Open-access O desafio de reduzir a mortalidade por câncer do colo do útero

The challenge of reducing mortality due to cervical cancer

EDITORIAL

O desafio de reduzir a mortalidade por câncer do colo do útero

The challenge of reducing mortality due to cervical cancer

Luiz Carlos Zeferino

Livre Docente, Professor do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas – FCM-Unicamp – Campinas, (SP), Brasil

Correspondência Correspondência: Luiz Carlos Zeferino Rua Alexander Fleming, 101 Cidade Universitária Zeferino Vaz CEP 13083-970 – Campinas/SP Fone: (19) 3521-8008/Fax: (19) 3521-8010 E-mail: zeferino@hc.unicamp.br

Em Recife, os óbitos por câncer do colo do útero são mais freqüentes em mulheres na idade adulta, negras, sem companheiro, donas de casa, residentes em bairros com baixa condição de vida e atendidas na rede hospitalar do Sistema Único de Saúde (SUS), existindo diferenças no risco de morte entre as faixas etárias e o local de residência. É o que concluiu o estudo de Mendonça et al.1 intitulado "Mortalidade por câncer do colo do útero: características sociodemográficas das mulheres residentes na cidade do Recife, Pernambuco"publicado nesse fascículo, o qual passo a comentar.

Os autores citaram uma revisão sistemática sobre o tema, que mostrou que a não realização do exame citológico no Brasil associa-se à baixa escolaridade, ao baixo nível socioeconômico, à baixa renda familiar, à vivência sem companheiro, à cor parda, ao uso de contraceptivo oral, à ausência de problemas ginecológicos, à vergonha ou ao medo em relação ao exame, ao fato de não ter realizado consulta médica no ano anterior à pesquisa, à dificuldade de acesso à assistência médica, à ausência de solicitação médica e à não realização do auto-exame das mamas no ano que antecedeu a pesquisa2.

Tentando compreender melhor o problema, é evidente que a mortalidade por câncer do colo do útero tende a ser mais alta em população de baixo nível socioeconômico, porém, esse fato não pode ser generalizado3. Países árabes que compõem o Oriente Médio, mais Afeganistão e Paquistão, apresentam taxas de mortalidade muito baixas porque as taxas de incidência também são muito baixas4. Esse fato pode ser explicado pelas características do comportamento sexual do homem e da mulher, no caso possivelmente em virtude da influência religiosa e cultural5. Da mesma forma, é bem sabido que a mortalidade por câncer do colo do útero nos países da região do deserto do Saara é menor do que nos demais países africanos4.

Assim, o indicador que parece estar mais associado com baixo nível socioeconômico e más/péssimas condições de saúde é a proximidade entre as taxas de incidência e de mortalidade, ou seja, em países com população muito pobre, a maioria das mulheres que apresentam câncer do colo do útero morre por essa doença, independente do nível da taxa de incidência3. Exemplificando, as taxas de incidência e mortalidade, respectivamente, são: no Reino Unido, 8,3 e 3,1 por 100.000/ano e nos Estados Unidos, 7,7 e 2,33. Em países não desenvolvidos, as mesmas taxas são: Arábia Saudita, 4,6 e 2,5; Irã, 4,4 e 2,4; e Tunísia, 6,8 e 5,52.

Independente do nível inicial de incidência do câncer do colo do útero, os países que implantaram um programa de rastreamento reduziram a incidência para menos de dez casos por 100.000 mulheres/ano6. Obviamente não é o caso do Brasil, pois dados dos registros populacionais de câncer de várias cidades brasileiras mostram incidência padronizada, variando entre 50,7/100.000 mulheres/ano em Brasília e até 14,3/100.000/ano em Salvador, sendo que, em Recife, foi de 26,2 casos/100.000 mulheres/ano para o período entre 1995 e 19987. Para estes níveis de incidência, estimam-se entre 8 e 20 mortes/100.000 mulheres/ano.

Dados oficiais sobre mortalidade por câncer do colo do útero no Brasil variam entre 5 e 6 mortes/100.000 mulheres/ano8, enquanto que dados da Agência Internacional de Pesquisa do Câncer (IARC, do inglês International Agency for Research on Cancer) estimaram que, em 2002, a mortalidade por essa neoplasia no Brasil foi de 10,2 mortes/100.000 mulheres/ano3. Se os dados oficiais estiverem corretos, nós não podemos afirmar que o câncer do colo do útero seja uma importante causa de mortalidade em mulheres no Brasil. No estudo de Mendonça et al.1, os autores revisaram a declaração de óbito por meio dos prontuários médicos das pacientes e encontraram 50% de câncer do colo útero nos casos que reportavam como causa apenas "câncer do útero em porção não especificada", o que elevou a taxa de mortalidade por câncer do colo do útero em cerca de 20%. Portanto, os resultados apresentados demonstram que os dados oficiais estão subestimados e que a mortalidade real deve estar mais próxima dos dados apresentados pela IARC.

Mas, como poderíamos usar os resultados apresentados em benefício dessa população de estudo?

Na tentativa de responder a essa questão, pareceu-me necessário construir dois grupos de fatores: o primeiro grupo relacionado à mulher e outro relacionado aos serviços de saúde. No primeiro grupo, há uma grande inter-relação entre os fatores que caracterizam as condições sociais das mulheres, mas a escolaridade é um fator importante e quase unanimemente citado nos estudos2. Isso significa que mais educação promoveria inclusão social. Ainda que seja uma ação que produza resultados em médio e longo prazo, é algo que precisa ser permanentemente realizado, o que está nas mãos dos governantes.

O segundo grupo compõe-se de fatores em relação aos quais poderíamos atuar mais em curto prazo e estão mais em nossas mãos. Atualmente, o sistema de saúde ainda não consegue identificar de forma sistematizada quais são e onde estão as mulheres que não estão fazendo regularmente seus controles – que são a maioria das que irão desenvolver câncer invasor. No Brasil, cerca de 80% dos controles ainda são feitos quando a mulher procura os serviços de saúde por razões ginecológicas ou obstétricas9. Na prática, os controles concentram-se nas mesmas mulheres, enquanto que um contingente significativo fica sem controles ou é inadequadamente controlado10.

Para a grande parte dos Estados brasileiros, o total de exames citológicos que têm sido realizados seria suficiente para garantir a cobertura de 70 a 80% de controles periódicos e regulares pelo SUS. Como o setor privado já cumpre seu papel com a população restante, teríamos uma cobertura altíssima. Na Inglaterra, independentemente de as mulheres terem melhor escolaridade do que as brasileiras, foram evidentes o aumento de cobertura e a redução da mortalidade por câncer do colo do útero quando foi introduzida a convocação periódica das mulheres para realizar exame citológico, ou seja, o que fez a diferença foi uma ação relacionada à melhor organização do sistema11. Dados semelhantes estão disponíveis para outros países europeus.

Mas fazer exame de rastreamento não é suficiente para garantir que a mortalidade irá diminuir. É necessário que as mulheres que tenham um exame alterado recebam tratamento adequado; porém, há evidências de que um percentual significativo de mulheres que são encaminhadas para avaliação colposcópica não chega a fazê-la, e o sistema de saúde também não é eficiente para controlar adequadamente esse evento.

Enfim, o eficiente controle do câncer do colo uterino está diretamente relacionado com a qualidade do sistema de saúde, que além de identificar as mulheres que precisam fazer controles, deveria oferecer: 1) qualidade para garantir diagnóstico correto e realizar tratamento preciso; 2) acesso fácil e ágil aos serviços; 3) flexibilidade para marcar e remarcar consultas e 4) rapidez no atendimento.

Esses componentes estão presentes nos serviços privados, mas não estão nos serviços públicos. Uma pessoa com uma dor intensa irá procurar os serviços de saúde independente das dificuldades de acesso, mas uma mulher assintomática não se submeterá às mesmas dificuldades para fazer um exame citológico preventivo. Assim, infelizmente, a possibilidade de uma mulher ter acesso a um serviço de saúde mais ágil depende muito de sua ascensão social. Dar conseqüência aos resultados do estudo de Mendonça et al.1 significaria intervir nesse ciclo vicioso e construir um eficiente sistema de saúde não somente para os excluídos sociais.

Recebido: 19/5/08

Aceito com modificações: 30/5/08

Referências bibliográficas

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  • 6. Bray F, Loos AH, McCarron P, Weiderpass E, Arbyn M, Møller H, et al. Trends in cervical squamous cell carcinoma incidence in 13 European countries: changing risk and the effects of screening. Cancer Epidemiol Biomarkers Prev. 2005;14(3):677-86.
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  • 8 Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer. Atlas de mortalidade por câncer no Brasil 1979-1999 [Internet]. Brasília(DF):INCA; c2003. [citado 2008 Mai 16].Disponível em: http://www.inca.gov.br/atlas/docs/represent_espac_UTERO.pdf
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Maio 2008
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