RESUMO
Regimes democráticos substituíram regimes políticos repressivos na América Latina. Enfrentam agora problemas gravíssimos: desigualdade social, crise financeira, ambos aparentemente sem solução. A viabilidade de aumentar a força da democracia é o primeiro assunto deste trabalho. O segundo assunto diz respeito ao grau de intervenção do Estado nessas condições. Argumenta que está ocorrendo uma redução e uma modificação da estrutura do Estado. A crise financeira tende a acelerar esse processo. Esses dois temas, fundamentos e fragilidades da democracia e os limites da intervenção estatal, são analisados à luz da “teoria da derivação”.
PALAVRAS - CHAVE:
Papel do estado; democracia; teoria da derivação
ABSTRACT
Democratic regimes have substituted repressive political regimes in Latin America. They are now confronting extremely serious problems: social ínequality, financial crisis, both apparently without solution. The viability of increasing the strength of democracy is the first subject of this paper. The second subject relates to the degree of state intervention under these conditions. It argues that a reduction and a modification of the state structure are taking place. The financial crisis tends to accelerate this process. These two subjects, basis and fragility of democracy and the limits of the state intervention, are analysed in the light of the “derivation theory”.
KEYWORDS:
Role of the State; democracy; state derivation
Nos últimos dez anos, a paisagem política, econômica e social modificou-se completamente na América Latina. Os regimes políticos tornam-se cada vez mais democráticos e a intervenção do Estado parece estar numa encruzilhada.
Até recentemente, a maioria dos regimes políticos caracterizavam-se por uma legitimidade no mínimo restrita. Alguns eram ditaduras militares, outros ditaduras civis. Poucos se apresentavam como democráticos e, mesmo nesses casos, a democracia não ia além das áreas urbanas, abrangendo fundamentalmente trabalhadores do setor formal da economia. Atualmente, após o fracasso econômico, financeiro e político desses regimes repressivos, e de mobilizações populares, eles cedem lugar a regimes políticos mais democráticos.
Esses novos regimes políticos são frágeis. Eles se defrontam com situações aparentemente sem saída. Se aplicarem as políticas de austeridade preconizadas pelo FMI, não somente vão administrar uma herança sobre a qual não têm nenhuma responsabilidade, mas, ao fazê - lo, arriscam-se a perder a legitimidade recém - adquirida. No entanto, se não aplicarem essas diretrizes, correm o risco (se estiverem isolados) de sofrer retaliações, sem estar necessariamente preparados para isso (e, assim, de se verem presos a uma dinâmica que não podem dominar), perdendo, igualmente, o apoio popular. A democratização reencontrada e a legitimidade ameaçada são os dois polos desse dilema. A saída pode ser a definição de políticas de austeridade originais, ditas heterodoxas, as quais, se, num primeiro momento, não abalam a legitimidade e, até pelo contrário, podem mesmo fortalecê-la, continuam problemáticas. Esta legitimidade ameaçada constitui um dos eixos de reflexão deste artigo.
O segundo eixo se refere à amplitude da intervenção do Estado. Esta tende a se reduzir com o desenvolvimento da crise financeira. A redução do déficit orçamentário, a compreensão das despesas públicas, as modificações do peso relativo de cada uma delas se opõem à revolução constatada anteriormente. Se essa intervenção do Estado, tanto do ponto de· vista de sua amplitude quanto de sua estrutura, era necessária, se ela constituía condição necessária (mas não suficiente) para ultrapassar as contradições próprias do subdesenvolvimento e da subindustrialização, então a política preconizada pelo FMI tomaria mais difícil a reprodução do capital, e as dificuldades se acumulariam. Ao contrário, se essa intervenção do Estado se tivesse tornado desproporcional, dentro desse mesmo ponto de vista, então a política econômica preconizada pelo Fundo permitiria a supressão dos obstáculos que uma intervenção desmesurada teria acumulado. Neste caso, a reprodução do capital poderia ser feita sobre bases mais favoráveis, a partir de uma fronteira mais otimizada entre público e privado. Esta alternativa coloca o problema dos limites da intervenção do Estado.
Essa intervenção evolui igualmente a nível de sua estrutura. Ela era (é) relativamente mais importante, no setor de infraestrutura, no energético e mesmo no manufatureiro, e menos importante na gestão da força de trabalho nas economias semi - industrializadas do que nas ditas desenvolvidas. A crise financeira parece precipitar as coisas. A intervenção direta do Estado diminui nesse primeiro setor e se faz acompanhar por uma política industrial mais ativa. Ela cresceu ligeiramente em relação à reprodução da força de trabalho, mas este crescimento parece entravado pelo desenvolvimento da crise financeira.
Essas duas questões - as modificações nas formas do Estado e na sua intervenção - constituem o tema deste artigo. As modificações são interpretadas com o auxílio da teoria dita da derivação. Elas a questionam, a alimentam, negam a pertinência de algumas de suas evoluções. Mas antes de proceder a este estudo, é interessante lembrar, ainda que muito rapidamente, alguns dos pontos mais importantes dessa corrente, a fim de evitar algumas ambiguidades produzidas pelo próprio debate.
A escola chamada “da derivação”1 1 Para uma apresentação geral, ver J. M. Vincent (1975), Holloway e Piccioto (1978), P. Salama (1980: 18), Solis Gonzáles (1983), Paniagua Ruiz (1984), Sánchez Sussarey (s.d.), J. Martine (1983), T. Negri (1978). deduz a natureza do Estado do capital. Entretanto, mostramos que nos países subdesenvolvidos não era possível sustentar a hipótese da generalização da mercadoria para realizar tal dedução. Esta deveria ser feita a partir da economia mundial constituída. Assim, poderíamos explicar a existência de uma intervenção do Estado na economia, apesar da quase inexistência de uma classe capitalista.
Esse método deduz logicamente uma categoria de outra. Em outras palavras, o Estado capitalista é concebido como uma categoria abstrata deduzida de uma outra categoria abstrata: o capital.2 2 É o Estado capitalista, isto é, a natureza de classe deste Estado que é deduzida da categoria capital. O Estado sui generis não é um produto do capital o qual ele ajudaria a desenvolver. É uma relação social de dominação que se impõe à sociedade. A forma de dominação do Estado constitui, assim, uma trama que ultrapassa o âmbito do capitalismo. A uma certa época, assim que o capital se expandiu e teve necessidade desse Estado para se desenvolver, sua natureza de classe muda e se toma capitalista, frequentemente com auxílio da violência. Deduzir a natureza de classe do Estado não exclui, portanto, a existência de uma forma de dominação do Estado anterior ao capitalismo. Ela a especifica, o que permite abordar a problemática dos limites da intervenção do Estado. Sobre esse debate, ver B. Thérét (1985). É isso fundamentalmente o que diferencia este método do de Gramsci ou do de Poulantzas, por exemplo, nos quais o Estado é definido em relação à formação social ou às classes que o constituem. Aqui o Estado (e sua natureza) constitui, ainda uma vez, uma categoria, uma abstração real. É o “capitalista coletivo em ideia” (Engels). A origem dessa concepção encontra-se na seção 1 de O Capital, onde são definidas as categorias mercadoria - valor - dinheiro, e, um pouco mais além, capital. Trata-se de estender a análise e mostrar que a categoria capital não existiria sem a categoria Estado, que a sucede.
As consequências de tal concepção são importantes: elas permitem tratar imediatamente o problema dos limites da intervenção do Estado, de compreender que o Estado possa parecer o que não é, isto é, neutro. Elas modificam a abordagem que se possa fazer da lei do valor. Nessa concepção, capital e Estado são duas categorias separadas mas dependentes. Em outras palavras, não se poderia considerar a lei do valor sem sua violação pelo Estado. A lei do valor só existe violada, o que ilumina o debate Preobrajenski/Bukharin, a partir de outro ângulo.
A dedução lógica não se opõe necessariamente à dedução histórica. As categorias são supostas como historicizadas. Elas deveriam permitir uma interpretação da evolução da História. Pelo menos era assim que Marx as concebia. Mas, qualificá-las de historicizadas não lhes atribui automaticamente essa virtude. Uma das maiores dificuldades da chamada escola da derivação reside em evitar os riscos do estruturalismo. Este problema reaparecerá no momento da discussão sobre os fundamentos da legitimação do Estado. Entretanto, permanece o fato de que a importância dessa escola provém precisamente de sua capacidade de ir além de banalidades (essenciais), tais como “unidade orgânica entre capital e Estado”, e de sua capacidade de interpretar as leis concernentes à acumulação naquilo que elas possuem de histórico.
Estaríamos indo em direção a um envolvimento cada vez maior do Estado no processo de acumulação, em direção de uma gestão mais ampla da força de trabalho por parte do Estado? É a capacidade dessa corrente de trazer respostas mais pertinentes do que as propostas pelas outras interpretações do Estado que mostra sua validade.
A escola da derivação distingue algumas vezes o Estado de sua forma de existência: o regime político. É o que nós também fazemos. O regime político é a forma de existência do Estado, do mesmo modo o preço de mercado é a forma do valor. Assim como o preço é fixado pelo mercado, mas é determinado pela grandeza do valor, a intervenção do Estado é fixada por toda uma série de considerações e é determinada por leis econômicas que devemos esclarecer. Essa distinção metodológica repousa sobre uma articulação de dois níveis de abstração diferentes e permite compreender como “os homens fazem livremente sua história em condições que não são livremente determinadas por eles” (Marx). O duplo obstáculo idealismo e determinismo seria, assim, evitado. O Estado (capitalista) teria uma autonomia relativa frente ao capital, pois seria a categoria que o sucede, mas o regime político teria uma autonomia relativa frente à sua própria formação social e a outros regimes políticos.
Duas consequências. imediatas decorrem de tal abordagem: primeiramente, o Estado, na periferia, é o lugar e o elemento de difusão das relações mercantis e/ou capitalistas, e o avalista de sua perenidade. A política econômica sofre a divisão internacional do trabalho e tenta modificá-la (P. Salama e P. Tissier, 1982Salama, P. e Tissier, P., (1982) L’Industrialisation dans le Sous Développement, Maspero, 1982. ). Nesse sentido, o Estado não seria apenas o instrumento do Centro, como numerosas teorias tentaram demonstrar até há bem pouco tempo. Um regime político, então, é uma forma de existência do Estado. Em outras palavras, o Estado se manifesta através de uma infinidade de regimes políticos, da mesma forma que uma grandeza de valor pode se exprimir por diferentes preços de mercado. Mas, tal multiplicidade não é neutra. Alguns regimes políticos expressam o Estado de maneira deformada, mas tal situação não pode perdurar, seja porque o regime político se modifica (modificações disfarçadas, golpes de Estado etc.), seja porque a natureza de classe do Estado é questionada. É o que pode acontecer quando se instalam governos que representam diretamente os interesses dos explorados. Existe, assim, uma relação fluida, mas real entre o Estado e suas formas de existência, que são os regimes políticos. A distinção entre os níveis de abstração permite fundamentar o nível material na definição das formas tomadas pelo Estado sem naufragar no determinismo.
Após este breve relato, podemos agora entrar diretamente em nosso assunto.
I.
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1) A intervenção do Estado é grande no setor energético, infraestrutural e industrial, e pequena em relação à força de trabalho. Essa estruturação se modifica ao mesmo tempo que sua amplitude tende a se reduzir. Ela se efetua seja de maneira direta, seja de maneira indireta. A busca das leis que fundamentam a intervenção do Estado conduz a operar distinções ligadas ao nível de abstração no qual nos situamos. A intervenção estatal corresponde ao nível de abstração ocupado pelo Estado. A intervenção pública está ligada ao regime político. A intervenção do Estado é a maneira genérica de falar de uma ou de outra.
Assim como o regime político é a forma de existência do Estado, a intervenção pública é a forma da intervenção estatal. Apesar de cada uma delas depender de fatores diferentes, uma se manifesta com um certo grau de liberdade, e a existência da outra, tal como o preço de mercado, função da oferta e. da demanda, é determinada pela grandeza de valor, sendo ela própria função da quantidade de trabalho abstrato. Essa abordagem permite localizar, além das aparências, as leis que explicam essas evoluções. Mas também permite analisar a influência de certos acontecimentos sobre a formação das próprias leis.
Em outro trabalho demonstramos em detalhe que a intervenção estatal dependia de três fatores: o diferencial das taxas de lucro, a queda tendencial dessa taxa e o nível atingido pelas forças produtivas.
Os dois primeiros fatores manifestam a ideia por nós evocada, segundo a qual a lei do valor só pode funcionar se for violada. Os capitais são atraídos por diferenciais de taxa de lucro. A concorrência não os pode criar espontaneamente nos lugares adequados. Em outras palavras, a emergência dos setores - chave do futuro não é o produto da concorrência, mas de uma política industrial deliberada que torna atrativo o investimento nestes setores, se estes não forem assumidos diretamente pelo Estado (a intervenção do Estado nos diferenciais de taxa é demonstrada pelo estudo da transformação dos valores em preços de produção) (P. Salama, 1976). Fica, então, evidente que o Estado não age maciçamente sobre os setores energéticos e de infraestrutura somente porque é sua obrigação. A intervenção pública, forma de existência da intervenção estatal, depende, com efeito, de outros fatores. De qualquer modo, a intervenção maciça do Estado permite estabelecer mais ou menos uma ponte entre os níveis de desenvolvimento diferentes das forças produtivas no centro e na periferia, e aproximar mais esses níveis dos setores destinados à exportação.3 3 Esta aproximação foi irregular tanto no que concerne aos meios de produção quanto à força de trabalho. Esta repousou muito tempo sobre a escravidão, o trabalho forçado, diversas formas de servidão. Conforme foi desenvolvido por Mathias (1987), o salário pode, assim, representar tanto o valor quanto o favor, o que não deixou de ter suas consequências sobre as formas de dominação e de representação do Estado. Portanto, apesar do desenvolvimento das formas particulares de salarização, a aproximação é real.
O Estado foi, assim, o lugar e o elemento pelo qual se difundiram, primeiro, as relações mercantis, e, em seguida, as relações capitalistas. É essa situação original que explica ao mesmo tempo a amplitude da intervenção do Estado e sua estrutura.4 4 A intervenção direta do Estado na infraestrutura não é necessária se a dimensão do setor financeiro for suficientemente importante ou se existir a possibilidade de se apelar para o capital estrangeiro. A primeira possibilidade pode ser excluída: os mercados financeiros locais eram praticamente inexistentes nessa época. No segundo caso, a intervenção do Estado não desaparece: ela se manifesta por sua garantia, pela definição de um quadro de obrigações ou regulamentos. O estudo das ferrovias, sob esse ponto de vista, é muito interessante. Ver a respeito Netter (s.d.).
Esse tipo de intervenção encontra seu fundamento nas relações que mantiveram esses países no seio da economia mundial. Esse papel retomado pelo Estado e o tipo de formação social que existia explicam a violência estatal naquilo que ela possui de essencial. Em outras palavras, existia um divórcio entre a importância da intervenção e o baixo nível das forças produtivas, de maneira que a intervenção passava pela violência e a utilização de poderes baseados no binômio autoritarismo - paternalismo. Ou, ainda, o baixo nível das forças produtivas, a difusão quase marginal das mercadorias não podia, por definição, suscitar uma fetichização das relações sociais, suficiente para que a acumulação estatal pudesse se dar sem violência. Esse divórcio se reduz, na maioria das economias semi - industrializadas, mas continua existindo. A democratização vivida por alguns países, atualmente, inscreve-se nesse quadro. É também o que explica ser ela frágil. Mas o divórcio se reduz. As relações mercantis se ampliam. Uma violência estatal direta é cada vez menos objetivamente necessária, do ponto de vista da reprodução do capital, em primeiro lugar no quadro da especialização internacional, e em seguida ao nível da inserção subordinada na divisão internacional do trabalho. A violência tende a se igualar àquela que poderíamos qualificar de usual, existente nos países capitalistas desenvolvidos. O Estado, fetichizado pela difusão das relações de produção, exerce uma violência legítima, parecendo aquilo que não é, acima e ao lado da sociedade civil. Mas o caráter extremamente excludente da sociedade, que se manifesta notadamente por uma desigualdade de renda muito pronunciada, torna difícil essa visão do Estado. A manutenção dos privilégios substitui o divórcio (que já havíamos assinalado, e que tende a se reduzir) para favorecer a criação de Estados fortes e, pois, de regimes políticos de legitimidade restrita. Nessa medida, os regimes políticos com maior legitimidade tornam-se frágeis e ameaçados.
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2) Desde o início dos anos 80, com o desenvolvimento da crise financeira, assiste-se a uma modificação da política econômica na maioria desses países. A intervenção do Estado diminui, com a redução do déficit orçamentário e a busca de uma rentabilidade crescente das empresas públicas. O setor público é objeto de uma política de privatização (por exemplo, no México, mas também na Argentina e, em menor medida, no Brasil). A baixa intervenção do Estado face à reprodução da força de trabalho deixa de ser crescente, ou até mesmo chega a se reduzir.
Os sistemas de previdência social tornam-se frágeis, reproduzindo as desigualdades, ou até mesmo as acentuando, sobretudo no campo da saúde. As subvenções concedidas sobre uma série de bens de primeira necessidade são reduzidas em alguns países. A questão que se coloca é saber se essa nova orientação corresponde fundamentalmente a uma evolução no mesmo sentido da intervenção estatal, em cujo caso as medidas tomadas permitiriam que o capital se reproduzisse mais facilmente; ou, ao contrário, se elas são de natureza a tornar mais difícil a reprodução, sempre do ponto de vista do capital. A (ou as) resposta(s) que poderíamos dar difere(m) segundo o tipo de intervenção do Estado, concernente às condições de produção e de reprodução do capital, ou concernente às condições de reprodução da força de trabalho.
A intervenção do Estado nos setores energéticos, infraestrutural e industrial tende a baixar atualmente. É essencial saber se esse movimento é conjuntural, produto de uma simples correlação de forças desfavoráveis ao FMI ou se traduz tendências profundas ligadas ao nível de industrialização atingido, e ao desenvolvimento de um mercado financeiro nacional. Nos países menos industrializados, o papel do Estado enquanto elemento e meio de difusão das relações mercantis e/ou capitalistas continua fundamental na medida em que esses países, inseridos na divisão internacional do trabalho, que eles suportam mais do que determinam, devem tornar compatíveis suas estruturas produtivas com às do Centro. O papel do Estado como ponte é, portanto, essencial, como já vimos anteriormente, e uma diminuição de sua intervenção poderia acontecer em detrimento do desenvolvimento do setor exportador. Ou seja, uma redução da intervenção pública nos setores que tornam possível a atividade de exportação é certamente praticável, sendo desejável quando não imposta pelo FMI. Mas, se ela se tornar drástica, poderá provocar consequências negativas sobre a inserção desses países na divisão internacional do trabalho
É necessário precisar mais ainda essa questão, pois a importância da intervenção pública, frequentemente, não é senão o reflexo de uma burocratização maciça. Se a diminuição das despesas públicas concerne somente à gestão da força de trabalho do setor público, e visa reduzir o peso do mercado de trabalho do tipo “burocrático - tribal”, para retomar a expressão de Hugues Bertrand (1975Bertrand, H., (1975) Congo, Formation Saciale et Mode de Développement, Maspero, 1975. ), e, isto posto, consegue baixar o peso desmesurado dos encargos de pessoal no valor adicionado, então esta medida, do ponto de vista da eficácia do capital stricto sensu, poderia ser positiva.5 5 Mas não certamente do ponto de vista da legitimidade, porque a elevação do número de empregos públicos foi precisamente utilizada como meio de legitimação Mas se a diminuição vai além, e quando se trata de privatizar, então é preciso constatar que, na falta de capitalistas locais suficientemente importantes e com insuficiência de mercados financeiros, esses setores não poderiam encontrar tomadores, com exceção das firmas multinacionais, em certos segmentos potencialmente rentáveis e, consequentemente, a inserção dessas economias na economia mundial seria mais problemática. É por isso que para esses países os conselhos do FMI e do Banco Mundial visam muito mais a modificar as modalidades da intervenção do Estado (menos burocracia) do que diminuir o número de setores sobre os quais o Estado intervém.
Se o desenvolvimento dos setores exportadores, em primeiro lugar, e o· da indústria, em seguida, não podem se realizar a não ser com a presença importante do Estado na difusão das relações mercantis e/ou capitalistas, na constituição do setor infraestrutural e setores inteiros da indústria pesada, o próprio desenvolvimento da industrialização e o aparecimento de mercados financeiros sólidos fazem com que o Estado perca esse papel. A intervenção do Estado deixa de ser ativa e se torna cada vez mais acompanhadora.
Em outras palavras, a intervenção direta do Estado torna-se menos essencial, salvo nos setores em que as economias de escala e as dimensões financeiras parecem ainda muito grandes em relação à capacidade da jovem burguesia local. Salvo, igualmente, em segmentos onde uma política de socialização das perdas ainda é necessária para a melhoria das condições de valorização do capital privado. Isto quer dizer que o peso do terceiro fator - o nível comparativo das forças produtivas - torna-se menos importante e que, ao contrário, na medida em que se desenvolvem a industrialização e o mercado financeiro, o peso dos dois outros fatores - diferencial das taxas de lucro e crise-se acentua. Sabe-se que a intervenção do Estado baseada nesses fatores pode passar por uma intervenção indireta mais do que por uma intervenção direta. Não se trata de opor o Estado ao mercado. A intervenção indireta do Estado, longe de significar ausência de intervenção, traduz mais uma modificação de forma do que de conteúdo das relações que o Estado mantém com o capital. Sabe-se que, sem essa intervenção, setores inteiros da indústria de ponta nos EUA (privada) não teriam emergido. A intervenção indireta se traduz pela aplicação de uma política industrial (protecionismo temporário: reserva de mercado, subvenções diversas etc.).
Pode-se então pensar que, à medida que a industrialização e os mercados financeiros se desenvolvem, a intervenção estatal muda e, em certa medida, tende a se alinhar com a que existe nos países capitalistas desenvolvidos. Uma política de privatização parcial no setor industrial poderia, em princípio, não constituir um entrave a um desenvolvimento da acumulação do capital, com a condição de que ela se faça acompanhar por uma política industrial de peso.
Essas políticas de privatização se desenvolvem, entretanto, em um contexto muito diferente daquele que os países capitalistas desenvolvidos conheceram. Elas poderiam ter efeitos inversos aos pretendidos e constituir um obstáculo à reprodução do capital. Esse paradoxo merece um exame mais acurado.
Nos países capitalistas desenvolvidos, a privatização de uma parte do setor público é a tradução jurídica de uma tentativa de diminuir os custos, mesmo que em detrimento da própria noção de serviço público, desde que estes sejam considerados como muito importantes. Ela também pode corresponder à tradução política de um dogma (liberal) desde que as empresas públicas sejam competitivas e bem geridas. Mas fundamentalmente, e de maneira ao mesmo tempo mais precisa e mais ampla, esse movimento se inscreve no bojo de uma crise maior que os países desenvolvidos atravessam. A modificação da relação entre Estado e capital, inclusive no nível jurídico, pode constituir um meio de superar a crise. Mais precisamente, o realinhamento constante da taxa de lucro não pode se fazer a não ser sobre bases muito sólidas. A crise traduz, ao mesmo tempo, a necessidade de o capital se livrar de sua escória e a impossibilidade de fazê - lo sem uma relação estreita entre capital e Estado. A eliminação dos setores retardatários ou o aparecimento de setores de ponta passam por uma redefinição das relações entre capital e trabalho. É essa redefinição que permite que novas condições de trabalho (por exemplo, flexibilidade crescente da força de trabalho) possam ser concretizadas, e assim novos procedimentos de produção podem ser utilizados. Essas transformações podem passar por uma privatização parcial do setor público.
Nas economias semi - industrializadas a crise se reveste, hoje, de uma característica diferente. O peso da dívida e de seu serviço, mesmo que parcialmente, lhe dá um aspecto antes de mais nada financeiro. As empresas públicas frequentemente serviram de fachada para o Estado tomar empréstimos no mercado financeiro internacional. O passivo dessas empresas se dolarizou. As desvalorizações, acima do diferencial dos preços, sobrecarregam os encargos da dívida, agravando os efeitos negativos da alta das taxas de juros reais sobre a rentabilidade das empresas públicas. O endividamento tem um peso excessivo, limita seriamente sua capacidade de investimento e já fez com que algumas delas se tornassem deficitárias. A originalidade desta situação é que uma parte importante da evolução do passivo das empresas públicas não tem mais ligação com as decisões locais. A dolarização significa que os encargos evoluem ao sabor do que acontece nos mercados financeiros (taxa de juro) e de câmbio. A crise não pode resolver esse problema. Declarar uma moratória ou dolarizar o montante de negócios (exportando mais) e/ou seus ativos (comprando bônus de Tesouro em dólar ou indexados com base no dólar) pode permitir suspender as restrições e restabelecer uma rentabilidade fortemente afetada inclusive nas empresas modernas. (A moratória é uma tomada de posição que se situa imediatamente no nível político, - e sobre a qual trataremos em um segundo ponto). Dolarizar o montante dos negócios significa elevar as exportações em um contexto de desaceleração do comércio mundial. Dolarizar uma parte dos ativos reforça a especulação e afasta as atividades produtivas, o que, com o tempo, penaliza o nível de competitividade. A privatização não soluciona os problemas que vivem essas empresas, pois eles são mais financeiros que industriais. Ao contrário, poderia agravá - los.
A privatização, com efeito, tornou-se difícil, pois ela se situa em um contexto de redução das despesas públicas, que tem efeitos negativos sobre a rentabilidade dessas empresas, ainda fundamentalmente orientadas, assim como a maioria das firmas multinacionais, para a satisfação do mercado interno. Uma redução da demanda global, após a aplicação das políticas preconizadas pelo FMI, pesa diretamente sobre os campos mais dinâmicos e, com isso, age sobre os setores em que as empresas públicas são numerosas, sem que seja sempre possível compensar a perda de mercado pela conquista de mercados externos.
A internacionalização insuficiente dessas economias confere à demanda um papel essencial, superando o benefício esperado de uma redução de custo consecutiva à aplicação de uma política econômica dita liberal. A contração do mercado interno sobrecarrega os custos unitários, aumentando a capacidade ociosa, o que alimenta a espiral e não melhora, nestas condições, a rentabilidade.
A privatização, enfim, tomou-se difícil pela redução da taxa de poupança, observada ao mesmo tempo que se acentua a especulação. Pode-se pensar que, se um número significativo de empresas deveria ser privatizado, isso limitaria, provavelmente, o déficit orçamentário, aumentando as receitas, mas diminuiria igualmente as fontes de investimento. Dessa forma, o aspecto especulativo da economia se acentuaria, o que, nas circunstâncias atuais, dificultaria a reprodução do capital.
Em resumo, um processo de substituição da intervenção direta para intervenção indireta deveria acontecer. A crise financeira torna difícil essa evolução em um ritmo acelerado, retirando - lhe seu objeto, suscitando efeitos de evicção contra os investimentos no setor privado, o que é no mínimo paradoxal, quando se recorda que um dos argumentos dos liberais para a redução do peso do Estado na atividade econômica repousa precisamente sobre o efeito da evicção
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3) A gestão estatal da força de trabalho é geralmente fraca nas economias semi - industrializadas, sobretudo se comparada à existente nos países capitalistas desenvolvidos. Ela tendeu a crescer com a complexibilidade do aparelho industriai. Seu crescimento diminuiu e, em alguns países, tornou-se negativo, com o agravamento da crise financeira. Podemos nos perguntar se o desenvolvimento do capital, em condições de semi - industrialização, passa atualmente por uma gestão estatal da força de trabalho mais significativa e se a crise financeira não contraria um movimento que hoje se tornou necessário.
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a) Para responder a essa pergunta, é preciso fazer rapidamente algumas considerações sobre o salário e sua função. Historicamente, o salário não foi instituído para permitir que a força de trabalho se reproduzisse. A força de trabalho pode se reproduzir graças ao salário, é claro, mas também, e principalmente, graças à produção de um conjunto de bens e serviços que, diferentemente das mercadorias, não são produzidos para serem trocados no mercado.
Esses bens e serviços provêm da existência de relações de produção não - capitalistas, que podem se dar em um pedaço de terra, na produção destinada ao autoconsumo, ou família, permitindo a manutenção da capacidade de trabalho e sua reprodução. A força de trabalho evolui nessa combinação de relações capitalistas e não - capitalistas, necessárias à sua reprodução. Em outras palavras, a força de trabalho é ao mesmo tempo mercantil e não mercantil (quanto a sua reprodução); o segundo aspecto conduz ao primeiro assim que ela se constitui em mercadoria. O salário, em sua origem, não se constitui no meio através do qual a força de trabalho se reproduz. Bem ao contrário, ele é o meio pelo qual o homem se submete às relações de produção capitalista e, com isso, transforma a força de trabalho em mercadoria.
A entrada de força de trabalho no mundo das mercadorias se faz pela violência. A história possui numerosos exemplos. Sabe-se que a exigência de impostos elevados frequentemente teve por consequência (por objetivo?) obrigar os indivíduos a vender sua força de trabalho e, com o produto dessa venda, pagar seus impostos, ficando sua reprodução garantida por atividades de autoconsumo.
Desse histórico podem-se tirar duas conclusões. A primeira diz respeito ao aspecto mercantil e não - mercantil da reprodução da força de trabalho, e a segunda, à articulação entre dedução lógica e dedução histórica. A força de trabalho, portanto, possui sempre essa dualidade. Com o desenvolvimento do capitalismo, o aspecto mercantil se desenvolveu, mas não substituiu integralmente o aspecto não - mercantil. Este último é mantido em certos campos e desaparece em outros, com a diminuição do tamanho das famílias e o quase desaparecimento do autoconsumo. Sua redução não significou um enfraquecimento da dualidade, mas, ao contrário, sua transformação. O Estado, em muitos campos, substituiu a família. A reprodução da força de trabalho se dá sobre um tripé: o salário, as atividades não - mercantis privadas e uma gestão estatal. A socialização do mercado e da família juntou-se uma socialização do Estado. Esta última substituiu em parte a família, mas se relaciona igualmente com outros domínios nascidos de um desenvolvimento das necessidades essenciais. Ou seja, há uma série de necessidade que surgem com o desenvolvimento do capitalismo e da transformação dos métodos de trabalho, as quais, para serem satisfeitas, passam por uma socialização estatal da força de trabalho. (Observe-se que essa socialização poderia não passar pelo Estado.) E o que veremos em seguida.
Pretender que o salário represente exatamente o que é necessário à reprodução da força de trabalho manifesta uma incompreensão da articulação entre esta dedução lógica e a dedução histórica, e conduz a falsos debates. A dedução lógica permite construir categorias abstratas, cujo objeto é permitir uma compreensão da evolução histórica. As categorias mercadoria, valor, dinheiro, etc. foram construídas supondo-se uma série de hipóteses sólidas: ausência de nações, generalização das mercadorias. Se tudo é mercadoria, poder-se - ia considerar, evidentemente, que o primeiro teórico do “capital humano” seria Marx. . . (Lautier e Tortajada, 1978Lautier, B. e Tortajada, R., (1978) Ecole, Force de Travail et Salariat, PUG - Maspero, 1978. ). Isto já foi demonstrado sem que se tivesse constituído necessariamente um avanço. Essa hipótese é necessária a Marx para desmistificar a relação de troca entre equivalentes. Uma vez alcançado o objetivo, Marx supõe a dominação da mercadoria e não sua generalização, e se utiliza, então, de instrumentos de análise que se elaborou para mostrar como se efetua a empresa crescente do capital (daí suas análises da submissão formal e submissão real). A crítica, para ser pertinente, deveria, assim, questionar a validade da hipótese da generalização da mercadoria e sua transformação, em vez de continuar supondo a generalização e mostrar sua inexistência. Nessa mesma ordem de ideias, a crítica segundo a qual a força de trabalho não seria um valor porque as mercadorias que servem à sua reprodução não possuem valor (para tanto, precisam primeiramente possuir valor como mercadoria, e em seguida como medida de valor suposto da força de trabalho) não nos parece fundamentada. A força de trabalho é uma mercadoria específica, o que não quer dizer que ela não é uma mercadoria comparável a qualquer outra. Essa especificidade vem do fato de que ela não transmite apenas seu valor, mas cria um valor. A força de trabalho é moeda, quer dizer, salário (feita a hipótese da generalização das mercadorias), antes mesmo que o dinheiro a faça circular, como toda mercadoria. Mas, diferentemente das outras mercadorias, a conversão em moeda não tem por objetivo sua reprodução, mas sua produção. O salário produz a força de trabalho enquanto mercadoria (exclusivamente nesta hipótese) e permite substituir a parte utilizada pelo modo de produção, de tal sorte que a capacidade de trabalho possa se manter. O salário se exprime no valor dos bens necessários à reprodução da capacidade de trabalho e confere, por dedução, à força de trabalho esse valor. A sucessão dos encadeamentos é, pois, diferente da que se faz com as mercadorias, e não se trata, portanto, de uma dupla determinação, salvo se considerarmos a força de trabalho como uma mercadoria qualquer, isto é, omitindo sua especificidade (Lautier, 1980Lautier, B., (1980) “Travail Salarié, Socialisation du Travailleur et Statut de la Force de Travail”, 1980, mimeo. ).
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b) Dois fatores vêm em favor de uma maior gestão estatal da força de trabalho: o grau de industrialização atingido e a busca de uma legitimidade maior. Um terceiro fator contraria essa evolução: a crise financeira. A saída poderia ser a definição de um novo modo de exclusão. Vimos que quanto mais a industrialização se desenvolvia, tanto mais se tornava necessária uma gestão estatal crescente da força de trabalho. A evolução do processo de produção se traduz por uma redução da porosidade (tempos mortos), a intensificação do trabalho, e por penalização crescente do processo de trabalho. Daí resulta uma deterioração prematura da força de trabalho que só pode ser atenuada com o aumento das despesas com saúde. As famílias menos numerosas e a diminuição da solidariedade em função do desenvolvimento da urbanização conduzem à aplicação de mecanismos financeiros alternativos, permitindo a sobrevivência após o período de trabalho (aposentadoria). O aumento das despesas com saúde, os diversos abonos, a aposentadoria, não são, em geral, pagos diretamente pelas empresas. São contribuições dos trabalhadores, assim como dos empresários, e às vezes do Estado. A reprodução da força de trabalho passa, então, diretamente pelos salários, mas também indiretamente por mecanismos de socialização geridos frequentemente pelo Estado, ou, mesmo, estritamente controlados por ele. É por isso que se diz haver uma gestão estatal da força de trabalho. Essa gestão se desenvolveu acentuadamente nos anos 60 e 70. Observe-se, entretanto, que ainda é muito tênue e distribuída de modo bastante desigual. Ela abrange quase que exclusivamente o setor formal; exclui, então, uma parte muito importante da população ativa, portanto a atinge desigualmente. Observa-se, assim, que somente os assalariados que já possuem um mínimo de rendimentos são beneficiados. O exemplo das despesas com saúde é provavelmente o mais gritante deste ponto de vista. Os benefícios atingem um número muito reduzido, de tal sorte que as transferências vão desde os mais desprovidos até os mais abastados e, ainda assim, as desigualdades se acentuam. O processo é menos flagrante para outros benefícios e bonificações (aposentadorias, por exemplo, onde as categorias mais beneficiadas no Brasil situam-se na faixa de 3 a 4 salários - mínimos).6 6 Além desta argumentação sobre os encadeamentos, pode-se observar que a tese da dupla determinação - tal como foi enunciada - · não é pertinente. Toda mercadoria, seja força de trabalho ou não, conhece, desse ponto de vista, uma dupla determinação. Com efeito, em C - V - pl, há C e V que transmitem seu valor, o que significa que, regra geral, as mercadorias são produzidas com a ajuda de mercadorias, portanto, delas próprias.
Com a democratização, as despesas com saúde, com transportes, etc. transformaram-se rapidamente em objeto de acirrados debates, assim como as despesas com moradia e educação. A busca de uma legitimidade crescente com o fim das ditaduras passava por um aumento dessas despesas e por uma redução das desigualdades. O número de beneficiários deveria crescer, a desigualdade de tratamento deveria se atenuar. Sem cair no funcionalismo de O’Connor, pode-se pensar que tais despesas poderiam constituir a materialização da função de legitimação, e que a conquista da democratização deveria conduzir a uma gestão estatal da força de trabalho mais significativa e mais justa.
A crise financeira conduz à redução dos déficits do Estado, a uma tentativa por parte das empresas de diminuir o peso dos encargos sociais, constituindo-se, portanto, num freio ao crescimento dessas despesas. Pode-se mesmo observar que no Brasil, em 1985 e 1986, apesar de democratização, as despesas diretas do Estado aumentaram pouco, e que a parte dos seus encargos se reduziu em relação à dos trabalhadores e à das empresas e, enfim, que a orientação orçamentária caminhou no sentido de se criar capacidade de financiamento em vez de se aumentarem os gastos (Brasil - Programa EconômicoBrasil - Programa Econômico, vol. 13, 1986, Banco Central do Brasil. , p. 38).
A contradição entre, de um lado, a necessidade de uma socialização maior da reprodução da força de trabalho por razões econômicas e políticas, e de outro, a crise financeira aguda, externa e interna, parece atenuar a exclusão de uma parte da população.
Sabe-se que o crescimento industrial repousou sobre a capacidade do regime político de impor uma distribuição da renda não apenas desigual, mas com desigualdade crescente. Existia uma correspondência entre a estrutura produtiva e a estrutura das rendas, desde o final dos anos 60 até a metade dos anos 70. O regime de acumulação foi qualificado de “terceira demanda”: o avanço do setor de bens de consumo duráveis e de bens de equipamento estava diretamente ligado à ascensão das camadas ditas médias. O dinamismo desse regime de acumulação repousava, assim, sobre a capacidade de excluir ainda mais os que já estavam excluídos, a saber, a maioria da população. Entretanto, a ligação entre estrutura produtiva e estrutura de rendas foi se tornando mais frouxa. A correspondência, menos nítida. Sem dúvida, as desigualdades continuaram crescendo, mas gradativamente as camadas médias baixas também começaram a ter acesso aos benefícios sociais. Inicialmente o crescimento da produção repousou mais sobre o dinamismo do setor intermediário de bens de produção, isto é, sobre a capacidade do Estado de encontrar fontes de financiamento para lançar seus grandes programas de investimento, do que sobre o crescimento das camadas médias e de sua demanda específica.
Entretanto, o aparelho de produção não conseguiria atingir a complexidade que permitiu que pudessem se desenvolver setores como a química fina, a eletrônica médica, etc., se concomitantemente não se desenvolvesse uma demanda por suas mercadorias. O desenvolvimento da gestão estatal da força de trabalho e, mais particularmente, as despesas com saúde deveriam permitir um crescimento do mercado para esses· setores. Mesmo sem se expandir de maneira muito significativa, a demanda em matéria de saúde tende a ser mais homogênea do que é. A redução das desigualdades entre os beneficiários deverá se constituir numa ampliação dos mercados para toda uma série de produtos, em detrimento de outros, mesmo que as despesas com saúde não cresçam tão rapidamente. Tal modificação deveria se constituir em “mercados prévios· à instalação dessas indústrias de ponta.
De tais considerações podemos deduzir que mesmo que a gestão estatal da força de trabalho não vá aumentar significativamente nos próximos anos, ela será melhor repartida. Iríamos, assim, no sentido de constituir uma distribuição da renda com um núcleo sólido, não mais formado apenas pelas camadas ditas médias, mas pelas camadas médias baixas e pela “aristocracia operária”. A sociedade seria menos excludente. Frações da classe operária poderiam se beneficiar do desenvolvimento se este se mantivesse; a parte rejeitada, excluída, seria menos importante do que é. O fracionamento da sociedade permaneceria, mas as forças de dominação evoluiriam: aos excluídos, o autoritarismo - paternalismo industrial, aos outros, formas mais avançadas de democracia. Tal hipótese de trabalho nos conduz a um questionamento sobre o que fundamenta a legitimidade e a uma revisão do modo como o debate evoluiu nos últimos anos.
II.
A questão da legitimação é bastante complexa. Ela deu lugar a uma abundante literatura nos últimos anos. O aparecimento de regimes políticos mais democráticos do que no passado, o fim dos welfare state, e o desenvolvimento de ideologias liberais suscitaram um interesse crescente por essa questão. Mas sua atualização produziu igualmente confusões nos conceitos utilizados, no método adotado, e, pode-se dizer, foram também produzidas “descrições teorizadas” quase jornalísticas, de fácil compreensão.
Tentaremos evitar essa facilidade. Discutiremos a questão da legitimidade relacionada com o debate lançado pelos derivacionistas por duas razões: antes de mais nada, porque eles colocaram essa questão em primeira mão quando pesquisaram os fundamentos da legitimidade na fetichização das relações sociais de produção e deduziram a aparente neutralidade do Estado; em seguida, porque essa corrente evoluiu muito, e uma parte importante dela juntou-se às posições desenvolvidas pela escola de Frankfurt, em torno de Habermas e Offe, quando não de Max Weber.
Em uma primeira seção, trataremos dos fundamentos das políticas de legitimação em um nível teórico e, em uma segunda seção, das perspectivas que se podem tirar dos debates sobre a fragilidade dos regimes políticos atuais.
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1) Nós deduzimos a natureza de classe do Estado de uma categoria: do capital ou da economia mundial constituída. O Estado, categoria abstrata se manifestando sob a forma de um regime político, é um ‘capitalista coletivo em ideia’. É esta análise que nos permitirá compreender por que o Estado, intervindo enormemente na difusão e na produção das relações capitalistas, parecia se substituir a uma classe decadente (capitalista) que ele deveria representar. O Estado, na “vanguarda dos capitalistas”, não se reduzia a um capitalismo de Estado, muito cômodo. Sua natureza de classe lhe foi conferida pelas relações que ele deveria manter com os Estados do centro. O que se tornava interessante para analisar então era o divórcio entre essa natureza e a situação da formação social. Do divórcio, ou mais exatamente, dessa particularidade, deduzimos os fundamentos da legitimação restrita.
Da mesma maneira, o desenvolvimento assalariado, formal e informal, produzia a fetichização das relações de produção capitalistas e não parecia justificar, como antes, os regimes repressivos se não fosse para manter uma distribuição da renda extremamente desigual.
Não convém, portanto, nos limitarmos ao estudo da sucessão das categorias. Esta é útil para compreender a importância da intervenção do Estado e sua especificidade. E preciso, no entanto, utilizar os ensinamentos que essa abordagem proporciona para estudar como o Estado se constitui e como esta constituição se traduz em termos de legitimação.
Os fundamentos da legitimação podem ser encontrados na difusão das mercadorias; no fundo cultural e/ou na permanência do Estado. E a partir desses fundamentos que se pode praticar uma política de legitimação. E por isso que precisamos analisá - los em primeiro lugar.
Uma das originalidades da corrente da derivação é ter demonstrado que a generalização das mercadorias oculta o caráter de classe do Estado capitalista. Sem pretender retomar essa análise, diremos que a troca de equivalentes conduz a que não se veja nessa troca senão uma relação de coisas, uma devendo representar a outra quase que naturalmente, como se fosse seu atributo natural. A troca de uma certa quantidade de trabalho por uma certa soma de dinheiro oculta assim os mecanismos da produção de mais - valia na esfera da produção. O salário vale tantas horas de trabalho.
Nada mais. A fetichização das relações sociais de produção conduz naturalmente a ver no Estado somente o fiador de uma troca igual, um guardião, diriam os neoclássicos, um “guarda - noturno” (Gramsci). Aparecendo ao lado e acima da sociedade civil, seu caráter de classe se dissolve para reaparecer - algumas vezes com brutalidade - somente em momentos de crise grave. Pode-se, então, dizer que a fetichização das relações sociais de produção transmite-se ao Estado, e que o sistema de igualdade (equivalentes) torna-se o fundamento da democracia (Mandel, 1974Mandel, E., (1974) “Classes Sociales et Crise Politique en Amérique Latine “, Critique de l’Econoile Politique, série antiga 16 - 17, 1974. ).
A evolução contraditória da acumulação solapa a legitimação. A desfetichização age, alimentada pelas contradições do processo de acumulação. É por isso que a fetichização não poderia ser perfeita. Mas seria errôneo colocar em pé de igualdade fetichização e desfetichização. O fetichismo domina. Desde que a relação de troca não apareça mais como equivalente, ou mais exatamente, desde que ela apareça como inaceitável, aparecem as greves. Da mesma forma, seria errôneo deduzir que a recusa de troca nas condições existentes significa necessariamente uma descoberta da mais - valia e, portanto, do caráter profundamente desigual dessa troca aparentemente igual. É somente quando as greves aumentam que o crescimento da combatividade se transforma em desenvolvimento da consciência de classe, que a natureza de classe do Estado aparece mais nitidamente para inúmeros trabalhadores. Mas em todos os outros casos, como nas fases intermediárias - as mais características da existência do capital - a intervenção do Estado nas greves não se traduz por uma apreensão do seu caráter de classe, mas, na melhor das hipóteses, por um julgamento sobre sua oportunidade e por conclusões sobre a necessidade de mudar de linha política.
Se houvesse generalização das mercadorias, poderíamos pensar que a fetichização das relações sociais de produção bastaria para fundamentar a legitimidade. Mas vimos que essa hipótese servia apenas para construir categorias e que deveria ser substituída pela hipótese da denominação das mercadorias. Nós sabemos igualmente que, no caso das economias que se tornaram subdesenvolvidas, essa hipótese é igualmente inaceitável, pois precisamente o que caracteriza o subdesenvolvimento é a penetração brutal, em um espaço de tempo muito curto, da mercadoria do mundo não - mercantil, dominando - o e descaracterizando - o. A legitimação não seria, então, senão mercantil. Ela encontra fundamento no fundo cultural próprio de cada sociedade.
Essa dualidade na origem não é passiva. A legitimação mercantil se estende na medida em que se desenvolvem as relações mercantis, ela descaracteriza o fundo cultural mas não o suprime. A mercadoria pode, então, aparecer como o suporte da decomposição de uma cultura e ser rejeitada enquanto tal. Mas, inversamente, esse fundo cultural não é um dado inerte. É o produto de uma história e, portanto, igualmente das políticas de legitimação. É, portanto, ao mesmo tempo, um passado-servindo de fundamento às políticas de legitimação - e um futuro. Ele traduz os efeitos da difusão das relações mercantis e/ou capitalistas nas mentalidades, assim como os efeitos das políticas de legitimação. É por isso que se pode considerar que a difusão brutal das relações mercantis e/ou capitalistas pelo Estado na consciência das pessoas, sem que ele tenha o suporte das mercadorias, não poderia se fazer senão com a ajuda da utilização do fundo cultural dominante na época, e da violência.
Como Gilberto Mathias assinala, o salário não é somente uma troca de valor, é também, e principalmente, uma troca de favor (1987). Essa dualidade na determinação do nível do salário e na possibilidade de adquirir o estatuto de assalariado traduz as formas patriarcais de dominação capitalista. A desigualdade nas trocas é então aceita, pois manifesta a submissão pessoal daquele que busca um emprego frente àquele que o concede. A dominação é então legitimada por esse fundo cultural e pela fetichização. Da mesma forma não se poderia deduzir, por extensão, que o Estado possa se definir pelo monopólio da violência legitimada, como nos convidaria a fazê - lo uma aproximação weberiana. O papel específico atribuído ao Estado nas economias que se tornaram subdesenvolvidas é tal que ele não pode receber uma legitimação ampla, mesmo que ela fosse a tradução de uma violência aceita. Essa intervenção é, com efeito, particular: visa a uma inserção eficaz na divisão internacional do trabalho.
Ela não é o reflexo dos problemas vividos pela formação social na origem; serve-se desse fundo cultural - pensemos na utilização das hierarquias de parentesco para impor o assalariamento - e o descaracteriza. Pela sua amplitude, a intervenção do Estado não pode contar com uma legitimação mercantil nem principalmente com uma legitimação não mercantil suficiente. A violação do fundo cultural se torna por demais importante para que este possa conferir legitimidade à intervenção. E por isso que o Estado usa da violência do Estado e os regimes políticos têm uma legitimidade restrita.
Se considerarmos - erroneamente, como já dissemos - que a força de trabalho não possui valor, a análise do fetichismo não é mais pertinente, e o Estado não pode aparecer como um instrumento neutro, e por isso acima das classes sociais. Porém, se considerarmos que a troca entre duas mercadorias quaisquer não é uma troca entre equivalentes (Sánchez Sussarey), o Estado se torna aquele que torna possível uma troca desigual. Ele iguala o desigual. A violência é assumida pelo Estado, mas com isso seus efeitos são diminuídos. A mediação, inerente ao Estado, torna possível a troca, mantém a contradição no nível dos interesses corporativos, de sorte que é dela que se derivará a legitimação e não o inverso. Em outras palavras, a troca é desigual e o Estado a torna possível, substituindo com sua violência a violência das partes envolvidas. Assim ele a institucionaliza, tornando os sujeitos iguais por sua desigualdades perante ele. Ele a mediatiza. E esta capacidade que legitima sua ação.
O Estado é, então, aceito porque ele é o Estado. Ele não é um Estado de classe, pois é deduzido da mercadoria e não do capital. Ele se justifica por sua capacidade de tornar possível a troca. Sua legitimidade reside nessa capacidade. A legitimação não vem, portanto, da mercadoria e da fetichização, mas diretamente do Estado.
Sem necessariamente partilharem da hipótese do não - valor da força de trabalho ou da hipótese da troca desigual tornada igual, são poucos os que consideram que a questão da natureza de classe perde sua pertinência e, assim, o objeto da análise se desloca. Não se trata mais de analisar as causas da aparente neutralidade do Estado, mas de mostrar que o Estado tem legitimidade ao intervir no econômico em razão das contradições próprias ao processo de acumulação. A legitimação é o produto da harmonia não encontrada na acumulação e da capacidade do Estado de suprimir as contradições. “O problema da legitimação · do Estado”, escreve Habermas, “não consiste mais, hoje em dia, em se perguntar em que medida é possível mascarar, em proveito de algumas definições ideológicas do bem comum, as relações funcionais que mantêm o Estado e a economia capitalista ( ... ) O problema consiste principalmente em apresentar as performances da economia capitalista como sendo, na perspectiva de uma comparação dos sistemas, a melhor maneira possível de satisfazer interesses universalizáveis” (1985, p. 259).
Mas, como lembra Offe, o fetichismo da mercadoria não joga mais um papel importante como fonte de legitimação do Estado. A intervenção do Estado não se legitima pela aparência de sua neutralidade frente às classes sociais e por sua capacidade de aparecer como tal. Podemos dizer que o Estado é julgado pela sua capacidade de ação.7 7 No original, juge sur piêce. (N.T.) * Pouco importa que ele seja o que parece não ser, desde que seja eficaz. E essa eficácia é necessária. A acumulação do capital, com efeito, não poderia ser harmoniosa. É entrecortada por crises. Ela produz as crises e o Estado baseia sua legitimidade na sua capacidade de superar as crises. A dificuldade vem do fato de que o Estado não pode suprimir as crises e, neste sentido, a concepção de Habermas e de Offe, principalmente, não é a do Estado keynesiano (ver Habermas, 1978Habermas, J., (1985) Raison et Légitimité, Payot, 1978. e 1985Habermas, J., (1985) Aprês Marx, Fayard, 1985. ; Held e Krieger, 1983Held, D. e Krieger, J., (1983) “Accumulatíon, Legitimation and the State: The ideas of Offe and Habermas”, in State and Society, ed. D. Held, Martim Robertson, Oxford. ; Houle, 1985Houle, F., (1985) An Analysis of the Crisis of the Regime of Intensive Accumulation and the Welfare State, PhD, University of Canterbury, 1985. ; Offe, 1984Offe, C., (1984) Contradictions of the Welfare State, ed. por J. Keane, Hutchinson, 1984. Paniagua Ruiz, R., Etat et Capital, le Cas du Mexique, tese, Amiens, 1984, publicado em espanhol, UAM Iztapalapa, México. ). Segundo Offe, o Estado se define por sua exclusão da acumulação, ele é dependente da acumulação, tem uma função de acumulação. A dificuldade vem de que “o Estado não consegue preencher essas três funções que o definem, simultaneamente, por um longo período” (Held e Krieger, 1983Held, D. e Krieger, J., (1983) “Accumulatíon, Legitimation and the State: The ideas of Offe and Habermas”, in State and Society, ed. D. Held, Martim Robertson, Oxford. ).
Se reconstruirmos o raciocínio, podemos dizer que as crises são “geradoras de ameaças”, para retomar uma expressão de Habermas. O Estado responde a essas ameaças de desestabilização. “A legitimação reside no fato de que o Estado deve preencher todas estas tarefas sem beneficiar as virtualidades funcionais de uma economia capitalista, isto é, sem prestar atenção na relação de complementaridade que exclui o Estado do sistema econômico e o toma, ao mesmo tempo, dependente da dinâmica do sistema” (Habermas, 1985Habermas, J., (1985) Aprês Marx, Fayard, 1985. , p. 276). O Estado não pode substituir a lei do valor. Ele intervém na crise, retarda - a, atenua - a provisoriamente, modifica - a em suas manifestações, mas não pode suprimi-la duradouramente, “. . . Dai resulta que se atribua ao Estado a responsabilidade geral das deficiências supondo-se que ele seja capaz de cobrir essas deficiências, o que o coloca diante de um dilema”.· (idem, p. 277).
Pode-se desde já considerar que as contradições do processo de acumulação, somadas a “uma penetração dos processos econômicos capitalistas nos domínios cada vez mais numerosos da vida social” (idem, p. 277), fundamentam a legitimidade da intervenção do Estado, mas que, ao inverso, a incapacidade de solucionar duradouramente os problemas conduz aos déficits de legitimação.
Essa manobra é original, mas frágil. Basta demonstrar que as crises sobrevêm precisamente porque o Estado intervém, para “deslegitimar” a intervenção do Estado. É o que fizeram os liberais desenvolvendo o conceito de “Estado Menos”: a intervenção do Estado conduziria a efeitos de evicção, seria menos eficaz que as leis do mercado, bloquearia os retornos ao equilíbrio entravando seu funcionamento; ela se identificaria com a crise por ela provocada. A privatização permitiria tornar possível a superação da crise, e assim adquiriria uma virtude legitimadora. Esse desengajamento do Estado seria igualmente um meio de aliviar o peso crescente dos “gerentes de Estado”·e de reduzir assim a ameaça que eles constituiriam para os capitalistas, como assinala Block. Ela estaria na base da oposição ideológica da burguesia contra a “emergência de um Estado Leviatã que engoliria a sociedade civil”.· (Block, 1980Block, F., (1980) “Beyond Relative Automony: State Managers as Historical Subjects” in Socialist Register “, Ed. Milliband e Saville, Merlin Press, 1980. , P - 229).
Entretanto, a transição de um Estado assistencial para um Estado de livre empresa se efetua por meio de fechamentos de empresas, de licenciamentos de empregados sem estabilidade, de questionamentos às vezes brutais, de aquisições que, além de sua eficácia pretendida, são fontes de deslegitimação. A legitimidade de uma redução drástica da intervenção do Estado parece repousar muito mais na rejeição de uma decepção - a baixa eficácia da política intervencionista - do que sobre uma adesão à lei da selva. E o que explica sua precariedade quando é aplicada.
Indo um pouco mais além, pode-se observar que a intervenção do Estado, notadamente e sobretudo na gestão da força de trabalho, tem fundamentos materiais que a legitimam. Ela não é o produto de uma política econômica desinteressada. Corresponde a mutações de tal profundidade do aparelho industrial nos países capitalistas desenvolvidos no fim do século XIX e começo do século XX, que se pode perguntar se a crise do Estado Providência, hoje, não corresponde muito mais a uma modalidade de sua reprodução do que o prenúncio do seu fim, como o mostra F. Ewald.8 8 Salvo se se rejeitar o mundo da mercadoria e a civilização que ela deve representar. Esse “retomo às origens” pode conduzir a uma legitimação maior, baseada em um fundo cultural mistificado. Mas então, a intervenção do Estado muda de sentido e, poder-se - ia dizer, de função. No limite, se tal situação perdurar, pode-se considerar que a natureza de classe do Estado muda. Ela não é mais capitalista, pois esta característica não pode mais lhe ser conferida pela economia mundial constituída, na medida em que ela rejeita explicitamente suas regras e leis de funcionamento. Tal parece ser o caso da Revolução de Khomeini, no Irã. O critério de colocação na divisão internacional do trabalho merece ser explicitado. A recusa de se inserir na economia mundial não traduz necessariamente uma modificação da natureza de classe do Estado. A questão pode se situar somente a nível do regime político. A política econômica escolhida não é, de fato, o reflexo das exigências dos governos do centro. Como já assinalamos - contra os instrumentalistas - ela é, ao mesmo tempo, a expressão de uma divisão internacional do trabalho, à qual se submete, e a expressão de uma divisão internacional do trabalho que ela determina. Esta dualidade reflete uma outra: a dupla autonomia relativa do regime político frente à sua própria formação social e frente aos governos do centro. Igualmente, não é porque o Estado constitui o lugar e o meio da difusão das relações mercantis e/ou capitalistas que o regime político será totalmente prisioneiro dessa obrigação. Ela pesa, e é o que explica que o Estado tenha a tendência de intervir demais na atividade econômica. Sendo assim, é verdade que o isolamento de países como a Birmânia, a Guiné de Sekou Touré (exceto a extração de bauxita e sua exploração, que constituem um verdadeiro enclave), pode conduzir a questionar sobre a natureza de classe desses Estados, para além das formas tomadas por seus respectivos regimes políticos. Tal manobra significaria que se considera a natureza de classe capitalista desses Estados como muito frágil, tanto que a formação social não se desenvolve e as classes capitalista e operária crescem em seu interior. O que se chamou de “proto - Estados” africanos traduz essa fragilidade.
Essa necessidade de intervenção do Estado torna-se conscientizada. Ela a legitima, mas com isso vai além: penetra no fundo cultural, se historiciza. Assim, a redução maciça da intervenção do Estado na gestão da força de trabalho e também na gestão da crise, mesmo que indiretamente, não pode encontrar senão uma adesão provisória, ex ante. Neste sentido, pode-se dizer que a busca do fundamento da legitimidade na troca mercantil e no fundo cultural não é necessariamente contraditória com a concepção de uma legitimidade proveniente do Estado. Mais precisamente, poderia sê - lo se excluísse qualquer outro fundamento da legitimidade; ela não· o será desde que se situe em complementaridade.
Essas reflexões sobre a legitimação levam a uma interrogação sobre a violência. O controle do binômio legitimação-repressão não é somente essencial para qualificar os regimes políticos, mas principalmente para estabelecer as relações entre formas de acumulação e formas de dominação. A dificuldade está em que a repressão não é o inverso da legitimação. Os estudos históricos mostraram que a violência poderia ser legitimadora. Sem ir até aos estudos e teorização sobre o autoritarismo/paternalismo, G. Mathias mostrou recentemente que o binômio valor - favor da determinação do nível do salário e no acesso ao estatuto de salariado não estava apenas por acaso entre as formas de dominação política do Estado (Mathias, 1987Mathias, G., (1987) “Etat et Salarisation Restreinte au Brésil”, Tiers Monde, n.º 107, 1987. ).9 9 Conforme nos lembra Jaime Marques Pereira (1986, p. 3), G. Mathias mostrou que se “enraíza assim, na constituição do Estado nacional brasileiro o exercício privado das funções estatais no mundo rural, onde o Estado se confunde com o proprietário fundiário e se utiliza a administração pública para fins privados - como na prática costumeira da corrupção e da arbitrariedade dos funcionários”. A violência - repressão do Estado só seria o inverso da legitimação em uma sociedade totalmente mercantil, o que, como vimos, não é concebível. A legitimação não é, portanto, apenas mercantil. Ela tem outros fundamentos. É por isso que a violência - repressão pode se legitimar, se inscrever em um código de valor aceito. Ela é deslegitimadora se transgredir esse código. Pode igualmente ser aceita se se inscrever em um código de valor, de princípios, nas sociedades ditas desenvolvidas.10 10 “São as condições formais da justificação que adquirem um poder de legitimação”, escreve Habermas, (1985, p. 259). Nesse sentido, a legitimidade seria o reconhecimento da submissão; ela seria a aceitação, inclusive por aqueles que fossem minoritários, de um poder legitimado por eleições. Há, portanto, uma relação entre legitimação e legalidade. O fato de que as mulheres não votavam, na França, antes de 1945, não alterava a legitimidade dos governos da Terceira República. Mas, inversamente, se se tornasse novamente legal que as mulheres não votassem mais, tal decisão não seria legítima. A legitimidade não se confunde, portanto, com a legalidade. Do mesmo modo, é abusivo definir o Estado como tendo o monopólio exclusivamente da violência legítima, como o fazem os weberianos. O Estado é muito mais que isso. Sua existência, através dos regimes políticos que o representam, realiza-se igualmente por meio de uma violência - repressão que se opõe à legitimidade, precisamente porque ela transgride os códigos de valor11 11 Certos regimes políticos podem ser ditaduras legalizadas por uma constituição, mas nem por isso elas serão legitimadas. Mais do que isso, a legitimidade pode diferir da legalidade, desde que esta última “não seja mais aceita. É o argumento evocado pela resistência ao golpe, mas também pelos golpistas. Enfim, se a repressão é eficaz, ela se torna silenciosa, mas não se pode deduzir desse silêncio, dessa ausência de repressão efetiva, a legitimidade do poder. e de princípios que a sociedade civil formula. A violência estatal legítima se acrescenta a violência estatal ilegítima.12 12 A legalidade não se confunde com o código de valor. A violência ilegítima legal do Estado se choca com o fundo cultural e o modifica. Entretanto, a violência legítima do Estado pode ser percebida como ilegítima com a ajuda de um outro código de valor. Tocamos, aqui, em um ponto importante. Existem vários códigos de valor no mundo, os quais evoluem à sua maneira. Uma repressão pode parecer legítima em um país em razão do peso assumido pela legitimidade não - mercantil e totalmente ilegítima em sociedades onde a legitimidade não - mercantil tem um papel mais importante. É assim para os direitos do homem, violados em numerosos países, sem que isso se revista do mesmo sentido lá e cá. Tal constatação não impede que se façam julgamentos de valor sobre regimes políticos que praticam esse gênero de violação, ainda mais que a penetração mercantil torna obsoletos os princípios que poderiam legitimar tal violação, em razão do lugar específico desses países na economia mundial. O fundo cultural muda tanto mais rapidamente quanto penetra as relações capitalistas e se constituem as classes sociais. É essa dualidade que caracteriza o grau de democracia dos regimes políticos.
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2) Sabemos que os regimes políticos “de legitimidade restrita”, sejam civis ou militares, se multiplicaram na América Latina. Mesmo que possuíssem constituições democráticas, a aplicação das leis restringiu-se às cidades, mais particularmente a seu setor formal, e a legitimação foi, assim, restrita a algumas frações de classe. Chamamos atenção para isso no início de nosso estudo, retomando análises que fizemos em outros trabalhos (Mathias e Salama, 1983Mathias, G. e Salama, P., (1983) L’Etat Surdéveloppé et la Découverte, Maspero, 1983 (ed.port. Brasiliense, 1983). ).
As duas possíveis fontes de legitimação eram insuficientes para legitimar uma intervenção, cuja amplitude era suscitada pela inserção na economia mundial. As formas tomadas pela acumulação conduziam a formas de dominação particularmente opressivas; é o que nos levou a escrever que as forças particulares, tomadas pela intervenção do Estado, com a constituição da economia de exportação, tendiam a promover regimes políticos de legitimidade restrita cujo caráter “autoritário - paternal” não bastava para justificar e legitimar a totalidade da violência praticada.
Com a extensão das relações mercantis e a complexidade do aparelho industrial, a violência estatal deveria se ajustar à que existe nos países capitalistas desenvolvidos. A violência deveria ser, assim, apropriadamente legitimada pelo Estado, e as formas políticas de dominação deveriam se aproximar das que se observam nos países capitalistas desenvolvidos.
Essa evolução é ameaçada pelo jogo de diversos fatores. A desigualdade extrema da distribuição da renda favorece a aplicação de formas repressivas de dominação. A manutenção e a reprodução de privilégios excessivos passam pela capacidade de excluir a maioria da população dos frutos do crescimento. A reprodução das desigualdades de distribuição de renda favorece a instalação de regimes políticos de legitimidade restrita,13 13 Sabe-se, por exemplo, que a implantação de um regime de acumulação fundado no dinamismo da terceira demanda - a das camadas médias - passava pela capacidade política de aprofundar as desigualdades de renda, o que deveria se traduzir por uma repressão mais forte e frequentemente pela implantação de ditaduras policiais militares cuja estabilidade dependia de sua capacidade em resolver (!) duradouramente a combatividade operária. apesar de que, é verdade, a rapidez com a qual se desenvolveram as relações mercantis e capitalistas deixa um lugar ainda muito importante para o fundo cultural como fonte de legitimação, sobretudo no interior e nas regiões menos industrializadas. Mesmo que o fundo cultural seja alterado, sob o impacto da expansão das relações mercantis, a mutação da percepção das pessoas sobre a violência traduz a defasagem que possa haver entre a difusão das relações mercantis e a existência de fatores não mercantis nos fundamentos da legitimidade. ‘R por isso que a violência pode ser mais legítima nas regiões menos industrializadas e as desigualdades de renda podem ser reproduzir mais facilmente. É o que explica que a população dessas regiões possa ser ainda muito permeável à ideologia populista e votar nas forças conservadoras. Este raciocínio poderia ser estendido, com algumas nuances, à população das favelas mais miseráveis, pauperizadas, submetidas a uma exploração selvagem em atividades de sobrevivência do tipo informal.
A reprodução das desigualdades não constitui o único fator a favorecer o retorno aos regimes políticos fortes e a debilitar, assim, os regimes políticos mais democráticos implantados há pouco tempo. A situação econômica desses países, de fato, é de natureza a suscitar “ações de retomada”, se soluções confiáveis não forem adotadas com forte apoio popular. É o que analisaremos agora.
A crise financeira atinge esses países há muitos anos, em razão do enorme endividamento por eles vivido e da reviravolta no funcionamento do sistema financeiro internacional. Esta crise financeira reduziu consideravelmente a soberania monetária, orçamentária e até mesmo alimentar desses países. Analisamos. esta questão, longamente, em outro trabalho (Salama, 1987Salama, P., (1987) “Politiques d’Ajustement et Hétérodoxie en Amérique Latine”, Tiers Monde, n.º 109, 1987 (publicado também em Revista de Economia Política, vol. 7, n.º 3, 1987). ). As respostas a essa situação são de dois tipos. Ou o país adota, ou tenta adotar, as soluções preconizadas pelo FMI, ou tenta aplicar planos de austeridade, que se distinguem, por sua filosofia redistributiva, das sugestões do FMI e são, por esta razão, chamados heterodoxos.
As primeiras soluções não são eficazes. Elas precipitam a crise, provocam a desindustrialização, agravam a situação social. Reduzem a soberania do país, não somente porque exprimem uma submissão ao Fundo Monetário Internacional na definição de sua política econômica, mas também porque; dessa maneira, dão livre curso ao crescimento do endividamento, desenvolvem a inflação, acentuam a crise econômica As desvalorizações cambiais, superando o diferencial de preços constatado entre eles e o exterior, elevam os encargos financeiros dos empréstimos tanto das empresas quanto do Estado, pois estes são, em grande parte, dolarizados. A redução do déficit orçamentário conduz a uma redução proporcionalmente maior das despesas de investimento públicas e a uma estagnação, se isso implicar a queda das despesas de funcionamento do Estado; afetando a soberania orçamentária dos governos. As empresas são levadas a dolarizar seu ativo, seja para equilibrá - lo com seu passivo, seja para lucrar com o diferencial de rentabilidade das atividades financeiras. A especulação cresce. O desenvolvimento do mercado financeiro se dá sobre bases frágeis, pois exprime um efeito de evicção: as somas aplicadas não servem ao investimento, ao mesmo tempo que a parte da mais - valia consagrada ao pagamento do serviço da dívida cresce. A especulação aumenta, a industrialização tende a ceder lugar à desindustrialização e, como as rendas não acompanham o movimento de baixa no mesmo ritmo, à inflação dispara e se transforma em hiperinflação.
Em um nível macroeconômico, a transparência de capital provocada pelo pagamento do serviço da dívida se assemelha a uma fuga no sentido keynesiano, isto é, a um crescimento da poupança em relação ao investimento e, portanto, tem um efeito depressivo. O financiamento dessa transferência se realiza sobre a mais - valia produzida. Para que o montante consagrado ao investimento não seja igualmente reduzido é preciso que a eficácia do capital aumente o suficiente para elevar o montante da mais - valia produzida (diz-se, então, que a dívida é paga pelo crescimento), o que é muito difícil, e/ou que a renda dos trabalhadores seja reduzida. A recusa destes últimos em ver seus rendimentos reduzidos drasticamente alimenta os processos inflacionários.
A aplicação de políticas de ajustamento heterodoxas é difícil e seu sucesso problemático (Salama, 1987Salama, P., (1987) “Politiques d’Ajustement et Hétérodoxie en Amérique Latine”, Tiers Monde, n.º 109, 1987 (publicado também em Revista de Economia Política, vol. 7, n.º 3, 1987). ). Sem entrar em detalhes, trata-se, em primeiro lugar, de financiar o crescimento - até mesmo de cortar a desindustrialização - e de pagar o serviço da dívida, o que parece contraditório, pois o financiamento de um implica a redução do outro. Trata-se, em seguida, de retomar a produção pela demanda, favorecendo uma distribuição da renda menos desigual, e paralelamente frear o crescimento muito impetuoso da demanda a fim de evitar o aparecimento de pontos de estrangulamento que podem provocar fortes pressões inflacionárias. Nessas condições, retomar o investimento eliminando a hiperinflação constitui uma espécie de quadratura do círculo. Basta que o aparelho de produção não seja suficientemente versátil para provocar um excedente comercial, para que o protecionismo se desenvolva, e a confiança no sucesso duradouro do plano não seja grande, para frustrar esses objetivos. O crescimento da demanda pode tornar-se brutal, alimentado, é claro, pelo aumento do emprego e uma distribuição de renda mais igualitária, e, sobretudo, pela liquidação da poupança, e se realiza por um desvio das exportações para o mercado interno, reduzindo igualmente o saldo comercial e a capacidade de financiar o serviço da dívida.
A inflação ressurge e alimenta - a justo título - as reivindicações. O lancinante problema do serviço da dívida reaparece com brutalidade. O fracasso ou o meio fracasso das políticas de ajustamento heterodoxas solapam a legitimidade reencontrada.
Cabe indagar se a fragilidade das democracias atuais traduz uma violência estrutural do Estado e se o retorno das ditaduras não está inscrito nessa fragilidade. Cabe também questionar a violência surda do Estado e ver nela a manifestação de um passado recente.
Até recentemente, quando se tratou de difundir as relações mercantis e/ou capitalistas, a violência do Estado era tanto maior quanto menores eram os suportes da legitimação: a legitimação mercantil era débil na falta de uma circulação mercantil consequente, e a legitimação estatal era quase inexistente até que a CEPAL legitimasse a intervenção do Estado a fim de superar a tendência à estagnação econômica; e a legitimação não - mercantil era frequentemente insuficiente porque a intervenção do Estado transgredia um código de valor que ela tentava utilizar. A violência estatal se revestia, assim, de um aspecto estrutural. Legitimada mais por regimes populistas e menos por outros tipos de regime, ela se manifestava de maneira fracionada-segundo as categorias sociais - mas possuía um aspecto estrutural, que era o produto da inserção da economia na divisão internacional do trabalho.
Com o desenvolvimento das relações mercantis e/ou capitalistas e com a complexidade do aparelho industrial, a situação muda. A violência estatal deveria se alinhar com a existente nos países capitalistas desenvolvidos e perder o aspecto estrutural que a particularizava. Os regimes políticos deveriam ser mais democráticos e os fundamentos materiais de uma legitimidade mais ampla deveriam ser mais sólidos. Em outras palavras, se considerarmos que a razão da implantação das ditaduras era a incapacidade - frequentemente pela falta - de uma burguesia de inserir a economia na divisão internacional do trabalho e proceder a uma acumulação primitiva, uma vez feita esta última, a base material das ditaduras deveria desaparecer.
A legitimação mercantil desenvolveu-se. A legitimação estatal cresceu: a crise, notadamente financeira, legitima a intervenção do Estado nas condições que já vimos, e, como sabemos, a legitimação não - mercantil permanece bastante elevada. A esses aspectos estruturais é preciso acrescentar a lembrança mais ou menos forte, na consciência da população, do fracasso global dos militares, tanto a nível econômico quanto político. A consciência do fracasso constitui, por ora, um obstáculo ao retorno das formas ditatoriais de poder. Mas é também verdade que a importância desse obstáculo depende do grau de consciência, o qual é consequência da percepção do fracasso econômico pelas diferentes classes sociais frente às dificuldades atuais vividas pelas democracias, da situação atual dos militares e de seu desempenho diante dos tribunais. Seja no nível econômico, seja no nível político, a situação difere no Brasil e na Argentina, por exemplo.
Assim, de um lado, a intervenção direta do Estado e no setor infraestrutural, energético e manufatureiro pode se tornar menos importante, e, de outro, as bases de uma legitimação mais ampla manifestam-se mais claramente. Poderia resultar daí uma consolidação das democracias. A violência estrutural do Estado muda: ela é menos necessária, é diferente. Menos necessária, pois o papel do Estado muda com o desenvolvimento do aparelho industrial; diferente, porque a situação das economias semi - industrializadas ainda difere profundamente da situação das economias ditas desenvolvidas.
As desigualdades de distribuição de renda são muito elevadas. A gestão estatal da força de trabalho é fraca e não corresponde ao grau atingido pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas. A busca de uma legitimidade maior e sua consolidação deveriam conduzir à instalação de um regime de acumulação menos excludente. Com os planos de austeridade heterodoxos, tentativas ainda tímidas foram feitas nesse sentido. Mas, como pudemos observar, a socialização estatal da reprodução da força de trabalho não se ampliou e a solidariedade não se desenvolveu. A pressão externa, cuja manifestação mais forte é o serviço da dívida, pesa excessivamente sobre as opções econômicas.
O esgotamento dos regimes de acumulação precedentes, a crise financeira e suas consequências, a busca de uma legitimação crescente e até mesmo sua consolidação podem conduzir à instalação de um regime de acumulação centrado na satisfação das necessidades das camadas situadas imediatamente abaixo das camadas médias. As desigualdades de distribuição de renda serão menos pronunciadas e o dinamismo do regime de acumulação repousará no êxito desses setores e de seu acesso a toda uma série de bens de consumo duráveis, à saúde e a uma moradia mais decente.
Uma evolução desse tipo atenuaria as desigualdades de renda, mas estas permaneceriam ainda muito importante. · A sociedade conservaria seu aspecto excludente. e provavelmente esta característica que constituiria uma ameaça à democracia. A reprodução das desigualdades, mesmo que atenuadas, pode passar por uma maior violência não legitimada do Estado sobre os excluídos, e/ou pela instalação de regimes políticos próximos do populismo.
Mas tal evolução encontra numerosos obstáculos. A criação de uma nova estrutura produtiva correspondente à nova distribuição das rendas não pode se realizar se·as transferências para o exterior permanecerem tão importantes quanto o são agora. Isso significa que a evolução pode encontrar dificuldades crescentes do lado dos bancos internacionais e também que, em quaisquer circunstâncias, o serviço da dívida seja discutido em um nível global e sobre quaisquer outras bases, menos as que têm sido praticadas até agora. O obstáculo exterior não é o único. Uma distribuição da renda mais igualitária choca-se com os interesses imediatos das camadas médias, no momento em que seus rendimentos são ameaçados pela crise financeira. Isto quer dizer que tal política pode não contar com a sua concordância.
A crise financeira torna muito difícil as modificações necessárias para uma consolidação da democracia. As dificuldades em se encontrar uma outra via que não a preconizada pelo Fundo Monetário Internacional e que seja confiável e a falta de vontade de operar mudanças importantes na distribuição da renda solapam a legitimidade, retomam a inflação e podem abrir caminho para regimes políticos mais autoritários.
Resta esclarecer que não se deve confundir legitimidade com apoio popular. Os dois estão ligados, mas não se confundem. Um regime político democrático tem uma ampla legitimidade, à diferença de uma ditadura, mas um governo pode perder o apoio popular. O caráter democrático desse regime político se traduz precisamente pela capacidade de mudar democraticamente de governo. O enfraquecimento do apoio popular pode, assim, facilitar o advento de um regime político de legitimidade mais restrita.
A dupla característica - de um lado a reprodução das desigualdades, ainda que atenuadas, e, de outro a crise financeira e as grandes dificuldades para resolvê-la - constituem fatores desestabilizantes e uma ameaça para a democracia. Inversamente, o crescimento da legitimidade mercantil e da legitimidade estatal, a percepção do fracasso econômico dos regimes militares e de seu terrorismo social reforçam as chances da democracia tanto no nível estrutural quanto no nível conjuntural. A crise financeira pode então fornecer condições para o desenvolvimento de políticas de legitimação baseadas em uma recusa nacionalista aos conseils - diktats do Fundo Monetário Internacional e por uma satisfação maior das necessidades essenciais. Mas a própria crise financeira e a dificuldade em resolvê-la podem incitar os governos a se oporem de maneira violenta às consequências das dificuldades, isto é, as lutas sociais, e assim perderem sua credibilidade.
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1
Para uma apresentação geral, ver J. M. Vincent (1975Vincent, J. M. (org.), (1975) L’État Contemporain et le Marxisme, Maspero, 1975. ), Holloway e Piccioto (1978Holloway e Piccioto (orgs.), (1978) State and Capital, A Marxist Debate, Ed. Arnold, 1978. ), P. Salama (1980Salama, P., (1980) Sur le Valuer, Maspero, 1976 (ed. port., Sobre o Valor, Livros Horizonte, 1980). : 18), Solis Gonzáles (1983Solis Gonzales, (1983) “Notes sur le Problême de l’Etat Capital dans les Pays Capitalistes Périphériques “. tese, Amiens, 1983. ), Paniagua Ruiz (1984), Sánchez Sussarey (s.d.Sanchez Sussarey, J. (sd), “La Forme Marchandise et la Forme Étàt, Critique de la Théorie de la Dérivation “, tese, Paris 1 - IEDES, publicada em espanhol, Universidad de Guadalajara, México. ), J. Martine (1983Martine, J., (1983) L’Or, la Parole et l’Etat. Critique Marxiste des Fétiches, Anthropos, 1983. ), T. Negri (1978Negri, T., (1978) “Sur Quelques Tendances de la Théorie Communiste de I’État la Plus Récente: Revue Critique”, Revue Contradiction, 1978. ).
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2
É o Estado capitalista, isto é, a natureza de classe deste Estado que é deduzida da categoria capital. O Estado sui generis não é um produto do capital o qual ele ajudaria a desenvolver. É uma relação social de dominação que se impõe à sociedade. A forma de dominação do Estado constitui, assim, uma trama que ultrapassa o âmbito do capitalismo. A uma certa época, assim que o capital se expandiu e teve necessidade desse Estado para se desenvolver, sua natureza de classe muda e se toma capitalista, frequentemente com auxílio da violência. Deduzir a natureza de classe do Estado não exclui, portanto, a existência de uma forma de dominação do Estado anterior ao capitalismo. Ela a especifica, o que permite abordar a problemática dos limites da intervenção do Estado. Sobre esse debate, ver B. Thérét (1985Theret, B., (1985) “Les Métamorphoses Fiscales du Capital: Formes Salariales d’Exploitation et Formes Étatiques de Domination “, Carnets des Ateliers de la Recherche, Amiens, 1985. ).
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Esta aproximação foi irregular tanto no que concerne aos meios de produção quanto à força de trabalho. Esta repousou muito tempo sobre a escravidão, o trabalho forçado, diversas formas de servidão. Conforme foi desenvolvido por Mathias (1987Mathias, G., (1987) “Etat et Salarisation Restreinte au Brésil”, Tiers Monde, n.º 107, 1987. ), o salário pode, assim, representar tanto o valor quanto o favor, o que não deixou de ter suas consequências sobre as formas de dominação e de representação do Estado. Portanto, apesar do desenvolvimento das formas particulares de salarização, a aproximação é real.
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A intervenção direta do Estado na infraestrutura não é necessária se a dimensão do setor financeiro for suficientemente importante ou se existir a possibilidade de se apelar para o capital estrangeiro. A primeira possibilidade pode ser excluída: os mercados financeiros locais eram praticamente inexistentes nessa época. No segundo caso, a intervenção do Estado não desaparece: ela se manifesta por sua garantia, pela definição de um quadro de obrigações ou regulamentos. O estudo das ferrovias, sob esse ponto de vista, é muito interessante. Ver a respeito Netter (s.d.Netter, M., (sd) “Etats et Transports Terrestres en Pays Capitalistes Développés: Une Approche Historique Comparative “, CNRS, Centre de Recherche d’Economie des Transports, mimeo. ).
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Mas não certamente do ponto de vista da legitimidade, porque a elevação do número de empregos públicos foi precisamente utilizada como meio de legitimação
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Além desta argumentação sobre os encadeamentos, pode-se observar que a tese da dupla determinação - tal como foi enunciada - · não é pertinente. Toda mercadoria, seja força de trabalho ou não, conhece, desse ponto de vista, uma dupla determinação. Com efeito, em C - V - pl, há C e V que transmitem seu valor, o que significa que, regra geral, as mercadorias são produzidas com a ajuda de mercadorias, portanto, delas próprias.
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No original, juge sur piêce. (N.T.)
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Salvo se se rejeitar o mundo da mercadoria e a civilização que ela deve representar. Esse “retomo às origens” pode conduzir a uma legitimação maior, baseada em um fundo cultural mistificado. Mas então, a intervenção do Estado muda de sentido e, poder-se - ia dizer, de função. No limite, se tal situação perdurar, pode-se considerar que a natureza de classe do Estado muda. Ela não é mais capitalista, pois esta característica não pode mais lhe ser conferida pela economia mundial constituída, na medida em que ela rejeita explicitamente suas regras e leis de funcionamento. Tal parece ser o caso da Revolução de Khomeini, no Irã. O critério de colocação na divisão internacional do trabalho merece ser explicitado. A recusa de se inserir na economia mundial não traduz necessariamente uma modificação da natureza de classe do Estado. A questão pode se situar somente a nível do regime político. A política econômica escolhida não é, de fato, o reflexo das exigências dos governos do centro. Como já assinalamos - contra os instrumentalistas - ela é, ao mesmo tempo, a expressão de uma divisão internacional do trabalho, à qual se submete, e a expressão de uma divisão internacional do trabalho que ela determina. Esta dualidade reflete uma outra: a dupla autonomia relativa do regime político frente à sua própria formação social e frente aos governos do centro. Igualmente, não é porque o Estado constitui o lugar e o meio da difusão das relações mercantis e/ou capitalistas que o regime político será totalmente prisioneiro dessa obrigação. Ela pesa, e é o que explica que o Estado tenha a tendência de intervir demais na atividade econômica. Sendo assim, é verdade que o isolamento de países como a Birmânia, a Guiné de Sekou Touré (exceto a extração de bauxita e sua exploração, que constituem um verdadeiro enclave), pode conduzir a questionar sobre a natureza de classe desses Estados, para além das formas tomadas por seus respectivos regimes políticos. Tal manobra significaria que se considera a natureza de classe capitalista desses Estados como muito frágil, tanto que a formação social não se desenvolve e as classes capitalista e operária crescem em seu interior. O que se chamou de “proto - Estados” africanos traduz essa fragilidade.
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Conforme nos lembra Jaime Marques Pereira (1986Marques Pereira, J., (1986) Les Enjeux Politiques de la Question Urbaine au Brésil, Documento ORSTOM, 1986. , p. 3), G. Mathias mostrou que se “enraíza assim, na constituição do Estado nacional brasileiro o exercício privado das funções estatais no mundo rural, onde o Estado se confunde com o proprietário fundiário e se utiliza a administração pública para fins privados - como na prática costumeira da corrupção e da arbitrariedade dos funcionários”.
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“São as condições formais da justificação que adquirem um poder de legitimação”, escreve Habermas, (1985Habermas, J., (1985) Aprês Marx, Fayard, 1985. , p. 259). Nesse sentido, a legitimidade seria o reconhecimento da submissão; ela seria a aceitação, inclusive por aqueles que fossem minoritários, de um poder legitimado por eleições. Há, portanto, uma relação entre legitimação e legalidade. O fato de que as mulheres não votavam, na França, antes de 1945, não alterava a legitimidade dos governos da Terceira República. Mas, inversamente, se se tornasse novamente legal que as mulheres não votassem mais, tal decisão não seria legítima. A legitimidade não se confunde, portanto, com a legalidade.
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Certos regimes políticos podem ser ditaduras legalizadas por uma constituição, mas nem por isso elas serão legitimadas. Mais do que isso, a legitimidade pode diferir da legalidade, desde que esta última “não seja mais aceita. É o argumento evocado pela resistência ao golpe, mas também pelos golpistas. Enfim, se a repressão é eficaz, ela se torna silenciosa, mas não se pode deduzir desse silêncio, dessa ausência de repressão efetiva, a legitimidade do poder.
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A legalidade não se confunde com o código de valor. A violência ilegítima legal do Estado se choca com o fundo cultural e o modifica. Entretanto, a violência legítima do Estado pode ser percebida como ilegítima com a ajuda de um outro código de valor. Tocamos, aqui, em um ponto importante. Existem vários códigos de valor no mundo, os quais evoluem à sua maneira. Uma repressão pode parecer legítima em um país em razão do peso assumido pela legitimidade não - mercantil e totalmente ilegítima em sociedades onde a legitimidade não - mercantil tem um papel mais importante. É assim para os direitos do homem, violados em numerosos países, sem que isso se revista do mesmo sentido lá e cá. Tal constatação não impede que se façam julgamentos de valor sobre regimes políticos que praticam esse gênero de violação, ainda mais que a penetração mercantil torna obsoletos os princípios que poderiam legitimar tal violação, em razão do lugar específico desses países na economia mundial. O fundo cultural muda tanto mais rapidamente quanto penetra as relações capitalistas e se constituem as classes sociais.
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Sabe-se, por exemplo, que a implantação de um regime de acumulação fundado no dinamismo da terceira demanda - a das camadas médias - passava pela capacidade política de aprofundar as desigualdades de renda, o que deveria se traduzir por uma repressão mais forte e frequentemente pela implantação de ditaduras policiais militares cuja estabilidade dependia de sua capacidade em resolver (!) duradouramente a combatividade operária.
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Traduzido por Solange Ramos Esteves e revisado por Guido Mantega.
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JEL Classification: P16; P10; H10.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Fev 2024 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 1988