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A descontinuidade do tempo de trabalho na agricultura e as implicações sobre a estabilidade da empresa capitalista - uma análise da visão de Marx

The discontinuity of working time in agriculture and the implications for the stability of the capitalist enterprise - an analysis of Marx’s vision

RESUMO

Alguns autores brasileiros que utilizam uma abordagem marxista, têm insistido na inviabilidade da produção capitalista privada. As premissas desta tese são: 1) a diferença existente no processo de produção agrícola entre o tempo de trabalho e o tempo de produção e 2) a hipotética menor taxa de lucro da agricultura capitalista. Este artigo tenta mostrar que essas premissas são falsas uma vez que o processo de produção foi tão alterado pela agricultura moderna que se tornou muito semelhante à indústria.

PALAVRAS-CHAVE:
Economia marxista; agricultura; mudança estrutural; história do pensamento econômico

ABSTRACT

Some Brazilian authors that utilize a Marxist approach, have insisted on the unfeasibility of private capitalist production. The premises of this thesis are: 1) the existent difference into the agriculture process of production between the labor time and the production time and 2) the hypothetical lower rate of profit of capitalist agriculture. This article tries to show that these premises are false once the process of production was changed so much by the modem agriculture that it has become very similar to the industry.

KEYWORDS:
Marxian economy; agriculture; structural change; history of economic thought

A VISÃO DE MARX

Ao tratar pela primeira vez do tema em questão nos Grundrisse1 1 Os escritos econômicos que precederam os Grundrisse, os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e Trabalho Assalariado e Capital, editado em 1849.mas escrito em 1846-47, trabalhos anteriores ao período insurreicional europeu de 1848-49, não refletem ainda um grau de maturidade de Marx nas questões que iremos tratar. Este ponto só é atingido a partir de 1850, quando, cessada a intensa atividade de agitação política, Marx retoma seus estudos no exílio em Londres e, durante cerca de sete-anos, intercalados por atividade jornalística, prepara o material que dará origem aos seus Manuscritos Econômicos de 1857-58, de onde parte para escrever o primeiro fascículo de Para a Crítica da Economia Política e o Manuscrito Econômico de 1861-63, que constituiria mais adiante O Capital e as Teorias da Mais-Valia, Entretanto, cronologicamente, as Teorias antecedem O Capital em termos de elaboração, ainda que, editorialmente, sejam apresentadas como livro IV deste. É importante situar a ordem temporal em que analisaremos o pensamento de Marx, mesmo que isto tenha um valor relativo, pois, como ele mesmo diz em O Método, a ordem de exposição não é a ordem da pesquisa, Assim, o concreto pensado, a síntese da pesquisa, é o resultado de múltiplas determinações que temporalmente poderiam ou não se suceder. (1978Marx, K., (1978) Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Política (Grundrisse) 1857-1858, México, Siglo Veintiuno, 3v. a :189), Marx diz que até aquele estágio dos seus escritos, supôs que o tempo de produção coincidisse com o tempo de trabalho, mas que agora teria que examinar situações em que ocorreriam interrupções do trabalho dentro da produção, antes que o produto estivesse terminado. A implicação direta de uma situação como esta, diz ele, é que se poderia empregar o mesmo tempo de trabalho a se ter diferentes durações da fase produtiva. Exemplifica o fenômeno com a agricultura e tenta demonstrar que, do ponto de vista da lei geral do valor, o produto que tivesse um maior tempo de produção em decorrência das interrupções, não teria por que ter uma maior valorização. Para ele, não seria o tempo que duraria a fase de produção, que daria menor ou maior valor a um determinado bem, mas seria o tempo de trabalho, aí pensando tanto no trabalho objetivado como no trabalho vivo. De outra parte, só o trabalho vivo, na proporção em que seja empregado com relação ao trabalho objetivado, pode criar sobrevalor. Reconhece ainda que uma maior fase de produção que decorra das interrupções, levaria, consequentemente, a um maior tempo de rotação de capital.

Por meio desta argumentação, Marx está preocupado em refutar uma tese que se generalizava à época, segundo a qual uma circunstância natural que impedisse um capital aplicado em determinado ramo de intercambiar-se pelo trabalho no mesmo tempo que intercambiar-se-ia em outro ramo, poderia, de alguma maneira, coadjuvar no aumento de seu valor. Marx nega essa possibilidade e insiste em que só o tempo de trabalho vivo permite a criação do sobretrabalho que gera a mais-valia. Da mesma forma, procurava-se atribuir à descontinuidade tempo de trabalho/tempo de produção, propriedades que ela não reunia, como ser responsável por uma maior ou menor geração de valor, que dependeria também do estado de conhecimento das técnicas. Marx não reconhecia na diferença tempo de trabalho/tempo de produção, qualquer vantagem ou desvantagem de “per se” naquilo que se refere à geração do valor.

Com base nestes argumentos, tenta Marx demonstrar que por comportar a interrupção dentro da fase produtiva, a agricultura nunca poderia ser a esfera por onde começa o capital, onde inauguraria sua sede originária. Afirma ainda que a superação desta limitação, que contradiz as condições básicas do trabalho industrial, somente ocorreria em condições de grande desenvolvimento da química, da mecânica, da competência gerencial, da indústria manufatureira etc., para que então o cultivo da terra se aproximasse da indústria. Marx se dá por satisfeito, nesta etapa, em demonstrar que a criação da mais-valia depende tão-somente do tempo de trabalho embutido no tempo de produção. Nos Grundrisse ele não avança sobre a questão da nivelação das taxas de lucro na agricultura, alertando apenas que neste movimento ocorreriam outras determinações, diferentes da indústria, por suposto.

O Marx da Teoria da Mais-Valia não trata especificamente das implicações das diferenças entre o tempo de trabalho e o tempo de produção. Não obstante, ao analisar a renda do solo, faz determinadas colocações da maior importância para o que iremos analisar posteriormente, razão pela qual é pertinente considerá-las.

Quando está examinando as teorias de Rodbertus, Marx (1974Marx, K., (1974) O Capital - O Processo Global de Produção Capitalista - Livro 3, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira . b: 325) fala das limitações ao prolongamento absoluto do tempo de trabalho na agricultura e, portanto, das restrições à ampliação da mais-valia absoluta. As condições naturais, tais como duração dos dias e dificuldade de emprego de luz artificial no campo, limitariam o prolongamento da jornada de trabalho. Do mesmo modo, o longo período de tempo durante o qual os produtos agrícolas permanecem no processo de produção sem que se invista trabalho neles seria uma segunda razão para a pequena massa de mais-valia produzida pela agricultura. Entretanto, segundo Marx, como na agricultura, mesmo a mais avançada e a de larga escala, a massa humana em ação em relação ao capital constante empregado é muito maior que na indústria em geral, desde esse ponto de vista a taxa de lucro também pode ser maior na agricultura que na indústria, ainda que, pelas razões expostas anteriormente, a massa de mais-valia seja menor. Este argumento de Marx é coerente tanto com suas teorizações anteriores no nível de abstração com que trata o capital, quanto com a realidade, pois é sabido que a composição orgânica do capital é inferior na agricultura, comparativamente à indústria. A fórmula da taxa de lucro, g'=pc+v permite concluir assim, pois a elevação de c, capital constante, estará sempre contrapondo-se à elevação da taxa de lucro na indústria, ainda que a massa da mais-valia, P, seja maior neste ramo pois aí a taxa de mais-valia, p’, costuma também ser maior, elevando a massa de mais-valia, a qual é determinada pela fórmula: P=pv·V·2.2 2 A massa de mais-valia será tanto maior quanto mais alta seja a taxa de mais-valia e maior seja o capital variável (V) antecipado.

Em O Capital (1970Marx, K., (1970) O Capital - O Processo de Circulação do Capital - Livro 2, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. : 241), Marx já havia consolidado melhor suas ideias acerca da geração do valor, da rotação do capital e da taxa de lucro, e quando passa, no livro II, a tratar dos capitais e não mais do capital em geral, retoma o tema através de minuciosa e didática exposição. Aí, convém lembrar, parte do mérito cabe a Engels que reviu e apresentou em forma final para a edição os manuscritos deixados por Marx.

Inicialmente Marx está preocupado em demonstrar que capitais de igual magnitude podem ter diferentes períodos de rotação como decorrência das diferenças no período de trabalho e da implicação direta que isto acarretaria em termos de capital circulante. No exemplo que apresenta, mostra como o retorno de um capital aplicado na produção de uma locomotiva dar-se-ia em um período muito mais longo que o retorno de um capital aplicado na produção de fios de algodão e, em seguida, argumenta que o prolongamento do período de produção tornaria o capital prisioneiro por um lapso maior da esfera da produção, além da necessidade de se acrescentarem novas doses de capital circulante até que o processo produtivo se conclua. Com base nesta constatação Marx afirma que, nos estágios menos desenvolvidos da produção capitalista, os processos produtivos que exigem longo período de trabalho não se materializavam por métodos capitalistas, mas sim através de ações da comunidade e do Estado. Isto só deixa de se verificar com o desenvolvimento do crédito e da concentração e centralização de capitais. Em seguida, argumenta que o aumento da produtividade reduziria o período de trabalho nos atos de produção contínuos, mas que no caso em que ele é prescrito por determinadas condições naturais, haveria limitações a esta redução. Neste ponto, ele já está pensando o caso da produção agrícola, seja ela vegetal ou animal. Esta seria a situação na qual o tempo de trabalho é sempre tempo de produção, mas quando a recíproca não seria verdadeira.

Nestes processos, sujeitos às condições naturais, o tempo de produção se dividiria, grosso modo, em dois períodos: em um deles o capital encontrar-se-ia no processo de trabalho e no outro sua forma de existência seria de um produto inacabado, exposto às ações de processos naturais e fora do processo de trabalho. A maior coincidência do tempo de produção com o tempo de trabalho estaria, na visão de Marx, também influenciada pelos rigores do clima. Onde o clima fosse mais desfavorável, com menor número de meses aptos para a produção agrícola, aí mais se concentraria, no tempo, o emprego de trabalho e capital. Nos demais meses, os camponeses estariam dedicados ao artesanato e à produção manufatureira doméstica cuja destruição pela penetração capitalista tornaria o trabalhador agrícola cada vez mais dependente de ocupações ocasionais. A agricultura, aí tanto a capitalista como a camponesa, teria, em relação à indústria, uma desvantagem em certo modo semelhante àquela que teriam os ramos onde os períodos de produção fossem longos. Estas desvantagens decorreriam tanto da irregularidade do emprego do capital circulante, o qual é adiantado de forma concentrada, mais de uma vez, e por um período maior que os verificados nos processos contínuos, quando da descontinuidade da utilização do capital fixo, interrompida constantemente e por tempo mais longo. Esta última irregularidade acarretaria depreciações também na ausência da utilização do capital fixo, o que levaria a um certo encarecimento relativo do produto, visto que o cálculo de transferência do valor se dá não pelo tempo em que funciona o capital fixo, mas sim pelo tempo em que fica disponível para o processo produtivo, durante o qual perde valor. Ainda na análise das atividades que compreendem longos períodos de produção com tempos de trabalho reduzidos, Marx focaliza o caso de silvicultura, negócio, segundo ele, pouco propício à exploração particular, capitalista por suposto. Nesta atividade, o interesse do capitalista estaria condicionado a determinados incentivos do Estado, entre os quais, o crédito. Destarte, o capitalista não estaria usando o seu capital para os adiantamentos necessários ao processo produtivo, mas sim o capital alheio que resultasse de empréstimo, em última instância, dinheiro do público.

Apresentadas as circunstâncias em que os períodos de produção são demasiadamente longos e nos quais não se observa coincidência entre os tempos de trabalho e de produção, Marx passa a analisar as consequências desses prolongamentos e descompassos sobre o tempo de rotação do capital, que é a soma do tempo de produção e do tempo de circulação. Para ele, o tempo de produção e, consequentemente, a rotação do capital podem reduzir-se mediante a aceleração dos processos naturais na produção, o que se consegue com o emprego dos avanços da ciência e da técnica.

DESFIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO PENSAMENTO DE MARX

A mais eloquente das incorretas interpretações do pensamento de Marx é o artigo de Mann e Dickinson (1948Mann, S.A. e Dickinson, J.M., (1978) “Obstacles to the Development of a Capitalist Agriculture”, The Journal of Peasant Studies, julho. : 473) publicado em The Journal of Peasant Studies. Recuperando o argumento dos populistas quanto à superioridade da produção camponesa, os autores retiram de O Capital fragmentos não concatenados ou sequenciados, sem uma visão de totalidade da obra e com uma abordagem mecanicista, para dar suporte aos seus argumentos. Ao tratar do efeito do tempo de produção sobre a taxa de lucro e tentando estabelecer comparações entre a agricultura e a indústria, dizem os autores que quanto maior o número de rotações que um dado capital completasse em um determinado período de tempo, maior seria essa taxa,3 3 Os autores associam maiores taxas de lucro a um maior número de rotações do capital, o que, conceitualmente, não é correto. A taxa de lucro deve estar referida à cada período de produção. desde que as outras condições permanecessem iguais. Tentam, através desta premissa, mostrar que os capitalistas desinteressar-se-iam em investir na agricultura, visto que neste ramo os longos períodos de produção reduziriam a taxa anual de mais-valia comparativamente à observada na indústria. A formalização deste raciocínio seria a seguinte:

  • - p’ = pv; Taxa de Mais-Valia da Agricultura e da Indústria; V

  • - p’ = p’ . n; Taxa Anual de Mais-Valia da Agricultura;

  • - p’’ = p’ . n’; Taxa Anual de Mais-Valia da Indústria;

  • - Sendo n o número de rotações e n’ > n, logo, P” > P’.

Entretanto, uma visão de conjunto da obra de Marx e os capítulos 12, 13 e 14 do livro II de O Capital, não autorizam Mann e Dickinson a chegarem a esta conclusão, extraída do capítulo 4 do livro III da mesma obra. Naqueles capítulos, Marx fala das desvantagens da agricultura em relação à indústria, mas, em nenhum momento, afirma que aquela deixaria de ser alvo das aplicações capitalistas e alinha uma série de razões para que isto não acontecesse. Entre elas estariam os papéis desempenhados pelo crédito, progresso técnico, pelas associações e pelas indústrias agrícolas ou agroindústrias. Todo este universo concorre para viabilizar a agricultura capitalista, seja porque traz consigo capital de risco alheio, seja porque reduz o tempo de produção, tornando-o mais aderente ao tempo de trabalho, ou seja, ainda porque integra processos de produção agrícola com processos de produção industrial, reduzindo o tempo de inatividade da mão-de-obra.

Não obstante, o que contraria definitivamente os argumentos de Mann e Dickinson é o que está escrito nas Teorias das Mais-Valias, onde Marx, textualmente, fala da possibilidade de, em certas circunstâncias, haver maior lucratividade da agricultura comparativamente à indústria. Isto ocorreria não pelas razões lá expostas, pois o aumento da produtividade no departamento que produz bens de capital tenderia a contrabalançar, em preços e valor, a tendência à alta da composição orgânica do capital. Ocorreria por outras razões entre as quais realça a renda diferencial do tipo I, que beneficiaria determinados produtores capitalistas, propiciando-lhes vantagens que se expressariam na possibilidade de produzir a menores preços. Na medida em que a renda diferencial do tipo I acentuasse as desigualdades de preço de produção para mesmas grandezas de capitais, haveria a formação de um sobrelucro que não atrairia capitais para o ramo em questão, em decorrência das restrições que o monopólio da terra contrapõe ao movimento de capitais, que buscam mais elevadas remunerações. A origem destas restrições está no fato do monopólio da terra dificultar, ou mesmo impossibilitar, a reprodução de condições vantajosas que diferenciam o preço da produção em relação àqueles formados nas piores terras que, em última instância, determinam o preço de mercado, videGraziano da Silva (1981Graziano da Silva, J.F., (1981) Progresso Técnico e Relações de Trabalho na Agricultura, São Paulo, HUCITEC, 1981. : 9).

Alguns autores brasileiros sofreram influência parcial4 4 A designação de parcial justifica-se porque Mann e Dickinson, ao final do artigo, deixam de ser categóricos quanto a impossibilidade de o capitalismo dominar a agricultura como fez com a indústria. dos escritos de Mann e Dickinson, passando a questionar a estabilidade da empresa capitalista na agricultura. Este grupo de pesquisadores apresenta dois tipos de argumentos para embasar suas posições: o primeiro é o da destruição da taxa de lucro e da renda da terra da empresa agrícola, uma espécie de profit squeeze na agricultura, e o segundo é o que lança mão das categorias tempo de trabalho/tempo de produção para sugerir que a longa rotação do capital desestimularia a agricultura capitalista.

Nakano (1981Nakano, Y., (1981) “A Destruição de Renda da Terra e da Taxa de Lucro na Agricultura”, Economia Política, São Paulo 1(3):3-16, jul./set. : 3), expoente da primeira posição, propõe que o desenvolvimento do sistema capitalista comporta duas lógicas, a do valor e a do capital, situando a primeira apenas no nível da produção agrícola imediata, da produção familiar.

Em continuação, recorre à teoria do oligopólio para sugerir que a indústria aí pode ser enquadrada, mas a agricultura não, para, em seguida, afirmar que o progresso técnico não favoreceria à agricultura capitalista, fadada portanto ao desaparecimento.

Na esteira de seus argumentos diz que a constituição de grandes unidades produtivas acaba gerando custos crescentes de coordenação administrativa devido à falta de uniformidade dos recursos naturais e à natureza do processo de produção. Este seu argumento, de conteúdo nitidamente “marshaliano”, serve, no seu entender, para explicar alguns aspectos, tais como a agricultura não ser administradora de preços e não ter barreiras à entrada, por exemplo, mas não são convincentes quando se pensa na agricultura moderna integrada com a indústria e oligopolizada e que, tanto quanto a indústria, administra seus preços. Um outro argumento, também ambíguo, é usado por Nakano ao sugerir que na agricultura concorrem, no mercado, a produção capitalista e a produção familiar. Neste caso, também valem os ensinamentos da crítica à concorrência perfeita para questionar as teses de Nakano, lembrando que os mercados de produção familiar e de produção capitalista não são os mesmos.

Inicialmente existe a diferenciação dos produtos de uma mesma espécie vegetal, a qual se origina nos requisitos de padronização e qualidade que excluem o pequeno produtor de certas lavouras; por exemplo: o milho da empresa capitalista é “commodity’’ ou matéria-prima para as indústrias, ao passo que o milho da pequena produção é “milho de galinha” e/ou de “canjica”, produto completamente distinto.

Em segundo lugar, o produtor capitalista e o pequeno produtor fazem opções diferentes quanto ao que produzir, optando o último, sempre que possível, por um bem que tenha vários usos e não seja exclusivamente mercadoria.5 5 A designação de parcial justifica-se porque Mann e Dickinson, ao final do artigo, deixam de ser categóricos quanto a impossibilidade de o capitalismo dominar a agricultura como fez com a indústria.

Perosa e Aidar (1981Aidar, A.C.K e Pedrosa Junior, R.M., “(1981) Espaços e Limites da Empresa Capitalista na Agricultura”, Economia Política, São Paulo 1(3):18-40, jul./set. : 17), representando o segundo tipo de argumento, defendem que o menor tempo de trabalho em relação ao tempo de produção levaria à ociosidade do equipamento, oneraria o giro do capital, repercutindo sobre a taxa de lucro. Esquecem os autores, do mesmo modo que Mann e Dickinson, que Marx em O Capital utilizou as categorias tempo de trabalho/tempo de produção para mostrar que, apesar das diferenças de tempo de rotação, os capitalistas sempre encontravam formas de se compensarem e que a grande vítima desse descompasso seria o trabalhador (aí estão os volantes para confirmar). Somente no caso da silvicultura é que Marx admitia ser esta atividade pouco propícia à exploração capitalista. Nos demais casos afirma exatamente o contrário e diz que o processo técnico, reduzindo o dispêndio improdutivo dos meios de produção, matérias-primas e força de trabalho, reduziria o valor do produto final, moldando-o às condições de concorrência.

Isto se verificaria porque, no estágio do capitalismo plenamente constituído quando a lei do valor se transfigura em lei da valorização do capital, a maior competitividade dos produtos decorre da menor quantidade de trabalho vivo. Daí se infere que o produto da pequena produção familiar tem mais valor, maior custo social, sendo consequentemente menos competitivo, na eventualidade de que se aceite que ele concorra com o produto da produção capitalista.

O advento do progresso técnico veio, portanto, como já previa Marx, reduzir o tempo de rotação de capitais na agricultura, aumentar a produtividade do trabalho e libertar gradativamente a produção agrícola das condições impostas pela natureza, diminuindo e até eliminando as barreiras que determinam o mais lento desenvolvimento capitalista da agricultura (Graziano da Silva, 1981Graziano da Silva, J.F., (1981) Progresso Técnico e Relações de Trabalho na Agricultura, São Paulo, HUCITEC, 1981. : 22-36).

No Brasil, várias análises sobre o período 1960-1980 confirmam a tendência ao fortalecimento de grandes empresas na agricultura.6 6 Ver, p. ex .. Kageyama, A. (1985) e Baiardi, A. (1986). Parte considerável dessas empresas realizam beneficiamento e processamento das colheitas. Os casos das lavouras irrigadas de trigo no cerrado e de arroz no norte de Goiás e na região da campanha do Rio Grande do Sul, demonstram que os estabelecimentos capitalistas modernos incorporam tecnologias que reduzem o tempo da produção, diminuem os riscos e proporcionam ganhos de escala. No oeste baiano também vem se observando, recentemente, após as reformas que eliminaram o crédito subsidiado ao grande estabelecimento rural, o surgimento e a expansão de empresas agrícolas de porte, voltadas para a produção de grãos, soja e trigo preferencialmente. No momento estão sendo noticiadas negociações entre o maior sojicultor do Brasil (Olaci, o “rei” da soja) e o grupo Odebrecht, para implantação na Bahia de uma empresa agrícola produtora e processadora de grãos, com área irrigada líquida de aproximadamente 10.000 ha. Este caso, como a integração agricultura-indústria observada nas grandes plantações de dendê na Amazônia e que têm à frente empresas como a Mendes Júnior, comprova o interesse dos capitais nucleados em outros setores de investir na agricultura.

Uma evidência da importância dos estabelecimentos de base capitalista na oferta agrícola brasileira pode ser dada pela participação dos estratos com área entre 100 e 10.000 ha no crédito agrícola, predominantemente de custeio, como informa a Tabela 1. Esta participação questiona a visão segundo a qual a estrutura agrária brasileira caracteriza-se, fundamentalmente, por uma massa de pequenos produtores responsáveis pela maior parte da produção e por um pequeno número de latifundiários com baixíssima produtividade ou simplesmente improdutivos (ver Silva, 1983Silva, S.S., (1983) “Formas de Acumulação e Desenvolvimento do Capitalismo no Campo”, in Desenvolvimento Capitalista no Brasil, n.02. Ensaios sobre a Crise, org. Belluzzo, L.G.M. e Coutinho, R., São Paulo, Brasiliense. : 190).

Tabela 1:
Participação relativa dos estabelecimentos agrícolas na obtenção de financiamento e no valor dos mesmos, brasil 1970-80 (em %)

Determinados autores já apontavam para a ocorrência, entre os anos de 1960 e 1975, de um forte movimento de concentração e centralização de capitais na agropecuária e na agroindústria, o qual, mesmo com a crise que se instaura na segunda metade dos setenta, não deixa de se manifestar. As taxas de crescimento observadas para as maiores empresas nos setores agropecuário e agroindustrial revelam, de acordo com a Tabela 2, que apesar da recessão continuaram a se dar condições de realização para grandes empreendimentos apoiados na produção da agricultura.

Tabela 2:
Evolução recente da produção agrícola e agroindustrial no brasil (taxas anuais em %)

COMENTÁRIOS FINAIS

A forma como evoluiu a estrutura agrária nos países que se industrializaram no século passado, ou que tiveram condições históricas assemelhadas, não é a mesma que se vem verificando naqueles definidos como retardatários ou de industrialização tardia. Nestes a indústria que tem nexo com a agricultura, seja porque vende insumos e equipamentos agrícolas ou porque compra matérias-primas de procedência vegetal ou animal, tem, em associação com o Estado, induzido um padrão de modernização agrícola que não só incorpora a participação do empreendimento capitalista, como lhe reserva um papel preponderante em todo o processo.

Diante desta evidência, cumpre tentar desfazer os equívocos que se expressam nas teses anunciadoras da iminente “farmerização” da agricultura brasileira.

REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    Os escritos econômicos que precederam os Grundrisse, os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e Trabalho Assalariado e Capital, editado em 1849.mas escrito em 1846-47, trabalhos anteriores ao período insurreicional europeu de 1848-49, não refletem ainda um grau de maturidade de Marx nas questões que iremos tratar. Este ponto só é atingido a partir de 1850, quando, cessada a intensa atividade de agitação política, Marx retoma seus estudos no exílio em Londres e, durante cerca de sete-anos, intercalados por atividade jornalística, prepara o material que dará origem aos seus Manuscritos Econômicos de 1857-58, de onde parte para escrever o primeiro fascículo de Para a Crítica da Economia Política e o Manuscrito Econômico de 1861-63, que constituiria mais adiante O Capital e as Teorias da Mais-Valia, Entretanto, cronologicamente, as Teorias antecedem O Capital em termos de elaboração, ainda que, editorialmente, sejam apresentadas como livro IV deste. É importante situar a ordem temporal em que analisaremos o pensamento de Marx, mesmo que isto tenha um valor relativo, pois, como ele mesmo diz em O Método, a ordem de exposição não é a ordem da pesquisa, Assim, o concreto pensado, a síntese da pesquisa, é o resultado de múltiplas determinações que temporalmente poderiam ou não se suceder.
  • 2
    A massa de mais-valia será tanto maior quanto mais alta seja a taxa de mais-valia e maior seja o capital variável (V) antecipado.
  • 3
    Os autores associam maiores taxas de lucro a um maior número de rotações do capital, o que, conceitualmente, não é correto. A taxa de lucro deve estar referida à cada período de produção.
  • 4
    A designação de parcial justifica-se porque Mann e Dickinson, ao final do artigo, deixam de ser categóricos quanto a impossibilidade de o capitalismo dominar a agricultura como fez com a indústria.
  • 5
    A designação de parcial justifica-se porque Mann e Dickinson, ao final do artigo, deixam de ser categóricos quanto a impossibilidade de o capitalismo dominar a agricultura como fez com a indústria.
  • 6
    Ver, p. ex .. Kageyama, A. (1985Kageyama, A.A., (1985) “Modernização, Produtividade e Emprego na Agricultura - Uma Análise Regional”, Campinas, Tese de Doutoramento apresentada à UNICAMP. ) e Baiardi, A. (1986Baiardi, A., (1986) “Inovações Tecnológicas e Trabalho Assalariado na Agricultura Brasileira”, Campinas, Tese de Doutoramento apresentada à UNICAMP. ).
  • 7
    JEL Classification: B51; Q10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1987
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