Resumo
Resumo: O presente manuscrito tem por objetivo apresentar uma resenha da obra Júbilo ou os tormentos do discurso religioso, do antropólogo, sociólogo e filósofo francês Bruno Latour. Esta reflete aspectos da religião enquanto modo de existência, e suas balizas na produção de saberes. Tal realoca os discursos religiosos enquanto potentes e passíveis de diálogos e reflexões juntamente a modos de existências científicos, artísticos e do direito, instiga o pensar os respectivos modos de elaborar mundos-existências e suas possibilidades para o pensar.
Palavras-chave:
Sociedade; Religião; Ontologia; Modos de Existência; Saberes.
Já há alguns anos, o antropólogo, sociólogo e filosofo francês Bruno Latour tem se dedicado a compreender os modos de compor existências partindo da produção de saberes. O assunto é introduzido no Brasil por meio dos múltiplos seguimentos que compõem os estudos das humanidades, destacando-se nos estudos de laboratório e nas constituições das ciências. Suas obras ganharam popularidade à medida que se consolidaram como instrumental para o desenvolvimento de analíticas epistemológicas - ou seja, análise de como os conhecimentos e saberes são produzidos em suas especificidades-singularidades. Seus livros: Jamais fomos modernos (1991)1 1 LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1991. , Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora (2000)2 2 LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, 2000. , A esperança de Pandora - ensaios sobre a realidade dos estudos científicos (2017)3 3 LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. São Paulo: Editora UNESP, 2017. , Políticas da Natureza - como associar as ciências à democracia (2004)4 4 LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: EdUSC, 2004. , Reagregando o social: uma introdução a teoria ator rede (2012)5 5 LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador/Bauru: EDUFBA/EDUSC; 2012. e A fabricação do direito - um estudo de etnologias jurídica (2019)6 6 LATOUR, Bruno. A fabricação do direito: um estudo de etnologia jurídica. São Paulo: Editora UNESP, 2019. , dentre outros, tornaram-se ponto de passagem obrigatórias para os que estudam as mediações coletivas do mundo contemporâneo.
Os investimentos para compreender como campos específicos constituem seus modos de conhecer descrevem que as ciências elaboram saberes por suas técnicas, o direito pela elaboração de processos e o discurso religioso pela palavra e suas narrativas. Seu olhar para o discurso religioso destaca-se principalmente em três obras: i) o artigo “Não congelarás a imagem, ou: como não desentender o debate ciência-religião”7 7 LATOUR, Bruno. “Não congelarás a imagem, ou: como não desentender o debate ciência-religião”. Mana, v. 10, n. 2, 2004, p. 349-376. ; ii) o livro Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos (2019)8 8 LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2019. ; e iii) o livro lançado em francês pela editora La Découverte, em 2013, mas apenas em 2020 traduzido para o português: Júbilo ou os tormentos do discurso religiosoLATOUR, Bruno . Júbilo ou os tormentos do discurso religioso. São Paulo: Editora Unesp, 2020, 144pp..
Em Júblio, o antropólogo é provocativo no estilo da escrita, leva a noção de prosa ao limite ao não demarcar o texto em capítulos ou eixos; lança mão de uma ensaística escrita em continuidade, de modo fluido e ligeiramente intrigante, ao radicalizar a noção de pedagogia: em uma manobra refinada, não dá espaço para que possamos interromper a leitura.
Bruno Latour dedica-se centralmente a retratar os modos operantes do discurso religioso na constituição de saberes e modos de existir. A tese central da obra, para o nosso olhar, é situar a religiosidade como um modo de produzir saberes-existências e situar-se no mundo a partir da palavra que aproxima e instaura unidades por processos de tradução, no sentido em que narra tempos passados, valorações, condutas, e as conectando-transpondo ao presente. A tradução para Latour consiste em um processo de deslocamento, invenção, criação de uma conexão que não existia antes. Sempre em tal processo do traduzir, os agentes-atores envolvido são modificados em algum grau. A tradução é sempre transformativa e mediativa, sempre metamorfoseia os saberes-elementos envolvidos no processo.
Em alguma medida, a insistência de Latour nesse tema em várias obras constitui a forma peculiar com que o antropólogo vai consolidando sua filosofia e seu estilo irônico e do instigar os leitores que pretendam enclausurar os sentidos de sua escrita. A tradução em Latour é uma poética incapaz de conservar alguma melodia essencial, de modo que não apenas voltando-se ao discurso da essência, finalização, cristalização e fechamento, mas a criação que é criativa no próprio movimento do narrar-traduzir. A religiosidade, tal como a cientificidade, em Júbilo, é um artefato de inclusão e exclusão: ao mesmo tempo acolhe, defende-se. Inclui, assim, possibilidades de elaborar saberes e exclui quando as utilizações destes são limitantes. Traduzir para Latour é operar na produção com base em algo inalcançável, o que, na academia, é sempre motivo de algum pânico e da sensação de não haver entendido corretamente a mensagem (in)formada.
Para o desenvolvimento de tal tese, o pensador francês vale-se de uma crítica da compreensão contemporânea da religião, que busca situá-la em tentativas operatórias, de fazê-la operar, interditando justamente os modos de constituir existência pelo referido campo de saber. Investimentos que derivam de uma ambiguidade que confere ao discurso religioso não conseguir “[...] compartilhar aquilo que há muito lhe é tão importante” (:7), o querer falar e o não conseguir. Tal ambiguidade é dada por ao menos dois posicionamentos da compreensão da religião hoje: i) o considerar que a palavra se mantém e atravessa o tempo, a indiferença à contingencia e as dinâmicas culturais, e no “[...] Acreditando proteger a herança que receberam, eles a dilapidaram” (:13), ou seja, o desejo de cristalizar, conservar, manter a palavra sem interpretá-la; e ii) aos “céticos” (:7) ao considerar em seu estilo que refletir acerca do discurso religioso não é algo do que se vala a pena ocupar, aos que compreendem a religião como uma fantasia, algo superado por interpretações, ou algo que lhes é indiferente. Aos primeiros interessa apenas o início, os segundos não pretendem “[...] escutar a continuação” (p. 14), não buscam ouvir como a religião desdobra. Dois entendimentos que afastam o discurso religioso de seus modos operantes do “vínculo e escrúpulo, os dois sentidos etimológicos da palavra religio” (:8, grifos do autor). Aos primeiros, falta vincular o passado ao cenário presente; aos céticos, falta a atitude cuidadosa de escutar a mensagem, de reconhecer os sentidos.
Assim, para tomar o discurso religioso enquanto potência de instauração de modos de existência, Bruno Latour propõe movimentos de compreensão a partir da metáfora dos amantes, aos quais não perguntariam Um ao Outro se acreditam em seu amor ou se amam como ontem. Há, no amar, duas possibilidades de compreender o amor, i) um enquanto substância, algo que subsiste por si, com uma característica verdadeira e solidificada, como se essa substância no passado devesse permanecer - o que a torna impotente, sem força de inércia, não acompanha os movimentos do tempo; ii) outro enquanto reaproximação, vínculo, a possibilidade de conversarem de outra maneira na contingência das situações em que se encontram. Nesse caminho trilhado pelo autor, discorre-se acerca do discurso religioso como algo não informacional, mas constituído na processualidade da palavra, em estabelecer conexões, traduções, vínculos.
Para isso, insiste o autor, é necessário superar a imagem congelada que dá substrato ao tradicionalismo fundamentalista, à óptica de que existe um saber-religiosidade no passado em que os sujeitos devam ser levados do presente ao passado congelado. O caminho para compreender o discurso religioso de modo não congelado é compreender as religiosidades como movimentos de produção, processos em que as palavras do passado são traduzidas ao presente, a imagem se movimenta e tem o sentido continuamente renovado. Para compreender os estudos acerca dos discursos religiosos e seus atravessamentos sociais, é “[...] preciso compreender o que significa uma transformação pela tradução que mantém o sentido” (:20), essa é a dívida a se pagar para novamente poder falar das religiões e religiosidades.
Nesse aspecto, o discurso religioso é conceitualizado enquanto sua efetuação em: i) “[...] produzir a unidade, a unificação, o universal, e não [...] padronização” (:44); ii) é o campo em que “as palavras que endireitam devem ser compreensíveis” (:49); iii) em que os “[...] discursos devem ser dirigidos à situação presente” (:49); iv) não devem se propor enquanto “[...] discursos de informação”, mas, sim, enquanto “discursos de conversão” (:49); v) as “[...] palavras que renovam devem ter efeito, ou então são pronunciadas em vão” (:49); vi) deve se propor à produção de “[...] uma unidade, uma identidade, uma união” (:50). Tais características conferem ao discurso religioso seu atributo de presentificação, tradução, comunhão de sentidos.
Latour pontua também os tormentos pelos quais o discurso religioso atravessa, ao passo que é seduzido. Uma dessas seduções ocorre pelo “[...] demônio da lógica” (:77), buscando se racionalizar e operar por meio de informações, o que leva a religiosidade à falência, pois atesta a própria ausência de crença e falta de recursos técnicos para produção de cadeias de referências. Outro seduzir é dado quando instala restrições mentais, busca congelar o passado e arrastá-lo sem traduções, presentificações e formações de unidades. São em tais ciladas em que o discurso religioso se afasta de sua constituição ontológica, haja visto que em “[...] matéria de religião, seu dever é de fidelidade: ele não deve inventar, mas renovar; não deve descobrir, mas recuperar; não deve inovar, mas retomar do zero o eterno refrão” (:142), de produção de unidade e vínculos - e não que arrasta corpos do presente ao passado em busca de um túmulo vazio.
Bruno Latour oferece caminhos para a compreensão das interlocuções das discursividades religiosas e das ciências sociais, à medida que oferece um modo outro de entendimento para a religião com base em sua operação pela produção de unidade, conexões e identidades do discurso religioso. Oferece potencialidades para pensar também epistemologicamente esse discurso em interação com outros modos de existência e composição de saberes, como o das ciências, sem desentendê-las, propondo, ao contrário, articulá-las na compreensão de seus funcionamentos-operações distintas e (co)existentes.
É nesse sentido que a produção de saberes, de conhecimentos, encontra-se alinhada às ações que produzem linguagens, mundos e modos de existência. Tal perspectiva dá-se ao passo que o situar a existência e realidade, isso é realizado por meio dos conhecimentos-saberes que produzimos e utilizamos para atribuir sentido ao existir. Assim, os discursos religiosos, científicos, artísticos e do direito são modos de elaborar mundos-existências, são possibilidades para pensar.
Referências
- LATOUR, Bruno . Júbilo ou os tormentos do discurso religioso São Paulo: Editora Unesp, 2020, 144pp.
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1
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1991.
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LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
3
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LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. São Paulo: Editora UNESP, 2017.
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LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: EdUSC, 2004.
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LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador/Bauru: EDUFBA/EDUSC; 2012.
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6
LATOUR, Bruno. A fabricação do direito: um estudo de etnologia jurídica. São Paulo: Editora UNESP, 2019.
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7
LATOUR, Bruno. “Não congelarás a imagem, ou: como não desentender o debate ciência-religião”. Mana, v. 10, n. 2, 2004, p. 349-376.
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8
LATOUR, Bruno. Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2019.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Jun 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2021
Histórico
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Recebido
25 Jun 2020 -
Aceito
02 Abr 2021