Há mais de 4 décadas, Hodson & Edwards1 descreveram a associação de pielonefrite crônica e refluxo vesicoureteral (RVU). Logo, o termo nefropatia de refluxo passou a ser adotado. Desde então, as infecções de trato urinário (ITU) e o RVU são considerados como fatores de risco para a formação de cicatrizes renais causadoras de hipertensão arterial em 10% a 20% e doença renal crônica (DRC) se lesões bilaterais. Baseado nestes conceitos, a investigação urológica tem sido recomendada na ocasião da primeira pielonefrite aguda ou nas ITU recorrentes, em crianças de qualquer idade.
Na última década, surgiram diretrizes do NICE2 (National Institute for Health and Clinical Excellence) e da AAP3 (American Academy of Pediatrics) com protocolos restritivos em relação à investigação, priorizando as crianças menores. Surgiram diversas publicações4-8 com o intuito de demonstrar que a aplicação indiscriminada destes protocolos pode induzir a uma falha na prevenção, já que um número significativo de crianças ficaria sem diagnóstico de RVU e cicatrizes que podem ocorrer a partir da primeira ITU em 5%-15% dos casos.
Se investigação e profilaxia antibiótica ainda são motivo de controvérsia nos tempos atuais, mais ainda a indicação de tratamento conservador, cirúrgico ou endoscópico do RVU. Na falta de um consenso internacional, atualmente procura-se estratificar os fatores de risco de acordo com o histórico familiar, sexo, idade, lateralidade, recorrência da ITU, grau do RVU, presença de cicatrizes e associação com disfunções de trato urinário inferior (DTUI). Neste sentido, é interessante perceber a tendência atual de separar dois grupos de pacientes:
a) Os meninos com mais hidronefrose, ITU, e maior grau de RVU no período neonatal, muitas vezes portadores de lesão renal congênita por displasia (10%) e podendo também apresentar lesões cicatriciais adquiridas, são os mais indicados à tratamento cirúrgico.9
b) As meninas com maior recorrência de ITU febril e cicatrizes renais adquiridas após o período neonatal e relacionadas com as DTUI. 40%-60% das crianças com DTUI apresentam RVU e a prevalência de cicatrizes renais chega a 30%.10 As DTUI se apresentam com sintomas de urgência ou postergação, incontinência diurna e/ou noturna, alterações no fluxo urinário, resíduo pós-miccional, deformações de uretra (em forma de pião) e ITU recorrente, podendo associar-se à constipação crônica e grave (síndrome de eliminações). A Associação Americana de Urologia (AUA), em sua diretriz,11 destaca a necessidade de pesquisar estes sintomas logo de início, no primeiro episódio de ITU e, assim, o foco deve ser o tratamento das DTUI, referindo "A happy bladder is an empty bladder and an empty rectum".
Os lactentes também apresentam DTUI relacionadas ao RVU. No recente trabalho publicado12 (Swedish Reflux Trial), com 203 lactentes portadores de RVU III-IV, 34% apresentavam DTUI com efeito negativo sobre a resolução do RVU e a ocorrência de cicatrizes renais em dois anos de seguimento. A avaliação não invasiva da função vesical em lactentes é possível e foi aplicada neste estudo, por meio do Teste de 4 horas de observação miccional,13 permitindo selecionar precocemente este grupo de pacientes.
O tratamento conservador é baseado no fato de ocorrer resolução espontânea do RVU, principalmente em jovens pacientes com RVU de baixo grau, chegando a 80% no RVU I-II e 30%-50% no RVU III-IV em 4 a 5 anos de acompanhamento.10
No presente número do Jornal Brasileiro de Nefrologia (Colocar a página), Teixeira et al.14 descrevem um grupo de pacientes com RVU mantidos em tratamento conservador ou encaminhados para tratamento cirúrgico e, apesar do número limitado de pacientes e do caráter retrospectivo, confirma os achados de literatura em relação a idade, sexo, recorrência de ITU e o elevado índice de cicatrizes renais (37,2%), reforçando a necessidade de seriedade na aplicação dos protocolos de investigação e tratamento nas crianças portadoras de ITU e colocando na discussão pontos atuais sobre a estratificação dos grupos a risco.
A heterogeneidade dos diversos estudos dificulta uma análise comparativa e a maioria das recomendações são baseadas em consenso. Enquanto o RVU primário recebe tratamento conservador com profilaxia ou cirurgia endoscópica ou aberta, os casos secundários as DTUI se beneficiam de uroterapia, profilaxia antibiótica, biofeedback de assoalho pélvico, anticolinérgicos e eletroestimulação transcutânea parassacral, de acordo com o tipo de disfunção, com alto índice de resolução do RVU. Na nossa experiência15, entre 402 crianças portadoras de DTUI, 73% do sexo feminino com idade média de 7,3 ± 2,8 anos, 29% apresentavam RVU e entre estes 39% apresentavam cicatrizes renais. Com o tratamento da DTUI, houve cura e redução do grau do RVU em 56% e 24%, respectivamente.
No Brasil, além de poucos centros especializados para atender o elevado número de pacientes, as dificuldades sociais muitas vezes dificultam a manutenção de profilaxia antibiótica e acompanhamento e estes casos acabam sendo levados ao tratamento cirúrgico, mas vale lembrar que na vigência de DTUI, os procedimentos cirúrgicos são muitas vezes fadados ao insucesso. Muitos estudos ainda estão por vir e ditos como "an ounce of prevention is better than a pound of cure'9 ou 'scars may develop in infant kidneys quicker than urine culture can confirm the diagnosis, and that reflux nephropathy has no age limit"8 demonstram a preocupação dos nefropediatras em relação às ITU recorrentes e RVU na infância.
Referências
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