Open-access Cristianismo no Brasil em perspectiva global

FERNANDES, Sílvia. . (2022), Christianity in Brazil: An Introduction from a Global Perspective. Londres: Bloomsbury, 243pp.

O Brasil é um ator essencial no cenário cristão mundial: é o segundo país com mais cristãos (185 milhões), atrás dos EUA (253 milhões),1 mas com o maior número de católicos (127 milhões)2 e de pentecostais (25 milhões).3 Essa importância é assinalada pela autora, logo no começo da introdução (:1-3), ao se referir a dois eventos de cariz global ocorridos no Brasil: a visita do Papa Francisco, no âmbito da JMJ de 2013, e a inauguração do Templo de Salomão, da Iurd, em 2014. É nessa perspectiva de globalidade, associada a uma matriz cristã, que este livro foi escrito e, por isso, deve ser lido. Como Fernandes refere-se na introdução (:5-6), o seu objetivo era analisar a complexidade religiosa brasileira, a vários níveis (local, regional e nacional), tendo, como pano de fundo, o cristianismo global. Contra um nacionalismo metodológico, apostou em uma visão holística, em que atores e forças globais interagem com o cristianismo brasileiro. Será que Fernandes conseguiu alcançar o seu objetivo? Certamente que sim, mas, após apresentados os capítulos, far-se-ão algumas observações.

A autora, Sílvia Fernandes, doutora em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), tem pesquisado sobretudo sobre sociologia da religião no Brasil e na América Latina, focando-se no catolicismo e no pentecostalismo. Portanto, profunda conhecedora da realidade em estudo, apresenta um livro que vem colmatar uma lacuna na área. De fato, o livro mais relevante sobre o tema4 abordou as religiões no panorama brasileiro, no âmbito do Censo 2010, mas não se focou no cristianismo nem se preocupou com a perspectiva global. A autora quis demonstrar que o cristianismo brasileiro está na encruzilhada de várias esferas cristãs e que depende de vários atores globais, inicialmente de Portugal, depois da Europa e dos EUA, para desenvolver a sua identidade religiosa.

A autora começa o livro com um capítulo historiográfico. Desse balanço histórico, fica a ideia de que a hibridez, a dominação e a resistência coexistem. A conjugação da herança portuguesa, única na América Latina, com a sua forma própria de governação política e religiosa, associada às idiossincrasias indígena e africana, e ao percurso histórico, nas suas vertentes religiosa, política, social e econômica, nomeadamente os últimos dois séculos, tornam singular a realidade brasileira. Por esta resenha se vê a complexidade do cenário brasileiro: na esfera católica, a um catolicismo popular próprio e bastante forte juntaram-se, nas últimas décadas, o progressismo pós-conciliar, sobretudo das comunidades eclesiais de base (CEB), e os carismáticos; na esfera protestante, após a entrada dos protestantes históricos no século XIX, vieram os pentecostais mais recentemente.

No Capítulo 2, Fernandes define as principais divisões do campo religioso brasileiro: luso-catolicismo tradicional (LCT), catolicismo progressista (CP), protestantismo histórico (PH), cristianismo alternativo (CA), pentecostalismo e cristianismo carismático (PCC). Analisando semelhanças e diferenças teológicas, pastorais e experienciais entre divisões, Fernandes evidencia os seus traços mais salientes. Pegando nos três mais salientes, pode-se dizer que o CP difere do LCT sobretudo no olhar escatológico e, por isso, pastoral: quer mudar o mundo agora, enquanto o LCT se foca na outra vida. O PCC centra-se na experiência do Espírito Santo e nos seus carismas, com o exorcismo e a cura subsequentes, reinterpretando, por isso, a libertação do CP, que passou das estruturas sociais para o demónio.

No Capítulo 3, passa-se para uma análise micro, de personagens e do seu trabalho na implantação e no desenvolvimento das divisões agora referidas, em quatro partes: jesuítas (e protestante pioneiro) dos séculos XVI e XVII, figuras católicas dos séculos XIX e XX, figuras do PH e do PCC dos séculos XIX e XX, figuras atuais do PCC e do CP.

No Capítulo 4, a vastidão territorial do Brasil obriga Fernandes a olhá-lo através das cinco regiões, bastante diferentes: Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro Oeste. O Nordeste e o Sul são os mais católicos, sendo os restantes os mais evangélicos. Fica a ideia de que as dinâmicas religiosas regionais se associam, sobretudo, para além das idiossincrasias de cada região, às diferenças na modernização (IDH), na urbanização (rural/urbano), no crescimento populacional (orgânica e/ou migrante) e na oferta religiosa (católica e evangélica sobretudo).

No Capítulo 5, Fernandes continua o Capítulo 2, mas agora em uma perspectiva mais organizacional e quantitativa. Primeiro, a autora apresenta a evolução do PH e do PCC. Depois apresenta as dinâmicas dos campos evangélico e católico, nos quais se destacam as Assembleias de Deus, as mais numerosas, a Iurd, a que tem maior crescimento, e os grupos da quarta vaga, com grande potencial de crescimento, por um lado; as CEB e os carismáticos, representantes mais expressivos dos progressistas e dos conservadores católicos atualmente, por outro lado.

No Capítulo 6, a autora analisa a relação dos católicos e dos pentecostais com a sociedade e a política, sobretudo com esta, objeto de análise tão caro aos acadêmicos brasileiros. Desse capítulo, destacam-se alguns pontos. Primeiro, o pentecostalismo apresenta alguma ambiguidade política, pois, embora mais virado para o conservadorismo, por vezes, pode associar-se à esquerda, por questões pragmáticas. Segundo, a relação dos papas com as correntes progressistas e conservadoras varia, sendo claro, por exemplo, nos casos do Papa João Paulo II, mais favorável às segundas, e do Papa Francisco, mais favorável às primeiras. Terceiro, o presidente Bolsonaro é visto como produto da globalização e do medo, propalado pela mídia, para trazer ordem e paz, nomeadamente com a Covid.

Das conclusões retiram-se algumas notas. O cristianismo brasileiro é uma mistura heteróclita de um catolicismo vindo de Portugal com as religiões de África, as religiões indígenas do Brasil e os protestantes, nas suas várias denominações, vindos da Europa e dos EUA, sendo, sem dúvida, um produto da globalização. Embora o catolicismo esteja em decréscimo, com o crescimento do pentecostalismo, sobretudo provavelmente com a quarta vaga nos próximos anos, apresentam-se aspetos que o defendem, como os níveis consideráveis de confiança por parte da população, o crescimento do número de padres e de diáconos por habitante, a sua força no mundo rural, a pujança dos carismáticos e a existência de mobilidade religiosa, pela qual surgem novos ou antigos fiéis no catolicismo. Além disso, o desempenho do catolicismo depende bastante da liderança pontifícia e da liderança política, como os diversos papas e a presidência de Bolsonaro têm demonstrado. Por fim, Fernandes defende que a detradicionalização no cenário brasileiro pode ser acompanhada por uma retradicionalização, em que vários cenários são possíveis: fundamentalismos, religiões híbridas, pluralismo religioso quase binário (divisão do campo religioso em católicos e em pentecostais), diversidade acanhada e hibridação de vários grupos centrada no Espírito Santo.

A análise de um cenário religioso tão grande, tão diverso e tão dinâmico não é fácil. A autora conseguiu, seguramente, transmitir essa complexidade, embora talvez o livro pudesse ter alguns aspectos diferentes. Em termos formais, o livro poderia estar organizado de forma diferente, mais coesa, juntando o Capítulo 1, o Capítulo 3 e a primeira parte do Capítulo 5, ficando a história, em termos macro, meso e micro, em um só capítulo. Nesse âmbito, talvez tivesse sido pertinente incluir uma figura do catolicismo conservador, porventura do período conciliar, oposto à Teologia da Libertação, representado por duas figuras. Talvez ainda o Capítulo 4 pudesse ser incluído ou estar a seguir ao Capítulo 5, já que aprofunda o mesmo. Por fim, para um panorama tão complexo, ajudaria a existência de figuras e de resumos.

Em termos teóricos, sente-se a ausência de discussão/enquadramento teórico, algo observado ao longo do texto, mas que se salienta no Capítulo 5. Faltam referências às múltiplas modernidades, conceito essencial em estudos globais e comparativos (e.g., Eisenstadt), à religião em uma perspectiva global, como o nome do livro indica (e.g., Beyer), às teorias do mercado religioso (e.g., Stark), pertinentes em um cenário diverso como o brasileiro, e às teorias da secularização, sobretudo a pluralização e a individualização (e.g., Berger, Hervieu-Léger), essenciais na modernidade líquida. De facto, desses autores, só Hervieu-Léger é referenciada em uma nota.

Em termos metodológicos, faltam dados mais exaustivos do enquadramento do Brasil em uma perspectiva global, sobretudo no Capítulo 5 e no Capítulo 4. Aliás, a autora não só no nome, mas no livro, nomeadamente na introdução, é bem clara ao referir-se à sua análise do cristianismo brasileiro como fenômeno global. No entanto, não se apresentam dados comparativos globais, ou ao menos regionais, para a América Latina, por exemplo. Além disso, não há dados sobre a religiosidade brasileira, mas somente dados de filiação religiosa, o que é muito pouco. Onde estão os dados sobre crenças e práticas, por exemplo? E onde estão dados mais exaustivos sobre indicadores da Igreja Católica (número de padres etc.)?

Apesar desses aspectos que Fernandes analisou e discutiu, francamente bem, o panorama religioso brasileiro na sua variedade e no seu vigor, dando conta dos vários grupos religiosos, das várias tendências e da ligação do Brasil à globalidade, tanto como receptáculo de grupos religiosos, como ator-chave na interação com o papado. Esse livro é um contributo considerável para a análise dessa realidade.

Referências

  • FERNANDES, Sílvia. (2022) Christianity in Brazil: An Introduction from a Global Perspective Londres: Bloomsbury, 243pp.
  • 1
    Dados de 2020. Fonte: http://www.globalreligiousfutures.org/countries. Acesso em: 03/02/2022.
  • 2
    Dados de 2010. Fonte: http://www.globalreligiousfutures.org/countries. Acesso em: 03/02/2022.
  • 3
    Segundo este livro, na página 2.
  • 4
    TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (org.). (2014), Religiões em Movimento: o Censo de 2010. Petrópolis: Vozes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2022
  • Aceito
    20 Jun 2022
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