RESUMO
Este é um auto-perfil intelectual. O autor começa a identificar as influências políticas e teóricas que teve, quando jovem, de sua família e de intelectuais como Marx, Weber e Keynes, no exterior, e de Furtado e Rangel, no Brasil. Ele divide suas contribuições em histórico e teórico. As análises históricas são, por sua vez, subdivididas nas que tratam especificamente do Brasil e da América Latina e a outra referente a mudanças na economia e sociedade contemporâneas do mundo. As contribuições teóricas são as de caráter lógico-dedutivo ou metodológico, e não histórico-indutivo. Na conclusão, o autor faz uma avaliação geral do trabalho realizado, que também é um programa de pesquisa para o futuro.
PALAVRAS-CHAVE: Autobiografia; perfil intelectual; influências; contribuições
ABSTRACT
This is an intellectual self-profile. The author starts identifying the political and theoretical influences he had, as a young man, from his family, and from intellectuals as Marx, Weber and Keynes, abroad, and from Furtado and Rangel, in Brazil. He divides his contributions in historical and theoretical. The historical analyses are, on their turn, subdivided on the ones dealing specifically with Brazil and Latin America and the other referring to changes in contemporary world economy and society. The theoretical contributions are the ones rather of logical-deductive, or methodological, than of historical-inductive, character. In the conclusion the author makes a general evaluation of the work done, that is also a research program for the future.
KEYWORDS: Autobiography; intellectual profile; influences; contributions
A realidade econômica e política à minha volta foi sempre objeto apaixonado de estudo e de intervenção. Sempre aliei a atividade acadêmica, que para mim é a principal, com uma atividade prática, seja no plano empresarial, seja no político. E ainda que aos intelectuais seja prudente ser pessimista, sempre fui otimista a respeito da efetividade da intervenção humana para transformar o mundo em que vivemos em sociedades mais predizíveis, mais justas, mais livres e mais prósperas. Estas duas opções custaram-me caro junto à academia, que se sente mais segura com um pessimismo desencantado e tem dificuldade em aceitar membros que usam “dois chapéus”. E tiveram um custo para mim, ao exigirem disciplina pessoal e trabalho redobrado. Mas me trouxeram benefícios, inclusive no campo acadêmico, na medida em que me garantiam uma integração mais profunda ao mundo em que vivo e uma melhor possibilidade de nele marginalmente intervir.
Agora, quando a Universidade Nacional de San Martin decide promover em Buenos Aires um seminário sobre três gerações de economistas brasileiros e me solicita que na seção de abertura descreva a minha trajetória intelectual, tenho uma boa oportunidade para mostrar como as minhas eventuais contribuições para a economia e a política, seja no plano das análises históricas concretas, de caráter mais indutivo, seja nas formulações teóricas lógico-dedutivas, envolveram sempre um comprometimento com o mundo que me rodeia.
Começarei fazendo um resumo de minha vida acadêmica, como estudante, pesquisador e professor, e das influências mais importantes que sofri em minha formação como economista, e, mais amplamente, como cientista social. Na segunda seção farei um inventário de minhas principais contribuições, dividindo a apresentação em três tópicos, os dois primeiros de caráter principalmente histórico-indutivo, e o terceiro, dominantemente lógico-dedutivo. Apresentarei primeiro minhas análises históricas do Brasil e da América Latina; em seguida, as análises históricas gerais; e terminarei pelas análises teóricas. Nesse esforço ficará claro que a minha identificação pessoal no campo das ciências não é fácil de ser feita. Sou, em primeiro lugar, um economista. Mas um economista político no sentido moderno da palavra, que sempre procura integrar a análise dos mercados com a análise do Estado e da sociedade. E cada vez mais me interessa, além da teoria econômica, a teoria política.
INFLUÊNCIAS
Nasci em 1934, originário de uma família da classe média. Meu pai foi advogado, jornalista, político e escritor; minha mãe, professora de curso básico. Fiz o curso primário na escola pública; o ginásio e o colegial, no Colégio São Luiz, dos jesuítas. Até os 16 anos combinava as influências trabalhistas ou social-democratas de meu pai e as nacionalistas de meu tio Barbosa Lima Sobrinho - ambos admiradores de Getúlio Vargas - com a influência católica tradicional que recebia de minha mãe e dos padres jesuítas. Minha formação católica, entretanto, sofreu uma guinada importante nessa idade, quando me associei aos jovens intelectuais progressistas da Ação Católica, que tinham em Jacques Maritain e em Alceu Amoroso Lima suas principais referências teóricas. Ao mesmo tempo, começando a trabalhar no jornal O Tempo, sofria a influência marxista do seu secretário de redação, o notável jornalista trotskista Hermínio Sachetta. Através dele e da leitura de Plekanov começava a travar conhecimento com Marx. Nessa mesma idade fazia um curso noturno de cinema, dirigido por Marcos Marguliès, no Museu de Arte de São Paulo. Foi esse curso que me permitiu ser o crítico de cinema do diário O Tempo entre os 18 e os 20 anos, e um apaixonado pela arte cinematográfica durante toda a vida.
No jornal O Tempo, fundado por meu pai, fui revisor, repórter e crítico de cinema. Com o fechamento do jornal, fui admitido na Última Hora, de São Paulo, no início de 1956. Um ano depois, aos 22 anos, depois de ter sido copidesque, chego a secretário da primeira edição - a segunda posição na redação do jornal. Em junho de 1957, caso-me com Vera Cecília Prestes Motta, que depois se tornará psicanalista, e que é minha companheira para tudo desde então. Com ela terei quatro filhos. Pouco tempo depois de casar, saio da Última Hora, que pagava mal, atrasava até três meses o pagamento e me retinha na redação todos os dias até depois da meia-noite, e dedico-me, durante alguns anos, à publicidade. Era uma forma de me sustentar enquanto buscava redirecionar minha vida profissional. Nesse mesmo ano de 1957 me formo em direito, mas já estava decidido a não ser juiz - a profissão que escolhera quando entrara para a faculdade - e sim “economista ou sociólogo do desenvolvimento”.
Esta mudança de objetivos ocorrera no final do terceiro ano na Faculdade Direito. Até então incluía-me entre os jovens intelectuais católicos preocupados em encontrar em nível internacional uma terceira via entre o capitalismo e o comunismo. Minha visão do Brasil era apenas convencional. Em julho de 1955, entretanto, leio um artigo não assinado, que Hélio Jaguaribe havia escrito no início do ano para os Cadernos do Nosso Tempo, no 4, abril-agosto 1955, “A sucessão presidencial”. Este artigo iria redirecionar minha opção profissional, iria “mudar minha vida “. Através desse artigo tomo conhecimento do pensamento do Grupo de Itatiaia, que logo em seguida se transformaria no grupo do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), quando, naquele mesmo ano, este instituto seria criado pelo governo.
Pela primeira vez eu me deparava com um modelo histórico e político do Brasil que fazia sentido para mim. A história do Brasil dividia-se em três fases: fase colonial, até 1822; fase semicolonial, entre 1822 e 1930; e fase da industrialização e da afirmação de um projeto de nação, iniciada com o governo Getúlio Vargas. Este governo, com o qual o de Kubitschek se identificará politicamente, fora capaz, apesar de suas contradições, de reunir os grupos e classes sociais favoráveis ao desenvolvimento industrial do país - a burguesia nacional, a classe média tecnocrática, e os trabalhadores - em torno de um projeto de industrialização. A aliança PSD-PTB representaria essa corrente, que tinha como oposição a burguesia agrário-mercantil, as classes médias tradicionais e os interesses estrangeiros, reunidos sob o comando da UDN.
Eu fazia parte, com meu grupo de companheiros da Ação Católica, do Partido Democrata Cristão. Diante das novas ideias, entretanto, que correspondiam em parte às da CEPAL, que então eu também começo a conhecer, decido me afastar do PDC, que apoiava, nas eleições daquele ano, 1955, o candidato da UDN, Juarez Távora, contra Kubitschek. Mais importante, porém, foi minha decisão de abandonar o projeto de ser juiz de direito. Queria então, com 21 anos de idade, ser economista ou sociólogo, voltado para os problemas do desenvolvimento. Queria, de alguma forma, participar da grande aventura emancipadora representada pela industrialização brasileira. Publico, então, em O Tempo, meu primeiro artigo político, fazendo a análise da conjuntura eleitoral e concluindo pelo apoio a Juscelino contra Juarez. Com isso eu rompia com o PDC, onde estavam todos os meus amigos da Ação Católica, que depois participariam do governo Carvalho Pinto. Ficaria fora da política até as eleições para o Senado, em 1978, quando me incorporaria à campanha do candidato Fernando Henrique Cardoso. Lembro-me bem de uma conversa, em 1977, com Plínio Arruda Sampaio, na qual concluímos duas coisas: que a esquerda deveria apresentar um candidato ao Senado em uma das sublegendas do MDB, embora sabendo que perderia; e que o nosso candidato natural era Fernando Henrique.
Minha adesão às teses do grupo do ISEB, em 1955, reconciliara-me com as influências familiares que recebera de meu pai e de meu tio. Por outro lado, era coerente com as ideias que Raul Prebisch desenvolvera na CEPAL, que tinham como centro um projeto de industrialização. Celso Furtado, que será o introdutor dessas ideias no Brasil, participava marginalmente do ISEB. Ignácio Rangel1 , por sua vez, fora um assessor econômico de Vargas, e, em seguida, de Kubitschek, e uma figura central do ISEB. Sempre considerei esses dois economistas como os meus dois mestres brasileiros.
Com as ideias do ISEB e da CEPAL eu passava a ter uma visão integrada do Brasil, e de sua situação no mundo, mas faltava-me uma teoria mais geral. Até aquele momento procurava combinar precariamente nas análises minhas influências católicas, marxistas e keynesianas. Começo a adquirir uma visão mais geral da economia e das empresas, da sociedade e do Estado, a partir de meu concurso para instrutor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, em 1959. Passo, então, um ano assistindo a alguns cursos no país, ministrados por professores da missão norte-americana, e depois obtenho uma bolsa de dezoito meses para realizar o mestrado em administração de empresas na Michigan State University. Fiz o mestrado em um ano, estudando o máximo possível de teoria econômica e sociologia. Nos seis meses seguintes tive oportunidade de fazer cursos na Harvard University, na University of Michigan, e um estágio com Bert Hoselitz na University of Chicago. Foram nesses dois anos e meio dedicados exclusivamente ao estudo que eu conheci, no plano da sociologia, Max Weber, e sua teoria da burocracia, Wright Mills e sua teoria das novas classes médias e das elites, a sociologia funcionalista norte-americana através de Lloyd Warner, que foi meu professor na Michigan State, e as ideias sobre a burocracia privada e a revolução gerencial a partir dos trabalhos de Berle e Means. No plano da economia, aprendo melhor Keynes e estudo os teóricos do desenvolvimento, particularmente Lewis e Hirschman. No final de meu tempo nos EUA, através do curso de desenvolvimento com Hoselitz, entro em contato com as ideias de Schumpeter.
De volta para o Brasil, depois de desenvolver os cursos que passo a ministrar, primeiro de administração, e, a partir de 1967, de economia, volto a estudar Marx. Assim, no final dos anos 60, estavam afinal estabelecidas as bases da minha formação intelectual: no plano mais geral da teoria social, uma combinação da teoria do capitalismo de Marx com a da burocracia de Weber; no plano da teoria econômica, Keynes para a macroeconomia e Schumpeter (além de Smith e Marx) para a teoria geral do desenvolvimento; e, para a análise do desenvolvimento brasileiro ou latino-americano, os estruturalistas latino-americanos, particularmente Prebisch, Rangel e Furtado.
Em 1962, publico meu primeiro paper, “The rise of middle class and middle management in Brazil”, em que meu interesse pela burocracia ou pelas novas classes médias já se manifesta. Em 1968, publico meu primeiro livro, Desenvolvimento e Crise no Brasil, que desenvolvo uma interpretação de base isebiana e cepalina, apesar da crítica que as ideais do ISEB e da CEPAL vinham sofrendo, depois do golpe militar de 1964, dentro da própria esquerda.
Em 1972 obtenho o título de doutor em economia, na Faculdade de Economia e Administração da USP, com uma tese mais sociológica do que econômica, Mobilidade e carreira dos dirigentes das empresas paulistas. Nesse mesmo ano, publico Tecnoburocracia e contestação, no qual justaponho minha análise das revoluções utópicas dos estudantes e de amplos setores da Igreja Católica, à posição dominante no mundo desenvolvido, que denomino “tecnoburocrático-capitalista “. Na primeira parte dos anos 70, dedico-me principalmente ao estudo da classe média burocrática e ao novo modelo de desenvolvimento que então se torna dominante no Brasil, escrevendo Estado e subdesenvolvimento industrializado. A partir de 1975, concentro meu interesse na formulação de uma teoria sobre a transição democrática que então se iniciava, que se consubstanciará, em 1978, na publicação de O colapso de uma aliança de classes e, em 1985, de Pactos políticos.
A partir de 1980, mergulho firme na teoria da inflação inercial, com a colaboração de Yoshiaki Nakano, meu ex-aluno com quem estudara teoria econômica e teoria marxista durante boa parte da década de 70, e, em 1980, fundara o Centro de Economia Política para publicar a Revista de Economia Política. Continuamos até hoje trabalhando juntos nesta publicação acadêmica trimestral.
O trabalho sobre a teoria da inflação inercial completou-se com a publicação, em 1984, do livro conjunto, Inflação e recessão. Nesse mesmo ano defendo minha tese de livre-docência em Economia na USP. Desta vez a tese Lucro, acumulação e crise, que escrevera de forma intermitente nos catorze anos anteriores, não será sociológica, mas puramente econômica. Guarda, entretanto, uma similaridade com meus trabalhos de teoria social: uso conceitos marxistas para chegar a conclusões não marxistas, ou, mais precisamente, a conclusões às quais Marx não chegou no seu tempo. Do ponto de vista retórico esta é uma estratégia suicida, porque desagrada os marxistas e é estranha aos liberais. Mas estou seguro de que é uma excelente estratégia para conhecer o mundo em que vivemos.
Desde 1963 até o final de 1983, dividi meu tempo entre os trabalhos acadêmicos na Fundação Getúlio Vargas e a direção de um grande grupo empresarial, Pão de Açúcar. Em 1993, convidado por André Franco Montoro, comecei minha carreira política, que, no entanto, será apenas administrativa: não concorrerei a cargos eletivos, porque um cargo dessa natureza implicaria o abandono definitivo da atividade acadêmica. No governo Montoro - o primeiro governo democrático em São Paulo depois de muitos anos de autoritarismo -, nos dois primeiros anos, ocupei a presidência do Banco do Estado de São Paulo, e nos dois últimos, a Secretaria do Governo. Em 1987, depois de uma meteórica passagem pela Secretaria de Ciência e Tecnologia, tive uma passagem curta, mas, para mim marcante, como ministro da Fazenda.
Entre 1988 e 1994 volto à vida privada e dedico-me aos problemas da economia internacional e da dívida externa. Meu interesse, entretanto, se concentra na análise da crise geral do final do século: a crise do Estado. Meu principal trabalho nesta área, neste período, é o livro com Adam Przeworski e José Maria Maravall, Economic Reforms in New Democracies (1993). Ao mesmo tempo dedico-me cada vez mais ao estudo da teoria política, a partir, principalmente, da leitura de Norberto Bobbio, que passa a ser uma nova e fundamental influência em minha visão do mundo. Através de Bobbio, que é um social-democrata liberal, passo a buscar a integração para muitos considerada impossível entre socialismo democrático e liberalismo. Por outro lado, passo a ensinar metodologia científica para economistas e desenvolvo a ideia de que a economia e a teoria política podem ser estudadas, alternativamente, ou do ponto de vista principalmente histórico-indutivo, ou do ponto de vista dominantemente lógico-dedutivo, sendo ambas as perspectivas igualmente válidas, embora irredutíveis uma à outra. Na teoria econômica, por exemplo, a adoção do primeiro ponto de vista resulta na teoria clássica do desenvolvimento econômico e a teoria macroeconômica keynesiana; e na teoria política, a análise do Estado como resultado de uma complexificação crescente da sociedade. Já a adoção do segundo ponto de vista leva, na economia, à teoria microeconômica ou à teoria neoclássica do equilíbrio geral, e na teoria política, à teoria do contrato social.
Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso fui convidado para ministro da Administração Federal e Reforma do Estado. Logro, então, a aprovação, pelo Congresso, das principais instituições necessárias à reforma, inclusive a emenda constitucional da “reforma administrativa”, ao mesmo tempo que obtenho o apoio dos formadores de opinião do país para as ideais gerais da reforma gerencial da administração pública brasileira. Na verdade, foi este o momento em que pude aliar a prática com a teoria de forma mais perfeita. O resultado intelectual desse trabalho, além de vários papers, foi o livro Reforma do Estado para a cidadania (1998). Em janeiro de 1999 assumi o Ministério da Ciência e Tecnologia, do qual sou exonerado em julho último. Volto então à vida privada, pretendendo dedicar-me essencialmente aos trabalhos acadêmicos.
Como é possível observar, meus interesses intelectuais são amplos; minha trajetória profissional, variada; as influências principais que sofri nem sempre são facilmente conciliáveis. De qualquer forma, se me perguntarem qual a minha principal área de estudo, eu diria que é a economia política no sentido moderno do termo. Sou antes de mais nada um economista político, que se aventura a fazer teoria social e teoria política. Minha formação é eclética, mas estou convencido de que esta é a melhor forma de compreender um mundo tão complexo e contraditório como este em que vivemos. Minha visão das coisas admite a concomitância de vários pontos de vista. Permite sínteses, mas não uma única síntese. Leva à elaboração de mode10s gerais, mas não de modelos pretensiosos a ponto de pretenderem uma visão única e sistemática da realidade social, econômica e política.
CONTRIBUIÇÕES
A partir dessa apresentação de minha trajetória profissional e de minhas influências intelectuais básicas, posso dedicar-me a um inventário das contribuições que espero ter dado para o conhecimento do Brasil, e, mais amplamente, do mundo em que vivemos. Entendo por “contribuição” uma análise ou uma teoria razoavelmente original a respeito de determinado tema. Estas contribuições podem ser classificadas em análises históricas do Brasil, análises históricas gerais, e teorias gerais.
Análises históricas do Brasil
Logo após meus estudos nos Estados Unidos realizei na Fundação Getúlio Vargas duas pesquisas relacionadas entre si. Na primeira, realizada em 1962, com Zaíra Rocha Awad, estudei as origens étnicas e sociais dos empresários industriais paulistas. Minha hipótese, consistente com a análise histórica do ISEB, era de que eles não haviam se originado das famílias tradicionais de proprietários de terra, especificamente de cafeicultores no caso de São Paulo, mas de uma classe média imigrante. Esta pesquisa foi amplamente confirmada pela pesquisa, publicada em “Origens étnicas e sociais dos empresários paulistas” (1964). Logo a seguir realizei uma pesquisa, agora com Henrique Rattner, sobre a mobilidade e carreira dos dirigentes das empresas paulistas. Enquanto na primeira pesquisa meu universo era formado pelos empresários - aqueles “que haviam fundado ou desenvolvido decididamente a empresa” - e tivesse um caráter histórico (o empresário sobre o qual se levantavam dados podia não estar mais ativo, podendo inclusive já haver morrido), na segunda pesquisa o universo era constituído por dirigentes de empresas, que podiam ser empresários ou não, e que estavam necessariamente na ativa. Além disso, estava mais preocupado com a sua mobilidade social e carreira do que com suas origens, embora essas também tenham sido levantadas. Os resultados dessas pesquisas foram publicados em minha tese de doutorado na USP, Mobilidade e carreira dos empresários paulistas (1972).
Há certos momentos da história de um país que exigem uma interpretação inovadora, que contraste com o saber convencional. Imagino ter feito uma primeira contribuição dessa natureza quando analisei o colapso do pacto populista a partir do surgimento, durante os anos 50, de uma série de fatos novos que invalidaram esse pacto, assim como a correspondente interpretação nacional-burguesa do ISEB, que o Partido Comunista de um lado, e a CEPAL, de outro, de alguma forma compartilhavam. Ao invés de aceitar a interpretação funcional-capitalista, que, a partir do livro de Caio Prado Jr., A revolução brasileira (1965), tornara-se dominante no país, nos meios de esquerda, faço uma análise alternativa. Caio Prado Jr. atribuíra aos grupos de esquerda, que haviam defendido uma aliança da esquerda e dos trabalhadores com a burguesia, a responsabilidade pelo golpe militar de 19642 . Faço a crítica dessa visão ressentida, reafirmo a validade da interpretação isebiana no momento em que foi feita, mas mostro como essa interpretação se tornou superada com a emergência dos fatos históricos novos ocorridos principalmente na segunda metade dos anos 50, entre os quais vale lembrar aqui a consolidação da industrialização brasileira e a perda de importância da agricultura cafeeira acentuada pela queda vertical do preço do café, a entrada em massa de capitais estrangeiros na indústria ao mesmo tempo que uma lei de tarifas protegia a indústria nacional, e o recrudescimento da luta sindical e da ação dos partidos de esquerda, ao mesmo tempo que em 1959 tínhamos a revolução de Fidel Castro em Cuba. Todos esses fatos novos inviabilizaram o pacto populista e promoveram uma reunião das forças de direita, que desembocou no golpe militar3.
Esta foi uma primeira contribuição à análise do desenvolvimento político brasileiro. Foi uma contribuição isolada. A segunda refere-se ao desenvolvimento econômico, e se insere em um contexto que dará origem à chamada “teoria da dependência “. Nos anos 60 vivemos um período de crise e de estagnação, que só terminaria em 1967-68. A esquerda falava em estagnação. No Chile alguns intelectuais brasileiros, entre os quais Fernando Henrique Cardoso, Antônio Barros de Castro, Maria Conceição Tavares e José Serra, começam a perceber que a estagnação estava sendo superada, e que um novo modelo de desenvolvimento estava surgindo baseado na participação das empresas multinacionais na industrialização do país, na ênfase na produção de bens de consumo de luxo, e na correspondente concentração de renda da classe média para cima. Conceição Tavares e Serra escrevem, em 1970, um trabalho que ficou famoso na América Latina, “Além da estagnação”, que só publicariam no ano seguinte. Eu publico ainda em 1970, sem conhecimento daquele trabalho, um artigo semelhante, que também parte da crítica a um livro de Celso Furtado.
O artigo “Dividir ou multiplicar: a distribuição de renda e a recuperação da economia brasileira” complementava minhas análises anteriores sobre superação das teses que atribuíam o subdesenvolvimento brasileiro à oposição das potências imperialistas, e assim participava da interpretação do Brasil e da América Latina que, a partir do livro de Cardoso e Faletto (1969), seria denominada “teoria da dependência “. Através da teoria da dependência ou da nova dependência pretendíamos assinalar que, em função dos fatos históricos novos dos anos 50, o imperialismo deixara de ser contra a industrialização, deixara de estar aliado à burguesia agrário-mercantil, e passara a participar dela. As empresas multinacionais e o capital financeiro internacional, entretanto, continuavam a condicionar perversamente o nosso desenvolvimento (1976), a impor-nos uma nova dependência. A exploração continuava a existir, mas ocorria agora menos através da troca desigual e mais através dos financiamentos internacionais. Estes, dada a sobra de capitais que passa a prevalecer internacionalmente a partir dos anos 70, nos são oferecidos a taxas de juros substancialmente superiores aos pagos nos países centrais, e - o que é mais grave - em volumes muito superiores àqueles que os países latino-americanos tinham capacidade de absorver de forma competente. Além disso, eram instáveis. De uma hora para outra os países podiam perder todo o crédito e serem levados à crise financeira, como aconteceu no início dos anos 80 (e quase voltou a acontecer recentemente, em 1998). Ainda nos anos 70, completo minha análise da nova dependência e da contraditória dependência em que estávamos envolvidos através do livro Estado e subdesenvolvimento industrializado (1977).
Quando, entretanto, eu publico este livro o tema já estava velho para mim. O que me apaixonava, então, além do debate sobre a tecnoburocracia a que me referirei adiante, era a teoria que estava elaborando para explicar e prever a transição democrática no Brasil. Depois do “milagre econômico” de 1968-74, a economia brasileira, a partir do primeiro choque do petróleo e das medidas de ajuste tomadas pelos países desenvolvidos, passa a enfrentar dificuldades. Em consequência, a “lua-de-mel” entre a burguesia industrial e a tecnoburocracia militar chega ao fim. Percebo, então, que a transição democrática estava começando a ocorrer, e que seria inevitável. Não seria, entretanto, o resultado de uma concessão dos setores militares brandos (ou blandos, ou soft), como o saber convencional da ciência política nacional e internacional veio depois a consagrar, a partir da influência exercida pelo livro organizado por O’Donnell, Schmitter & Whitehead (1986), mas o resultado da ruptura da aliança que a burguesia e mais amplamente as classes médias haviam estabelecido com os militares em 1964 e sua progressiva aliança com os setores democráticos do país. Comecei a perceber este fato em um artigo de 1976, “Estatização ou redefinição do modelo político”, escrito quando assistia à campanha iniciada pelos liberais brasileiros contra as empresas estatais, embora mantivessem o apoio ao governo. Entretanto, após o conjunto de atos autoritários tomados pelo presidente Ernesto Geisel em abril de 1977, que ficou denominado “o pacote de abril”, escrevi para a Folha de S. Paulo o artigo central de minha tese sobre a transição democrática, “A ruptura de uma aliança política”. Em seguida, depois de escrever vários artigos com vistas à publicação de um livro, publiquei O colapso de uma aliança de classes (1978), que é um dos meus trabalhos que mais teve repercussão internacional. Em 1985 fiz uma coletânea de papers acadêmicos sobre o tema, Pactos políticos.
Uma quarta contribuição no campo das análises do Brasil refere-se à aplicação da teoria da inércia inflacionária para explicar a inflação brasileira, e a proposta decorrente de neutralização da inércia através de um congelamento com tabelas de conversão (1980-83). Deixo, entretanto, esse tema para a seção das contribuições teóricas.
Uma quinta contribuição para a análise do Brasil, mas que também se confunde com as análises históricas gerais, é a “interpretação da crise do Estado”. Enquanto o país se democratizava, e em função, em parte, desse fato, a economia brasileira passava a enfrentar, a partir dos anos 80, uma grande crise, gestada no endividamento externo e no desajuste fiscal dos anos 70. O país atacou, inicialmente, os seus sintomas mais diretos, a inflação, o desequilíbrio do balanço de pagamentos, e o endividamento externo. Eu próprio abandonei minhas preocupações com o desenvolvimento econômico e passei a dar aulas e escrever papers nessa área. Mas, em abril de 1987, quando, dias antes de assumir o Ministério da Fazenda, apresentei, em um seminário na Universidade de Cambridge, o artigo “Mudanças no padrão de financiamento do investimento no Brasil”, tornou-se claro para mim a verdadeira natureza da crise: tratava-se de uma crise fiscal do Estado, ou, mais amplamente, de uma crise do próprio Estado e do modelo de desenvolvimento substituidor de importações que este adotara para promover o desenvolvimento do país. Este artigo será a base de minha atuação no Ministério da Fazenda. Formulo então, ajudado pela minha equipe, o Plano de controle macroeconômico (1987), que tem esse artigo como base. Saindo do ministério no final de 1987, escrevo uma série de artigos sobre a crise do Estado no Brasil, que são reunidos em A crise do Estado (1991).
Segundo a interpretação da crise do Estado, que complementa a teoria da dependência na explicação da economia brasileira e mais amplamente da crise latino-americana, a causa fundamental da relativa estagnação em que cai a região é, de um lado, a crise fiscal do Estado, que o leva a deixar de ser fonte de poupança nacional, e, de outro, a superação do modelo de substituição de importações como estratégia de desenvolvimento. Em consequência tornava-se necessário empreender reformas que recuperassem as finanças do Estado e, particularmente, a poupança pública.
O apoio que dei a estas reformas - abertura comercial, privatização dos setores competitivos em poder do Estado, reforma tributária, reforma da previdência pública e reforma gerencial da administração pública - aproximava aparentemente minha visão da perspectiva neoliberal que, durante os anos 80, se tornara dominante nos Estados Unidos, estendendo-se, em seguida, para o resto do mundo. Delas, entretanto, se afastam radicalmente ao terem, para mim, como objetivo legítimo reconstruir o Estado, ao invés de reduzi-lo ao mínimo; torná-lo mais forte e não mais fraco; torná-lo capaz de enfrentar os desafios da globalização, ao invés de aceitar como fatalidade a sua própria perda de autonomia decisória. Assim, no texto em que pela primeira vez expus a interpretação da crise do Estado, faço também a crítica do “consenso de Washington”. Este trabalho, “A crise da América Latina: Consenso de Washington ou crise fiscal?” (1990) foi, provavelmente, a primeira crítica ao consenso neoliberal, que acabara de se constituir - uma crítica que depois se tornaria comum e desvirtuada pela velha esquerda.
A teoria da crise fiscal do Estado então desenvolvida afirmava que a crise dos anos 80 dos países latino-americanos era essencialmente endógena, apesar do elemento dívida externa poder ser considerado externo. Endógena no sentido de que haviam sido os nossos próprios erros que haviam provocado a crise. Erro em proteger demais nossa economia, erro em nos endividar demais externamente, erro em incorrer em déficits públicos crescentes. Logo, para enfrentar a crise era necessário, ao contrário do que afirmava a velha interpretação nacionalista e desenvolvimentista, combater o déficit público, liberalizar o comércio e privatizar, dando mais espaço para o mercado. Mas, ao contrário do que pretendia o consenso neoliberal, o que se pretendia e o que se pretende com as reformas é fortalecer o Estado, recuperando a poupança pública, reduzindo o endividamento público e aumentando a competência política e administrativa do seu núcleo estratégico, para, assim, capacitá-lo para enfrentar os desafios da economia globalizada e da ideologia neoliberal da globalização.
Um pouco após escrever este paper, porém, convenci-me de que estava desenvolvendo uma teoria com uma amplitude maior. Eu já estava me voltando para um tema mais geral, que complementava minha análise sobre a emergência das grandes organizações burocráticas e da tecnoburocracia enquanto classe social, que desenvolvera nos anos 70. A crise do Estado, além de explicar a crise da América Latina, poderia também explicar, de um lado, a crise dos países comunistas e a desaceleração econômica nos países desenvolvidos, e, de outro, a crise geral da esquerda, e o novo predomínio da ideologia de direita, neoliberal. Tratarei destas crises na seção seguinte4.
Uma última contribuição ao entendimento do Brasil foi minha análise, em 1995, do “retrocesso burocrático” representado pela Constituição de 1988. Embora a burocracia estivesse em crise, desafiada pela direita, e houvesse perdido a capacidade, que tivera desde os anos 30, de participar ativamente na formulação de um projeto nacional, ela foi ainda capaz de criar para si própria, no âmbito da Assembleia Constituinte, uma série de privilégios que agravarão significativamente a crise fiscal brasileira. Esta é uma distorção curiosa. A resposta da burocracia estatal brasileira à sua própria crise de legitimidade e ao fato de que ela e o próprio país perderam a clareza de um projeto nacional ou de um projeto social foi de tratar de defender seus próprios interesses mais ativamente, foi a busca de privilégios, logrados na Constituição de 1988, e o aumento do grau de corrupção. Meus trabalhos no Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, a partir do primeiro, escrito nos primeiros meses de 1995, “A reforma do aparelho do Estado e a Constituição de 1988”, já destacam esse fato. O modelo mais geral de reforma do Estado, que examinarei na seção seguinte, foi desenvolvido a partir desse texto, do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (MARE, 1995), escrito com a ajuda da minha equipe, e de um segundo artigo escrito concomitantemente com o plano, “Da administração pública burocrática à gerencial” (1996).
Análises históricas gerais
Entendo por análises históricas gerais aquelas que não se aplicam apenas ao Brasil ou a América Latina, mas têm um escopo maior. Compartilham, entretanto, com as contribuições anteriores o fato de não serem principalmente análises lógico-dedutivas, mas históricas.
A primeira análise desta natureza que considero relevante foi a que fiz da revolução política da Igreja Católica. Entre março e agosto de 1968, eu escrevi um ensaio sobre a revolução estudantil. Decidi complementá-lo, para formar um único livro, com análise da transformação política por que estava passando a Igreja Católica, a partir do Concílio Vaticano II, que João XXIII liderara. Passei o ano todo de 1969 escrevendo esse novo ensaio, que me apaixonou. Através dele eu, que fora católico, lograva agora analisar de fora o que estava ocorrendo - ou relativamente de fora, porque quem nasce na Igreja Católica jamais se desliga dela totalmente. Estudei como o processo de modernização, ou de aggiornamento, da Igreja estava relacionado com a sua perda de poder político, na medida em que além de deixar de ter propriedades e ser poderosa economicamente (como fora na Idade Média), deixava de ser o fator central de controle social para as elites dirigentes, que agora contavam com o Estado para isto. E também como esse aggiornamento, que na América Latina assumia o caráter de radicalização política, estava relacionado com a concorrência crescente das outras religiões, em particular das seitas pentecostais, que já então faziam avanços importantes nas comunidades católicas. Entendi as mudanças políticas da Igreja como uma resposta à perda de poder que a ameaçava. Creio que foi a primeira análise das transformações profundas por que passou a Igreja Católica a partir do Concílio, transformações essas que na América Latina foram desencadeadas pela reunião geral dos bispos latino-americanos em Medelín, em 1968. Estes dois ensaios deveriam ter sido ser publicados em conjunto no final de 1969. Entretanto, sua publicação foi atrasada porque, quando ficaram prontos, a ditadura havia sido estabelecida no Brasil através do Ato Institucional 5, de dezembro de 1968. Só foram publicados três anos mais tarde, em conjunto com um terceiro ensaio que escrevi no ano anterior sobre a emergência de uma nova classe burocrática. O livro chamou-se Tecnoburocracia e contestação (1972)5.
As duas contribuições históricas gerais mais importantes que fiz - ou aquelas que mais me mobilizaram intelectualmente - foram, durante os anos 70 até meados dos anos 80, a análise da tecnoburocracia ou nova classe média profissional e, a partir de meados dos anos 80, a interpretação da crise contemporânea como uma crise de Estado. No primeiro caso, a perspectiva era principalmente sociológica, já que as mudanças sociais estavam no centro das preocupações; já no segundo, a análise é mais econômica e política. Política porque centrada no Estado, econômica, porque explica a crise econômica a partir da crise do Estado.
A análise da burocracia enquanto classe social foi sempre central para mim. Meu primeiro paper, já referido, discutia o surgimento da classe média no Brasil; minha tese de doutoramento tratava da mobilidade e carreira dos administradores das empresas brasileiras. Mas foi só com o ensaio de 1972, com o ensaio “A emergência da tecnoburocracia”, complementado por um segundo ensaio em 1977, “Notas introdutórias ao modo estatal ou tecnoburocrático de produção”, que dei ao tema o caráter histórico geral devido. Assinalei a emergência de uma nova classe social - a nova classe média burocrática ou assalariada que denominei “tecnoburocracia”; relacionei-a, utilizando um instrumental marxista, com o surgimento de um novo fator estratégico de produção - o conhecimento técnico e organizacional -, que estava gradualmente se tornando mais importante do que o capital; identifiquei novas relações de produção, que chamei de “organização”, ou seja, a propriedade coletiva dos meios de produção pela tecnoburocracia; defini um novo modo de produção que pretendia substituir o capitalismo: o modo tecnoburocrático ou estatal de produção. Escrevi também análises sobre a União Soviética e a China, a partir de uma viagem que fiz àqueles países em 1979, procurando mostrar que nesses dois parses a formação social era dominantemente estatal.
Participei, então, de intensos debates. Eu não estava fazendo nenhuma denúncia da burocracia, que considero uma classe fundamental nas sociedades contemporâneas. Estava apenas registrando e analisando sua emergência. Minha atitude, entretanto, deixava a esquerda burocrática em transe, porque jamais admitiu que ela própria se constituísse em ou fosse parte de uma classe. Podia ser um estamento, podia ser “a vanguarda do proletariado”, podia ser identificada com os “intelectuais” ou a inteligentzia, mas não podia ser uma classe. Reuni tudo, exceto o último ensaio que escrevi a respeito, “As classes sociais no capitalismo monopolista” (1980), até hoje inédito, no livro já mencionado, A sociedade estatal e a tecnoburocracia. Pretendia utilizar esse último ensaio em um novo livro sobre o tema, que afinal não foi escrito.
Esses trabalhos não pretendiam ser estritamente originais. Tive predecessores ilustres, que partiam de diferentes matrizes teóricas e ideológicas, mas chegavam à mesma conclusão: uma nova classe burocrática, apoiada no conhecimento técnico e na capacidade de gerir organizações, estava em emergência. Entre eles lembro agora o próprio Max Weber, Adolph Berle e Gardiner Means, Bruno Risi, James Burnham, Cornelius Castoriadis, Wright Mills, Milovan Djilas e John Kenneth Galbraith. Mas éramos, de qualquer forma, uma minoria. No Brasil eu era uma voz praticamente isolada. Os comunistas, ou, mais amplamente, a esquerda burocrática que se pretendia marxista, sentia-se ameaçada com a tese. Afinal era uma heresia afirmar que depois do capitalismo teríamos o estatismo em lugar do socialismo e, depois, o comunismo. Além disso, ao dizer que a classe dominante nos países chamados “socialistas” - mas que eu sempre denominei “estatistas” - era a burocracia, eu estava expondo (não denunciando, insisto, porque uma classe social não se denuncia, mas se analisa) uma classe que pretendia ou preferia manter-se oculta. Aos capitalistas ou os liberais também não agradava a tese. Afinal, depois do capitalismo não teremos mais capitalismo? Depois do liberalismo, mais liberalismo?
Com a crise dos anos 80 estes últimos pareceram ter razão. Com a crise do Estado a burocracia pública e a esquerda burocrática foram colocadas na defensiva. As burocracias das grandes organizações privadas passaram, também, por profundas reestruturações, em que a segurança no emprego foi substancialmente diminuída. A tese da emergência e crescente ascendência de uma nova classe parecia ter sido negada. Entretanto, se examinarmos bem o assunto, verificaremos que é justamente o contrário que está acontecendo. As classes médias assalariadas e/ou profissionais no mundo contemporâneo, tornaram-se dominantes, e de tal maneira pervasivas, infiltradas em todo o tecido social, que deixávamos de distingui-las do resto da sociedade. Como, dentro da própria nova classe média, o que importa são os estratos baseados na educação e no prestígio social, os conceitos de classe social marxista ou weberiano, baseados em relações de produção, perderam relativamente a importância. Em outras palavras, as classes sociais perderam relativamente poder explicativo para o processo histórico e político, na medida em que a burguesia ou a classe capitalista perdia espaço decisório para a nova classe média, e os trabalhadores deixavam de ser proletários e aos poucos iam eles próprios, nos países desenvolvidos, sendo incorporados na nova classe média. Em contrapartida, os conceitos de estratos sociais superiores, médios superiores, médios-médios, médios inferiores, inferiores tornaram-se mais úteis, não apenas para as análises de mercado, mas também para as análises políticas.
Minhas teses sobre a emergência da nova classe e do seu crescente poder econômico e político confirmavam-se, assim, plenamente. No que me equivoquei foi em pensar que ao emergir uma nova classe, o capitalismo daria crescentemente lugar ao estatismo. Ou seja, que a mudança nas relações de produção que possibilitavam o surgimento da nova classe média profissional implicasse necessariamente uma mudança no modo de organizar e coordenar a produção. Mais na linha de Berle e Means e de Galbraith, do que na de Weber, Risi e Castoriadis, a nova classe emergiu, assumiu crescentemente o poder não apenas no Estado, mas principalmente nas empresas privadas, porém estas continuaram a ser coordenadas pelo mercado e a obedecer a lógica do capitalismo. A diferença está no fato de que agora os novos capitalistas são menos empresários schumpeterianos, que começam de baixo e criam novas empresas, e mais gerentes, executivos de grandes organizações, que recebem salários, gratificações e opções de compra de ações de tal monta que se transformam, afinal, em capitalistas. O capitalismo, enquanto forma de coordenação da produção pelo mercado, tendo o lucro como motor principal, continuou dominante, mas a classe capitalista foi crescentemente substituída por uma classe de profissionais, que também possui algum capital, mas cujo ativo fundamental, do qual deriva poder e renda, é o conhecimento técnico e organizacional. Esse conhecimento, que, já em 1972, eu afirmava ser o novo fator estratégico de produção, assume esse caráter não apenas porque conduz ao poder político sobre as organizações privadas e o Estado, mas também porque é o meio através do qual o capital é apropriado privadamente.
Minha outra contribuição histórica geral diz respeito à crise do Estado. Através dela fiz ou venho fazendo desde meados dos anos 80 a análise política e econômica da sociedade em que vivemos. Como aconteceu no caso da análise sociológica, a análise política originou-se no estudo do caso brasileiro, mas afinal foi estendida para o resto do mundo, propondo-se a ser uma análise histórica geral. E sempre partiu da busca do fato histórico novo. Há uma coerência entre as duas: a análise sociológica centrada nos anos 60 e 70, a política ou de economia política, nos anos 80 e 90. Na primeira, burocratas e capitalistas conflitavam e cooperavam entre si, enquanto aumentava o poder da burocracia pública e privada, do Estado e das grandes organizações privadas; na segunda, a partir dos anos 80, o Estado e, mais genericamente, as grandes organizações burocráticas entram em crise, uma crise cíclica, provisória, que também atingiu a burocracia estatal.
Na análise política e econômica da crise do Estado ou, mais genericamente, da crise da organização burocrática referimo-nos poucas vezes ao processo de “globalização”. Por quê? Hoje está claro para mim que a razão principal para isto está no fato de que a teoria da crise do Estado é uma alternativa à teoria ou a ideologia da globalização. Na verdade, da mesma forma que tivemos neste século um modelo vencedor de associação entre burocratas e capitalistas, de uso crescente do poder burocrático proporcionado pelo conhecimento técnico e organizacional combinado com coordenação capitalista da produção através da administração ou do plano e do mercado, tivemos também, no último quartel do século, a crise e a transformação desse modelo. Essa crise, através da qual se procurou reduzir o papel do Estado e da burocracia, e ampliar mundialmente o do mercado, vem sendo chamada “globalização” mas prefiro denominar de “crise do Estado”.
Na seção anterior narrei como a interpretação da crise do Estado começou, para mim, como uma forma de interpretar o Brasil e a América Latina a partir dos anos 80. Entretanto, ainda em 1988 escrevi um ensaio, “O caráter cíclico da intervenção estatal que colocava a crise do Estado em um plano mundial, tornava-a cíclica e, portanto, temporária, e com ela explicava o avanço das teorias neoliberais. Quando, a partir de 1990, me envolvi no projeto de pesquisa sobre as transformações políticas nas novas democracias que Adam Przeworski liderou, e que teve como um dos frutos meu livro com José Maria Maravall e Adam, Economic Reforms in New Democracies (1993), foi-se tornando claro que minha tese da crise do Estado aplicava-se também, ainda que em menor grau, aos países desenvolvidos.
Na verdade, se considerarmos a intervenção do Estado na economia um processo cíclico, marcado por períodos de liberalização, como o dos anos 30 e os 90 do século XIX e os anos 20 e 80 do século XX, a globalização corresponde a um avanço da coordenação da economia pelo mercado e a um novo impulso para as ideologias neoliberais. Ora, crise do Estado não é mais nada do que o outro lado da mesma moeda da globalização. Ao contrário, entretanto, da ideologia neoliberal, adotada pelos ideólogos radicais do liberalismo, ou da ideologia da globalização, adotada radicalmente pelas empresas multinacionais, a teoria da crise do Estado nega que o Estado tenha perdido definitivamente autonomia. Ele se enfraqueceu por motivos endógenos, entrou em crise fiscal, entrou em uma crise mais ampla envolvendo sua forma de relacionar-se com a sociedade, crise que o obriga a se fortalecer novamente no plano fiscal, a realizar reformas que tornem sua ação mais gerencial e que defendam melhor o patrimônio público. Mais do que isto, a crise o impele a rever e tornar mais democrática sua forma de regular o setor privado, e principalmente, a reconhecer e dar a atenção devida ao setor das entidades sem fins lucrativos, públicas não-estatais.
Em minha análise da crise do Estado um artigo importante para mim é “A reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle”, de 1997. Neste paper faço a análise do processo de crise e reforma do Estado, mostrando que a onda neoliberal já terminou em nível internacional. Para fazer frente à crise, a reforma institucional se impõe. Reforma que tem como objetivo reconstruir o Estado, embora ainda venha sendo vista equivocadamente nos países em desenvolvimento como reformas para reduzir o Estado a qualquer custo. Infelizmente, como acontece sempre na periferia, onde os fenômenos sociais e políticos acontecem sempre com uma defasagem em relação ao centro, a onda neoliberal ainda continua presente na América Latina. Continuamos a pensar em aumentar a força do mercado, quando já é tempo de voltar proteger, ainda que através de novas formas, a empresa e o trabalho nacional. Voltei a analisar mais amplamente o tema no livro Reforma do Estado para a cidadania (1998).
Recentemente escrevi um paper, “Sociedade civil: sua democratização e a reforma do Estado” (1999), em que procuro, de alguma forma, juntar estas duas interpretações: a da emergência da tecnoburocracia e da crise do Estado. Entretanto, não o fiz de forma consciente, sendo necessário que eu trabalhe mais nesse tema, para que alguns aspectos sociológicos, políticos e econômicos essenciais do mundo em que vivemos, que têm sido objeto do meu interesse através dos anos, se tornem mais claros.
Contribuições teóricas
Finalmente uma palavra sobre minhas contribuições teóricas, em que o método lógico-dedutivo prevalece sobre o histórico-indutivo.
Minha primeira contribuição está em Lucro, acumulação e crise (1984). Nesse livro, que levei anos e anos para escrever e reescrever, faço uma revisão do modelo clássico de desenvolvimento, utilizando novamente um instrumental marxista - neste caso, a lei da tendência declinante da taxa de lucro - para chegar a conclusões não-marxistas. Estive sempre convencido de que enquanto o modelo neoclássico é insuperável para nos fazer compreender o funcionamento em abstrato de uma economia de mercado, e o modelo keynesiano nos mostra como funcionam os agregados econômicos em uma realidade concreta, é o modelo clássico de Adam Smith e de Karl Marx que mais nos auxilia a compreender o processo histórico do desenvolvimento. A teoria do desenvolvimento, portanto, deve ser clássica, em vez de neoclássica ou keynesiana. Mas entendi necessário revisá-la em dois pontos. Primeiro, inverti a teoria clássica da distribuição de renda, colocando os salários como resíduo em vez de a taxa de lucros. Sraffa teria feito a mesma coisa, mas eu o faço de forma mais explícita e argumentada. Segundo, abandonando o pressuposto marxista de um progresso técnico dispendioso de capital (mecanização), mostrei como é possível no sistema capitalista, pressupondo-se uma taxa de lucro constante a longo prazo, que os salários aumentem tanto quanto a produtividade (no caso do progresso técnico neutro), e mesmo mais do que a produtividade, como consequência da distribuição de renda, no caso que tende a ser cada vez mais frequente de progresso técnico poupador de capital.
Minha segunda contribuição teórica diz respeito à teoria da inflação inercial. O primeiro paper em que exponho a ideia da inércia é “A inflação no capitalismo de Estado (e a experiência brasileira recente)” (1981). Embora já descrevendo como as empresas, dadas algumas circunstâncias, aumentam de forma defasada seus preços, independentemente da demanda, as ideias ainda não estavam claras. Ficarão no trabalho que escrevo com Yoshiaki Nakano, “Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação” (1993), que acredito ter sido a primeira exposição completa da teoria. No ano seguinte, Nakano e eu publicamos juntos nossos trabalhos no livro Inflação e recessão. Mais ou menos ao mesmo tempo André Lara Resende, Pérsio Arida, Francisco Lopes, Edmar Bacha e Eduardo Modiano estavam trabalhando no Rio de Janeiro, no mesmo tema, que havia tido dois pioneiros na América Latina: Mário Henrique Simonsen (1970) e Felipe Pazos (1972). Descrevo a descoberta das novas ideias, que, acredito, terem sido até hoje a mais importante contribuição latino-americana para a teoria macroeconômica, em “A inflação decifrada” (1996). Segundo essa teoria, uma inflação inercial, indexada formal ou informalmente, em que os preços aumentavam de forma defasada, só poderia ser controlada através da neutralização da inércia. Esta neutralização poderia ser realizada através de tabelas de conversão dos preços aos preços do dia em que se congelam preços provisoriamente, como aconteceu de forma bem-sucedida em Israel (1985) e no México (1987), e malsucedida na Argentina (1985) e no Brasil (1986, 1987), ou implicar a adoção de uma moeda-índice, conforme foi feito no Brasil no Plano Real (1994), a partir de uma proposta original de Resende e Arida (1984).
Uma terceira e uma quarta contribuição teórica situam-se no plano metodológico. Embora eu seja um economista, e os economistas sejam treinados, nos termos do mainstream neoclássico, para pensarem de forma primordialmente lógico-dedutiva, boa parte de minhas eventuais contribuições tem antes um caráter histórico indutivo. As influências de Marx, Weber e do próprio Keynes, cuja macroeconomia é principalmente uma teoria histórico-indutiva, foram em mim mais fortes. Para pensar nestes termos, desenvolvi, na prática, um método, que costumo chamar de “o método do fato novo” ou “do fato histórico novo”. Nunca escrevi especialmente sobre o tema, porque ele me parece por demais óbvio para quem adota um método histórico. As ciências sociais são antes de mais nada ciências históricas, que generalizam sobre a forma como a as sociedades se apresentam e evoluem no plano de sua própria estrutura, de sua economia, de sua política, de sua cultura. Por isso, ainda que possamos submetê-las a análises racionais, pensando-a por um momento de forma a-histórica, em geral, quando examinamos a realidade que nos rodeia, a pergunta essencial que deve ser feita é: o que mudou, quais os fatos novos que exigem uma nova interpretação, da realidade. O pressuposto é o de que, se nada mudou, já existem teorias para explicar o que ocorreu. O grande desafio do cientista social, seja ele um sociólogo, um economista, um cientista político ou um antropólogo, é entender a mudança e a nova situação resultante. E isto que o método do fato novo permite alcançar. Foi esse método que usei em quase tudo quanto escrevi, sempre com resultados muito satisfatórios. Enquanto mesmo analistas que se pretendem marxistas ou weberianos - e que, portanto, deveriam adotar uma perspectiva histórica - ficavam presos aos modelos do passado, eu estava buscando os fatos novos que explicam o presente e oferecem chaves para o futuro.
A quarta contribuição teórica consiste na proposta de distinguir as análises científicas primordialmente histórico-indutivas das lógico-dedutivas, afirmar que elas levam a resultados diferentes embora não necessariamente contraditórios, considerar ambas as abordagens legítimas e recusar a possibilidade (ou mesmo a necessidade) de submeter uma à outra para chegar a uma síntese única e final. A partir de 1989, passo a ensinar a disciplina Metodologia Científica para Economistas. E nesse contexto desenvolvo uma teoria para explicar por que a macroeconomia seria irredutível a microeconomia e vice-versa. Essencialmente porque a primeira adota um método essencialmente lógico-dedutivo, enquanto a segunda um método predominantemente histórico-indutivo. Estas ideias estão esboçadas no paper escrito com Gilberto Tadeu Lima, “The irreductibility of macro to microeconomics: a methodological approach” (1996). Pretendo ainda voltar a essas ideias. A meu ver é uma arrogância científica querer reduzir cada ciência a uma única abordagem. Especialmente nas ciências sociais isto é impossível. A economia neoclássica, de caráter lógico-dedutivo, representa uma contribuição decisiva para a compreensão de uma economia de mercado, da mesma forma que a teoria clássica de Smith, Marx (e Schumpeter) é insubstituível para compreendermos o processo de longo prazo do desenvolvimento econômico, e a teoria keynesiana, um marco definitivo na compreensão dos processos macroeconômicos de curto prazo. No plano da teoria política, o conceito histórico de Estado que obtemos de Hegel, Marx e Engels é tão importante quanto o conceito lógico-dedutivo do contrato social, que Hobbes e os demais filósofos iluministas nos legaram.
Observem os leitores que organizei minhas próprias contribuições neste trabalho de acordo com esta lógica. Embora minha formação seja mais histórica do que lógico-dedutiva, penso ter podido contribuir em ambos os planos.
Finalmente, uma última contribuição que classifico como análise teórica, embora tenha elementos históricos evidentes, ligando-se à teoria da crise do Estado. Refiro-me à teoria ou ao modelo de reforma do Estado, que desenvolvo quando, em 1995, me vejo nomeado por Fernando Henrique Cardoso Ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado. Esse modelo aparece primeiro no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (MARE, 1995) e depois em vários papers, e finalmente no livro Reforma do Estado para a cidadania (1998) 6 . O modelo tem duas bases teóricas. De um lado, o paper “Cidadania e res publica: a emergência dos direitos republicanos” (1997), em que minha preocupação central é identificar a reforma com a defesa e a reconstrução do Estado. É um trabalho de teoria política e direito, embora use o método histórico de forma explícita. Nele procuro demonstrar como, no último quartel do século XX, surgiu um quarto tipo de direitos de cidadania: os direitos republicanos. Entendo por direitos republicanos os direitos que cada cidadão tem de que a res publica, que o patrimônio público, seja, de fato, mantido público: que o meio ambiente, o patrimônio histórico-cultural e os recursos econômicos ou orçamentários do Estado sejam usados de forma pública, no interesse de todos, ao invés de serem capturados por interesses privados, serem vítimas de privatização ou de rent-seeking. De outro lado, baseia-se nas distinções entre atividades exclusivas e não-exclusivas de Estado (estas podendo ser sociais e científicas ou voltadas para o mercado); e entre organizações públicas estatais, públicas não-estatais e privadas; e entre administração pública burocrática e administração pública gerencial.
O modelo de reforma do Estado foi resumido em uma matriz que se tornou bastante conhecida no Brasil pelos interessados no assunto. Nesta matriz temos (a) três setores: o das atividades exclusivas de Estado, que envolvam o uso do poder de Estado, o das atividades sociais e científicas que a sociedade julga dever do Estado apoiar e o setor da produção de bens para o mercado; (b) três formas de propriedade: estatal, pública não-estatal e privada; e (c) duas formas de administração: burocrática e gerencial.
Segundo o modelo, que entendo ser social-democrático e moderno, compatível com a nova esquerda, o Estado deve limitar-se a operar diretamente o setor das suas atividades exclusivas; apoiar com recursos públicos as atividades sociais, como educação básica, saúde e garantia de renda mínima (que devem ter caráter universal), a educação superior e as atividades científicas, controlando-as através de contratos de gestão; e limitar-se a regular as produção competitiva de bens e serviços para o mercado, privatizando-se os serviços que não forem monopólios naturais7.
No plano do próprio Estado, trata-se de realizar a segunda reforma histórica da administração pública. A primeira, que tem início no século passado na Europa, é a reforma burocrática ou do serviço civil; ela substituiu a administração patrimonialista, que confundia o patrimônio público com o privado, por uma administração burocrática, criando uma categoria de servidores civis profissionais e estabelecendo um conjunto de regras procedimentais rígidas para serem por eles seguidas, de forma a proteger o patrimônio público. A segunda reforma, que chamei Reforma Gerencial, começa em alguns países da OCDE nos anos 80, e nos anos 90 começa a ocorrer na América Latina. A ideia central é dar maior autonomia e maior responsabilidade aos administradores públicos. Ela pressupõe um regime democrático. A estratégia, ao contrário do que acontecia com a administração burocrática, é a de descentralizar autoridade, passando o controle a ser exercido menos através de normais procedimentais e mais através de resultados acordados, de sistemas de competição administrada entre órgãos semelhantes, e de mecanismos de controle social.
Depois de um grande debate nacional, as principais instituições dessa reforma gerencial do Estado brasileiro obtiveram apoio não apenas na sociedade, mas também na alta administração pública. E, ao contrário de outras reformas estruturais que estavam na agenda do país havia muito mais tempo, como a reforma tributária e a reforma da previdência social, a reforma administrativa, inclusive na parte que envolvia uma emenda constitucional, foi aprovada quase na íntegra pelo Parlamento brasileiro8 .
A reforma gerencial brasileira foi com frequência acusada pela esquerda burocrática de ser neoliberal. Não é. Seu objetivo, consistente com a teoria da crise do Estado, é reconstruir o Estado, e não substituí-lo pelo mercado, a não ser naquelas atividades competitivas e empresarias onde não faz sentido a gestão estatal. Seu objetivo, mais amplamente, é fortalecer o Estado e a sociedade civil, tornando ambos mutuamente mais democráticos e responsáveis9 . O projeto das organizações sociais, ou seja, de transformar serviços sociais do Estado em serviços financiados pelo Estado, mas prestados por entidades públicas não-estatais ilustra bem este objetivo de reconstruir o Estado e fortalecer a sociedade civil.
CONCLUSÃO
Termino aqui minha sumária apresentação das principais influências teóricas que sofri, de minha própria trajetória intelectual, e das contribuições que eventualmente fiz para a compreensão do Brasil, da América Latina e, mais amplamente, do mundo em que vivemos10.
Há muito trabalho ainda pela frente. Trabalho que deverá ser capaz de captar as orientações básicas de um mundo sempre em mudança. Trabalho que revele capacidade de se manter coerente com as ideias até aqui desenvolvidas e, ao mesmo tempo, capaz de captar as contradições e fatos novos que a realidade externa e a nossa própria realidade pessoal nos impõem. Trabalho, no plano da teoria econômica, que aprofunde a análise do desenvolvimento econômico e o relacione não apenas com a acumulação de capital e a incorporação de progresso técnico, ou com a inovação, ou com o capital humano, mas também e, principalmente, que demonstre a relação central entre desenvolvimento e estabilidade macroeconômica, que neste último quartel do século XX deixou de poder ser vista como pressuposto. Mais amplamente, uma teoria do desenvolvimento econômico que a relacionem com o bom Estado e bom governo, com as boas instituições e os bons governantes. Trabalho que, no plano da análise histórica, seja de caráter sociológico, político e econômico, seja mais integrado, de forma que possamos não apenas compreender melhor a natureza da sociedade e do Estado em que vivemos mas, principalmente, indagar como é possível torná-lo melhor.
De volta à vida privada, depois de uma segunda experiência de quase cinco anos no governo, espero agora dedicar-me ao trabalho acadêmico com intensidade ainda maior. O objetivo será sempre o mesmo: fazer análises, desenvolver teorias ou interpretações que nos ajudem a entender o mundo em que vivemos e a implementar políticas, no nível do Estado e da sociedade civil, que ajudem a torná-lo melhor: menos autoritário, menos injusto, menos marcado pela pobreza e o privilégio.
REFERÊNCIAS
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1
Sobre Ignácio Rangel ver meu artigo com José Márcio Rego “Um mestre da economia brasileira” (1993).
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2
Sobre as “Interpretações do Brasil” ver Bresser-Pereira (1982; 1997).
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3
Estas ideais já estão presentes em uma carta a Luiz Antonio de Almeida Eça (1960). Aparecem primeiro publicadas em “O empresário e a revolução industrial brasileira” (1993), e são republicadas como Capítulo 4 de Desenvolvimento e crise no Brasil (1968).
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4
Escrevo sobre a necessidade de reconstrução do Estado desde o início dos anos 90. Sobre a reconstrução do Estado no nível da América Latina, ver especificamente “Um novo Estado para a América Latina” (1998); em nível mais geral, “Reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle” (1997) e Reforma do Estado para a cidadania (1998).
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5
Tecnoburocracia e Contestação era um livro que continha temas muito diferentes. Quando a primeira edição deste se esgotou, eu já havia escrito outros ensaios sobre a burocracia ou a nova classe média, de forma que decidi, com meu editor Caio Graco Prado, publicar os dois ensaios originais em um livro com o título As revoluções utópicas (1979), e os ensaios sobre a nova classe, em outro que se chamou A sociedade estatal e a tecnoburocracia (1981).
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6
Entre os papers, ver principalmente “Da administração burocrática à gerencial” (1996) e “Estratégia e estrutura para um novo Estado” (1997).
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7
Sobre a terceira via, ver Bresser-Pereira (1999), “Nova centro-esquerda”.
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8
Descrevo o processo de obtenção de apoio junto à sociedade e de aprovação no Congresso da reforma em um texto, por enquanto apenas disponível na Web, “Reflections on changing institutions in a democratic State” (1999).
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9
Mostrei especialmente este processo de mútua influência do Estado sobre a sociedade civil e vice-versa de forma a torná-los mais democráticos em “Sociedade civil: sua democratização e a reforma do Estado” (1999).
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10
Não fiz aqui o levantamento de minhas experiências no Ministério da Fazenda e no Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Ver a respeito “Contra a corrente” (1988), “Brazil: stabilization in an adverse environment” (1993), “A turning point in the debt crisis” (1995), “Reflections on changing institutions in a democratic State” (1999). Não escrevi uma avaliação de meu trabalho no Ministério da Ciência e Tecnologia, porque, afinal, foi de curta duração. Existe apenas o “Discurso de despedida “ (1999).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2000