demais se encontram em acompanhamento ambulatorial com resultados satisfatórios e sem outras complicações relatadas até o momento.

DISCUSSÃO

Em relação às características físico-químicas, os dimetilsiloxanos são substâncias derivadas da polimerização da sílica, oxigênio e metano. As viscosidades encontradas são resultados de diferentes graus de polimerização e número de ligações cruzadas entre as moléculas. A unidade de referência para a viscosidade é o centistoke (cS), utilizando-se como referência a água (100 cS). Podem ser encontrados produtos de 20cS a 12.500cS4,5.

Além do silicone líquido, outras séries relatam o uso de substâncias como parafinas, óleos minerais e fluidos para transmissão automotiva. Estas substâncias promovem um tipo similar de reação tecidual anátomo-patológica, chamada de lipogranulomatose esclerosante5-7. O termo siliconoma foi primeiramente utilizado em 1965, por Sternberg e Winer, para caracterizar a reação de corpo estranho similar às descritas após injeção de óleo e parafina4,7.

As complicações locais após injeções de silicone líquido industrial vão desde alterações na coloração e consistência da pele com a formação de nódulos e granulomas a intenso processo inflamatório, com necrose e ulcerações, formação de abscessos e fístulas, eliminação do material injetado, retrações e deformidades cicatriciais1-6,8.

Devido ao potencial elevado de migração do material, relacionado à utilização de maiores volumes, as alterações teciduais podem ser identificadas em locais distantes daqueles em que o silicone foi injetado. O acometimento de linfonodos regionais e a infiltração de tecidos adjacentes podem ser encontrados em longo prazo. Afecções respiratórias como o edema pulmonar e a pneumonite são descritas como complicações sistêmicas e podem ocasionar o óbito2,3,5,7,9,10.

O aparecimento do quadro agudo inflamatório/infeccioso como manifestação precoce, presente em oito casos neste estudo, não é comum. Encontra-se na literatura intervalos sem manifestações clínicas de três a 20 anos, com média de seis a dez anos1,4,11. Hage et al. em atendimento a 15 transexuais, observou um intervalo de seis meses a 17 anos, com média de seis anos3.

O tratamento clínico com o uso de anti-inflamatórios, anti-histamínicos, corticoesteroides e antibióticos sistêmicos, pode ser indicado para todos os casos inicialmente. Estas medidas se mostraram suficientes nos casos de eritema, edema e celulite. Para os casos de tratamento clínico exclusivo é recomendado o uso de amoxacilina e clavulanato por via endovenosa, por sete dias, seguida de clindamicina VO por 12 semanas3. Pequenas áreas de isquemia e necrose cutâneas também podem eventualmente ser tratadas de maneira conservadora.

Diversos autores preconizam o uso de corticosteroides sistêmicos e intralesionais, na presença de granulomas, além de imunomoduladores tópicos como o Imiquimod (Aldara®) 1,2,3,7,8.

Foi utilizada a oxigenioterapia hiperbárica em dois pacientes, com melhora na evolução. Freitas et al.5 relataram a utilização deste método em um caso de injeção na região mamária, com melhora clínica importante. Apesar de não ter sido utilizada nos casos desta série, também deve ser considerada a utilização de curativos aspirativos como, por exemplo, o sistema VAC®.

A aspiração com cânulas não é técnica recomendada para tratamento dos siliconomas, uma vez que a fibrose tecidual torna difícil a remoção por este método e há risco de lesão às áreas adjacentes não acometidas3,12. Zandi publicou o primeiro caso em que a técnica aspirativa foi realizada com sucesso, porém, ele mesmo, considerou este método inadequado, devido ao insucesso em outros 20 procedimentos, mantendo a excisão cirúrgica como tratamento padrão para os siliconomas12.

Para Chui e Fong o uso da vaporização com laser de CO2 mostrou-se um tratamento efetivo para pequenos siliconomas faciais que apresentavam nodularidades palpáveis ou deformidades visíveis, podendo ser necessária mais de uma sessão para remoção. Havendo injeção de volumes maiores, pode ser necessário o emprego da excisão cirúrgica8.

A adenomastectomia mostrou-se, em muitos casos, o tratamento mais indicado para a remoção dos siliconomas mamários e tratamento do quadro de mastite crônica, podendo ser realizada a reconstrução mamária, seja com implantes ou retalhos9,11. Embora os efeitos nocivos da injeção de silicone líquido nas mamas tenham sido bem documentados, não há evidências de que seu uso esteja associado ao surgimento do câncer mamário3,11, entretanto as alterações clínicas e mamográficas podem dificultar o diagnóstico diferencial de lesões.

O tratamento cirúrgico deve ser indicado na fase aguda na presença de áreas de isquemia/necrose mais extensas ou profundas, bem como, nos casos de abscessos, fístulas e fasciites. Normalmente não se realiza a cobertura das áreas cruentas no mesmo tempo cirúrgico, tendo em vista a necessidade eventual de desbridamentos secundários ou resíduos do produto. A principal opção utilizada para cobertura das áreas cruentas é a realização de autoenxertia de pele. Em casos selecionados, pode ser realizada a síntese primária ou utilização de retalhos.

A remoção completa do silicone líquido injetado é difícil ou até mesmo impossível, não havendo dessa forma, nenhum tratamento específico. Sempre que possível, deve-se limitar a ressecção aos siliconomas e tecidos comprometidos, tendo em vista as sequelas locais de ressecções mais extensas3-5,7,12.

Diante do presente estudo, pode-se concluir que o uso do silicone líquido industrial é uma prática que deve ser totalmente contraindicada para finalidades estéticas, visto que as complicações podem ser graves e de difícil tratamento.

Recebido em 03/06/2012

Aceito para publicação em 01/08/2012

Conflito de interesse: nenhum

Fonte de financiamento: nenhuma

Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo - ISCMSP.

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  • Endereço para correspondência:
    Daniel Francisco Mello
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013

    Histórico

    • Recebido
      03 Jun 2012
    • Aceito
      01 Ago 2012
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