Resumos
Estudo da relação entre os judeus cultivados de Berlim (na figura de Rachel Varnhagen) e a cultura clássica alemã por meio da análise do papel nela representado pela idéia de "personalidade", senha da ideologia dos mandarins alemães.
Cultura clássica alemã; Bildung; Rachel Varnhagen; personalidade; mandarins alemães
Study of the relationship between the cultivated jews of Berlin (represented by the figure of Rachel Varnhagen) and the German ical culture through the analysis of the role played in the latter by the idea of "personality", codeword of the German mandarins' ideology.
German ical culture; Bildung; Rachel Varnhagen; personality; German mandarins
Uma irresistível vocação para cultivar a própria personalidade
An irresistible tendency to cultivate one's own personality
Paulo Eduardo Arantes**
RESUMO
Estudo da relação entre os judeus cultivados de Berlim (na figura de Rachel Varnhagen) e a cultura clássica alemã por meio da análise do papel nela representado pela idéia de "personalidade", senha da ideologia dos mandarins alemães.
Palavras-chave: Cultura clássica alemã; Bildung; Rachel Varnhagen; personalidade; mandarins alemães.
ABSTRACT
Study of the relationship between the cultivated jews of Berlin (represented by the figure of Rachel Varnhagen) and the German ical culture through the analysis of the role played in the latter by the idea of "personality", codeword of the German mandarins' ideology.
Keywords: German ical culture; Bildung; Rachel Varnhagen; personality; German mandarins.
Arrematemos as observações anteriores sobre a "lepidez ideológica" (a fórmula é de Roberto Schwarz) dos românticos alemães, fazendo remontar alguns fios de nossa meada ao salão berlinense de Rachel Varnhagen, em cuja órbita muitos daqueles "mandarins" não desdenharam gravitar, atraídos aliás por incoercível afinidade. Nos primeiros anos do oitocentos, as soirées na água-furtada de Rachel reuniam uma sociedade numerosa e disparatada: príncipes da casa reinante; ministros e diplomatas "esclarecidos" e diletantes; negociantes judeus; condessas excêntricas e "liberadas"; gente de teatro e cantores; publicistas-ideólogos dos círculos políticos dominantes, aos quais vinha agregar-se a pequena legião dos letrados em voga: Tieck, Friedrich Schlegel, Jean-Paul, Schleiermacher, Brentano, Chamisso, etc. (Arendt, 1957, p.54-6; 1975, p.92-3). Em menor escala, esta mesma companhia sortida também tinha encontro marcado nos salões de Henriette Herz, Brendel Veit e Dorothea Mendelssohn, outras tantas damas judias a partilhar com Rachel o insólito privilégio de aglutinar, durante o breve período que antecedeu o desastre de Iena, a sociedade mais brilhante que Berlim jamais iria moldar (Arendt, 1975, p.92). Pois é nestes salões berlinenses que se condensa e irradia a "sublime insolência" dos novos intelectuais (Ayrault, 1961, p.31), como se o amálgama intelectual que lhes caracteriza a bizarria de espírito cristalizasse o insólito amálgama social que ali era a regra. Mas para tanto era preciso que no centro deles reinasse a figura exótica de um judeu de exceção. Sendo Rachel judia, toda Berlim podia bater à sua porta, que se abria para uma área externa, à margem da sociedade respeitável, terra de ninguém a caldear nobres, atores e letrados num vago e idílico caos, livre de preconceitos e convenções, e de qualquer princípio de seleção estamental (Arendt, 1957, p.30, 46-7; 1975, p.92). Some-se ainda à sedução desta sociedade heteróclita, o magnetismo natural da patronne "sua inteligência original, inconvencional e pura, aliada ao interesse pelas pessoas e à natureza genuinamente apaixonada, fizeram dela a mais brilhante e a mais interessante das grandes damas judias" (Arendt, 1975, p.91). Tudo nela falava à imaginação dos primeiros românticos, a começar pela singular tonalidade d'alma, permeável às acrobacias do Witz, que parece ter cultivado com muita aplicação e sucesso: uma certa propensão a aproximar coisas que não costumam andar juntas e a revelar a incoerência de associações familiares, vezo incômodo que seus inimigos consideravam falta de estilo, desequilíbrio e petulante complacência no paradoxo (Arendt, 1957, p.26, 45). Na verdade, sua condição de pária de elite e por isso mesmo desobrigado das peias da tradição condenava-se à originalidade a todo custo: ao judeu cultivado as portas do gueto só se abriam a golpes de piruetas excêntricas. Tal era a senha da assimilação, segundo Hannah Arendt como se há de recordar, algo análogo ao tributo pago pelo intelectual outsider. Também sua demasia raciocinante ajudava a cimentar a liga secreta de Rachel com os "literatos do asfalto" irmanava-os o mesmo excesso "reflexivo-sentimental" condenado certa vez por Humboldt, uma certa mobilidade própria da "raciocinação", acusada de enlanguescer a sensibilidade e evaporar o caráter, e com ele o mundo da ação, substituído por um sucedâneo cerebrino já emurchecido (Masini, 1974, p.12-3). O juízo de Hannah Arendt acerca do veio reflexivo de Rachel é em boa medida tributário desse antiintelectualismo entranhado na religião alemã da cultura: desarmada diante de uma realidade sórdida, ruminando o estigma social que um mundo adverso lhe impunha, Rachel tergiversava com os fatos, por assim dizer denegados pelo exercício descalibrado do livre pensamento, sua derradeira tábua de salvação por esse caminho afunilado teria reduzido o imperativo ilustrado do "pensar por si mesmo" à condição de simples mania de intelectual inquiridor (Arendt, 1957, p.5-6). O grande paradigma nacional de quem julga assim tão severamente um espírito livre que fazia tudo depender da auto-reflexão é Lessing. Note-se, aliás, o quanto Hannah Arendt (1974, p.17) retrata da concepção enfática de Kultur ao definir, mais tarde, o que não é o Selbstdenken lessingueano: "o célebre 'pensar por si mesmo' de Lessing não é de modo algum a atividade de um indivíduo unitário, encerrado em si mesmo, amadurecido, cultivado organicamente e que, então, procura à sua volta no mundo, o lugar mais propício ao seu desenvolvimento, a fim de harmonizar, graças ao pensamento, o indivíduo e o mundo". E no entanto, por mais que Lessing, Goethe e Humboldt tenham declarado o homem nascido para a ação, e não para a "raciocinação", a verdade da intelligentsia alemã deve ser procurada no espírito volátil da pequena Rachel, que tanto impressionou o próprio Goethe. Uma vez convertida em mania compensatória, a promessa de emancipação contida na palavra-de-ordem iluminista torna-se um convite a pôr o mundo entre parênteses: o Selbstdenken, continua Hannah Arendt (1957, p.6-7) neutraliza a força das coisas pelo sacrifício do senso comum e, assim, definha, transformando-se em introspecção, que isola e cancela qualquer demanda de ação.***,1 Se assim é, não admira o fascínio exercido por esse estado de ânimo evanescente sobre intelectuais consumidos, como se viu, por uma curiosa suspensão da tese natural acerca da real seriedade do mundo. Acresce, reforçando a atração recíproca, que este eclipse da realidade sob a égide da introspecção cristaliza-se de preferência no ambiente íntimo do salão.2 Já nos referimos à ambígua complacência com que os românticos submetiam-se à doce tirania da intimidade, indissociável da não menos ambivalente desenvoltura com que evoluíam nos vários templos da sociabilidade absoluta em que se celebrava o culto por assim dizer do tête-à-tête coletivo: lembremo-nos, por exemplo, de Schleiermacher compondo seus discursos sobre a Religião para maior edificação de seus contemporâneos cultivados, e por isso mesmo fazendo recair a tônica no espírito de sociedade (das Gesellige) encarnado na religião; pois este mesmo jovem pastor "reflexivo-sentimental", aguilhoado por "incoercível necessidade de se comunicar" tomava diariamente o caminho do salão de Henriette Herz, é bem verdade que à sua hora, em que circulava desimpedido o Familiengespräch dos que porfiavam em fazer de suas vidas uma obra de arte (Ayrault, 1961, p.34)3 aliás, a principal aspiração de Rachel. Além do mais, o lugar natural dessa efusão íntima tão ao gosto dos românticos era a conversação, outra cristalização característica da vida de salão realçada e entronizada pela mania raciocinante de Rachel. Proust observou certa vez o quanto a "ivresse de la conversation" afetava as pessoas "dont la vie est sans but" ao mesmo tempo em que sua existência ociosa lhes afinava a acuidade perceptiva, voltada de imediato para os meandros da vida mundana. Rainha do instante, Rachel sabia cativar o interlocutor, e, no entanto, igualmente sua escrava, não se resignava a deixar partir seu vis-à-vis, pois a vida imaginária que levava carecia do bocado de realidade mascarado nas réplicas brilhantes a que induzia seu parceiro mas tais manejos só faziam ampliar o fundo falso sobre o qual assentava seu castelo de frases e confidências. É que o sortilégio da conversação romântica consiste precisamente acrescenta Hannah Arendt (1957, p.15-7) na sua capacidade de exclusão da realidade, arrematando o efeito análogo produzido pelo Selbstdenken transformado em introspecção. Como se vê, uma maneira de desacreditar as manhas do intelectual romântico. Este mesmo propósito transparece em sua apreciação de Lucinde, um romance de atmosfera onde cada situação é filtrada pelo demônio da introspecção. Ora, é próprio da introspecção, insiste Hannah Arendt, aniquilar as situações reais dissolvendo-as num etéreo clima de fascinação, favorável à aura de objetividade e interesse público que passa então a nimbar os menores eventos da vida sentimental; borradas assim as fronteiras do público e do privado, tornam-se públicas as mínimas dobras da esfera íntima, enquanto os assuntos públicos só podem ser experimentados e expressos nos termos, menos arejados, da intimidade devassada vale dizer, amesquinham-se no horizonte baixo do puro gossip (ibidem, p.16). Seria excessivo aludir à queima-roupa à aversão hegeliana pelo bavardage dos intelectuais sem caráter? Seja como for, aos olhos de Hannah Arendt, a obra de Schlegel é o complemento literário do mood peculiar que grassa nos círculos íntimos berlinenses, animados pelas grandes damas judias, com uma diferença: a integralidade do seu efeito frustrase finalmente, pois a ambiência carregada de magia a que aspira não sobrevive sem o suporte atuante de uma "personalidade", que só se manifesta no milagre da conversação (ibidem, p.17). E voltamos assim a esbarrar num dos topoi nevrálgicos do ideário da Bildung, como veremos, logo adiante.
Os salões judeus de Berlim nada ficavam a dever aos seus congêneres: além de ambiente íntimo acompanhado de prosa afinada pelo mesmo diapasão, também contavam com a presença estimulante de uma anfitriã, cujo papel catalisador era indispensável ao tipo de simbiose social que ali se processava (cf. as características de um salão enumeradas por Tinken, apud Mannheim, 1974, p.108-9). Num ponto porém, particularmente sensível à elite de cultura local, excediam seus similares: no mundo peculiar pelo qual sublimavam o processo de ascensão social (outra função dos salões comumente salientado pela literatura especializada; cf. ibidem, p.112). Com muito senso de oportunidade ideológica, colocavam-no sob os auspícios de Goethe. Já no seu primeiro estudo biográfico, que estamos acompanhando de perto, Hannah Arendt observara o quanto a sofística da assimilação, como dizia, decalcara o modelo de "formação da personalidade", sucedâneo que o Wilhelm Meister oferecera a um "estamento médio" tolhido em suas aspirações. Ninguém desejou tanto reproduzir a trajetória do herói goetheano, entendida ledo engano como assimilação do burguês sensível à nobreza, do que aqueles judeus denominados mais tarde "judeus de exceção pela cultura" (Arendt, 1957, p.28-9; 1975, p.92; Habermas, 1974, p.70).4 De fato, o culto de Goethe não nasceu por acaso no salão de Rachel Varnhagen: seu ideal de cultura e distinção vinha a calhar para burgueses e judeus à margem da boa sociedade. E da vida política. Noutra dimensão, os judeus de exceção partilhavam o destino da franja esclarecida da burguesia local, reiterando num registro mais elevado os seus mecanismos de consolo: já disse que os salões judeus de Berlim não teriam prosperado caso esses judeus de exceção não procurassem compensar sua impotência política pelo cultivo entusiasta da vida doméstica.5 Por outro lado, a boa fortuna mundana desses salões deveu-se a uma breve conjuntura histórica, sobretudo favorável à sua transformação em "centros de sociabilidade cultivada" onde o "idílico sonho recorrente de uma sociedade mesclada" parecia enfim realizar-se: neste curto período de transição, adverte Hannah Arendt (1957, p.46-7) que estamos citando não se pode dizer que a cultura alemã estivesse ancorada numa e social particular, muito menos que os judeus alemães tivessem afinal logrado algum tipo de enraizamento social; assim sendo, não espanta que as soirées de Rachel, Henriette, etc., tenham conhecido um brilho tão intenso quanto efêmero, justamente na condição de zona neutra para onde convergiam os espíritos emancipados; no entanto, tão logo principia a tomar corpo o poder burguês e a despontar os primeiros sinais de uma sociedade de e média cultivada, aqueles salões judeus declinam e desaparecem.
Em linhas gerais, a cultura do icismo alemão foi, portanto, para os judeus de exceção, uma tábua de salvação; e vice-versa, os portadores imediatos desse nobre fardo encontravam, nos salões berlinenses das grandes damas judias, um porto seguro e uma janela aberta para o mundo. Reunidos pelo culto celebrado em comum, deixavam-se, intelectuais e seus anfitriões, medusar pelo brilho da "existência simbólica" de Goethe, no qual reconheciam, nas palavras de Simmel, "a única possibilidade de não ser um comediante e não usar uma máscara". "Esse espírito goetheano interiorizado", comenta Habermas (1974, p.70), "não era apenas a promessa de um caminho aberto à assimilação, mas permitia esperar uma liberação dos tormentos da assimilação, isto é, do constrangimento de representar sempre um papel sem poder conservar sua própria identidade". Mutatis mutandis, a observação se aplica às atribulações do intelectual outsider carecido de reconhecimento social. Já aludimos à estranha vocação teatral atribuída pelo Wilhelm Meister ao espírito burguês em formação. Voltemos a ela guiados pelo estudo biográfico de Hannah Arendt. Ao contrário do que dão a entender Simmel e Habermas, o espetáculo continua para assimilados e seus satélites à procura de um lugar ao sol.6 Assim, na laboriosa reconciliação goetheana com o curso do mundo, o temperamento fantasista de Rachel Varnhagen entreviu um apelo à estetização do seu malestar permanente: no Meister, costumava dizer, Goethe convida o pobre burguês enjeitado, ao qual, no entanto, malgrado sua desgraça (que o priva sobretudo da "graça" entronizada por Schiller), repugna o suicídio wertheriano, a voltar-se para o teatro, a arte e mesmo para um ligeiro e inocente namoro com as formas do falso (Arendt, 1957, p.93). Advogando em causa própria, a pequena Rachel simplesmente punha de cabeça para baixo o elevado propósito realista de Goethe paródia involuntária, por certo.7 Embora não fizesse praça de leituras, tudo se passa como se Rachel tivesse tomado ao pé da letra certas indicações do artigo famoso de Friedrich Schlegel, um de seus "fidèles", sobre o romance de Goethe: no vasto teatro do mundo, cada um conta pelo que pode representar, até mesmo a "bela alma"vive teatralmente (a aproximação é ainda de Arendt, 1957, p.94; para o artigo de Schlegel, ver Schlegel, 1963, em particular p.467). Assim amparada, consta que Rachel teria chegado à maestria na arte de representar sua própria vida: neste jogo importava bem menos dizer a verdade do que o arrojo de pôr-se em cena sem pudor. De qualquer modo, podia-se ler com todas as letras no Meister a exortação consoladora: sobre as tábuas de um palco, o homem culto faz brilhar sua pessoa como se evoluísse no círculo encantado das es superiores. Bastava armar o palco entre as quatro paredes de um salão bem iluminado de resto freqüentado nos seus momentos de fastígio por alguns espécimes daquela nobre estirpe. Junte-se a estes últimos, por um notável concurso de circunstâncias, a companhia dos atores. Aqueles judeus "excepcionais" de Berlim (recorramos novamente a Arendt, 1957, p.46) demandavam uma terra de ninguém onde se cruzavam os caminhos de uma e declinante e de um grupo social ainda sem estado civil definido: nobres e atores, todos refratários, como os seus anfitriões, ao tímido canto de sereia da boa sociedade burguesa em formação. Ambos, de resto, cumpriam à risca o programa de Wilhelm, patrono do burguês sensível desolado com a mesquinhez de sua origem: a rigor não faziam senão representar um papel, via de regra o seu próprio, isto é, nos termos mesmos da famigerada carta a Werner, ao contrário do burguês, mostravam o que eram desdenhando exibir o que possuíam (idem, ibidem). Enfim, Goethe não confiava justamente a atores e nobres a educação daqueles espíritos predestinados a um desenvolvimento harmônico de sua natureza, e no entanto excluídos da sociedade escolhida dos bem-aventurados cujo nascimento eleva bem acima das esferas inferiores da humanidade? Estava assim armado o cenário para a comédia mundana da "personalidade" um conceito que o novo pensamento alemão vinha elaborando no silêncio modorrento das universidades e que conhecerá nos salões berlinenses um momento de fastígio que lhe infletirá de vez o sentido por excesso de fidelidade ao seu programa. Assinalemos de relance dois ou três passos desse itinerário.
Ao concluir a Crítica da razão prática, Kant chamara a personalidade de "euinvisível" (Kant, 1960, p.173). Pode-se dizer que o curso ulterior do conceito nele incluído sua vida social encarregou-se de tornar visível essa instância soberana que Kant segregara no reino inteligível da lei moral. Kant, de fato, teve o cuidado de distinguir a existência profana da pessoa da realidade suprasensível que a sustenta em sua condição de fim em si mesma; somente a essa força capaz de elevar o homem acima dele mesmo convinha o conceito de personalidade (ibidem, p.91-2). Numa palavra, jamais se dirá que alguém é uma personalidade, que tal indivíduo exprime imediatamente o princípio de humanidade que nele se reflete a começar pelos grandes deste mundo (Adorno, 1973, p.49). Sua intransigente separação da pessoa e personalidade, subordinando o teor mundano e patológico da primeira determinação à destinação superior encarnada pelo segundo princípio o único a impor respeito e pedir veneração enfim, sua recusa em confundir o indivíduo com o universal que o subsume, alinha Kant entre os derradeiros demolidores do ideal aristocrático a legião dos autores modernos que arrolaram argumentos em favor do capitalismo antes do seu triunfo (estudados por Hirschman, 1979, p. ex., p.21), muito embora o ethos burguês que sua conceituação sancionava (e ultrapassava) se incumbisse, por seu turno, de deixar morrer à míngua a idéia de personalidade que encarnava o ascetismo da primeira hora. É conhecido o empenho de Schiller (sem falar em Goethe e no jovem Hegel) em quebrar o gelo desse rigorismo e fazer justiça à natureza mortificada sem no entanto romper a fronda burguesa dos intelectuais na verdade, modificava-se apenas a estratégia imaginária da revolução passiva, se nos for consentido o curto-circuito; por assim dizer à inflexível porém impotente certeza moral do funcionário alemão, principal vítima do dever kantiano,8 pedia passagem a bela alma do primeiro servidor do duque de Weimar. Kant seqüestrara o ser bruto do indivíduo para melhor magnificar a humanidade presente em sua pessoa e realçar o espetáculo sublime da lei moral oferecido pela personalidade, ponto de fuga da liberdade e da independência em relação aos mecanismos da natureza. Só este espetáculo inspira respeito Schiller não dirá que não, pede apenas, seguramente escarmentado por outro espetáculo, o da "virtude" enfurecida sob a ditadura jacobina, que o seu preço não seja o sacrifício dos afetos em favor da autonomia (singela utopia, aos olhos de Kant, essa inocente coreografia do dever emoldurado pelas graças). Numa palavra, ao invés de subordinação, reciprocidade e harmonia, mas para tanto era preciso que o reino invisível da personalidade descesse ao mundo da bela aparência, como sucedera aos gregos e voltará a ocorrer no futuro Estado estético até lá, como já foi lembrado, essa fusão de pessoa e personalidade será o apanágio de alguns poucos "círculoseleitos", integrados por indivíduos que já são de fato personalidades ou, se preferirmos, já exibem a"formaviva"de uma obra de arte.9 Está visto que esse "terceirocaráter" a "personalidade" enfim individuada e visível não cairá do céu (mais uma guinada e a "personalidade" poderá ser um dom "inato"), sua produção demandará um longo esforço de educação (Erziehung), ao termo do qual renascerá o símile moderno da recém exumada e prezada pelos novos humanistas Ausbildung do cidadão grego. Inútil lembrar que nas Cartas de Schiller repercutem a cada página as palavras de Humboldt (que em julho de 92 lhe comunicava o manuscrito do Ensaio sobre os limites do Estado): o verdadeiro e supremo fim do homem é o mais elevado e bem proporcionado desenvolvimento (Bildung) de suas forças, nos limites de sua peculiaridade individual, num todo harmonioso (Humboldt, 1943, p.94; 1964, p.46). Um ano depois, o mesmo Humboldt (1964a, p.101) repetia sua palavra de ordem em termos kantianos: a derradeira tarefa de nossa existência consiste em realizar "o conceito da humanidade em nossa pessoa". Menos inútil lembrar, então, que a noção por assim dizer transcendental de personalidade (afinal Kant fizera dela uma das categorias de relação da liberdade) passa a nortear o ideal de cultura harmoniosa, a governar o comportamento do homem que se cultiva, numa palavra, torna-se a senha da ideologia dos mandarins, num momento, é verdade, em que a fantasia humboldteana de um sujeito universalmente desenvolvido, onde personalidade e autonomia soberana convergiam, ainda não caíra em derrisão (Adorno, 1973, p.51). No caminho mundanizara-se (na dupla acepção do termo) como se verá, sem muita violência, malgrado a rigidez do seu princípio (desumana, para o gosto de Schiller), o imperativo moral kantiano da personalidade enquanto raiz da nobre estirpe do dever, "a qual é preciso fazer derivar, como da sua origem, a condição indispensável do único valor que os homens podem atribuir a si mesmos" (Kant, 1960, p.91). Recapitulemos sublinhando o índice de e da noção kantiana de respeito na esperança de surpreender no seu nascedouro o vezo alemão de associar cultura e personalidade, vezo de intelectual, vê-se logo.
Só as pessoas inspiram respeito, insiste Kant, e toma como mote a sentença de Fontenelle: diante de um grande senhor, de um homem distinto (vor einem Vornehmen), meu espírito não se inclina. Em contrapartida é a glosa de Kant inclino-me diante da retidão de caráter de um homem de condição inferior, plebéia, diante de um simples burguês (vor einem niedrigen, bürgerlich-gemeinen Mann), pois o seu exemplo torna visível uma lei que rebaixa minha presunção enfim, o respeito é um tributo que não posso recusar ao mérito (Verdienste) (Kant, 1960, p.81; 1966, p.125-6). Convenhamos, um atalho moral sob medida para humilhar o orgulho do aristocrata e reconheçamos também que o respeito (um sentimento imposto pela presença da lei moral independentemente da inclinação ou da boa vontade) cabe de preferência aos filhos burgueses da cultura: veja-se o caso de Voltaire, continua Kant, o comum dos admiradores não lhe perdoa os tropeços de conduta, enquanto o verdadeiro homem instruído (Gelehrte), relevando-lhe o passo em falso, atém-se tão somente à solidez da cultura conquistada pelo trabalho pessoal, outro mérito a confundir nossa presunção pois afinal o seu "estado", que é uma vocação (Beruf), impõe-lhe a obrigação (com força de lei) de imitar o exemplo daquele homem de mérito (Kant, 1960, p.82). A exceção é de monta mas não chega a surpreender; pensando bem, a moralidade inerente à cultura (proclamada por Kant, como se viu em capítulo anterior, no ensaio de 1784 sobre a idéia de história universal) suplanta as eventuais escoriações de nossa natureza pouco santa, sobretudo quando se tem em vista o confronto maior com a moralidade de fachada das es civilizadas do Antigo Regime, e o cerco que então lhe movia a intelligentsia burguesa. Sabe-se (notadamente a partir das análises de Norbert Elias) o quanto as palavras de ordem Bildung e Kultur contribuíram para a cristalização dos intelectuais alemães enquanto camada social à parte, auto-legitimada pela crescente porém instável consideração carreada pelo seu virtuosismo nas coisas do espírito. A noção-fetiche de "personalidade" cumpria uma análoga função aglutinadora. Também aludimos mais de uma vez ao modo pelo qual encareciam os "mandarins", um pouco à maneira dos antigos, os efeitos da cultura superior quando esta refluía sobre o caráter e a personalidade de seus portadores. Mais uma vez, um trecho de Humboldt vale por um programa: "quando em nossa língua dizemos Bildung, nos referimos a algo mais elevado e mais interior, ao modo de perceber que deriva do conhecimento e do sentimento de toda vida espiritual e ética, e se espraia harmoniosamente sobre a sensibilidade e o caráter" (apud Gadamer, 1977, p.39). Cultivar a própria personalidade, eis a fórmula imperativa que melhor resume este programa, com tanto mais força quanto o termo já prestigioso de "personalidade" designa uma vaga nebulosa composta de convicção pessoal, vida interior intensa, profundidade de pensamento e tudo mais capaz de indicar uma tonalidade d'alma até então desconhecida no repertório espiritual moderno. Não por acaso Kant reservara ao termo um lugar decisivo em sua moral, ao mesmo tempo em que contrapunha à "civilização" dos donos da vida a humanidade presente na pessoa dos intelectuais: assim, malgrado a peculiaridade já assinalada de sua conceituação, prepara o caminho trilhado pelos "mandarins" no rumo da identificação altamente compensadora entre "homem culto" e "personalidade".
Voltemos a ele retomando o fio de nossa presente meada no momento em que Wilhelm Meister, pondo de lado suas simpatias nobiliárias, toma a defesa de sua troupe escorraçada do castelo. Verberando a conduta dos grandes (die Vornehmen), pautada pela consideração exclusiva das marcas exteriores da distinção (que são, aliás, as da civilização epidérmica conjurada por Kant em nome da verdade interior expressa pela cultura) e, evidentemente, em detrimento do homem de mérito (der Mann von Verdienst), preterição tanto mais odiosa quanto sobressai neste último o valor de uma humanidade (ou personalidade, como prefere o tradutor francês) bem dotada pela natureza (Goethe, 1954, p.560; 1923, vol. II, p.206). Numa palavra, não é bem honra (prurido gótico) ao mérito o que pede, mas o reconhecimento social do respeito que o homem de mérito irradia: enfim, respeitabilidade burguesa sancionada por argumentos kantianos em prol da cultura, embora ao preço de uma naturalização da "personalidade" confundida com a realidade imediata, e idiossincrática, do indivíduo. Em contrapartida, espiritualizava-se a base natural do indivíduo ungido pela vocação do saber; pois na verdade cabe à "bela alma" do "mandarim" a iniciativa (programática em Schiller, infusa em Goethe) de abrandar o jugo do imperativo categórico: "o homem verdadeiramente culto nunca suprime a sua natureza sensível, mesmo nas manifestações mais elevadas da sua natureza espiritual (...). Os próprios impulsos já devem ser nobres e a severa razão moral deve, de outro lado, manifestar-se de forma sensível e delicada" (Rosenfeld, 1963, p.20). Além do mais, é este mesmo "homem verdadeiramente culto" que, contrariando de novo o rigorismo kantiano do qual no entanto se beneficiou na sua permanente guerrilha contra a sociedade de corte, nas palavras de Schiller, passa a exigir do mérito a bela aparência (auch Schein von Verdienste) e da verdade interior, a forma agradável (Schiller, 1963, p.126; 1943, p.332). Já conhecemos o desfecho dessa aspiração de compromisso: o triunfo burguês da personalidade será colhido em meio aos despojos do campo adverso, a humanitas perseguida pelo letrado possuído pelo demônio da formação harmoniosa ("jenen harmonischen Ausbildund meiner Natur", obsessivamente alegada pelo bisonho esnobismo de Wilhelm Meister) refugiou-se, nessa hora indecisa de transição, no alvo recorrente do rancor burguês, na desenvoltura do aristocrata cujo poder começa a declinar. Conhecemos também os termos e a cor local desse compromisso entre o velho e o novo, o morto e o vivo: num país, como já se disse, em que durante muito tempo, mesmo depois de soada a hora do Capital, as malhas da rede civilizatória, isto é, do aburguesamento, não estiveram tão cerradas como nos outros países ocidentais num país assim conformado não surpreende que seus ideólogos, a começar pelos do "período artístico", tenham procurado conjugar, no âmbito mais etéreo das cogitações humanistas, beleza e moralidade, harmonia de gestos e autonomia, belo convívio e auto-determinação, distinção de maneiras e dever, etc. Dessa utópica convergência de Cultura e Civilização fala sem rodeios a carta ao cunhado no Meister, ou melhor, dela trata mediante um tortuoso rodeio. Recapitulemos: o nascimento burguês confisca ao mérito a dádiva da personalidade; ora, esta, para Wilhelm, que a persegue por merecê-la, é tudo, enquanto o nobre, bem nascido e "distinto" por vocação, cultiva-a como respira, além de assimilar por inteiro, e por razões de e (afinal é uma pessoa pública que pode e deve aparecer, ao passo que o burguês torna-se ridículo e absurdo toda vez que procura fazer valer e aparecer sua equívoca "personalidade"), um traço prestigioso do ethos burguês e posto na ordem do dia justamente para melhor rebaixar os méritos postiços do honnête homme: tudo concorria para marcar a desfeita, a começar agora no plano mais rarefeito das idéias gerais pelo "eu invisível" concebido por Kant, que teimava em vir ao mundo apenas na figurativa "personalidade" harmoniosa do aristocrata.
Ao aflorar na filosofia de Kant, para em seguida ressurgir na prosa e na poesia de Goethe, daí emigrando para os ensaios estéticos de Schiller depois de inspirar os escritos político-pedagógicos de Humboldt, esgalhando-se enfim pelos meandros da Ideologia Alemã, a noção de personalidade, e as demais representações afins por ela imantadas, carregava consigo o peso de uma tradição prestigiosa: o ideal renascentista do homem harmonioso, herdado por ingleses e franceses ilustrados e finalmente posto em sistema pelos neo-humanistas alemães numa palavra, o ponto de honra dos vários ciclos da intelligentsia européia moderna. Não estranha, em conseqüência, que esta última apresentasse a pedra de toque de seu ideário como a expressão direta de sua própria natureza; tarefa ingrata, como estamos vendo no caso alemão, pois nem sempre cultura e personalidade andaram juntas, separadas inclusive e principalmente por diferenças de e social. Aspiração tanto mais longínqua quanto modificaram-se para pior os pressupostos daquele ideal. Os heróis renascentistas da cultura eram tudo menos burgueses limitados, costumava lembrar Engels, acrescentando: a universalidade deles ao mesmo tempo em que assentava sobre o novo impulso das forças produtivas beneficiava-se de seu escasso desenvolvimento e correlata divisão do trabalho, cujos efeitos funestos logo se fizeram sentir nas gerações seguintes, afligidas por um permanente mal-estar na civilização (Lukács, 1966, p.113; 1966a, p.37-8). Durante algum tempo acreditou-se que o novo curso do mundo deixava ao alcance da mão a bela humanidade dos antigos. Colossal ilusão, diria Marx, que a Revolução Francesa se encarregaria de desfazer, mostrando aos melhores espíritos que o capitalismo tira com uma mão o que concede com a outra. Em razoável medida, a religião alemã da cultura não foi mais do que a ruminação intermitente de tamanho desengano. Seus primeiros pontífices podiam ainda observar a olho nu as antinomias do progresso, que aliás difundia-se de modo desigual em meio à inércia nacional, horizonte a um tempo acanhado e privilegiado desse mesmo observatório: a cada volta do parafuso do progresso, a civilização capitalista desmentia as promessas da cultura burguesa geradas em seu seio e a principal delas concernia o aperfeiçoamento máximo da personalidade que o livre desdobramento das faculdades humanas propiciado pelo ilimitado desenvolvimento das forças produtivas parecia anunciar, e entravar. Promessa, de resto, subscrita por Kant, ao reconhecer no desenvolvimento de todas as suas disposições o fim supremo da humanidade (Kant, Idéia de uma História Universal, apud Adorno 1973a, p.28). Em carta a Zelter, já no "fim do período artístico" da Ideologia Alemã, Goethe dava a medida desse desencontro entre civilização e cultura, ao mesmo tempo em que ditava o tom por exemplo, o contraponto entre quantidade e qualidade do anticapitalismo das gerações vindouras de "mandarins":
riqueza e velocidade, é isto o que o mundo admira e a que todo mundo aspira. Estradas de ferro, correios rápidos, barcos a vapor e todas as facilidades possíveis da comunicação, eis o alvo do mundo civilizado, ao qual ele se dirige para se super-civilizar e assim persistir na mediocridade (...). De fato, estamos no século dos cérebros capazes, dos homens práticos que compreendem rápido e que, dotados de uma certa agilidade, apercebem-se de toda sua superioridade sobre a massa, mesmo se os seus dons não se elevam até o nível supremo. Aferremo-nos, na medida do possível, ao estado de espírito no qual nos formamos; com alguns poucos mais, talvez, seremos os últimos de uma época que tão cedo não voltará (apud Benjamin, 1979, p.21-2).10
E no entanto, o espírito cuja asfixia deplora e no qual se plasmara sua personalidade ameaçada pelo progresso, vem a ser o do capitalismo. Mais precisamente, o da burguesia alemã de velha cepa patrícia, repassado de cultura, urbanidade e senso do dever já de há muito agonizante quando Thomas Mann saiu a campo no intuito de passá-lo a limpo, escorado na certeza goetheana de que o espírito é de origem burguesa. O mesmo Thomas Mann, então empenhadíssimo em exibir o caráter alemão dessa afinidade histórica entre burguesia e cultura superior, chegou a sustentar que a própria noção de personalidade ganhou seu primeiro impulso na próspera Alemanha das cidades hanseáticas (Mann, 1975, p.104). De fato, não custa lembrar que a cristalização do indivíduo é contemporânea da moderna economia de mercado; já não é assim tão desnecessário reparar, entretanto, que a individualidade definha até a extinção pelo menos na forma histórica em que veio ao mundo à medida em que vai se firmando o reino do individualismo burguês;11 pois é nesse intervalo que prospera a ideologia da personalidade.
O ideário clássico da Bildung, do qual aquela é parte constitutiva, tem a idade da finada era liberal do capitalismo, que por seu turno baliza a quadratura do círculo excogitada pelos novos humanistas: renovar no limiar do ciclo concorrencial do capital a "bela individualidade ética" dos gregos; daí o caráter simbólico da "personalidade" de Goethe, anacrônico "espírito grego", no dizer de Schiller, atestando a presença é certo, de segunda mão, refletida e construída de um poeta "ingênuo" numa época "sentimental", era uma garantia viva de que a almejada "harmonia rica de espírito de uma cultura consumada", graças à qual chegaria ao fim a divisão da humanidade, não era apenas um voto piedoso (Szondi, 1975). Tudo naquela doutrina clássica, deixando à mostra esse precário ajustamento recíproco de capitalismo concorrencial e emancipação da individualidade, desaguava numa tácita exortação: para alcançar a humanidade entranhada em sua pessoa, era preciso que o sujeito moderno pusesse sua alma à prova, em suma, não há cultura sem alienação, para formularmos de vez a questão nos termos do capítulo famoso da Fenomenologia do espírito. Nestes termos pensa seguramente Adorno ao afirmar que a "personalidade" não se reduz, em Humboldt, "ao simples culto do indivíduo, que precisaria ser regado como uma planta para florescer", pelo contrário, "o sujeito não chega a si mesmo cultivando narcisisticamente o próprio ser para-si, mas apenas pelo caminho do estranhamento, abandonando-se àquilo que ele não é" (Adorno, 1973, p.51-2). Goethe não diria que não mesmo porque, como é sabido, a odisséia da consciência hegeliana está calcada nas desventuras bem sucedidas de seu herói, o qual, como Saul, saindo à procura das mulas de seu pai, encontrou um reino; não obstante, Goethe faz o inexperiente Meister hesitar diante da estrada real palmilhada pela nova e, incerto quanto ao desfecho desse drama civilizatório em que o preço da universalidade em construção é a mutilação presente: "de que me serve fabricar bom ferro, se meu ser interior está cheio de escórias", pergunta ao cunhado que acabara de lhe descrever os prazeres sem jaça da vida burguesa, "de que me serve administrar uma grande propriedade", insiste, "quando estou em desacordo comigo mesmo?" Numa palavra, o antigo ideal da personalidade harmoniosa exumado pela nascente cultura burguesa descarrilava tão logo a nova ordem social entrava nos trilhos (a exposição deste conflito é tema recorrente nos estudos de Lukács sobre a Era de Goethe): ainda não funcionava a todo vapor e a "engenhosa engrenagem", como dizia Schiller, já separava o gozo do trabalho, o meio, da finalidade, o esforço, da recompensa, em suma, em todas as linhas inibia no homem a "harmonia do seu ser", emperrava o desdobramento da humanidade em sua natureza (Schiller, 1963, p.48). Ora, nem sempre se pensou assim o conflito assinalado não é de mão única. Não foram poucos nem desimportantes os autores (cuja envergadura excluía a apologética trivial) arrolados e estudados por Albert Hirschmann que, durante os séculos XVII e XVIII, bem antes, portanto, do triunfo completo do capitalismo, louvavam o impacto cultural do doux commerce:12 "esperava-se e supunha-se precisamente que o capitalismo reprimisse certos impulsos e inclinações, moldando uma personalidade humana menos multifacetada, menos imprevisível e mais unidimensional (...). Em suma, supunha-se que o capitalismo realizaria exatamente aquilo que logo mais seria denunciado como seu pior aspecto" (Hirschman, 1979, p.125). Voto piedoso ou não, de qualquer modo uma arma poderosa voltada contra a hegemonia do ethos aristocrático: ao longo daquele período de transição ainda sobravam razões para tê-lo na conta de repositório de inquietantes paixões daninhas e predatórias cuja ameaça carecia de ser conjurada; cabia então celebrar um sistema social que realçava as dimensões mais sombrias da "personalidade humana integral" em favor do inocente amor do ganho. Reprimindo-se até à atrofia as virtudes heróicas, e com elas o cortejo dos "apaixonados passatempos e selvagens façanhas da aristocracia" (cuja assustadora remanescência Veblen entreviu nos traços mais regressivos das modernas es ociosas e dominantes), contrariava-se, é certo, a manifestação desimpedida e pluridimensional da personalidade, porém, não é menos certo, abria-se a carreira àquela formação equilibrada e bem proporcionada que o herdeiro de uma família de negociantes, o nosso Wilhelm Meister, timbrava em perseguir fora de sua e. Detenhamo-nos mais uma vez nessa curiosa inversão de papéis, glosando um pouco a história contada por Hirschmann. Repare-se, então, o quanto burguesia e sociedade de corte plasmada pelo absolutismo convergiam nessa disciplina das pulsões. Basta mencionar, a propósito, o significado original daquela douceur inerente à generalização do comércio, onde cálculo e interesse parecem exigir, e finalmente confundir-se, com aquela gentileza de maneiras que a etiqueta áulica vinha apurando e difundindo há algum tempo. Montesquieu não foi o único a sustentar que o comércio abranda e dá polimento às maneiras dos homens, chegando mesmo a estabelecer uma regra geral: "onde quer que os costumes sejam polidos existe o comércio; e onde quer que exista o comércio, os costumes são polidos". A expressão the polished nations passou a designar, por volta da segunda metade do século XVIII, por oposição às "rudes e bárbaras", aqueles países da Europa Ocidental cuja riqueza provinha em larga medida da expansão do comércio. São outros tantos indícios, arremata Hirschmann, referindo-se, nas palavras de um livro destinado aos homens de negócio do século XVII, a "essa contínua troca de todos os confortos da vida que constitui o comércio", e que sugerem "doçura, maciez, calma e gentileza", enfim, o contrário da violência, fixando, assim, a imagem do comerciante inofensivo e pacífico todos eles a atestar, portanto,
o significado não-comercial de commerce: além de intercâmbio comercial propriamente dito, a palavra desde muito denotava conversação animada e contínua, assim como outras formas de intercâmbio social polido e de relacionamento entre pessoas (freqüentemente entre duas pessoas de sexo oposto) (...). Assim, o termo carregou para a sua carreira 'comercial' uma carga de significado que denotava polidez, maneiras polidas e comportamento socialmente útil em geral (idem, p.53, 60-1).
Dessa mesma sobrecarga de sentido dá testemunho um incidente de tradução livre, o que nos põe de novo na pista do Meister: de olho na bela condessa, Wilhelm, não ousando confessar-se, racionaliza, isto é, ofuscado pela desenvoltura das maneiras aristocráticas (uma sedutora combinação de "Sicherheit, Bequemlichkeit und Anmut"), deixa-se embair pela lisongeira consideração das vantagens espirituais que lhe traria um "conhecimento mais próximo" do mundo das pessoas distintas e ricas ora, não por acaso a versão francesa interpretou "nähen Kenntnis" como um "commerce plus intime" (Goethe, 1954, p.506; 1923, p.150). Nada mais justo do que o emprego de tal fórmula encantatória à qual falta apenas o epíteto doux para melhor trair o segredo de Wilhelm da parte do filho legítimo de tradicional estirpe de comerciantes. Por outro lado, alertados pela moral da história narrada por Hirschmann, podemos fazer justiça à carta do cunhado Werner, "tão bem escrita, tão judiciosa e sabiamente pensada": de fato, em sua entusiasta profissão de fé nas virtudes do comércio, afinal um convite bisonho a cultivar o próprio jardim e a entregar-se sem remorsos à calma paixão do ganho, ecoam ainda aquelas razões clássicas alegadas em favor da personalidade "unidimensional" capaz de sobrepor-se à desmesura da personalidade dos bem nascidos. Daí os escrúpulos que assaltam a alma sensível de Wilhelm dividida entre dois mundos, de resto permeáveis um ao outro, como demonstrará, não sem recurso à utopia, o desfecho prosaico do romance: de um lado o gosto da indústria, do ganho e da propriedade; do outro, o desejo de "desenvolver e aperfeiçoar suas disposições corporais para o bem e o belo". Assim oscilantes, suas idéias alternam sobriedade burguesa e fantasia boêmia: sua vocação teatral, por exemplo, único refúgio do homem culto porém plebeu, brota-lhe do fundo d'alma mercê de um nobre e puro impulso, ou é balda de um espírito inquieto e desregrado, seduzido pela fronda anti-burguesa da vida de artista? O idílio burguês-alemão decantado por Werner não o atrai, é certo, porém faz vibrar alguma corda oculta de sua existência comedida, sem o que explica-se mal a violência do "secreto espírito de contradição que o empurra para o lado oposto" (Goethe, 1954, livro 4, cap.19 e livro V, cap.2) como veremos, um traço do próprio caráter goetheano e uma das chaves da dialética negativa, a um tempo símile e matéria preformada dela.
Esquematizemos um pouco a encruzilhada em que se encontra Wilhelm Meister no afã de escoimar sua vida interior das escórias que ali se acumulavam em virtude, como ele mesmo dizia, da própria constituição da sociedade: pode-se dizer, repetimos, que o prosaico herói goetheano via-se a braços com os efeitos desencontrados daquela mudança de rumo, assinalada por Hirschmann, no destino da aspiração burguesa à personalidade bem formada naquele ponto de inflexão, ilustrado pela correspondência de Werner e Wilhelm, o ideal antigo da humanidade íntegra parecia escapar a ambas as es para voltar a se apresentar num singular entrecruzamento delas. Acresce que um letrado alemão da virada do século não carecia do morno espetáculo da Europa restaurada para convencer-se de que as forças produtivas liberadas pela nova ordem burguesa não caminhavam propriamente ao encontro daquela aspiração; bastava olhar à sua volta, para a pasmaceira em que cochilava sua e; por outro lado, todo leitor cultivado do Werther sabia por experiência própria que nem sempre a combalida aristocracia alemã favorecera o livre jogo das faculdades humanas. Como ficamos, então, sobretudo quando nos sentimos chamados para "exercer uma ação numa esfera mais vasta"? Conhecemos a alternativa de Goethe que foi também a de Schiller e a dos demais clássicos, filósofos incluídos , a utopia de uma fusão entre intelectuais avançados, burgueses esclarecidos e aristocratas dispostos a renunciar aos seus privilégios feudais, estilização (de) intelectual da modernização conservadora trilhada pela "via prussiana" rumo ao capitalismo. Só nessa "torre" assentada sobre tal amálgama poderia o sujeito, cujo princípio de individuação é a economia de mercado, lograr afinal a cristalização de sua personalidade, para o que era indispensável o "belo convívio", ou o "doce comércio", com uma nobreza por assim dizer em fim de mandato. Nesse estreito círculo dos eleitos encontra-se afinal o lugar geométrico da famigerada "personalidade", quadratura do círculo perseguida pela cultura burguesa cujo ponto de fuga, entretanto, é apanágio de uma e poupada pela divisão capitalista do trabalho. Em tal "ilha" bafejada pela bem-aventurança da reconciliação entre espírito e sociedade, a noçãotalismã de "personalidade" circularia livremente entre as es, coordenadas pelo imperativo livremente consentido da Revolução sem revolução. Assim sendo, no campo minado, ou fecundado, pelo "atraso", nobres herdam antigas aspirações burguesas, enquanto intelectuais burgueses deixam-se siderar pelo espetáculo bifronte dessa simbiose. Quando Wilhelm Meister ainda ele dá asas à fantasia e se entrega ao doce embalo de seu ideal de suprema elegância e cultura, certo de que o "comércio mais íntimo" com os grandes deste mundo provocaria uma súbita e concomitante iluminação dos meandros da vida de espírito e do curso do mundo, não é tanto a presa fácil de sua mal disfarçada racionalização de esnobe aprendiz, quanto a vítima clarividente dessa comédia de erros, para a qual, entretanto, não faltavam razões de acerto e oportunidade histórica. Lembrando tais circunstâncias, estamos repassando pela enésima vez o lugar natural de nossas conjecturas acerca do renascimento moderno da dialética. Recapitulemos pedindo ao leitor paciência com a ajuda das considerações de Adorno, já evocadas, acerca do equilíbrio paradoxal entre absolutismo e liberalismo, perceptível na consagração goetheana do "tacto", derradeiro refúgio do "doce comércio" entre os homens alienados. Repete-se o mesmo equilíbrio no caso da "personalidade", da qual, aliás, o "tacto" é o indício mais seguro. A inversão de valores e atores sociais, mencionada há pouco, deve-se igualmente àquela simbiose característica de capitalismo incipiente e resíduos pré-capitalistas: virtudes burguesas em cujo rol avulta, está visto, a "personalidade" apresentam-se, assim, nos primórdios da idade liberal, como a derradeira manifestação de virtudes aristocráticas, num momento em que declinava a hegemonia da antiga e fundamental. Curioso entrecruzamento, se é fato que as coisas tenham se passado realmente assim, a saber: o melhor da cultura burguesa foi sacrificado pela própria burguesia no caso, o momento de harmonia presente na idéia de personalidade e no entanto sua tradição, embora comprometido pela raiz, não parece constituir o legado humanista de uma nova e, mas sobreviver no ethos anacrônico de um estamento senhorial em extinção, e que outrora hostilizara aqueles mesmos valores que agora encarna como se fossem relíquias do seu próprio passado de e (Vacatello, 1972, p.80).13 Seja como for, estava armado um quebra-cabeça ideológico altamente favorável às aspirações de reconhecimento social e influência alimentadas pela intelligentsia alemã, utopia de "mandarim" que, trocada em miúdos, poderia ser condensada por uma fórmula algo filistina: a burguesia entraria com a "cultura", a nobreza com a "personalidade" e o intelectual colheria o fruto maduro da "personalidade cultivada". Tirante a brutalidade do cálculo sumário, por conta da esquematização inerente a estes apanhados panorâmicos, voltamos a esbarrar no mesmo resultado, por pouco que consideremos as origens "intelectuais" daquelas duas noções-fetiche, agora do ângulo da sua transplantação, fenômeno capital na evolução de conjunto da Ideologia Alemã, como se viu ao depararmos a opinião lábil dos românticos, à qual retornamos tão logo retomemos o caminho de volta ao salão de Rachel Varnhagen.
Não faltou quem visse o dedo de Rousseau na oposição entre Cultura e Civilização orquestrada por Kant. Holborn (1978, p.345), por exemplo: foi
a crítica de Rousseau aos elementos perniciosos da civilização que levou Kant à sua redefinição. Arte e Ciência fariam parte da Kultur, enquanto a conformidade aos costumes sociais atenderia aos reclamos da mera civilização. A moralidade também pertenceria à civilização na medida em que almejasse apenas a decência de fachada, e Kant queixava-se que nas atuais condições políticas o desenvolvimento de uma elevada moralidade encontrava-se em grande parte tolhido. Esta moralidade superior, que não demandava gratificação ou honra mas consistia exclusivamente em convicção pessoal, constituía para Kant o coração da Kultur.
Inútil chamar a atenção para a marca deixada pela leitura de Rousseau na obra de Kant: ainda voltaremos a ela ao estudarmos alguns aspectos da gênese do Idealismo implicado nas idas e vindas da importação de idéias à sombra do desenvolvimento desigual. A ascendência ideológica será tanto mais surpreendente nos seus efeitos quanto o mimetismo de base nesses transplantes não será chapado. Assim, a antítese em que se exprime a oposição de uma camada da burguesia alemã que fazia praça exclusivamente de seus feitos artísticos e científicos, teria sido induzida, é certo, por um intelectual estrangeiro (aliás estamos em seu próprio ninho), que alardeava porém um escandaloso e paradoxal desprezo pelo progresso das artes e das ciências. É verdade que desde o seu Discurso inaugural a obra de Rousseau, e em particular o seu anti-intelectualismo de intelectual, foi um permanente convite ao equívoco, o qual, aliás, parece vitimar a alegação de influência citada acima. Com efeito, o referido par antitético inexiste em Rousseau, que não só deixou de batizar o alvo de suas críticas como nele incluiu a cultura da intelligentsia européia mais avançada. Além do mais, Rousseau, como é sabido, erigiu o seu paradoxo de intelectual em argumento maior contra o século.14 Ora, nisto acompanhando os seus confrades franceses e ingleses, os letrados alemães tomaram o ataque de Rousseau à cultura ao pé da letra, como uma profissão de fé primitivista: impaciente diante do conflito que dilacera os tempos modernos, Rousseau, dizia Schiller, prefere antes ver a humanidade "retornar à uniformidade pobre de espírito do seu estado primitivo" do que contribuir com esforço redobrado na edificação paciente da "harmonia rica de espírito (geistreichen Harmonie) de uma cultura (Bildung) consumada onde esse conflito cessaria" (Schiller, 1947, p.163) enfim, sua sensibilidade apaixonada e indolente não confiava na redenção pela Cultura, e por isso mesmo o apartava inexplicavelmente da sociedade das gens de lettres. Neste ponto mais explícito, Fichte, examinando a "contradição" de Rousseau, toma abertamente o partido da intelligentsia:
pus a destinação do homem no avanço constante da cultura e no desenvolvimento uniformemente continuado de todas as suas disposições e carências; e atribuí à e que tem de velar pelo avanço e a uniformidade desse desenvolvimento um lugar muito honroso na sociedade humana. Ninguém contradisse essa verdade com mais determinação, por motivos mais aparentes e com mais forte eloquência do que Rousseau. Para ele o progresso da cultura é a única causa de toda corrupção humana. A seu ver não há salvação para o homem a não ser no estado de natureza: e o que então se segue com inteira correção dentro de seus princípios aquela e que mais propicia o avanço da cultura, a e dos doutos, é a seu ver tanto a fonte quanto o centro de toda miséria e corrupção humanas (Fichte, 1970, p.9-10).15
Note-se que a destinação do homem definida por Fichte neste trecho nada mais é do que o imperativo humanista do livre desenvolvimento da "personalidade", acrescido de um suplemento capital: cabe à "e dos doutos" velar pela realização deste fim supremo da humanidade, cabe-lhe portanto, declara-o Fichte com todas as letras, um "lugar muito honroso na sociedade humana". Já nos referimos à ênfase singular com que Fichte acentua a "missão" do homem de cultura, e a ele voltaremos seguidamente pois se encontra no âmago da ideologia dos mandarins alemães por ora basta sublinhar o vínculo imediato estabelecido pelo filósofo entre os dois termos de nossas atuais conjecturas, "personalidade" e "intelligentsia", cuja afinidade àquela altura parecialhe natural. Ora, aos olhos dos novos humanistas alemães Rousseau não parecia ter a questão do homem harmonioso na devida conta: no ideal de humanidade que construíra, nota Schiller, a necessidade de "equilíbrio físico" primava sobre a "harmonia moral" das faculdades; Fichte, por seu turno, também batia na tecla da indolência do "homem natural" e a conseqüente atrofia da sensibilidade e da razão. Além do que, agravando ainda mais o desencontro, Rousseau fustigava o reconhecimento social pelo qual suspirava a "e dos doutos", ao atribuir os males da civilização justamente à sede de nomeada e distinção que lhes consumia o amor-próprio.16 Assim sendo, sobram razões para recusar a presença de Rousseau na origem da oposição sistemática entre Cultura e Civilização, graças à qual cristalizou-se a identidade social dos futuros mandarins. Quando muito ela é longínqua e indireta. Não está excluído por exemplo, que a idéia de autonomia que, desde os tempos de Kant, impregna o ideário da Kultur e lhe assegura uma atmosfera de oposição radical ao curso filistino do mundo, deva alguma coisa a Rousseau, mas ao Rousseau político passado pelo crivo da "miséria alemã": em linha gerais, pode-se dizer que a concepção democrática da liberdade enquanto auto-determinação coletiva volatilizou-se na política kantiana, atrelada ao programa da "revolução passiva", para refugiar-se, alterados seus pressupostos, na doutrina do dever expressa no imperativo categórico;17 daí à incompatibilidade entre as formas da heteronomia e a esfera superior da cultura encarnada em sua espiritualidade desinteressada pelo devente kantiano, vai um pequeno passo que podemos dar sem muita violência, afinal o juízo de gosto em que se enuncia nossa destinação supra-sensível, desenvolve-se em primeiro lugar no homem que sabe cultivar harmoniosamente o livre jogo de suas faculdades e por isso mesmo exigimos de todos o que presumimos existir apenas no homem culto, o senso do belo e do sublime. Em sua "fuga da miséria rasteira para a miséria arrebatada", o letrado alemão, sobre o qual repercutira fundo o democratismo de Rousseau, podia, assim, acompanhar na obra de Kant a evaporação sistemática daquelas idéias radicais de autonomia e pacto originário de livre associação, as quais, por decantações sucessivas, sedimentaram-se finalmente na utopia estética da terceira Crítica; dessa trajetória no "atraso" são indícios seguros certas observações ditadas exclusivamente pelo tirocínio do historiador da filosofia, como a seguinte: a beleza, em Kant, ainda não é promessa de felicidade mas, símbolo da moralidade, resume o " 'mito' de uma sociedade onde cada um, alienando-se totalmente nos outros, se despojaria da alteridade patológica que o separa de si mesmo" em suma, as promessas do Contrato tomam corpo afinal, não nas instituições da sociedade política, mas na igreja invisível delineada pela comunidade estética comentada pelo juízo de gosto (Lebrun, 1970, p.306). Noutras palavras, o programa de Schiller, que justamente, numa passagem famosa, convidava Rousseau a submeter-se, resignado, aos "males da cultura", exortando-o em seguida a viver "livre em meio à servidão" (Schiller, 1947, p.95). Por assim dizer os imperativos da "miséria alemã" iam ao encontro da desolação final de Rousseau, redobrando sua "imigração interior". E o que mais atraía em Rousseau era precisamente o radicalismo de sua recusa do século. Que o democratismo rousseauniano tenha sido bem acolhido pela impotência política do homem culto alemão, é outro efeito singular da diferença de fuso histórico já assinalado por Norbert Elias (1973, p.68):
Rousseau foi quem atacou com mais violência a ordem estabelecida do seu tempo, e é por essa mesma razão que sua influência direta sobre o movimento de reforma dos intelectuais franceses de origem burguesa ou nobre foi muito menor do que deixaria supor o eco que encontrou junto aos intelectuais alemães, burgueses apolíticos porém intelectualmente mais radicais.
(Como se vê, aos poucos vamos nos aproximando do "radicalismo da teoria alemã", de que falava também o jovem Marx). Repercussão arrevesada, como se viu. Em contrapartida, o outro pólo do par antitético descende em linha direta do arsenal dos intelectuais reformadores franceses ascendência burguesa inequívoca, portanto. Um dos primeiros testemunhos literários da cristalização do termo "civilização" encontra-se, segundo Norbert Elias, numa passagem de Mirabeau pai dirigida contra as boas maneiras da aristocracia da corte, na qual, em poucas palavras, contrapõe ao ethos nobre do homem civilizado a virtude do homem simples.18 Kant transpõe esse esquema, tornando contudo tanto mais inapelável o conflito que ele resume quanto maior é a distância que separa na Alemanha o "terceiro estado" das camadas dirigentes: enquanto na França a promiscuidade maior entre as es superiores, devidamente orquestrada pelos fisiocratas, permitia augurar o fim próximo da "fausse civilisation", vale dizer a contaminação recíproca de virtude e civilidade num reino pacificado e de costumes "afinados", na Alemanha o divórcio entre os meios aristocráticos e burgueses excluía qualquer namoro conseqüente com a civilização dos dominantes. Recapitulemos.
A reconstituição feita por Norbert Elias do itinerário francês do conceito de "civilização" em que estamos nos apoiando, é mais ou menos a seguinte. Como se dará mais adiante com Kant, a noção de civilização aparece ligada às características da sociedade de corte, à qual se contrapõe o ideal burguês da virtude. Entretanto, os intelectuais franceses continuam prisioneiros das tradições da corte, de sorte que suas idéias não são a exata contrapartida das noções que circulavam nos meios senhoriais,
eles procedem antes por cristalizações, em torno de certos conceitos aristocráticos de corte, de outros conceitos que remontam ao domínio de suas reivindicações políticas e econômicas; esses conceitos, na sua maioria, discrepam das idéias dos intelectuais alemães submetidos a uma outra situação social, a uma outra esfera de experiências (idem, p.83).
Um desses núcleos conceituais constitui o esquema básico da noção de "civilização" e seus correlatos. Os termos polidez, civilidade, urbanidade, etc., lembra Elias, exprimiam o sentimento de superioridade dos homens de corte, caracterizando-lhes o comportamento específico graças ao qual julgavam distinguir-se das camadas subalternas, frustas e primitivas. O trecho de Mirabeau citado acima enfeixa-os todos sob a denominação comum de "civilização":
Vous et votre civilisation, dont vous êtes si fiers et par laquelle vous croyez vous distinguer des hommes simples, ne vaut en réalité pas grandchose: dans toutes les langues (...) de tous les âges, la peinture de l'amour des bergers pour leurs troupeaux et pour leurs chiens trouve le chemin de notre âme, toute emoussée qu'elle est par la recherche du luxe ou d'une fausse civilisation (apudElias, 1973, p.67-8).
A última expressão malgrado o elogio do homem simples e frugal que o aproxima de Rousseau atenua o teor oposicionista da interpretação da riqueza e dos costumes da elite dirigente trata-se afinal da crítica de alguém inteiramente avesso à idéia de uma transformação radical das instituições do Antigo Regime. Mas sobretudo, aludindo à alternativa representada por uma "verdadeira civilização", fomentada por uma monarquia esclarecida, Mirabeau registrava uma nova etapa na evolução social da idéia de "civilização" aquela cristalização burguesa (partilhada, como se está vendo, por um nobre campagnard como Mirabeau) em torno do primitivo núcleo aristocrático. Norbert Elias vincula em larga medida tal deslocamento semântico do movimento dos funcionários reformistas desencadeado pela fisiocracia. O termo civilização foi refundido para definir o conjunto das relações sociais implicadas nesse movimento de reforma. A civilização dos povos ainda não está terminada, proclamavam os meios progressistas da sociedade parisiense. "A civilização", explica Elias (1973, p.81),
não é somente um estado, ela é um processo que é preciso promover. Eis aí o novo pensamento que a noção de civilização também passa a traduzir. Ela engloba uma parte dos elementos que desde sempre propiciaram à sociedade de corte o sentimento de representar, face à vida frusta, não civilizada dos bárbaros, um patamar mais elevado: assim compreendida, a civilização implica costumes e maneiras mais refinadas, mais tacto e considerações nas relações sociais, e tudo o mais do mesmo gênero. Mas a e média ascendente, o movimento de reforma, conferiram um sentido mais amplo aos critérios que fazem de uma sociedade uma sociedade civilizada. A civilização do Estado, da constituição, da educação e, em virtude disso mesmo, de camadas mais amplas da população, a superação de tudo o que, na situação presente, é ainda bárbaro ou irracional, quer se trate de sanções penais, de ordenações que humilham a burguesia, ou da liberalização do comércio, uma tal civilização deve acompanhar a depuração dos costumes e a pacificação interior do país pelos reis.
Reviravolta que dá testemunho da "sagacidade específica do homem de oposição, do censor da sociedade", incompreensível, por outro lado, caso deixássemos de lembrar, mais uma vez, que na origem desse movimento de propagação das luzes da civilização (em nova chave), encontram-se funcionários, intelectuais e burguesia da corte, unidos pelos laços da boa sociedade, dos salões, etc. (ibidem, p.75, 79). Numa palavra, mais esquemática, o terceiro estado voltou contra a nobreza recalcitrante os seus próprios critérios de distinção social, a idéia de civilização tornou-se afinal uma arma nas mãos da intelligentsia burguesa apontada contra os seus antigos portadores. Uma vez consolidada a hegemonia burguesa, consolidou-se também o estereótipo da civilização, cifra do sentimento nacional e com ele, o clichê alemão complementar que assimilava a civilização, francesa e ilustrada em primeiro lugar, manchesteriana e americana depois, ao capitalismo triunfante. De designação pejorativa do ethos nobre, o termo "civilização" viu-se elevado à condição de conceito iluminista, transfiguração impulsionada por letrados burgueses à medida em que se aproximavam, ao invés de se afastarem, da antiga civilização aristocrática de que conservaram, destruído seu arcabouço político, a tradição dos hábitos e costumes.19 Podemos surpreender do outro lado do Reno uma imagem fiel dessa trajetória; basta atentar para a guinada que conhece a palavra "civilização" com o passar do tempo balizado pelo texto de Kant e a carta de Goethe a Zelter, da moralidade postiça própria da sociedade de corte à vulgaridade material dos novos tempos capitalistas. Com uma ressalva porém à fidelidade desse espelhamento: à primeira vista o sentimento burguês de Kant, ofuscado pelo falso brilho da alta sociedade, parece ceder o passo ao anticapitalismo de um letrado burguês que desertou sua e; é certo, contudo, que essa oscilação ocorre no interior da mesma Bildungsbürgertum, sendo a curva por ela descrita governada de ponta a ponta pelo princípio da cultura superior. Este último dá corpo às aspirações de legitimidade da intelligentsia alemã, assim como o da "civilização", a ambições análogas dos letrados franceses; opô-los, como faz Kant, pode ser um convite ao equívoco caso deixemos na sombra a evolução subseqüente do termo "civilização" ao contrário de Goethe, Kant não a acompanhou, subscrevendo-lhe porém o espírito de contestação burguesa, inflado pela inspiração rousseauniana do rigorismo moral que o tinge. Espírito moderado na sua origem francesa e encarnado por um tipo humano aparentado ao fidalgo parisiense; ora, Rousseau, que não tinha nome para a "civilização" que condenava sem apelação, nomeara entretanto o seu contraditor máximo, o homem natural, do qual, ferindo a letra do seu ideólogo, Fichte irá desentranhar a figura do intelectual em missão, tanto mais elevada quanto se via confinada ao domínio do rein Geistige, ao contrário do homem simples, porém de olho na administração esclarecida do processo civilizatório em curso, celebrado por Mirabeau , afinal, não custa lembrar com Norbert Elias, o centro social do Gelehrte fichteano era a universidade, enquanto o da Fisiocracia era la cour et la ville. Quando Turgot finalmente foi nomeado "Contrôleur général des finances", recorda ainda Elias, saudaram o acontecimento Voltaire e d'Alembert, para citar os mais notáveis, e todos em nome do triunfo da virtude e da razão (idem, ibidem). A fusão kantiana de moralidade e cultura é tributária dessa atmosfera ideológica em que banhava o movimento de reforma animado pelos grandes funcionários franceses. Já a ênfase no "longo esforço de formação interior" (Kant) que daí se segue é conseqüência do transplante alemão daquela constelação: refluindo a vida pública que lhe servia de horizonte, estava preparado o terreno para a ascendência de Rousseau "Newton do mundo moral" (Kant) , desde que transcrito o seu empenho oposicionista em termos de senso moral, para o que contribuía a propensão final do autor das Rêveries à apatia e ao isolamento. Na embriaguez ensimesmada do intelectual exaltado porém refugiado no intérieur pequenoburguês, fazia-se então visível o dedo de Rousseau.
Resta a questão da "personalidade", formulada, como se viu, por Kant, excluindo, contudo, qualquer contaminação pelo código mundano da "graça". A equivalência imediata entre "homem culto" e "personalidade"ainda não era uma evidência. E no entanto o intelectual alemão já cultivava a sua "personalidade" como Cândido o seu jardim embora filosofasse, inclusive para tornar a vida suportável, ao contrário do antiherói voltaireano , cortando no dia-a-dia o nó górdio penosamente atado por Wilhelm Meister. Mais uma vez, eis a questão que atormentava todo alemão sensível porém mal nascido: minha condição burguesa me recusa o dom supremo da formação (Ausbildung) harmoniosa, vale dizer a dádiva maior da personalidade, um algo mais impalpável embora decisivo que todo nobre recebe ao nascer juntamente com os seus cabedais. (Noutro capítulo, voltamos ao assunto por um viés menos frívolo, o da divisão social do trabalho, em cuja malha cerrada a intelligentsia alemã ia fazendo sua experiência do capitalismo emergente enquanto ameaça à personalidade, ao mesmo tempo em que promovia a sedimentação de uma imagem peculiar do novo modo de produção. Como é sabido, Wilhelm Meister não deixou de notar que, ao contrário do nobre, o burguês não escapava a tal danação, alinhando mais um argumento em favor de sua deserção de e: o burguês, escrevia ao cunhado, "deve produzir e trabalhar; para se tornar útil, ele deve desenvolver (ausbilden) apenas algumas aptidões, ficando subentendido assim que não há harmonia em seu ser, visto que, para se tornar útil desta ou daquela maneira, deve abrir mão de tudo mais"). Não lhe recusava entretanto o mérito a que tinha direito sua probidade laboriosa até mesmo, em caso extremo, a cultura do espírito não lhe era negada. Esta última concessão do Meister tanto mais relutante de início quanto será triunfal a seguir a sagração burguesa da cultura autônoma celebrada pelos clássicos já fora aliás anunciada, não em termos condescendentes, pelo contrário, numa das mais antigas ocorrências da palavra Bildung em sua nova acepção: consta que por volta de 1761, sonhando com um jornal a serviço justamente de uma educação à altura dos tempos modernos ("eine Erziehung für unser Zeitalter"), Herder teria sido um dos primeiros a augurar para a Alemanha a promoção de uma idade da cultura ("eine Zeit der Bildung"), ao longo da qual seria enfim banido o espírito da guerra e da religião e prosperaria em seu lugar o "espírito do comércio, da finança e da cultura" (Weil, 1930, p.10-4). O diapasão já é o da consagração do rein Geistige em luta com a heteronomia da civilização material e mecânica, porém, no seu tom manifestamente iluminista e afinado pelo figurino francês, ainda é explícito o vínculo com as virtudes disciplinadoras do doux commerce tão do agrado do negociante Werner. Falta, é certo, a desalentada e obsessiva demanda do mais precioso dos bens, o novo apanágio de e da personalidade. Ora, na medida em que parecia furtar-se à malformação do trabalho em migalhas e, em conseqüência, o portador do seu doce fardo lograva brilhar, sobre as tábuas de um palco, imitando a distinção das es superiores nessa medida, a cultura já era promessa de personalidade. Noutras palavras, o que era vedado ao burguês, poderia ser consentido ao intelectual, no caso, bafejado pela vocação teatral que lhe facultava um "comércio mais íntimo" com a "personalidade inata" dos bem nascidos no topo da sociedade. Assim sendo, a voga crescente de Shaftesbury na Alemanha vinha a calhar, se é que não foi alimentada justamente por essa aspiração básica da intelligentsia alemã, como sustenta Hauser, cuja opinião referimos logo adiante. Sempre intrigou o prestígio alemão de Shaftesbury, desproporcional quando comparado à sua minguada autoridade na Inglaterra, destino análogo ao de Rousseau, cuja ascendência ideológica na Alemanha só encontra paralelo na hostilidade com que foi acolhida na França, descontado é claro o confuso período da Revolução (Hauser, 1956, p.128). Aliás tal convivência, nos mesmos autores, do cidadão de Genebra e de um escritor whig alheio ao pensamento do século, deita raízes na singularidade de base da Ideologia Alemã. Os historiadores alemães que rastrearam as origens do termo Bildung costumam mencionar um escrito pedagógico de Wieland onde este realça o lugar central ocupado pela idéia de kalokagathia na educação grega, lembrando que na época o seu autor conhecia muito melhor os escritos de Shaftesbury (nos quais justamente dava-se primazia àquele ideal de formação) do que os clássicos antigos da paideia (Weil, 1930, p.12-3, nota). Entendamos: o ideal humanista de integridade cultural calcado nos gregos principiou sua carreira alemã sob o patrocínio prestigioso de um aristocrata, nas maneiras e no modo de pensar seguramente um modelo mais próximo que o decoro burguês mandava travestir de grego antigo. Além desse indício (que comentamos livremente) aqueles eruditos também chamam a atenção para a tradução alemã do selfbreeding de Shaftesbury, que o literal Selbstzucht vertia mal: por assim dizer ela impôs, em seu novo significado, o termo Bildung (idem, ibidem). Ora, na palavra inglesa delineava-se o fetiche alemão da personalidade nele esbarraria de algum modo um letrado fidalgo empenhado na restauração do ideal antigo da sabedoria, à contra-corrente tanto do racionalismo continental, quanto do empirismo vigente em seu país. Ao que parece, o andamento mais abstrato da biós theoretikós ia se transformando nele em "problema de vida pessoal", para culminar numa estética entendida antes como regra de vida do que uma doutrina: não por acaso, Cassirer, que estamos acompanhando (e também não há de ser fortuita a importância que alguns julgarão excessiva dada a Shaftesbury em seu livro sobre filosofia das Luzes: afinal, tratava-se justamente de reconstituir a pré-história da obra crítica kantiana), sublinha, em tal regra, sua natureza de princípio constitutivo de organização da harmonia do universo interior, numa palavra, da "personalidade" (Cassirer, 1966, p.307). Está visto que Hauser não será tão terno assim, além de dar chave remota de tal apreço pela obra precursora de Shaftesbury e com ela, o mote de nosso argumento:
Shaftesbury era o tipo acabado do aristocrata whig e a sua mentalidade exprime-se claramente naquela kalokagathia que está na base do seu ideal pedagógico e da sua moral estetizante. O seu selfbreeding nada mais é do que aplicação no espírito e na alma da idéia aristocrática de seleção pelo sangue. A origem social do seu ideal de personalidade reflete-se nitidamente tanto na identificação do verdadeiro e do bem com o belo, quanto na idéia segundo a qual o conflito entre impulsos egoístas e altruístas, corruptor dos estratos mais baixos da humanidade, encontra um equilíbrio harmônico nas camadas superiores afinadas pela cultura. A concepção da vida como uma obra de arte, na qual se trabalha guiado por um instinto infalível (moral sense), como o artista na sua obra é guiado pelo gênio, era uma idéia aristocrática que os intelectuais alemães acolheram com tanto mais entusiasmo quanto ela se prestava ao malentendido, de sorte que o seu caráter aristocrático podia ser interpretado como o reconhecimento de uma nobreza espiritual (Hauser,1956, p.128-9).
Assim, sob tão alta patronagem ia-se levando a bom termo a vantajosa superposição de personalidades e cultura até a sua completa inversão, passando a primeira a depender da segunda, com a vantagem suplementar do prestígio de e daquela alcançada finalmente, tingindo-o por inteiro, o caráter dos Gebildeten. Tal era o benefício do mal-entendido assinalado por Hauser: aquele último saía enobrecido da operação. Mais um passo e o raciocínio mudava de mão. Cabia agora à cultura, e não ao nascimento superior, impregnar e orquestrar harmoniosamente o conjunto da personalidade. Podia-se então passar à ordem do dia, decantando em prosa e verso as prerrogativas da nova e, todas elas enfeixadas pelo abre-te-sésamo da "personalidade cultivada", entre outras coisas, senha de ingresso no grande mundo, dos salões à alta administração do Estado.
Notas
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Publicação nesta coleção
09 Nov 2007 -
Data do Fascículo
2003