Resumos
Este é um ensaio visual que tem como tema a IV Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, uma ação contramonumental que se faz presente anualmente na vida pública do município desde 25 janeiro de 2020, quando se completou o primeiro ano do rompimento do complexo de barragens da Vale S.A na mina Córrego do Feijão, que matou 272 pessoas. Ele foi realizado em 2023, sendo composto por 8 imagens que demonstram como o rito se constrói como contraponto ao design proposto pela mineradora, responsável pela devastação da paisagem, para reconstrução da memória. A romaria evidencia a capacidade das populações locais atingidas de responderem, a seu próprio modo, às práticas da empresa criminosa e do Estado na construção de uma “memória oficial”, chamando atenção para o caráter destrutivo dessas megaempresas e buscando a reparação pelos danos e violações de direitos sofridos pelas vítimas das tragédias.
Palavras-chave: Romaria; Ecologia e religião; Luto; Mineração; Fotografia
This is a visual essay centered around the IV Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, a countermemorial action that has been a yearly presence in the municipality's public life since January 25, 2020, marking the first year of the dam collapse at Vale S.A's Córrego do Feijão mine, which claimed the lives of 272 people. It was conducted in 2023 and consists of 8 images that illustrate how the pilgrimage is constructed as a counterpoint to the design proposed by the mining company, responsible for the devastation of the landscape, in the reconstruction of memory. The pilgrimage highlights the ability of the affected local populations to respond in their way to the practices of the criminal company and the state in building an "official memory," drawing attention to the destructive nature of these mega-corporations and seeking redress for the damages and rights violations suffered by the tragedy's victims.
Keywords: Pilgrimage; Ecology and religion; Mourning; Mining; Photography
Em 2019, o estado de Minas Gerais vivenciou o maior desastre socioambiental em termos de perdas de vida humana e o maior acidente de trabalho já registrado no Brasil. O rompimento de um complexo de barragens com rejeito de extração mineral da mina Córrego do Feijão, da multinacional Vale S. A., no município de Brumadinho, despejou 13 milhões de metros cúbicos de rejeito, na forma de uma gigantesca onda, ocasionando uma devastação que se iniciou na estrutura administrativa e operacional da empresa, atingiu e soterrou comunidades, casas, fazendas, patrimônios locais, gerando 272 mortos, três ainda desaparecidos. O rejeito, que flutua sobre a água e não se dilui, percorreu cerca de 300 km do rio Paraopeba e afetou ainda toda a bacia hidrográfica, aniquilando por onde passava a vida existente e provocando empobrecimento, insegurança alimentar, transtornos psicológicos e estigmatização das populações que vivem no entorno.
Nos anos seguintes ao rompimento, enquanto as vítimas ainda lutavam pelo direito à reparação, despontou no estado uma série de monumentos públicos por meio dos quais as mineradoras, com o apoio do Estado, intervieram na paisagem, visando (re)orientar a memória coletiva sobre o evento. Alguns exemplos são o Memorial Brumadinho, construído pela Vale S.A nas proximidades do local onde ocorreu o evento catastrófico, e o monumento Bruma Leve, instalado na sede do governo de Minas, com 272 peças lineares que representam cada uma das vítimas fatais. Ainda que a produção de marcos para a memória das vítimas fatais seja uma etapa importante das reparações demandadas pelas suas famílias e amigos, como demonstram Dupin e Pereira (2022), a construção do Memorial Brumadinho planejado pela mineradora responsável pelo desastre-crime, lança mão de um sentido particular da ideia de uma memória sensível.1
Valendo-se do luto para gerar um sentimento difuso de solidariedade às vítimas, a empresa materializa sua intencionalidade na forma de perceber a paisagem e a sua relação com a passagem do tempo, situando o crime como uma tragédia extraordinária, sem maior conexão com a longa história de exploração ecológica e humana pela mineração. Tem prevalecido nessas construções uma narrativa dos eventos catastróficos que tende a minimizar os contínuos conflitos gerados pela exploração e arruinação da paisagem como era antes percebida e vivida pelas comunidades locais, como demonstra a análise do Memorial Brumadinho.
Ao invés de observar a paisagem como um marcador da passagem do tempo e dos efeitos da mineração em geral, os memoriais [oficiais] enfocam um tempo-evento específico, de modo a singularizá-los, isolando-os da cadeia de eventos e alterações no ambiente provocadas pela mineração há séculos (Dupin & Pereira 2022: 12).
A análise realizada pelos autores citados demonstra que um dos elementos do jogo político dos territórios afetados por essas tragédias-crimes, que se tornaram norma no modelo de desenvolvimento adotado (Zonta & Trocante 2016),2 são as estratégias monumentais que visam reconstruir a paisagem e inserir a memória considerada relevante no espaço remodelado pelo rompimento, promovendo uma determinada imagem pública da atividade econômica.
No entanto, para as comunidades locais, disputar essa memória é uma maneira de lembrar do passado e, ao mesmo tempo, lutar pelo futuro e por justiça social. Se, por um lado, a memória se apresenta como parte de uma política reparatória, por outro, ela se liga à construção de um imaginário que condiciona uma série de outras políticas a serem ou não implementadas e, por isso, tais atores também buscam por sua ótica inscrever o memorável na paisagem (Dupin & Pereira 2022). Nesse contexto, a evocação do discurso de “lutas” tem sido utilizada para identificar os sujeitos atingidos, apontar os responsáveis pelas tragédias e explicar como elas ocorrem, implicando a afirmação de identidades, direitos e formas de reparação que devem ser executadas na região.
É nesse contexto que emerge a Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, uma ação contramonumental, de resistência, que se faz presente anualmente na vida pública do município desde 25 janeiro de 2020, quando se completou um ano do rompimento. Procuramos, neste ensaio realizado em janeiro de 2023, composto por 8 imagens feitas durante nosso trabalho de assessoria técnica às comunidades atingidas, demonstrar como esse rito constrói um contraponto ao design da reconstrução “planejada” da memória e da paisagem no território devastado pela empresa. A realização da romaria evidencia a capacidade das populações locais atingidas de responderem, a seu próprio modo, às práticas neoextrativistas das grandes mineradoras, chamando atenção para o caráter destrutivo dessas megaempresas e buscando a reparação pelos danos e violações de direitos sofridos pelas vítimas das tragédias, sem que isso aconteça por uma ótica vinda da própria Vale S.A.
Organizada pela Arquidiocese de Belo Horizonte em parceria com diversas organizações e movimentos populares, como parte de um conjunto de atividades chamado de “25 é Todo Dia”3 a romaria é descrita por estes como um espaço de mobilização para fazer memória ao trágico evento e suas vítimas, pedir justiça e, ao mesmo tempo, refletir sobre outras possibilidades de coletivamente convivermos com o meio ambiente. Sua construção se ampara em três eixos: Memória, Justiça e Esperança. O primeiro remete às 272 vidas ceifadas pelo rompimento, chamadas de “joias”, o segundo remete à denúncia contra a impunidade da mineradora responsável pelo desastre-crime e o terceiro apoia-se na busca por outro modelo produtivo para que a tragédia não se repita.
As romarias fazem parte de uma tradição popular da Igreja Católica que, a partir da virada do século XIX, ganhou um caráter oficial no país, quando o episcopado decidiu investir nas peregrinações, sobretudo através da figura de Nossa Senhora de Aparecida (Martins 2017; Fernandes 1988). Porém, a incorporação do conceito de “ecologia integral” remete ao ano de 2015, a partir da encíclica Laudato Si - Louvado Seja - sobre o cuidado com a Nossa Casa Comum, a irmã e Mãe Terra (Vaticano 2015), que trata de temas como água, poluição, mudanças climáticas e perda da biodiversidade. Desde a publicação do documento, as romarias com temáticas ambientais têm se espalhado em diferentes regiões afetadas pela mineração em Minas Gerais dando um caráter contemporâneo às peregrinações no estado multiétnico, plurirreligioso e tematizando temas como água e terra.4
O termo “joias” tem sido utilizado por famílias, bombeiros, policiais, familiares e voluntários que se juntaram para realizar buscas dos desaparecidos, sendo também pela imprensa, para se referir às pessoas que perderam suas vidas soterradas pela “lama”. Sua adoção emergiu como contraponto a fala do então diretor presidente da Vale, Fábio Schvartsman, que poucos dias após o desastre-crime, em uma audiência na Câmara dos deputados, afirmou: “(A Vale) É uma joia brasileira que não pode ser condenada por um acidente que aconteceu numa de suas barragens por maior que tenha sido a sua tragédia”.5 Nomeando tais pessoas como esse bem precioso que historicamente se busca no subterrâneo por meio da atividade mineradora, ocorre um deslocamento de sentidos. A “joia” aqui não corresponde a um patrimônio econômico, mas familiar e humano. Aqueles que lutam pela reparação passaram então a representar os soterrados sob a forma de um símbolo central das narrativas que conformam a identidade primeira de Minas Gerais, ligada a suas cidades patrimonializadas (Pereira & Dupin 2022). Assim, construiu-se essa identidade das vítimas fatais, ressaltando seu valor precioso e que precisa ser reparado.
Estruturalmente, a romaria ocupa as manhãs dos dias 25 de janeiro, tendo início com a acolhida dos participantes na área central da cidade e uma coletiva de imprensa com defensores(as) de direitos humanos, lideranças atingidas, movimentos populares e entidades da sociedade civil organizada. A atividade é seguida de uma missa, realizada na Igreja Matriz de São Sebastião, onde os romeiros recebem girassóis que trazem o nome de cada uma das vítimas. Eles fazem então uma caminhada até o letreiro de Brumadinho, na entrada da cidade, que se tornou um ponto de homenagens por parte de moradores e visitantes. Ali acontece um ato dedicado a cada uma das vítimas, promovido pela Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (AVABRUM).6
O local é tomado durante o rito por memoriais de caráter provisório, uma vez que são construídos a céu aberto com flores, cruzes, fotos e nomes de cada uma das pessoas mortas pela tragédia. Rosas e balões, representando cada um dos mortos, são distribuídos aos familiares. Em um palco acontecem falas emocionadas de parentes, músicas, orações e o pronunciamento de cada um dos nomes das vítimas. Até que às 12:28, mesmo horário do rompimento, ao som de uma corneta e muita emoção dos familiares, é realizado um abraço simbólico em torno do letreiro, seguido de um minuto de silêncio e a soltura ao céu de balões nas cores branco, vermelho e amarelo, que simbolizam, respectivamente, as 272 vítimas, os dias que se passaram desde a tragédia, e os três corpos ainda hoje não encontrados. Todo o rito, ao relembrar de forma emocional cada uma das vidas perdidas e os dias de luto, constrói uma versão compartilhada dos acontecimentos violentos, funcionando como linguagem que reforça os laços entre os membros da comunidade e produz efeitos políticos (Jimeno 2010)
Recebendo ampla cobertura midiática, o ato produz uma memória que se configura como denúncia, que mobiliza sentimentos e comoção contra o modelo de mineração historicamente produtor de tragédias socioambientais. Essas ações mobilizam “mecanismos emocionais para a ação coletiva confrontadora”, para nos valer da expressão de Losekann (2018). Nesse espaço ritual de encontro, demarcam-se subjetividades que mobilizam a luta contra a mineração e dão dimensão da diversidade de povos afetados (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses etc.). Sua diferença para os monumentos oficiais não é apenas de perspectiva, mas também na forma como se inscreve em relação ao espaço. Em contraste com obras perenes de arquitetura, que compartilham certa dimensão aurática da arte, mesmo se classificada como ‘arte pública’, a Romaria, como contramomumento, disputa a memória do território na chave de uma arqueologia política e afetiva que, desde as ruínas do presente, permite narrar uma longa e complexa história que interliga de modo vital seus integrantes, de ontem e de hoje.
Memorial traz fotos e nomes de cada uma das pessoas mortas pela tragédia. Em primeiro plano, uma imagem em alto relevo representando um feto que foi soterrado na barriga da mãe pelo rompimento.
Criança indígena Pataxó Hã-hã-hãe, da aldeia Naô Xohã, observa o rio durante a peregrinação. A pesca era a base da alimentação dos indígenas.
Os indígenas Pataxós Hã-hã-hãe, da aldeia Naô Xohã, que vivem às margens do rio Paraopeba a 22 km de distância do epicentro da tragédia, pedem justiça.
Os girassóis recebidos pelos romeiros trazem o nome de cada uma das 272 das vítimas do rompimento.
A Romaria pela Ecologia Integral se faz presente anualmente na vida pública de Brumadinho desde o primeiro ano do rompimento.
Faixam trazem fotos de cada uma das pessoas mortas pelo rompimento. Ao fundo um outdoor traz também fotos das joias não encontradas. A tragédia marca a paisagem da cidade.
Os afetos se expressam durante a missa que homenageia a vítimas realizada em frente à igreja da matriz da cidade.
Bibliografia
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CASTRIOTA, Leonardo. (2019). “Lidando com um patrimônio sensível. O caso de Bento Rodrigues, Mariana MG”. Arquitextos https://vitruvius. com.br/revistas/read/arquitextos/20.230/7423
» https://vitruvius. com.br/revistas/read/arquitextos/20.230/7423 - FERNANDES,Rubem César. (1988), “Aparecida: nossa rainha, senhora, mãe, sarava!”. In: V. Sachs. Brasil e EUA: Religião e Identidade Nacional Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988.
- DUPIN, Leonardo Vilaça & PEREIRA, Edilson. (2022), “De Minas às ruínas: o refazer da memória e da paisagem no pós-desastre de Brumadinho”.Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum, vol. 17, nº 3: e20210104.
- JIMENO, Myrian. (2010), “Emoções e Política: a vítima e a construção de comunidades emocionais”. Mana, vol. 16, nº 1: 99-121.
- LOSEKANN, Cristiana. (2018), ““Não foi acidente!” O lugar das emoções na mobilização dos afetados pela ruptura da barragem de rejeitos da mineradora Samarco no Brasil”. In: A. Zhouri (Org.), Mineração: violências e resistências: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil Marabá: Editorial iGuana.
- PEREIRA, Edilson & DUPIN, Leonardo Vilaça. (2022), “The Brumadinho dam catastrophe and the Memorial for the victim”. In: G. Pettenati. (Org.). Landscape as Heritage: International Critical Perspectives London: Routledge.
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ZONTA, Marcio & TROCANTE, Charles. (Orgs.). (2016), Antes fosse mais leve a carga: introdução aos argumentos e recomendações referentes ao desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton (Coleção A questão mineral, vol. 2). Marabá: iGuana. Disponível em: Disponível em: https://www.ufjf.br/poemas/ files/2016/11/Livro-Completo-com-capa.pd Acesso em: 26/09/2023.
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VATICANO. (2015), Carta encíclica laudato si’ do santo padre Francisco sobre o cuidado da casa comum, 24 mai. 2015. Disponível em Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html Acesso em 26/09/2023.
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ESTADO DE MINAS. (2019), “Vale é 'joia brasileira' e não pode ser condenada por um acidente, diz presidente”. Estado de Minas, 14 fev. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/02/14/interna_gerais,1030585/vale-e-joia-brasileira-e-nao-pode-ser-condenada-por-um-acidente-diz.shtml Acesso em 26/09/2023.
» https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/02/14/interna_gerais,1030585/vale-e-joia-brasileira-e-nao-pode-ser-condenada-por-um-acidente-diz.shtml
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A discussão sobre monumentos de memória sensível é relativamente recente e continua em pauta. A categoria “sítio de memória sensível”, por exemplo, foi sumarizada em um documento de 2018, preparado para a International Coalition of Sites of Conscience, que define estes locais como “uma localidade específica com evidência arquitetônica ou arqueológica, ou mesmo com específicas características de paisagem, que podem ser relacionadas aos aspectos memoriais do lugar”. E, ainda, “são lugares que estão revestidos com significado histórico, social ou cultural por causa do que aconteceu ali no passado. Tais lugares podem ser de significado particular, dado o seu papel na formação da identidade de uma comunidade ou nação” (Castriota 2019).
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Desde 1986 até o presente, foram registrados pelo menos oito rompimentos de barragens de rejeito em Minas Gerais, que deixaram centenas de mortos e milhares de pessoas desalojadas.
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Esse conjunto de atividades é organizado pela Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser), em solidariedade às vítimas do rompimento, e vai além do dia 25 de janeiro.
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Na bacia do rio Doce, por exemplo, local atingido por outro grande desastre da mineração, o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, acontece anualmente a Romaria das Águas e da Terra.
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Fonte: ESTADO DE MINAS. (2019), “Vale é 'joia brasileira' e não pode ser condenada por um acidente, diz presidente”. Estado de Minas, 14 fev. 2019. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/02/14/interna_gerais,1030585/vale-e-joia-brasileira-e-nao-pode-ser-condenada-por-um-acidente-diz.shtml. Acesso em 26/09/2023.
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Vale dizer que todos os meses desde o rompimento a AVABRUM faz homenagens às vítimas no local.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Fev 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
26 Set 2023 -
Aceito
01 Dez 2023