Open-access As formas de organização “em rede”: configuração e instrumento de análise da dinâmica industrial recente

Forms of network organization: configuration and instrument of analysis of the recent industrial dynamic

RESUMO

A transição dos anos 80 para os 90 aponta para o crescimento de um novo padrão de industrialização e desenvolvimento. Nesse processo, novas formas de organização intra e inter firmas se desenvolvem. O objetivo deste artigo é caracterizar a “nova” forma de organização das empresas, a “rede”, e discutir os fundamentos teóricos que sustentam esse novo tipo de configuração da gestão das interdependências entre os agentes econômicos. Identificam-se duas linhas principais, centradas, respetivamente, na alocação e na criação de recursos, que dão visões distintas do processo de organização e da delimitação das inter-relações entre as empresas.

PALAVRAS-CHAVE: Globalização; organização em rede; inovação

ABSTRACT

The transition from the 80’ s to the 90’ s points to the growing of a new pattern of industrialization and development. In this process, new forms of intra and inter firms organization develop. The purposes of this paper are to characterize the “new” form of firm organization, “network”, and to discuss the theoretical basis which support this new kind of shaping the management of the inter-dependences among the economic agents. Two main lines are identified, centered, respectively, in the allocation and in the creation of resources, that give distinct visions of the organization process and of the delimitation of the inter-relations among firms.

KEYWORDS: Globalização; network organization; innovation

O cenário dos anos 80 e 90 apresenta-se marcado por profundas mudanças, em razão do intenso processo de inovação tecnológica e de alterações na estrutura do comércio e das relações de poder internacionais, conformando um “ambiente” mutável e incerto típico das fases de grandes transformações.

O caráter mutável e incerto do novo ambiente se acentua com a redução considerável da amplitude e da magnitude da intervenção do Estado na coordenação direta e indireta da atividade econômica. No caso do Brasil, deve-se ainda considerar a emergência da crise fiscal (Bresser-Pereira, 1992) e das orientações de cunho neoliberal, que se traduzem não só na desarticulação de importantes inter-relações cimentadas pelo Estado, mas, também, no caráter “frouxo” ou mesmo na ausência da coordenação de novas articulações entre os agentes econômicos.

Trazido para o âmbito das decisões estratégicas das empresas, o novo “ambiente” expressa a combinação de um jogo competitivo muito mais dinâmico e complexo com a exacerbação da nebulosidade do cálculo capitalista, impelindo à busca de novas fontes e de novas formas de obtenção/manutenção de vantagens competitivas, assim como de fórmulas para compartilhar os crescentes riscos imanentes às decisões.

Nesse processo sobressai, como componente fundamental, a reformulação das “formas de organização” intra e inter-empresas, incorporando como orientações centrais o aumento da agilidade e da versatilidade das empresas às novas condições.

Sem descartar a importância dos impactos das alterações operadas no âmbito interno das empresas, as mudanças na esfera das interações entre elas colocam-se no centro da dinâmica recente, ao apresentar importantes desdobramentos no interior do tecido industrial, a partir da redefinição e da intensificação das articulações entre o conjunto de unidades econômicas integrantes do processo produtivo.

Dentre as profundas transformações nas articulações das relações entre empresas sobressaem as seguintes:

a) novas relações emanadas do processo de externalização/terceirização de atividades, por parte das grandes empresas, voltadas, de modo particular, para o “enxugamento” da estrutura administrativa e a consequente redução dos custos fixos;

b) estreitamento de relações e estabelecimento de interações sistemáticas, por parte das “empresas-núcleo”1, com suas fornecedoras, distribuidoras e com clientes, cuja tendência é a consolidação de padrões estáveis de relacionamento, assentados em um processo de seleção/exclusão; e

c) consolidação de alianças estratégicas entre empresas concorrentes - originárias do país e ou de outros países; pertencentes ao mesmo domínio de atividade ou procedentes de domínios distintos - que, de modo geral, se aliam buscando integrar “competências complementares”, visando à conquista de mercados externos, ampliação do mercado interno e ao acesso às novas tecnologias.

Esse conjunto de transformações nas formas de vinculação entre os agentes que integram a cadeia produtiva e entre concorrentes engendra novas configurações organizacionais, cujas características centrais são a interpenetração e a fluidez de fronteiras entre os agentes econômicos. São vínculos dinâmicos, em termos da forma e do conteúdo das relações, cujo alcance não está limitado por qualquer tipo de fronteira (organizacional ou geográfica), evidenciando um vasto campo de interdependências, que vão muito além das meras relações de compra e venda, abrangendo: a) necessidades e restrições comuns, em termos de recursos, preferências, pontos de estrangulamento e problemas técnicos; b) desenvolvimento e compartilhamento de informações, seja de natureza científica, seja em decorrência de aspectos ligados à produção e à comercialização; e c) interação entre estratégias.

A natureza das novas configurações organizacionais derivadas de um “novo modelo de articulação das relações” entre as empresas deixa patente a insuficiência dos aparatos teórico-metodológicos tradicionais para descrever e explicar a nova dinâmica das articulações entre os agentes.

Assim, o objetivo deste artigo é apresentar um novo instrumental de análise da dinâmica recente de estruturação das relações entre as empresas - a organização “em rede” -, mostrando tratar-se de um corte analítico historicamente significativo e teoricamente procedente. Com essa finalidade, são explicitadas as formas pelas quais as empresas se estruturam “em rede” e propõe-se a discussão da base teórica que fundamenta esse tipo de conformação da gestão das interdependências entre os agentes econômicos.

1. AS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO “EM REDE”

Na área de “economia industrial”, o conceito de organização “em rede” vem sendo utilizado por diversos autores2, em particular na França e na Itália, colocando-se como um referencial possível para a explicação das relações entre as empresas nas configurações recentes.

As “redes” constituem arranjos organizacionais que utilizam recursos e envolvem a gestão das interdependências de várias empresas, “criando um ambiente suscetível de provocar a emergência de externalidades dinâmicas (pecuniárias, tecnológicas etc.), complementaridades e fenômenos cumulativos, notadamente no plano das competências” (Guilhon, 1992, p. 573).

A noção de organização “em rede” obriga a repensar os limites da empresa individual, colocando acento nos diversos tipos de articulação com outras unidades, os quais impelem ao desenvolvimento de relações complexas. Nesse sentido, “o comportamento de um agente não pode ser dissociado de outros agentes com os quais ele estabelece interações sistemáticas (como fornecedores e clientes), nem da especificidade dos recursos humanos e tecnológicos mobilizados” (Britto, 1994, p. 120).

Na montagem do sistema técnico-produtivo que integra as capacidades operacionais e as competências técnicas dos agentes econômicos, no interior da rede, sobressaem determinadas especificidades de formato organizacional, associadas à natureza da motivação subjacente às articulações e ao tipo de parceiro envolvido. Nesse sentido, é possível distinguir entre “redes verticais” e “redes horizontais” (Guilhon, 1992).

1.1. Redes verticais

Em essência, a “rede vertical” envolve a articulação estreita das atividades de um conjunto de fornecedores e distribuidores por uma empresa coordenadora que exerce considerável influência sobre as ações desses agentes que integram a cadeia produtiva. Ela se fundamenta na agregação de empresas especializadas complementares, que, “pela sua própria existência, reforçam a especialização de cada um dos participantes” (Delapierre, 1991, p. 43). Nesse sentido, observa-se a perda de autonomia relativa dos agentes, na medida em que a sua identidade se dissolve no interior do conjunto.

Da perspectiva da grande empresa coordenadora, além de representar um importante instrumento de acesso às competências detidas por outros agentes, a “rede vertical” assegura o controle estratégico de toda a cadeia.

Esse tipo de formato organizacional emerge em decorrência do redimensionamento da estrutura interna das grandes empresas, em conjugação com a consolidação de padrões estáveis de relacionamento com os agentes que integram a cadeia produtiva, estando associada, portanto, a duas lógicas de organização: a descentralização e a quase-integração.

Por sua vez, na sua implementação podem ser observados dois tipos de orientação: defensiva e ofensiva.

Na orientação defensiva, a preocupação é com a sobrevivência. O processo de reorganização da estrutura das atividades das grandes empresas adquire um caráter de “enxugamento” das dimensões internas, em particular da redução dos custos burocráticos de gestão, objetivando o rebaixamento do break even point, de modo a atingir uma maior capacidade de amortecer as flutuações acentuadas nos mercados.

Na orientação ofensiva, a ênfase recai: a) na necessidade de adequação a uma nova lógica produtiva, centrada em respostas rápidas, solidárias e adaptáveis a uma demanda heterogênea e flutuante; e b) no incremento da capacidade de aprendizagem e de inovação.

Os novos padrões de demanda, caracterizados pela exigência de níveis crescentes de qualidade, de diferenciação e de sofisticação dos produtos, apontam para a complexidade da gestão da produção, da circulação e da distribuição. A questão central é como responder da forma mais eficiente à demanda, colocando no centro das preocupações a racionalização da logística industrial - administração de estoques (finais e intermediários), dos prazos de entrega, dos padrões de qualidade e do sistema de transporte.

Na racionalização da logística industrial emerge como essencial a natureza sistêmica do processo de trabalho e da organização da produção, evidenciando, portanto, fortes interdependências entre fases de produção, entre funções, entre empresas (fornecedores e distribuidores) e entre estas e os clientes, de modo que a eficiência - em termos de custos e qualidade - passa a depender crucialmente da administração dos elos da cadeia produtiva.

Por sua vez, a “rede vertical” pode gerar um ambiente propício à aprendizagem, impelindo à criação de novas oportunidades de lucro. De um lado, ao permitir que os agentes concentrem recursos financeiros e humanos em suas “áreas específicas de competência” e, de outro, ao possibilitar a superação dos custos, riscos e irreversibilidades associados aos investimentos em novas tecnologias. A conjugação da “especialização” dos agentes com a sua “integração” em um sistema flexível permite que os agentes se dediquem somente às atividades que são essenciais ao seu desenvolvimento, assegurando, ao mesmo tempo, o acesso de todos aos recursos “específicos” dos demais, proporcionando uma grande mobilidade em termos de combinações e recombinações desses recursos.

1.2. Redes horizontais

O processo recente de reestruturação industrial - globalização de certos mercados; nível de investimento imanente ao desenvolvimento das novas tecnologias; o encontro e a combinação de competências de setores industriais anteriormente distintos - impõe dois grandes desafios para as empresas. Em primeiro lugar, exige o rápido reposicionamento delas em relação a um amplo conjunto de competências de que elas não dispõem. Em segundo lugar, requer a administração da incerteza competitiva; as empresas defrontam-se com a incerteza sobre as respostas de seus rivais porque devem confrontar-se com novos concorrentes e com uma dinâmica diferente de interação estratégica.

Para responder a esses desafios, as empresas buscam estabelecer alianças com empresas concorrentes - no mesmo domínio ou em domínios distintos -, dando origem a um formato organizacional horizontal, em cujo centro está a conciliação da centralização de recursos, para a execução de determinadas atividades, com a autonomia estratégica dos atores.

Da perspectiva do reposicionamento competitivo das empresas, a “rede horizontal” apresenta-se como um instrumento eficaz e rápido para transposição das barreiras à entrada em novos campos de atuação, em particular no que se refere à internacionalização dos mercados e à introdução de novos produtos. Essa forma de organização, de um lado, permite que seus participantes se beneficiem de economias de escala, através do desenvolvimento, em conjunto, de atividades ligadas à pesquisa e ao desenvolvimento, à produção e à distribuição. De outro, assegura, além do acesso a fontes de conhecimento localizadas fora das suas fronteiras, o compartilhamento de riscos atrelados a investimentos que superam a capacidade de uma única empresa.

Da perspectiva da administração da incerteza competitiva, as alianças estratégicas constituem-se em instrumento privilegiado de edificação de “zonas de estabilidade”, objetivando a redução do risco associado a um universo turbulento, marcado pela globalização e pela emergência de novas tecnologias.

2. ARCABOUÇOS TEÓRICOS QUE EXPLICAM E DÃO SUPORTE ÀS CONFIGURAÇÕES “EM REDE”

A organização “em rede” está associada ao aprofundamento da interdependência entre as empresas, constituindo-se em forma particular de coordenação das decisões, de recursos e de atividades. Nesse sentido, no âmbito da teoria econômica, a lógica a ela imanente deve ser apreendida na discussão da problemática da coordenação dos agentes na atividade econômica.

A problemática da coordenação da atividade econômica, que atualmente se apresenta como um dos principais desdobramentos da moderna teoria da organização industrial, nasceu da crítica ao princípio básico da análise walrasiana, segundo o qual o mecanismo de preços assegura toda a informação necessária à coordenação das decisões individuais. A capacidade dos agentes econômicos de desenvolver arranjos e regras de comportamento coletivo é trazida para o centro do palco, colocando em evidência o “fator organização” como um dos principais determinantes da eficiência e dos diferenciais de competitividade.

A organização designa, então, todos os procedimentos de coordenação e de decisão estranhos ao mercado, que ocorrem tanto na esfera interna às empresas, quanto na esfera das inter-relações entre elas, configurando-se uma clara oposição entre coordenação intencional (organização) e coordenação espontânea (mercado).

Na explicitação desses mecanismos conscientes de coordenação emergem duas abordagens distintas, centradas, respectivamente, na alocação e na criação de recursos. Cada uma delas vale-se de conceitos diferentes de organização e atribui papéis distintos às inter-relações entre empresas. Consequentemente, apresentam limites e possibilidades explicativas diversos.

2.1. A abordagem da alocação de recursos

A concepção da organização a partir da alocação de recursos está sistematizada na teoria da “economia dos custos de transação”, formulada originalmente por Coase (1937) e desenvolvida posteriormente por Williamson (1975, 1981, 1985 e 1991).

Ao eleger como problema essencial da organização a disposição dos recursos de maneira a obter uma alocação eficiente, essa teoria mantém um dos postulados básicos do referencial neoclássico - tratar analiticamente os problemas da produção da mesma forma que os problemas da troca - transformando as decisões de produção em “decisões de alocação de recursos”.

A ênfase é colocada na noção de transação, mais ampla do que a troca pura entre bens pré-existentes, na medida em que entram em cena “promessas” e “compromissos” entre os agentes econômicos (entre empresários e trabalhadores e entre empresas).

A partir do momento em que se admite que as transações não são espontâneas, reconhece-se explicitamente que os agentes devem consagrar uma parte dos recursos às operações de troca, emergindo daí o conceito de “custo de transação”. Nesse sentido, na explicação dos modos de coordenação alternativos ao mercado intervêm não só a minimização dos custos de produção, mas a minimização da soma dos custos de produção e dos “custos de transação”.

Para Coase (1937), a noção de custo de transação tem por referência os “custos de utilização do mercado”. Mercado e empresa constituem métodos alternativos de coordenação das atividades econômicas, onde a marca distintiva da segunda é a supressão do mecanismo de preços. Mais precisamente, os custos elevados de transação evidenciam as “deficiências” da coordenação externa, de modo que a internalização das atividades no interior da empresa constitui uma resposta, visando assegurar uma maior eficiência alocativa. Nesse sentido, a organização nasce das “imperfeições do mercado”.

Williamson (1975 e 1985), por sua vez, assenta as bases de uma teoria dos problemas contratuais e das formas alternativas de gestão das transações, ultrapassando largamente o estudo da alternativa empresa-mercado de Coase. No centro das preocupações do referido autor está a análise comparativa das formas alternativas de gestão, com base na sua capacidade de enfrentar as “disfunções” peculiares às relações contratuais subjacentes a cada tipo de transação.

O arcabouço conceitual do autor está centrado em torno:

  1. de duas hipóteses sobre o comportamento dos agentes - racionalidade limitada e oportunismo;

  2. da análise das transações a partir de três dimensões críticas: frequência, grau de incerteza e especificidade dos ativos;

  3. da hipótese do alinhamento das transações a estruturas adequadas de gestão - mercado, hierarquia e formas híbridas - com base em três elementos fundamentais: tipo de contrato; mecanismos de incentivo e controle comportamentais; capacidade de adaptação às circunstâncias mutáveis do ambiente; e

  4. do processo de arbitragem que seleciona o mecanismo de gestão mais eficiente. As transações diferem efetivamente quanto aos limites que impõem à capacidade de decisão dos agentes e à possibilidade do comportamento oportunista. Williamson acentua que a decisão estratégica quanto à forma de coordenação das atividades econômicas apoia-se na análise comparativa das vantagens e desvantagens das estruturas de gestão, tendo por base as características que cercam a transação, visando a máxima eficiência na alocação de recursos.

Das três dimensões críticas que caracterizam as transações - frequência, grau de incerteza e especificidade dos ativos -, Williamson atribui ênfase especial à última.

A especificidade dos ativos, no interior de uma transação, diz respeito à especialização dos ativos com relação ao uso e aos usuários, dificultando o seu deslocamento para usos ou usuários alternativos. A especificidade tem a ver com a localização geográfica, com a natureza dos equipamentos e das competências da mão-de-obra.

A especificidade dos ativos apresenta uma implicação importante. Como os recursos envolvidos na transação não podem ser reempregados em outros usos, sem que implique o sacrifício de uma grande parte de seu valor produtivo, as partes operam, efetivamente, sob condições de uma relação bilateral ex-post. Mais precisamente, mesmo que no processo de negociação inicial estejam presentes um grande número de parceiros qualificados, as condições se alteram após a conclusão do acordo. Ocorre, na expressão de Williamson, “uma transformação fundamental”, onde se formam laços de dependência mútua entre os participantes, dando margem ao comportamento oportunista, a cada vez que os termos do contrato tiverem de ser renegociados, pois a negociação fica restrita a um pequeno grupo.

Nesses termos, a coexistência da especificidade dos ativos, racionalidade limitada e oportunismo gera situações em que a utilização do mercado como mecanismo de coordenação mostra-se inadequada e potencialmente onerosa, estimulando, dessa forma, o desenvolvimento de instituições mais apropriadas (hierarquias) direcionadas à redução do oportunismo e dos custos de adaptação e ajuste das transações a novas circunstâncias.

Assim, quando a especificidade dos ativos for nula, a identidade das partes é irrelevante, prevalecendo o “contrato clássico”, cuja marca é a ausência de dependência entre compradores e vendedores e a interpretação estritamente legal.

À medida que se acentua a especificidade dos ativos, a perfeita autonomia das partes perde seu potencial de eficiência, aumentando a exigência de convergência nas interpretações e condutas dos agentes. As denominadas “falhas de coordenação” dão origem a formas de adaptação orquestradas e conscientes: as hierarquias.

A hierarquia caracteriza-se pela forte presença do controle administrativo, pela supressão ou redução dos incentivos individuais e pela resolução das disputas e conflitos através dos canais hierárquicos. Nesse sentido, a hierarquia substitui a relação contratual, impondo integridade e eficácia, sendo que o controle, as sanções e as punições passam a constituir instrumentos por excelência da cooperação.

Porém, a internalização de atividades encontra limites endógenos associados à complexidade dos canais hierárquicos que garantem o intercâmbio interno de informações e à impossibilidade de atingir economias mínimas de escala. Nesse contexto, as inter-relações entre empresas são introduzidas como formas de organização “intermediárias” ou “híbridas”, situadas entre o mercado e a hierarquia, cujo objetivo é o de atenuar, simultaneamente, as desvantagens da firma e do mercado, ou, por outra, que combinam as suas vantagens. O ponto central é a existência, de um lado, da autonomia das partes e, de outro, do grau notável de dependência bilateral. A identidade das partes é fundamental devido aos custos do rompimento do contrato e da permanente má adaptação, emergindo mecanismos adaptativos especiais que dão elasticidade aos contratos, no sentido de efetuar realinhamentos e restaurar a eficácia diante de distúrbios não previstos.

Williamson (1985 e 1991) associa as formas híbridas de gestão a um grau de especificidade médio dos ativos, identificando dois tipos de estruturas - bilaterais e trilaterais. Nas estruturas bilaterais, os agentes estabelecem entre si garantias e salvaguardas, no caso de transações frequentes e recorrentes, que permitem reduzir os custos de controle e monitoramento. Para o caso de transações mais casuais e que não envolvem investimentos substanciais, destaca-se a montagem de estruturas trilaterais, nas quais identifica-se a presença de um terceiro agente - público ou privado -, que atua como árbitro dos conflitos que porventura surgirem.

2.2. A abordagem da criação de recursos

O ponto de partida da abordagem é a concepção original do fenômeno da produção. Não se trata da reunião de inputs disponíveis ex ante e, portanto, passíveis de serem obtidos através da troca, mas de um processo de criação de recursos, a partir do aporte de conhecimentos e qualificações específicas.

A produção é uma atividade voltada para a “especificação” dos recursos - transformação de recursos genéricos em recursos específicos. O problema da coordenação da atividade econômica consiste, fundamentalmente, na geração e organização do saber de maneira a poder utilizar os recursos não imediatamente produtivos. Sem o conhecimento - técnico e organizacional - a mera reunião de recursos é totalmente improdutiva.

Na explicitação das bases de geração do conhecimento e da sua efetiva utilização sobressai o enfoque das competências necessárias à efetivação da produção, cuja origem remonta à Schumpeter (1912 e 1943), à Knight (1921) e à Penrose (1959). Dentre os desenvolvimentos mais recentes, destacam-se as contribuições de Richardson (1972), dos representantes da denominada “análise evolucionista” - Nelson e Winter (1982); Teece (1986 e 1988) e Dosi, Teece e Winter (1992)-; e de um grupo de autores franceses - Gaffard (1990) e Foray (1990) - e italianos -Amendola e Bruno (1990).

Ao colocar a inovação no centro da dinâmica capitalista, Schumpeter (1912 e 1943) dá origem a uma nova concepção da empresa, sobressaindo como o locus privilegiado da criação de recursos, um modo específico de combinação de recursos e, portanto, da introdução de mudanças.

Knight (1921), por sua vez, antecipa a conceitualização da empresa como um conjunto de competências. A natureza tácita da competência empresarial é a “pedra de toque” da teoria da firma do autor. O caráter idiossincrático que marca o nascimento da empresa influencia, igualmente, o seu desenvolvimento posterior, de modo que as oportunidades produtivas nascem a partir do exercício das competências empresariais.

Porém, é Penrose (1959) quem elabora o conceito de competência, articulando-o no interior de uma teoria da empresa.

A característica distintiva da empresa é a sua capacidade original de desenvolver e utilizar recursos, através do exercício de suas competências. As competências derivam da aprendizagem, particularmente no interior da atividade produtiva, através da oportunidade que esta oferece para a experimentação, para o aperfeiçoamento/consolidação de procedimentos e para a identificação de novos métodos. Nesse processo são evidenciados dois aspectos fundamentais: o caráter organizacional e cumulativo da aprendizagem.

O caráter organizacional está associado à forte influência do “contexto” sobre a forma e a natureza das articulações das habilidades individuais. Assim, a divisão do trabalho, o fluxo de informações e de trabalho, os procedimentos de decisão conformam, em seu conjunto, um ambiente particular que condiciona e orienta o comportamento dos agentes. As contribuições individuais só se manifestam e adquirem significado quando inseridas no todo, tomando difícil a sua operacionalização em “contextos” distintos.

O caráter cumulativo diz respeito à especialização dos recursos no transcurso do tempo, associada a uma “trajetória tecnológica” (Dosi, 1988), configurando uma rigidez (irreversibilidade) nas decisões dos agentes.

As competências são recursos intangíveis da empresa decorrentes das suas capacitações técnicas e comerciais e da qualidade da equipe administrativa. Estão intimamente associadas à noção de “especialização”, isto é, ao aprofundamento do conhecimento em determinadas áreas. Cada empresa possui uma base de atuação, em certas classes de produção e em certos tipos de mercado.

A especialização adquire um significado especial3. Não se trata da concentração em linhas de produtos, mas em “áreas de excelência”. “O capital humano incorporado à firma não é inteiramente especializado em termos de particulares produtos, que a empresa está correntemente produzindo. Na concepção de Penrose, os produtos finais produzidos por uma empresa em um dado momento de tempo representam meramente um dos diversos modos pelos quais a organização pode utilizar os seus recursos .... As economias de especialização assumem um significado distinto, não se trata da produção de um particular produto, mas de uma competência mais geral, que pode encontrar múltiplas aplicações em termos de produtos finais” (Teece, 1982, p. 45).

O conceito de competência adquire, assim, um papel significativo, enquanto delimitador das potencialidades da empresa, dando origem a um conjunto de vantagens competitivas e oportunidades especiais de expansão, que, dinamicamente, reconfiguram as suas fronteiras.

O caráter inovador do enfoque de Penrose (1959), ao dar um novo conteúdo analítico à empresa, que passa a ser concebida como o locus da geração e da acumulação de conhecimentos aplicáveis à produção, expressando uma tendência à “especialização”, abriu campo para importantes contribuições no âmbito da moderna teoria da organização industrial, voltadas, em especial, à explicação da natureza das articulações entre empresas.

Assim, Richardson (1972), partindo do conceito de “especialização”, atribui ênfase à interdependência e à cooperação entre as empresas como base da organização da atividade econômica.

Por sua vez, os autores evolucionistas assentam as bases de uma teoria das fronteiras da grande empresa sobre o princípio da “coerência estratégica”.

Finalmente, o grupo de autores franceses e italianos, acima referidos, apoiando-se em Richardson, introduzem a cooperação entre empresas como um dos elementos-chave da viabilização do processo de inovação.

Richardson - a interdependência e a cooperação entre empresas como base da organização da atividade econômica

O objetivo de Richardson (1972) é desfazer o mito da empresa concebida como “ilha isolada no interior de um oceano de mercado” (p. 883), assentando, a partir daí, as bases para uma teoria da organização da atividade econômica com ênfase nas relações e na cooperação entre empresas. É o primeiro autor que concebe a organização industrial como um tecido de relações entre os agentes econômicos, onde a cooperação é privilegiada, constituindo-se, portanto, no referencial por excelência da fundamentação teórica da organização “em rede”.

O argumento central que fundamenta a pertinência da noção de cooperação entre empresas no estudo da organização industrial é o fato de não se tratar de uma forma de organização intermediária, situada entre a firma e o mercado, mas de uma forma que escapa à mera órbita das relações de compra e venda, requerendo, para sua compreensão, a análise da lógica da produção.

Richardson (1972) visualiza a produção a partir da multiplicidade das atividades industriais e das competências necessárias à sua execução. O processo de produção envolve uma série de etapas solidárias - P &D, concepção, produção propriamente dita, marketing e distribuição. Essas atividades são executadas por organizações dotadas de competências apropriadas.

As atividades que necessitam do concurso da mesma competência são denominadas “similares”. As atividades que representam diferentes fases de um processo de produção são ditas “complementares”. A definição de “similaridade” remonta à inserção das atividades no interior de uma organização dotada de competências, enquanto a definição de “complementaridade” remonta à articulação de fases distintas no processo de produção4.

Com base nesse referencial, o citado autor apresenta duas hipóteses delimitadoras das formas de coordenação da atividade industrial.

A primeira assenta-se no conceito de “especialização” formulado por Penrose (1959), estabelecendo que as empresas tendem a se estruturar em torno de atividades que requerem o uso de competências “similares”. Nesse sentido, a “especialização” impõe limites às atividades que uma empresa pode executar, impelindo à necessidade de estabelecer ligações com outras empresas. Toda empresa deve recorrer às competências detidas por outras empresas, na medida em que essas competências não são “similares” às que possui5.

A segunda apoia-se no conceito de coordenação estreita - qualitativa e quantitativa - de atividades complementares. Mais precisamente, o caráter complementar das atividades exige a harmonização dos planos de produção entre empresas, a partir da qual concretizam-se “redes complexas” de relações de cooperação entre elas.

Em suma, a cooperação entre empresas emerge da necessidade de coordenar atividades “não-similares” e fortemente complementares.

Os autores evolucionistas - a coerência estratégica e as fronteiras da grande empresa

A teoria das fronteiras da grande empresa, proposta pelos autores evolucionistas (Dosi, Teece e Winter, 1992), apoia-se, basicamente, no princípio da “coerência estratégica”. Em essência, o princípio da “coerência estratégica” é uma extensão da concepção de Penrose (1959) de que as empresas, mesmo as mais diversificadas e integradas, apresentam como tendência a aglutinação dos negócios em torno de suas “áreas de excelência”.

Na base da lógica da “coerência estratégica” está a natureza da aprendizagem interna à empresa, que dá origem às denominadas “competências nucleares”, definidas como “um conjunto de habilidades tecnológicas diferenciadas e de rotinas organizacionais que constituem a fonte da vantagem competitiva da empresa em um ou mais ramos de negócio” (Dosi, Teece e Winter, 1992, p. 197).

Na visão dos referidos autores, o desenvolvimento e a consolidação das “competências nucleares” é o resultado de um processo histórico de sedimentação de experiências e de procedimentos, que configura “restrições de trajetória” à expansão da empresa. As competências, ao se constituírem em uma “herança histórica”, carregam “irreversibilidades” que, dinamicamente, demarcam os limites da empresa, em termos dos campos de atuação. As irreversibilidades imanentes às “competências nucleares” impõem estabilidade e coerência às estratégias de expansão da empresa.

Em síntese, a “coerência estratégica” expressa o caráter determinante das competências na demarcação das fronteiras da empresa.

Às “competências nucleares” devem-se adicionar os “ativos complementares” - suporte das primeiras na cadeia de produção -, envolvendo, além das atividades atreladas ao funcionamento da produção propriamente dita, os ativos associados aos sistemas de distribuição e de comercialização.

Teece (1986) dá ênfase ao papel dos ativos complementares na efetivação da introdução de inovações e na capacidade da empresa de se apropriar da renda gerada por ela mesma. A necessidade de acesso a esses ativos e, particularmente, a sua utilização como mecanismo de garantia da apropriação dos lucros gerados adquirem papel fundamental na estratégia de integração das atividades vis-à-vis o recurso às relações com outras empresas.

Na análise da estratégia de integração dos ativos complementares intervêm tanto o “regime de apropriabilidade” como o “grau de complementaridade dos ativos”.

O regime de apropriabilidade diz respeito à possibilidade - prática e legal - de criar e suportar os direitos de propriedade da inovação. Quando a inovação for protegida por patentes e ou for difícil de imitar, a necessidade de internalizar os ativos complementares é amenizada, pois as relações contratuais com outras empresas (licenciamento da utilização da tecnologia) transformam-se em instrumento eficaz de comercialização/produção da inovação.

O grau de complementaridade dos ativos está associado à relação entre o ativo e a inovação. Os ativos genéricos - de propósito geral - não são especialmente talhados para a inovação, ao contrário dos ativos especializados eco-especializados. No caso dos especializados existe uma relação unilateral com a inovação, enquanto os co-especializados guardam uma relação de dependência mútua. Os ativos especializados e co-especializados apresentam problemas contratuais sérios decorrentes do caráter irreversível dos investimentos e da possibilidade de transformar um parceiro em concorrente potencial.

Em outras palavras, a inovação não tem “sucesso” por si mesma. É necessário assegurar-se de um controle adequado do ambiente, visando à viabilização da sua implementação e a garantia do retorno dos investimentos. Assim, nos regimes de alta apropriabilidade, o fator determinante da integração é a presença de ativos especializados e co-especializados, pois “as relações contratuais são arriscadas, considerando que uma das partes deve efetuar investimentos irreversíveis que perderão valor caso a relação seja rompida” (Teece, 1986, p. 290). Por seu turno, nos regimes de apropriabilidade baixa, caracterizados pela insuficiência do sistema de patentes e ou pela facilidade de imitação, a integração, pela empresa, dos ativos complementares é crucial, expressando não só a superação dos problemas contratuais, mas principalmente a garantia da apropriação dos lucros gerados pela inovação.

Em síntese, os ativos complementares também devem integrar o rol dos fatores que definem os contornos da trajetória da empresa. “Assim, a trajetória da firma não é somente de natureza tecnológica. A trajetória é gerada por paradigmas e trajetórias tecnológicas e restringida adicionalmente pelos ativos complementares que a firma desenvolveu com o tempo” (Dosi, Teece e Winter, 1992, p. 196).

É importante ressaltar, de um lado, a ressonância entre a lógica da coerência e a hipótese de Richardson (1972) de que as empresas são integradas, principalmente, por ativos similares e, de outra, a semelhança entre as noções de ativo e atividade complementar.

Ao colocarem que a empresa se reagrupa em tomo de sua “especificidade”, seguindo a lógica da coerência estratégica, os autores evolucionistas evidenciam que ela não pode integrar todas as “especificidades” imanentes à consecução de um projeto produtivo. Nesse sentido, a coerência implica a “especialização” da empresa e, por consequência, a necessidade de recorrer às complementaridades detidas por outras empresas.

Já no que diz respeito às noções de ativo e atividade complementar, embora sejam semelhantes, são utilizadas de maneira distinta na explicitação da estruturação das relações entre empresas.

Assim, na decisão entre integração ou conclusão de acordos de cooperação, Teece (1986) atribui ênfase especial aos problemas ligados à apropriabilidade e à possibilidade do comportamento oportunista, de modo que o controle sobre a utilização dos ativos complementares especializados somente será eficaz quando efetivado através da propriedade. Ao contrário, Richardson (1972) dá ênfase à dificuldade da empresa em executar determinadas atividades que integram a cadeia produtiva, em decorrência de não dispor das competências necessárias. Nesse sentido, a cooperação com outras empresas aparece como uma estratégia voltada para a superação das insuficiências de conhecimento das empresas. Ademais, para o autor, o caráter duradouro da complementaridade atenua ou elimina a pos­sibilidade do comportamento oportunista.

As formas de organização entre empresas como mecanismo de coordenação do processo de mudança - Gaffard, Foray, Amendola e Bruno

No centro dessa abordagem está o conceito de inovação, apreendido como a “criação original de recursos” e a partir do grau de ruptura produzido no ambiente econômico. Na coordenação do processo de inovação, as estratégias de organização entre empresas emergem como mecanismos privilegiados de superação dos obstáculos associados à aprendizagem e à estruturação de novas oportunidades.

Quando integrados a uma organização, os recursos adquirem qualidades suplementares em função de combinações peculiares e, mais ainda, adquirem “especificidade”, no curso e na medida do desenvolvimento temporal da organização. Essa especificidade manifesta-se no caráter tácito - não-codificável e não-apropriável pelo exterior - dos conhecimentos industriais e pelo caráter cumulativo destes.

Nesse processo organizacional de “especificação dos recursos”, os autores identificam uma contradição inerente à dinâmica do processo de inovação. Se, de um lado, a integração de recursos se apresenta como a condição fundamental da emergência de novas oportunidades, de outro, coloca restrições ao modo pelo qual elas podem ser geradas. Mais precisamente, à medida que os recursos se tornam mais específicos, são introduzidas “irreversibilidades” que reduzem o campo de escolhas possíveis.

Assim, da perspectiva da firma engajada em um projeto de inovação, o problema essencial é a superação dessa contradição, através de estratégias apropriadas de organização que proporcionem um equilíbrio entre a exploração de uma capacidade já construída e as decisões de engajamento voltadas para a construção de novas e originais capacidades. Em síntese, trata-se de engendrar mecanismos de coordenação das atividades visando assegurar a viabilidade do processo de inovação.

Nesse sentido, a forma de organização “em rede” sobressai como uma forma apropriada de gestão das irreversibilidades. A cooperação entre várias organizações, assentada no caráter complementar dos recursos, assegura a repartição dos “custos da irreversibilidade”.

Dois tipos de cooperação entre empresas são ressaltados: a cooperação em P&D e a cooperação no interior das relações de subcontratação. A cooperação na pesquisa e desenvolvimento permite às empresas participantes “satisfazer as exigências da formação da quase renda, facilitando, ao mesmo tempo, a distribuição dos custos da irreversibilidade entre várias organizações” (Foray, 1990, p. 23). Por sua vez, a cooperação no interior das relações de subcontratação possibilita, de um lado, a concentração de cada participante em suas competências específicas e, de outro, a “articulação flexível” das diferentes especialidades, no âmbito da organização coletiva.

Na estruturação das relações entre as empresas, a morfologia do projeto cooperativo sobressai como elemento fundamental, em cujo centro estão: a) a garantia da qualidade dos recursos que os agentes aportam ao projeto; e b) a estabilidade dos vínculos, visando integrar efetivamente os recursos no interior de um projeto comum.

3. LIMITES E POSSIBILIDADES DAS ABORDAGENS NA AVALIAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO “EM REDE”

As relações entre empresas adquirem conteúdos analíticos substancialmente distintos no interior das duas abordagens teóricas consideradas, em função do contexto subjacente - estático ou dinâmico - e da definição do objeto da coordenação organizacional. Convém ressaltar que, enquanto a abordagem da alocação de recursos dá ênfase à organização “em rede” como um mecanismo de minimização de custos, a abordagem da criação de recursos coloca acento no seu papel como um poderoso mecanismo de aprendizagem e de viabilização da inovação.

3.1. A organização “em rede” como um mecanismo de minimização de custos

A abordagem da alocação de recursos apreende o processo de organização da atividade econômica em um contexto estático, produzindo uma visão estreita do objeto da coordenação organizacional e das relações entre empresas.

Em primeiro lugar, porque o conhecimento e a tecnologia são considerados dados, deixando encobertos aspectos cruciais do processo de decisão da empresa, notadamente aqueles relacionados à aprendizagem e à inovação.

Em segundo lugar, porque suprime o “processo histórico” na explicação do desenvolvimento da empresa, deixando de considerar: a) o caráter determinante das decisões e dos investimentos passados sobre o comportamento futuro da empresa; e b) os custos de adaptação e de aprendizagem atrelados à internalização de atividades.

Em terceiro lugar, porque não incorpora à análise as alterações nas expectativas de “comportamento oportunista”, em função da experiência e das mudanças de percepção, à medida que a relação entre os agentes (empresas) se desenvolve no tempo.

Ao colocar como um pressuposto básico orientador do enfoque da economia dos custos de transação que “no início havia os mercados” (p. 87), Williamson (1985) implicitamente admite que os recursos, os produtos, a tecnologia e o conhecimento estão dados, pois, “uma vez que os mercados são um dado, também são os recursos e os produtos” (Foss, 1993, p. 131). Mais precisamente, a tecnologia e o conhecimento são definidos com relação aos bens e serviços, aparecendo, portanto, como variáveis plenamente constituídas e estabilizadas, definidas por algum processo que é histórica e logicamente anterior à problemática da organização da atividade econômica.

Partindo de um dado nível tecnológico e de conhecimento, o problema central da organização da atividade econômica é a busca da “eficiência estática”, isto é, a combinação de um conjunto dado de fatores, para a produção de produtos existentes, de modo a minimizar os “custos de transação” (Nooteboom, 1992).

Intuitivamente, em tal contexto, será difícil racionalizar a existência da inovação - mudança no “menu” de recursos, produtos e tecnologia6. A introdução da inovação exige a mudança no foco de análise - da eficiência estática para a eficiência dinâmica. A busca da eficiência dinâmica, “associada à exploração de novas oportunidades produtivas e tecnológicas, implica em uma ênfase na criação de novos conhecimentos, vista como requisito para ampliar o raio de manobra dos agentes, ... num mundo em permanente transformação” (Britto, 1994, p. 138).

Nesse sentido, não se pode mais considerar a organização da atividade econômica a partir da minimização dos custos associados às “incertezas contratuais” nas transações. Os custos de reestruturação de uma organização, de adaptação à mudança tecnológica, de acumulação de competências que possibilitarão tais adaptações, certamente constituir-se-ão em custos que influenciarão as fronteiras da empresa (Demsetz, 1988). Com relação à supressão do “processo histórico” na explicação do desenvolvimento da empresa, é preciso lembrar que “as transações individuais não são os veículos primários da historicidade, mas sim as competências da empresa” (Foss, 1993, p. 132).

A economia dos custos de transação tem dificuldade em visualizar a empresa como uma entidade histórica distinta, cuja marca é a especificidade de suas competências, desenvolvidas e sistematizadas ao longo do tempo. A história da empresa está expressa nas rotinas organizacionais (Nelson e Winter, 1982) - competências intersubjetivamente compartilhadas e praticadas pelo conjunto de seus integrantes -, as quais impõem restrições sobre o seu conhecimento e sobre a sua habilidade em alterar o modo de funcionamento.

Embora o conceito de “especificidade dos ativos” contenha uma “espessura temporal”, colocando ênfase na transformação dos recursos ao longo do tempo, permanece definido em relação às transações (Guilhon, 1993). Mais precisamente, não se trata de uma especificidade associada à forma de organização implementada, a qual ao longo do tempo permitiu a configuração de um processo de aprendizado peculiar, cujo resultado é a acumulação de conhecimentos altamente específicos à empresa.

Ao tomar a transação e não a empresa como unidade de análise, a “economia dos custos de transação” não visualiza as “especificidades” imanentes às empresas, assumindo, implicitamente, que todas elas podem produzir, de forma igualmente eficiente, as mercadorias e serviços (Demstez, 1988). A hipótese subjacente, portanto, é a de “uma integração sem fricções dos ativos externos à empresa, que não exige da organização existente um processo de especificação de recursos e aprendizado” (Britto, 1994, p. 136).

Em outras palavras, ao não considerar os custos de adaptação e de aprendizagem atrelados à internalização de atividades, a economia dos custos de transação mascara o conflito temporal subjacente às decisões de “fazer ou comprar”. “Quando uma empresa cresce através da integração vertical, não é uma questão de ‘mais da mesma coisa’. Mas trata-se de mais de alguma coisa estreitamente relacionada, alguma coisa que a empresa já tem algum grau de conhecimento relevante” (Winter, 1988, p. 176).

Finalmente, ao não introduzir as relações entre empresas em um contexto temporal, a economia dos custos de transação não contempla as mudanças nas expectativas de “comportamento oportunista”. Mais precisamente, desconsidera a possibilidade da aprendizagem peculiar associada ao ganho de informação sobre o comportamento recíproco, a partir do relacionamento duradouro.

Com a passagem do tempo, os agentes engajados em transações recorrentes aprenderão com elas e, mais concretamente, “com transações repetidas em um ambiente estável é de se esperar que: 1) os contratos se tornem ‘auto-cumpríveis’, devido aos efeitos da reputação e 2) os problemas da dependência de um único fornecedor ou do ‘dano moral’ sejam atenuados através da evolução das normas de reciprocidade e da cooperação” (Langlois, 1992, p. 104).

Em síntese, a teoria da economia dos custos de transação constitui-se em um exercício de análise estática comparativa das diferentes alternativas de gestão - mercado, hierarquia e formas híbridas - insuficiente para tratar com os problemas atrelados aos fenômenos da aprendizagem e da inovação no interior e entre empresas.

3.2. A organização “em rede” como um mecanismo de aprendizagem e de viabilização da inovação

Na abordagem da criação de recursos, a organização da atividade econômica é apreendida em um contexto dinâmico, como uma estrutura de geração e de acumulação de conhecimentos aplicáveis à produção. Na análise dinâmica, o conhecimento e a tecnologia não são um dado, mas o resultado de um processo de aprendizagem e de inovação, no centro do qual estão a ação e a interação dos agentes econômicos, que se desenvolvem no curso do tempo, assentadas em procedimentos, compromissos e normas coletivas.

Ao trazer a aprendizagem e a inovação para o centro da problemática da coordenação, a organização surge como uma entidade substancialmente distinta do mercado, adquirindo uma identidade especial, expressa na transformação de recursos genéricos - tal qual aparecem no mercado - em recursos específicos - inseridos em processos particulares de produção. Em outras palavras, as organizações são dispositivos de aprendizagem que conferem “especificidade” aos recursos.

Na explicitação das bases de geração do conhecimento e da sua efetiva utilização sobressai a noção de competência, traduzindo um conjunto de conhecimentos “especializados”, produto da história de decisões estratégicas e de comprometimento de recursos de uma empresa, que impõem limites às atividades que esta pode executar de maneira eficaz. Nesse sentido, as empresas apresentam a tendência de agrupar os negócios, obedecendo ao “princípio da coerência”, no qual prevalece a proximidade das atividades desenvolvidas, em termos da utilização comum de suas bases de conhecimento (competências).

Decorre daí que nenhuma empresa, mesmo a mais integrada num sistema de articulação em cadeia, possui todas as competências necessárias à execução do conjunto de atividades produtivas. Todas as empresas devem, no mínimo, considerar e, se necessário ou conveniente, apoiar-se nas competências no âmbito de outras empresas, especialmente na medida em que essas competências se diferenciam daquelas de seu domínio.

As relações entre empresas nascem, portanto, como uma consequência natural dos limites que o processo de aprendizagem interno coloca para os agentes econômicos. As empresas individuais são impelidas a estabelecer fortes articulações com outras empresas, particularmente se as competências forem complementares.

É importante ressaltar que a intensificação da concorrência, ao obrigar as empresas a concentrar recursos financeiros e humanos em suas áreas específicas de competência, impele ao estreitamento do contato com fornecedores, distribuidores e mesmo concorrentes. Em outras palavras, à medida que aumenta a “turbulência” do ambiente, torna-se evidente a incapacidade de um agente individual tratar de um amplo conjunto de opções e de contingências, reduzindo-se, assim, seu grau de autonomia. Se, de um lado, a empresa individual tem seu repertório de ações reduzido, de outro, ganha em flexibilidade no âmbito das relações de complementaridade com os demais agentes que integram a “rede”.

Em essência, no enfoque das competências, o binômio coerência (especialização), complementaridade explica a formação da organização “em rede” e está na base da estabilidade das relações que se desenvolvem. Assim, a presença de uma forte especialização dos diversos agentes integrantes da “rede” aumenta as complementaridades entre eles, atenuando ou eliminando as rivalidades potenciais. Reduzindo os riscos de rivalidade e aumentando as complementaridades, a “especialização” dos parceiros, no interior da “rede”, reforça a coerência e garante a sua estabilidade.

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  • 1
    Por “empresas-núcleo” entende-se uma categoria de empresa que, assentada em controle tecnológico, financeiro e ou de mercado, evidencia capacidade de articulação e de coordenação dos múltiplos agentes envolvidos na cadeia produtiva.
  • 2
    Entre os principais autores, cabe menção especial a Guilhon (1992), Gatfard (1990), Foray (1990) e Amendola e Bruno (1990).
  • 3
    O conceito de especialização desenvolvido por Smith (1776) é distinto da noção de especialização desenvolvida por Penrose (1959). Para Smith a especialização está associada à divisão do processo de produção em operações (tarefas) desempenhadas por distintos trabalhadores. Trata-se de uma divisão vertical do trabalho assentada na concentração do tempo e experiência dos trabalhadores em um conjunto limitado de tarefas (Leijonhufvud, 1986), cujo resultado é o aumento considerável da produção por trabalhador. Os ganhos de produtividade decorrem: do aumento da destreza de cada trabalhador; da economia de tempo, ao evitar as mudanças de uma tarefa para outra; e das oportunidades de mecanização. As vantagens da especialização estão associadas, portanto, à possibilidade da produção em maior escala de determinados produtos, a partir do aprofundamento da divisão do trabalho e da introdução de maquinário.
  • 4
    É importante ressaltar que a concepção de complementaridade adotada por Richardson é substancialmente distinta daquela empregada por Milgrom e Roberts (1992), no contexto do enfoque da economia dos custos de transação. Para Richardson, o conceito de complementaridade envolve a série de etapas solidárias que caracterizam o processo de produção, assim como o caráter qualitativo e quantitativo da coordenação entre elas. Para Milgrom e Roberts, “diversas atividades são ditas mutuamente complementares se a produção de uma delas acarretar o aumento (ou pelo menos não fizer decrescer) da rentabilidade marginal de cada uma das outras atividades do grupo. Por exemplo, se existirem custos decrescentes devido à aprendizagem ou a outros tipos de economias de escala na produção de um componente, então as atividades de produção de vários produtos utilizando esses componentes serão complementares” (p. 108)
  • 5
    Assim, estabelece-se uma complementaridade no âmbito das competências necessárias à execução de um projeto produtivo. Não se trata, portanto, de uma simples articulação entre os bens intermediários e o produto final, mas da integração de competências dissimilares.
  • 6
    Vale ressaltar que o próprio Williamson reconhece os limites do enfoque no estudo da organização econômica em um regime de rápida inovação. “A introdução da inovação complica claramente a alocação anteriormente descrita das transações entre os mercados e as hierarquias, baseada inteiramente no exame da especificidade dos ativos. Na verdade, o estudo da organização econômica num regime de rápida inovação coloca problemas muito mais difíceis do que os aqui examinados” (Williamson, 1995, p. 143).
  • 7
    JEL Classification: L11; L10: L22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1997
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