Resumos
Relatamos um caso de triploidia fetal não-molar detectada na 20ª semana gestacional por cordocentese realizada em razão de estudo ultra-sonográfico que revelou retardo do crescimento intra-uterino e grave oligoidrâmnio. Na 19ª semana foram verificados acentuada diminuição da subunidade beta livre da gonadotrofina coriônica humana e do estriol não-conjugado e níveis de alfa-fetoproteína normais, apontando para um risco aumentado de síndrome de Edwards. Houve morte fetal um dia após a cordocentese e a resolução do caso foi por parto vaginal induzido com misoprostol e ocitocina, sob analgesia peridural. Estudo cromossômico das células sangüíneas fetais revelou o cariótipo 69,XXX. O grave retardo do crescimento intra-uterino, a macrocefalia, constatada no estudo anatomopatológico do feto, e os níveis muito baixos de hCG e de estriol não-conjugado sugerem um caso de triploidia por diginia, fertilização de um óvulo diplóide por um espermatozóide haplóide.
Crescimento intra-uterino retardado; Gonadotrofinas; Malformações fetais; Diagnóstico pré-natal
We report a case of nonmolar fetal triploidy detected by fetal blood sampling at 20 weeks of gestation, performed as an investigation of intrauterine growth retardation and severe oligohydramnios found by ultrasound scan. At 19 weeks of gestation very low levels of maternal free serum beta-subunit of human chorionic gonadotropin and unconjugated estriol, and normal levels of alpha-fetoprotein were found, which were interpreted as a high risk of fetal Edwards syndrome. Fetal death supervened the day after fetal blood sampling, and the pregnancy was terminated by vaginal delivery induced by misoprostol and oxytocin, under epidural anesthesia. Chromosome study of the fetal blood cells showed a 69,XXX karyotype. The severe intrauterine growth retardation and macrocephaly noted on pathological review plus the very low levels of hCG and unconjugated estriol suggest a fetal gynoid triploidy case, caused by the fertilization of a diploid egg by a haploid sperm.
Intrauterine growth retardation; Human chorionic gonadotropin; Fetal malformations
Relato de Caso
Triploidia Fetal Associada à Diminuição da Subunidade b e do Estriol Não-Conjugado no Soro Materno
Fetal Triploidy Associated With Low Levels of Unconjugated Estriol and Beta-Subunit in Maternal Serum
Eduardo Vieira Neto1, Luiz Fernando Zingoni2, Armando A. Fonseca1
RESUMO
Relatamos um caso de triploidia fetal não-molar detectada na 20a semana gestacional por cordocentese realizada em razão de estudo ultra-sonográfico que revelou retardo do crescimento intra-uterino e grave oligoidrâmnio. Na 19a semana foram verificados acentuada diminuição da subunidade beta livre da gonadotrofina coriônica humana e do estriol não-conjugado e níveis de alfa-fetoproteína normais, apontando para um risco aumentado de síndrome de Edwards. Houve morte fetal um dia após a cordocentese e a resolução do caso foi por parto vaginal induzido com misoprostol e ocitocina, sob analgesia peridural. Estudo cromossômico das células sangüíneas fetais revelou o cariótipo 69,XXX. O grave retardo do crescimento intra-uterino, a macrocefalia, constatada no estudo anatomopatológico do feto, e os níveis muito baixos de hCG e de estriol não-conjugado sugerem um caso de triploidia por diginia, fertilização de um óvulo diplóide por um espermatozóide haplóide.
PALAVRA-CHAVES: Crescimento intra-uterino retardado. Gonadotrofinas. Malformações fetais. Diagnóstico pré-natal.
Introdução
A triploidia pode ocorrer como resultado da fertilização de um óvulo normal haplóide por 2 espermatozóides normais (dispermia), da fertilização de um óvulo diplóide (erro na meiose materna I ou II) por um espermatozóide haplóide, ou da fertilização de um óvulo haplóide por um espermatozóide diplóide (erro na meiose paterna I ou II). Em 60-70% dos casos é o resultado da presença de um conjunto extra de cromossomos paternos por dispermia5.
A triploidia está presente em 1-2% das gestações em seres humanos. No entanto, é absolutamente excepcional o seu achado em recém-nascidos a termo, pois a maioria dos casos termina em aborto espontâneo, geralmente no período embrionário. Com efeito, cerca de 15% dos produtos de abortamento espontâneo com anomalias cromossômicas são triplóides3, 6.
Caracteristicamente, estes conceptos triplóides abortados espontaneamente são descritos como molas hidatiformes parciais, sendo resultantes de dispermia ou diandria, conduzindo a níveis elevados de gonadotrofina coriônica humana (hCG) no soro materno10.
No entanto, alguns conceptos triplóides sobrevivem até estágios mais avançados da gravidez. Estes fetos apresentam um conjunto extra de cromossomos maternos e sofrem grave retardo do crescimento intra-uterino, como resultado de insuficiência placentária. Nestes casos os níveis de hCG e do estriol não-conjugado (uE3) no soro materno são muito baixos.
Relatamos um caso de triploidia fetal que cursou com grave retardo do crescimento intra-uterino, níveis muito baixos da subunidade beta livre da gonadotrofina coriônica humana (beta-hCG livre) e do uE3 no soro materno e com sobrevivência do concepto até o 2o trimestre gestacional.
Discutimos a diversidade fenotípica dos fetos triplóides e da função placentária nesta circunstância e sugerimos, a partir dos dados ultra-sonográficos, bioquímicos e anatomopatológicos, uma origem para o conjunto extra de cromossomos neste caso.
Relato do Caso
Paciente RCMK, 29 anos, caucasiana, casada, do lar, gesta I, para 0. Procurou um dos autores (LFZ) em 15/03/1996, em consultório particular em Poços de Caldas, MG; referia DUM em 22/01/1996, estando portanto com 7 semanas e 4 dias de amenorréia (DPP para 28/10/1996). A gravidez foi confirmada por teste qualitativo positivo de beta-hCG urinário e por ultra-sonografia em 01/04/1996, que evidenciou saco gestacional íntegro contendo embrião único, vivo, com freqüência cardíaca (FC) de 183 bpm e biometria compatível com idade gestacional de 8 semanas.
A paciente negava história anterior de diabetes mélito ou outras patologias endócrinas, infecciosas ou tumorais.
Os exames laboratoriais de rotina pré-natal assim se apresentaram: grupo sangüíneo A, fator Rh (+); grupo sangüíneo do cônjuge O, fator Rh (+); VDRL (-); anticorpos anti-Toxoplasma gondii IgG (-) e IgM (-); glicose 72 mg/dl; hemograma e exame de urina tipo 1 normais.
Na 2a consulta, em 18/06/1996, foi constatado, ao exame clínico, crescimento uterino não-compatível com a idade gestacional e FC fetal basal de 156 bpm, com freqüentes episódios de bradicardia de até 80 bpm. A gestante foi encaminhada a estudo ultra-sonográfico em 20/06/1996, que revelou idade gestacional compatível com 18 semanas, feto com retardo de crescimento intra-uterino, FC fetal arrítmica, com episódios bradicárdicos, ausência de movimentos ativos fetais e oligoidrâmnio grave. Nova ultra-sonografia foi executada em 25/06/1996, revelando o mesmo quadro da ultra-sonografia anterior.
Em 26/06/96, com 19 semanas e 1 dia de gestação, foi feita coleta de sangue materno para rastreamento pré-natal da síndrome de Down e de defeitos de tubo neural. Foram obtidos os seguintes resultados: alfa-fetoproteína (AFP) = 110,2 UI/ml; estriol não-conjugado (uE3) = 2,0 nmol/l e b-hCG livre = 0,9 ng/ml. Ajustando estes resultados para o peso materno e comparando-os com as medianas de gestações não afetadas de mesma idade gestacional obtidas pelos autores em estudo prévio11, obtivemos os seguintes múltiplos da mediana (MoM): AFP = 2,03 MoM; uE3 = 0,28 MoM e b-hCG livre = 0,10 MoM. Estes valores apontaram para níveis muito baixos tanto de uE3 quanto de b-hCG livre, mas para níveis de AFP na faixa superior da normalidade. A análise feita pelo "software" Alpha (Logical Medical Systems, Londres, Reino Unido), levando em consideração os dados bioquímicos e a idade materna, apontou para um risco de síndrome de Edwards fetal superior a 1 em 300 a termo, já que nesta síndrome caracteristicamente são encontrados níveis baixos dos marcadores bioquímicos de soro materno. Havia, portanto, uma indicação de procedimento diagnóstico invasivo para investigação citogenética.
Nova ultra-sonografia realizada em 03/07/1996 revelou acentuação do oligoidrâmnio, agora com a quase ausência de líquido amniótico, e feto com retardo do crescimento.
A gestante foi então encaminhada a outro serviço, onde foram efetuadas ultra-sonografia morfológica de alta resolução e coleta de sangue fetal por cordocentese, para estudo citogenético. O estudo ultra-sonográfico de alta resolução, realizado em 16/07/96, mostrou idade gestacional compatível com 20 semanas, feto portador de agenesia parcial do vérmix cerebelar, dolicocefalia, tórax e abdome estreitos, rins não-visíveis, ausência de imagem vesical e oligoidrâmnio acentuado. Neste mesmo dia foi efetuada coleta de sangue fetal por cordocentese. Houve morte fetal um dia após a cordocentese, em 17/07/96. Em 18/07/96 houve resolução do caso por parto vaginal induzido com misoprostol e ocitocina, sob analgesia peridural.
O estudo citogenético dos linfócitos do sangue fetal obtido por cordocentese mostrou o cariótipo 69,XXX, indicativo de feto triplóide. O estudo anatomopatológico do feto mostrou peso fetal de 340 g com 17,5 cm de comprimento cabeça-nádega, sindactilia do 3o e 4o quirodáctilos, à direita e à esquerda, e macrocefalia. Macroscopicamente não foram identificados os órgãos da genitália interna, porém na microscopia, acolado à bexiga urinária, notou-se uma estrutura que sugeriu útero rudimentar.
Posteriormente a paciente teve nova gravidez em 20/04/98, com parto normal a termo de feto feminino normal, pesando 2.925 g.
Discussão
Bogart et al.1 foram os primeiros a relatar um caso de níveis muito baixos de hCG no soro materno associados à triploidia fetal (69,XXX). Fejgin et al.2 referiram três casos de triploidia fetal (69,XXX) no 2o trimestre gestacional, diagnosticados por amniocentese, indicada devido a níveis muito baixos de hCG do soro materno. Todos os três casos também apresentaram níveis baixos de uE3 no soro materno e dois deles apresentaram acentuado retardo do crescimento intra-uterino.
Schmidt et al.9 descreveram 6 casos de triploidia fetal (69,XXX), dos quais 5 com retardo do crescimento intra-uterino. Todos os casos apresentaram níveis normais de AFP, mas 5 casos apresentaram níveis muito baixos de hCG, e em três casos os níveis de uE3 se mostraram baixos.
O caso por nós relatado de triploidia fetal (69,XXX) e grave retardo do crescimento intra-uterino, acompanhado de níveis muito baixos (0,10 MoM) de beta-hCG livre, de níveis baixos de uE3 (0,28 MoM) e de níveis de AFP na faixa superior da normalidade, vem corroborar os achados de Fejgin et al.2 e de Schmidt et al.9.
McFadden e Kalousek8 observaram dois fenótipos distintos entre 19 fetos, natimortos e recém-nascidos vivos com triploidia, que foram correlacionados com a origem parental do conjunto haplóide extra. Fetos do tipo I (2 casos) apresentavam crescimento relativamente normal, microcefalia e placenta grande e cística. Por outro lado, fetos do tipo II (17 casos) apresentavam retardo do crescimento intra-uterino, macrocefalia relativa e placenta pequena e não-cística. Num caso de feto do tipo I, foi demonstrado que o conjunto haplóide extra era de origem paterna, ao passo que num caso de feto do tipo II foi provado que a triploidia se devia a um erro na gametogênese materna (triploidia por diginia). Podemos deduzir que os fetos do tipo I com placenta grande e cística devem induzir níveis elevados de hCG no soro materno, ao passo que fetos do tipo II, com placentas ineficientes, devem induzir níveis baixos de hCG no soro materno.
Estudos em animais demonstraram claramente que a origem parental de parte ou de todo o genoma pode ter um impacto significativo sobre o fenótipo do concepto. Este efeito tem sido atribuído a um fenômeno denominado imprinting genômico4. Quando o produto da concepção é de origem exclusivamente paterna, pela substituição do pró-núcleo materno por um pró-núcleo paterno, resulta no desenvolvimento exagerado do trofoblasto (mola completa) e atrofia ou supressão do desenvolvimento embrionário; por outro lado, uma constituição exclusivamente materna, pela substituição do pró-núcleo paterno por um pró-núcleo materno, resulta na hipoplasia das estruturas extra-embrionárias e desenvolvimento inicialmente normal do embrião.
Nosso caso, que apresentou acentuado retardo do crescimento intra-uterino, verificado em várias ultra-sonografias, e macrocefalia, constatada no estudo anatomopatológico, se enquadra na descrição de feto tipo II de McFadden e Kalousek8, sendo provavelmente um caso de triploidia por diginia. Sugerimos que a causa dos níveis muito baixos de hCG foi a insuficiência placentária, fato que foi corroborado pelos níveis baixos de estriol, um conhecido marcador de bom funcionamento placentário.
A maioria dos conceptos triplóides por diandria ou dispermia são abortados no 1o trimestre, ao passo que os conceptos triplóides por diginia predominam nos estágios mais tardios da gravidez, apesar de apresentarem placentas ineficientes. A explicação para este fato ainda não está clara, mas McFadden e Kalousek8 levantaram a hipótese de uma maior incidência de mosaicismo confinado à placenta no caso de fetos do tipo II, com o citotrofoblasto diplóide produzindo uma compensação funcional. Kalousek et al.7 já haviam demonstrado que os conceptos com trissomia do 13 ou do 18 com maior sobrevida intra-uterina mais comumente apresentam mosaicismo confinado à placenta com o citotrofoblasto mosaico contendo uma linhagem celular diplóide normal.
O fato de que, além de fetos triplóides por diginia, fetos com trissomia do 18 também estejam associados a retardo do crescimento intra-uterino e níveis muito baixos de hCG no soro materno pode ser indicativo de que a amniocentese visando a estudo citogenético deva ser recomendada a gestantes com níveis muito baixos (£ 0,20 múltiplos da mediana) de hCG no 2o trimestre gestacional, desde que haja evidências ultra-sonográficas de retardo do crescimento intra-uterino. Este protocolo detectaria o caso por nós descrito neste artigo e 7 dos 9 casos (88%) de triploidia fetal relatados por Fejgin et al.2 e por Schmidt et al.9, pois apenas 2 casos (22%) apresentaram-se normais ao ultra-som, apesar de estarem associados a níveis baixos de hCG e de uE3 no soro materno.
SUMMARY
We report a case of nonmolar fetal triploidy detected by fetal blood sampling at 20 weeks of gestation, performed as an investigation of intrauterine growth retardation and severe oligohydramnios found by ultrasound scan. At 19 weeks of gestation very low levels of maternal free serum beta-subunit of human chorionic gonadotropin and unconjugated estriol, and normal levels of alpha-fetoprotein were found, which were interpreted as a high risk of fetal Edwards syndrome. Fetal death supervened the day after fetal blood sampling, and the pregnancy was terminated by vaginal delivery induced by misoprostol and oxytocin, under epidural anesthesia. Chromosome study of the fetal blood cells showed a 69,XXX karyotype. The severe intrauterine growth retardation and macrocephaly noted on pathological review plus the very low levels of hCG and unconjugated estriol suggest a fetal gynoid triploidy case, caused by the fertilization of a diploid egg by a haploid sperm.
KEY WORDS: Intrauterine growth retardation. Human chorionic gonadotropin. Fetal malformations.
Referências
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Mar 2007 -
Data do Fascículo
Maio 1999