CRÍTICA
Permanência do provisório
Jefferson Agostini Mello
Professor de Arte, Literatura e Cultura no Brasil da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo
Inferno provisório de Luiz Ruffato. Rio de Janeiro: Record, 2005
De acordo com as observações de Paulo Eduardo Arantes, podemos afirmar que há na Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., um avanço na leitura de nossa formação colonial, a partir da vinculação do "complexo formado por trabalho escravo, monocultura de exportação e latifúndio ao capitalismo comercial que cimentava o sistema metrópole-colônia"1 [1 ] Arantes, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 24. . Por mais que ainda persistissem na obra traços do raciocínio dualista núcleo orgânico do sistema colonial de produção e sua periferia inorgânica2 [2 ] Idem, p. 25. , o Brasil Colônia, para Caio Prado Jr., estaria diretamente integrado aos rumos da economia ditados pela metrópole3 [3 ] Prado Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 128. .
Nos anos 1960, reaproveitando esses achados, coube à esquerda uspiana dar um passo adiante, depois de estudos como os de Maria Sylvia Carvalho Franco, cuja tese, segundo Arantes, era de que o capitalismo, no Brasil, "não se refere apenas à subordinação da expansão colonial ao capitalismo comercial [...], mas à nossa assimilação sem resto ao núcleo europeu", entendendo-se que, ao contrário do que supunha Caio Prado, "colônia e metrópole são desenvolvimentos particulares do capitalismo, lucro e acumulação vigoram nos dois hemisférios4 [4 ] Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira, p. 68. ". A autora demonstrou como, diferentemente dos países europeus, a escravidão no Brasil gerou para os homens livres nada além de "serviços residuais, que na maior parte não podiam ser realizados por escravos e não interessavam aos homens com patrimônio"5 [5 ] Franco, Maria Sylvia de Carvalho. Os homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Editora da Unesp, 1997, p. 65. . Pouco necessários para a produção, tais indivíduos, que habitavam de favor os arredores das fazendas, dependiam apenas dos interesses dos grupos dominantes. A existência dispensável do homem pobre
levou-o [...] a conceber sua própria situação como imutável e fechada, na medida em que as suas necessidades mais elementares dependeram sempre das dádivas de seus superiores. [...] em sua vida de favor, a dominação foi experimentada como uma graça e ele próprio afirmou, ininterruptamente, a cadeia de lealdades que o prendia aos mais poderosos6 [6 ] Idem, p. 111. .
De modo geral, a obra de Luiz Ruffato, autor da nova geração de ficcionistas brasileiros, busca apreender literariamente a permanência desses mesmos efeitos perversos, os quais, apesar das transformações do país, e por acréscimo de outros motivos, prolongam-se nos séculos XX e XXI.
Natural da cidade mineira de Cataguases, espaço por onde transita a maior parte das suas personagens, Ruffato, jornalista de profissão, estreou na literatura como poeta, com o livro de poemas O homem que tece (1979). Talvez por causa disso, lance mão de recursos poéticos na sua prosa ficcional (em 2002, o autor lançou outra coletânea de poemas, As máscaras singulares). Por outro lado, a sua escrita, permeada por experimentações verbais e pela mescla estilística, possui fortes pontos de contato com a tradição do romance realista e socialmente engajado. No caso de Eles eram muitos cavalos, de 2001, encontramos elementos do romance de espaço, trabalhado no século XIX por escritores como Tolstói, Zola e Balzac: narra-se um dia na cidade de São Paulo, através de histórias de personagens de origens as mais diversas. O intuito profundo e, de certo modo, ambicioso da obra, parece ser de, a partir do microcosmo, captar o dinamismo, a complexidade e a precariedade da vida de uma metrópole brasileira, no dia 9 de maio de 20007 [7 ] Eles eram muitos cavalos foi adaptado para o teatro pela Companhia do Feijão, em espetáculo então intitulado Mire veja. . Já o último romance, Inferno provisório (2005), deriva de duas coletâneas de contos reescritos e rearranjados, Histórias de remorsos e rancores (1998) e (Os sobreviventes) (2000). Apesar da forma bastante móvel, da sintaxe variada, e de outros arrojos formais, percebemos, mais uma vez, estreitos vínculos com a tradição do romance: o entra-e-sai das personagens, que lembra a Comédia humana, de Balzac; a tentativa de traçar panoramas, detendo-se em tempos e espaços mais amplos, e principalmente a ambição de contar, e entender, cinqüenta anos da história brasileira. Segundo o próprio autor, o Inferno provisório, que terá em tese cinco volumes, visa a
entender como chegamos onde estamos... [...]. A divisão dos volumes, arbitrária, porque as histórias se entrelaçam, vão e vêm no tempo e no espaço [...] seria, grosso modo, Mamma, son tanto felice, Volume 1, Rodeiro, Década de 50; O mundo inimigo, Volume 2, Cataguases, 1960 e 70; Vista parcial da noite¸ Volume 3, Cataguases, 1970, 1980; O livro das impossibilidades, Volume 4, Cataguases, Rio e São Paulo, 1980, 1990; e São São Paulo, Volume 5, São Paulo, 2000...8 [8 ] Ruffato, Luiz. "Infernos provisórios de Luiz Ruffato", entrevista concedida a Danilo Corci, da Agência Speculum/Especial para BR Press, publicada em 26/5/05 no site Yahoo! Notícias. Disponível em: < http://br.news.yahoo.com/050527/11/uei4.html.>. Acesso em 12/1/06. .
As personagens do Inferno provisório (volumes 1 e 2), romance no qual vou me deter, são os habitantes de Cataguases, na maioria remediados e pobres. A temática das micro-histórias que o compõem pode ser tanto a vida cotidiana e comezinha dessas personagens quanto, num sentido mais amplo, o próprio país, como veio se formando até a industrialização dos anos 1950, 60, 70, pautada, como se sabe, pelo nacional-desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e, em seguida, pelo "milagre econômico".
Com predomínio da descrição, não há enredo propriamente dito no romance, sendo os fios tênues que ligam as histórias o espaço e a condição humana precária das personagens, vistas sempre de muito perto; a sua estrutura inacabada um work in progress feito, como já disse, a partir de histórias revistas e ampliadas de outros textos do autor coincide seja com as vidas empobrecidas e cortadas ao meio dos habitantes da cidade interiorana, seja com a migração forçada de muitos deles para zonas mais ricas, de modo que o estilo, experimental e inorgânico numa primeira visada, dá densidade à obra, na medida em que forma e conteúdo estão estreitamente ligados. Por um lado, o cruzamento das micro-histórias, a composição em narrativas que se interrompem e nem sempre se articulam, o fio narrativo frágil e o foco que busca o miúdo da existência vinculam o Inferno provisório a outras ficções contemporâneas que internalizam a fragmentação dita pós-moderna, característica da etapa do capitalismo tardio; por outro, a obra acaba se ligando à contraditória unidade brasileira, que nos tem integrado, de forma peculiar, no esquema global. Ou seja, essa ficção recoloca, numa perspectiva agudizada, a existência dispensável dos pobres e remediados do Brasil de hoje, agora com outros senhores e ainda mais dependentes dos rumos do dinheiro; portanto, extremamente suscetíveis aos fluxos da riqueza, que os levam a reboque, de um lado para o outro. Acrescido a esse duradouro espetáculo brasileiro, que a ficção de Ruffato reconstrói e problematiza, está o desejo do crescente exército de reserva de usufruir das maravilhas do consumo, tomar para si os objetos cada vez mais disponíveis aos olhos de todos. No caso, o romance flagra, igualmente, o momento de consolidação de um mercado de bens materiais e simbólicos que busca cobrir a totalidade da massa consumidora.
O presente texto espera demonstrar não apenas esse impasse brasileiro internalizado na ficção de Ruffato, como também, em termos teórico-metodológicos, a permanência da validade de uma corrente do nosso pensamento crítico cujo ponto de partida seria a obra de Antonio Candido, em especial o texto "Dialética da malandragem", e o reaproveitamento dessa obra por Roberto Schwarz em suas análises sobre a obra de Machado de Assis9 [9 ] Refiro-me aos livros Ao vencedor às batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2000; e Um mestre na periferia no capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2000. para pensar as relações entre a literatura e a sociedade contemporâneas. Pretendo ler a obra de Ruffato com base no que Paulo Arantes denomina sentimento da dialética, compreendido tanto como "redução estrutural de uma forma social a uma forma estética" quanto como lei de um movimento a que se submetem até hoje os pobres e, diria, os remediados no país, os quais, nos termos de Schwarz, vivem num espaço anômico, onde não é possível prescindir da ordem nem viver de fato dentro dela10 [10 ] Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira, pp. 43-44. . Enfim, trata-se de apontar que o sentimento da dialética ainda contribui para a leitura da obra de Ruffato. Existe nela, de um lado, um estado de agressão perpétua contra o próximo com personagens tão violentos quanto Brás Cubas e, de outro, submissão ao status quo por parte das classes oprimidas, cujos parcos movimentos de insurreição não convergem para a mudança, mas para o desejo de ingresso numa sociedade que, ao fim, os rejeita e, apesar de tudo, os controla.
Em "Amigos", título irônico da primeira história de O mundo inimigo, segundo volume do Inferno provisório, temos uma luta verbal, isto é, um diálogo permeado pela animosidade, que por pouco não descamba para a violência física.
De um lado está Gildo, que foi tentar a vida em São Paulo e trabalha em uma fábrica de rótulos de embalagem no Brás. Veio passar o Natal em Cataguases, dirigindo seu fusca verde 1300, no qual trouxe, também, a televisão nova que comprou para a mãe se distrair. Dona Marta, ex-professora de corte e costura já viúva e reumática, vai passar a noite de Natal com o único filho que ainda a visita. O mais novo, Gilmar, foi levado ainda criança para São Paulo pelo tio Gesualdo, é jogador de futebol da segunda divisão de algum time do interior, tem problemas no joelho e jurou que não põe mais os pés em Cataguases; Ana Elisa e Ana Lúcia casaram e nunca mais apareceram; a primeira também mora em São Paulo, em São Miguel Paulista, e a segunda em Muriaé. Portanto, a casa, que de acordo com dona Marta vivia cheia de gente, está agora vazia. Comparada à televisão nova e ao fusca parado na porta, recém-chegados de São Paulo e símbolos do milagre econômico brasileiro, a casa traz, nos seus objetos, ao mesmo tempo as marcas da decadência da família e dos anseios consumistas da classe média baixa: sofás vestidos com capas de tecido ordinário, flor de plástico decorando a mesa de centro, onde também repousa um cinzeiro em forma de coração, pratinho de papelão para servir tira-gosto, sidra para brindar o Natal. Depois, em outra história, ficamos sabendo que se trata da "modesta" casa de Santa Teresa, e será vendida quando a mãe não suportar mais a solidão e preferir viver com as irmãs. Parte do dinheiro da venda será destinada à viagem das filhas de Gilmar à Disneylândia.
De outro lado está Luzimar, filho de Marlindo, vendedor de pipoca na porta do colégio, e de Zulmira, que lava roupa para fora talvez não por acaso, as profissões dos pais de Luiz Ruffato. Ex-morador do beco do Zé Pinto, espécie de cortiço em que vivem os pobres de Cataguases, Luzimar trabalha na Manufatora, e da mesma forma que Gildo, com embalagens. Na infância, freqüentava a casa de Gildo e Gilmar: aos sábados os meninos se encontravam para jogar botão, e o sonho de Luzimar era ter um time do Flamengo para exibir aos amigos.
No começo da história, Luzimar está saindo da fábrica, montado na bicicleta e fazendo planos de como conseguir dinheiro para adquirir o presente de Natal da esposa: pedir emprestado ao Zé Pinto e pagar com o décimo terceiro, assinar nota promissória... Em meio ao fluxo de consciência, a catraca da bicicleta gira em falso e a corrente escapa. Praguejando, Luzimar desce para consertá-la e, de repente, seus olhos flagram, do outro lado da rua, um fusca verde 1300, com placa de São Paulo, estacionado em frente à casa de Gildo. Desconfia de que se trata do amigo de infância e pede para dona Marta, que nesse momento varre o passeio, chamá-lo.
O lugar e a importância que um amigo dá ao outro estão implícitos nos antecedentes do encontro. Por exemplo, no gesto preocupado de Luzimar, que, esperando Gildo aparecer, "esfrega a graxa seca dos dedos no forro do bolso, espana os minúsculos fiapos de algodão agarrados nos cabelos, na camisa, na calça"; e no de Gildo, que vem receber o outro sonolento, vestindo "bermuda jeans, camiseta-de-propaganda puída, chinelo havaiana"11 [11 ] Ruffato, Luiz. Inferno provisório. O mundo inimigo. Rio de Janeiro: Record, 2005, vol. II, p. 16. . Mas é no interior da casa, num diálogo tenso, regado a cerveja, que se explicitam, ao mesmo tempo, diferenças e semelhanças das personagens, sustentáculos da posterior agressão verbal de Gildo a Luzimar.
Já na sala, a conversa entre os amigos de infância se desenvolve aos atropelos, com lembranças do time de futebol em que jogavam juntos e meia dúzia de perguntas sobre o destino dos familiares e conhecidos. Ao lembrar de um evento da infância, Gildo remete ao dia em que, num jogo de futebol, seu primo Isaías teve o braço quebrado por Luzimar, que saiu fugido, pois queriam pegá-lo: "Eu... eu corri pra chácara, confessa, envergonhado" (p. 19). Essa é apenas uma das tentativas de Gildo para diminuir Luzimar, acentuando a covardia do outro e, desse modo, sobrepondo-se. Além do mais, diferentemente de antes, "quando, sentados no chão da chácara, nem percebiam as horas esgarçando nas páginas das revistinhas que o Gildo e o Gilmar compravam na Banca do Italiano na praça Rui Barbosa", não há muito o que dividir. Como expressa o narrador: "eram estranhos agora" (p. 19). Com a ajuda do álcool, essa sociabilidade oca dará vazão a um fluxo verbal que revelará, sobretudo, o mal-estar de Gildo, efeito de seu desterro e da sua arrogância.
Num primeiro momento da conversa, Gildo se valerá da presença do outro para o auto-elogio: "Viu a televisão que eu trouxe pra mãe? Último modelo! Uma nota!" (p. 19). E, quando o outro lhe perguntar se São Paulo é bonita, Gildo responderá: "Bonita? Sabe que nem sei... É grande... E boa pra ganhar dinheiro. Pelo menos eu não posso reclamar não... Fui pra lá, arrumei emprego, ganho bem, comprei até carro, você viu?, um fusquinha verde aí fora, mando dinheiro pra mãe..." (p. 21). Ao falar de si, Gildo remete ao que pode comprar, na busca de convencer o outro que "se deu bem" na cidade grande, mas graças à luta pessoal: "não foi fácil não, cara... Pastei muito, no começo". E, para completar, começará a maldizer a cidade natal: "essa cidade é uma bosta, não tem nada" e, da porta da sala, dará uma banana para a rua, gritando: "Aqui ó", "Cidade de merda! Povinho escroto!" (p. 23). Como Luzimar não concordasse com Gildo que a melhor solução para si fosse também ir embora de Cataguases, na busca de um futuro melhor, o amigo começará a destratá-lo: "[...] você não tem onde cair morto, cara! Desculpa eu falar assim, mas é mentira? Você tem que largar isso aqui, ir embora... Tem um mundo esperando lá fora" (p. 23). Em seguida, prevê um futuro nebuloso para o amigo:
Eu tenho pena de você, cara. Pena mesmo, juro... Porque você está fodido... Já estou até vendo: daqui a pouco vêm os filhos, uma fieira deles, e você aí, dando duro na fábrica... O salário não chega, eles param de estudar, vão pegar no batente pra ajudar... E você ficando velho... Um dia, quando menos perceber, acabou... é o fim da linha... E que merda de vida você levou, cara!, que merda de vida! 12 [12 ] Idem, pp. 24-25.
Gildo ainda compara os que se foram, bem-sucedidos, aos que permaneceram: "Eu me dei bem, entende? Todo mundo que foi embora se deu bem... Agora, o pessoal que ficou aqui... estão todos fodidos... Todos! Que nem você: fodidos!" (p. 25).
Após essa torrente de ofensas, Luzimar quer sair dali, mas Gildo agarra-lhe com força pelo braço esquerdo e o manda sentar, prometendo mudar o tópico da conversa. Luzimar pede ao outro que lhe solte e grita: "Larga meu braço, porra!". Dona Marta chega na sala, espantada com a gritaria. Luzimar, aproveitando a presença dela, escapa. Gildo ainda corre para o meio da rua e berra: "Vai, panaca, vai cuidar da mulherzinha! Vai, bundão! Trouxa! Panaca! Vai!" (p. 25).
Numa primeira leitura, o que se depreende do fluxo verbal violento de Gildo é que ele usa o outro para despejar as mágoas que guarda da cidade que teve de abandonar. Talvez não quisesse ter saído dali, mas precisou mover-se horizontalmente, no espaço, para não despencar socialmente. De fato, na próxima história ficamos sabendo que a personagem, já com família, vira e mexe irá a Cataguases visitar a mãe. Assim, não só não consegue se esquecer da cidade natal como também não se fixa de uma vez em São Paulo. Daí querer tanto que o outro permaneça a seu lado, dando-lhe atenção, pois a sua visão de Luzimar é também uma visão da boa infância, quando este, menino pobre e filho do pipoqueiro, jogava futebol com ele e lhe freqüentava a casa. De modo que essa mobilidade sentimental de Gildo que passa logo de um estado festivo, comemorando o reencontro com o amigo, à virulência verbal (trata-se de um sentimentalão, como se descobre mais tarde, em outra história) juntamente com seu apego excessivo à família, talvez possibilitem que o entendamos na chave do homem cordial, expressão de Ribeiro Couto retomada por Sérgio Buarque de Holanda para designar o sujeito absorvido ao núcleo familiar, afeito aos laços de sangue e de coração, de fundo emotivo extremamente rico e transbordante, cujas emoções não recebem o freio da polidez13 [13 ] Holanda, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p. 108. . Nessa perspectiva, o caráter móvel de Gildo é de alguém que não se civilizou, ou, em outras palavras, não se constituiu em indivíduo, que consegue "manter sua supremacia ante o social"14 [14 ] Idem. . Ele vive nos outros, já que os outros, em alguma medida, são ele mesmo. Daí que os xingamentos a Luzimar e à cidade são xingamentos a si mesmo. Não é à toa que, após despejar todo o ódio no outro, na hora de comemorar o Natal com a sidra que trouxe para brindar com a mãe, Gildo esteja estafado, dormindo no sofá, recuperando-se da surra verbal.
Numa outra perspectiva, onde se lê ideologia da cordialidade talvez se possa ler ideologia capitalista, ou as duas coisas juntas. Isto é, o modo de ser espontâneo e cordial da personagem está também perpassado por um conjunto de significados que reproduzem e reforçam um capitalismo em que se anuncia a passagem de uma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores, isto é, para uma sociedade na qual se imbricam produção e consumo, e na qual o sujeito passa a ser definido apenas pelo número de objetos de que dispõe. Não nos esqueçamos de que, no diálogo, o sucesso de Gildo, para ele e para o outro, está vinculado ao carro e à televisão, e que ele trabalha em uma fábrica de rótulos de embalagem, referência sem dúvida a uma sociedade da imagem, que começa a se constituir nos anos 1960. Dessa forma, a violência verbal a que o amigo pobre da família é submetido ancora-se na mesma violência a que ele mesmo, Gildo, decerto deve submeter-se para continuar economicamente válido em São Paulo. Além do mais, o diálogo com o outro, mais pobre do que ele, constitui o momento em que pode ser superior a alguém, em outras palavras, ter lugar efetivo numa sociedade que também o oprime. E esse lugar é dado justamente por Luzimar, que, humilde e sem posses, reitera a posição do outro: "Você se deu bem, né, Gildo", e põe este a falar de si. Afinal de contas, às vistas de um pobre coitado, um fusca e uma televisão valem bem mais do que às vistas da multidão de uma cidade grande. Mas, como assinalei antes, com esse ingresso no capitalismo tardio, permanecem em Gildo o espírito cordial, e portanto, traços que não condizem com o espírito burguês e civilizado que, a princípio, comporia o estrato simbólico daquele modelo econômico. Nesse caso, a personagem, apenas remediada, acaba reproduzindo o modo de ser do burguês brasileiro, cujas representações, de acordo com Florestan Fernandes, "mais que uma compensação e que uma falsa consciência, eram um adorno, um símbolo de modernidade e de civilização". Quando provocada por outros grupos, "mostrou as verdadeiras entranhas, reagindo de maneira predominantemente reacionária e ultraconservadora, dentro da melhor tradição do mandonismo oligárquico"15 [15 ] Fernandes, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaios de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p. 206. . Apesar do adorno precário de que é revestido, ou seja, da embalagem, Gildo, assim que é provocado pelo outro, mostra as verdadeiras entranhas, como um típico pequeno-burguês brasileiro. Não estamos longe do moleque Prudêncio.
Luzimar, por sua vez, em momento algum agride o amigo de infância, apenas se levanta, por quatro vezes, para ir embora, dizendo sempre que tem problemas para resolver. Mas então por que se submete por tanto tempo à agressividade do outro, fazendo-se de platéia para o discurso ressentido de Gildo? Vale retomar a cena inicial da história, na qual se podem reparar as reais intenções da personagem. Figure-se outra vez Luzimar saindo do trabalho, pensando em como conseguir dinheiro para o presente da mulher, conduzindo uma bicicleta em mau estado que acaba por dar problemas. Lá está ele, arrumando a correia da bicicleta, mãos sujas de graxa, e, do outro lado da rua, "junto ao meio-fio da casa do Gildo e do Gilmar, um Fusca 1300 verde, placa São Paulo". Essa visão do progresso material do outro contrasta tanto com o conteúdo do fluxo de consciência a sua própria miséria como com a bicicleta quebrada, e é, ao que tudo indica, o mote da visita ao amigo, depois de dez anos de ausência. Em outras palavras, o bem material do amigo precipita um encontro não previsto, pois atrás dele subjaz outro bem material, mais módico, mas até aquele momento inalcançável: o presente de Natal da esposa Soninha, um colar. Não é à toa, também, que a cada despedida frustrada, quando demonstra a necessidade de ir embora e o amigo o impede, dizendo para esperar mais um pouco, Luzimar enuncie que há um problema que precisa resolver, na esperança de que o amigo lhe pergunte do que se trata. De fato, quando finalmente Luzimar consegue dizer o que o aflige, Gildo propõe, em troca de mais companhia, que dali a pouco os dois se encaminhem à rua do Comércio para comprar uma gargantilha a Soninha, presente que ele se oferece para pagar. Feita a troca, o remediado se sentirá mais ainda no direito de agredir o pobre: é aí, nesse ponto, que se iniciam os xingamentos, os quais quase derivam em violência física.
Assim, nesse Inferno provisório, Luiz Ruffato expõe, ao mesmo tempo, a permanência e o aspecto provisório de uma sociedade constituída aos pedaços, na qual, como sugeriu Caio Prado Jr. referindo-se à sociedade colonial mas também com olhos no seu tempo, isto é, nas décadas de 1930 e 1940 , alternam-se partes ricas e pobres. Mas, ao contrário do que sugere esse autor, todos se encontram submetidos à lógica do capital, que permeia qualquer relação entre seres humanos no país, como demonstra a relação conflituosa de Gildo e Luzimar. Primeiramente, ela está sem dúvida baseada no modo de funcionamento do capitalismo na periferia, tal como veio se constituindo até a década de 1960 e, por que não, até os dias de hoje. Nela vigoram, ao mesmo tempo, espírito cordial e ideologia capitalista, ambos incorporados num sujeito de algumas posses cuja dor, não racionalizada, e prepotência fazem-no tomar o outro como objeto a seu dispor aqui, audiência silenciosa de seu fluxo verbal violento. Por sua vez, o lado mais fraco, na história, está ainda bem de acordo com a condição submissa do homem pobre desde a ordem escravocrata, que, como afirmou Maria Sylvia de Carvalho Franco, adveio "justamente por ser quase nada na sociedade e exatamente esse vazio não poderia fornecer-lhe uma referência a partir da qual se organizasse para romper as travas que o prendiam e para constituir um mundo seu"16 [16 ] Homens livres na ordem escravocrata, p. 112. .
Na terceira história de O mundo inimigo, intitulada "O barco", tem-se Luzimar, ainda criança, enganado pela primeira vez por Osvaldo, jovem burguês lunático a que seu Marlindo faz companhia. Em troca de uma canoa que se encontra no quintal vizinho e que Osvaldo mente ser sua, este oferece a Luzimar um jogo de botão. Luzimar resgata a canoa para Osvaldo, mas, como sempre, não ganha nada em troca, apenas um safanão e a ameaça de que ganhará outros, caso conte algo para alguém. É clara, aqui, a referência machadiana, sobretudo se pensarmos não só na desfaçatez de classe de Osvaldo, mas também na situação precária de Luzimar, que tal qual dona Plácida, guardiã da casinha da Gamboa que abre mão dos seus princípios morais para acobertar um adultério , se arrisca para roubar pelo outro, da mesma forma que aquela pode ter como destino a morte na indigência (relembremos aqui as palavras de Gildo: "o pessoal que ficou aqui... estão todos fodidos... Todos! Que nem você: fodidos!"). Assim, apesar de fazer parte de uma sociedade articulada ao capitalismo do centro, no Brasil contemporâneo o menino pobre que vira operário de chão de fábrica não tem garantias de um destino muito melhor do que o da personagem pobre de Machado de Assis.
No entanto, caberia reparar, por fim, que a grande diferença entre a representação machadiana e a atual, de Ruffato, está no móvel da ação das personagens, qual seja, os objetos (culturais) de consumo. São eles que impulsionam não só a visita de Luzimar como também a arrogância e o desterro de Gildo. Para avançar nesse argumento, leiamos o começo da narrativa "Paisagem sem história", também de O mundo inimigo, em que se descreve um quarto de prostituta. O foco narrativo, móvel mas bastante aproximado da "paisagem", desmente o próprio título da história, contando, sim, mas através dos objetos, uma vida em ruína.
Uma morna aragem visita o fim de tarde do quarto escancarado, despenteando levemente a solidão de uma frágil teia. Assustada, a minúscula aranha expele um invisível fio, por onde escorrem abdome e pernas, exilando-se por detrás do forro úmido-esverdeado de um guarda-roupa coxo, preto verniz deitado em angico, por cujas portas esbandeiradas entrevê-se aquilo que um dia foram fotografias caprichosamente recortadas de revistas, Amiga, Contigo, Grande Hotel, coladas nas folhas da madeira, e arrancadas à força por alheias mãos descontroladas. De quem aquele sorriso melancólico? E aquela testa? O olho que nos mira romanticamente: Roberto Carlos? Quem, o casal do qual apenas restaram braços entrelaçados? E a moça sentada sobre o capô de um Gordini vermelho? Manchas de papéis perfazendo inúteis desenhos incompreensíveis.
Em primeiro lugar, chama a atenção, aqui, a mescla do estilo lírico com o épico, este caracterizado principalmente pela descrição. Há, de fato, descrição, mas elaborada por meio de vocábulos bem escolhidos, pela ênfase no detalhe em que se vislumbram inclusive o abdome e as pernas da aranha minúscula , por inversões sintáticas em que a precedência do adjetivo realça o substantivo, por metaforizações como despenteando, exilando-se, portas esbandeiradas. Tudo escrito em ritmo pontuado sobretudo por vírgulas e pontos de interrogação, que dão ao entrecho uma sonoridade agradável. Em contraponto a esse aspecto lírico da descrição, tem-se uma personagem cuja vida é destituída de lirismo. Na verdade, descreve-se ali o quarto de uma prostituta, Cidinha, que perdeu a mãe ainda menina e trabalha na Ilha, prostíbulo de Cataguases. Outro contraste é o da natureza delicada e auto-suficiente a morna aragem que despenteia levemente a frágil teia, a minúscula aranha que desafia o vento e se esconde atrás do guarda-roupa já tomado pelo limo com a cultura embrutecida: estamos diante de um quarto destruído por "mãos descontroladas" e, lendo a história anterior, sabemos que as mãos eram as de Zunga, pretendente de Cidinha, que numa noite de bebedeira invade o quarto, "rasga os retratos de atores de cinema e cantores que Cidinha cuidadosamente recortava de revistas para forrar as paredes internas do móvel"17 [17 ] Inferno provisório, p. 122. . Finalmente, por trás dessas antíteses de forma e conteúdo, divisamos uma vida humana por assim dizer provisória, isto é, reduzida a quase nada. Como em Balzac, tem-se a harmonia da personagem com o quarto onde ela se encontra e a vida que leva, entre a personagem e o ambiente (milieu)18 [18 ] Auerbach, Erich. Mimesis: la representación de la realidad en la literatura occidental. México: Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 442. .
De um lado, o estilo e o título de "Paisagem sem história" remetem ao contexto contemporâneo como um todo, em que se anuncia a perda da temporalidade, ou seja, da história, em busca de um espaço instantâneo e individualizado. A ficção de Ruffato, com suas descontinuidades narrativas, histórias que não terminam, personagens sem heroísmo, estilo variado, pode ser lida como pós-moderna. Ela incorpora, também, em termos formais, o provisório da cultura e da economia contemporâneas, que, como a mídia e o mercado flexível, enfatizam as qualidades transitórias da existência. No caso da passagem citada, os objetos de desejo se confundem com o próprio meio de difusão: as revistas de fotonovela e de fofoca, espécie de equivalente da mídia televisiva para os que não podiam ter televisão. São fragmentos de imagens que, símbolos da indústria cultural que se impõe nos anos 1960 cantores, galãs das fotonovelas, carrões , servem de compensação para a vida miserável de Cidinha. De outro lado, esse ideal do eu, recortado caprichosamente e colado nas portas do móvel em que a prostituta se arruma, se transmudará, depois da cena de violência praticada pelo amante, em "inúteis desenhos incompreensíveis", evidenciando-se, no texto, a primazia do real. Temos, pois, a diferença complementar, ou unidade contraditória, entre o contexto provisório conotando a efemeridade contemporânea que começa a nos constituir desde os anos 1960 e que as revistas e mercadorias reforçam, e outro contexto provisório, permeado pela pobreza material, em que também habita Cidinha e cujos símbolos são o "forro úmido-esverdeado de um guarda-roupa coxo" e, mais adiante, a goteira no meio do cômodo.
Na "paisagem" de Ruffato, esse duplo aspecto da provisoriedade brasileira traz à tona uma agudização da miséria existencial e material dos pobres, uma vez que o que passa a nortear esses sujeitos é em especial o simulacro da sociedade de consumo. Se, como sugere Marx, um homem que não vem ao mundo com o espelho nas mãos, se vê e se reconhece, a princípio, nos outros homens19 [19 ] "De certa maneira, dá-se com o homem o mesmo que com as mercadorias. Uma vez que ele não vem ao mundo [...] com um espelho na mão [...] o homem se vê e se reconhece, inicialmente, nos outros homens. Pedro só estabelece sua própria identidade como homem depois de se comparar com Paulo como sendo da mesma espécie. E, com isso, Paulo, simplesmente ao se postar em sua personalidade paulina, transforma-se para Pedro no exemplar típico do gênero humano." Marx, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s/d, vol. I, p. 60. , personagens como Cidinha e Luzimar não se reconhecem, efetivamente, em lugar algum. A existência de ambos consiste, ao fim, na busca incessante por algo que jamais tiveram e jamais terão, mas que, de forma paradoxal, compõe o seu modo de ser.
Ao mesmo tempo, o provisório se eterniza. Daí a validade, até os nossos dias, das teses de Antonio Candido e Roberto Schwarz, lidas em conjunto e em contexto, para continuarmos pensando os vínculos entre literatura e sociedade no país. A desordem, tanto na literatura como na sociedade, dá-se, de forma contraditória, em nome de uma ordem singular, mescla de cordialidade e capitalismo, não tão distinta à anterior, e que impõe, em termos ideológicos, a inclusão de todos num sistema cada vez mais inacessível mas, paradoxalmente, inescapável. No limite, aquelas teses uspianas lidas no seu conjunto e contexto, e acrescidas de uma reflexão sobre o capitalismo tardio entre nós e suas conseqüências culturais permitem conhecer também os impasses da classe média, vítima e algoz neste instante de recrudescimento da violência urbana. Vimos, na obra de Ruffato, como a classe média se encontra emparedada, entre a possibilidade da queda e o desejo de ascensão. Nos óculos arranhados da reumática e solitária dona Marta, na sidra para brindar o Natal, no pratinho de papelão, no esvaziamento do lar, estão os símbolos da precariedade. Na outra ponta, no carro popular de Gildo e na televisão nova da mãe, os da prosperidade, mas, vale dizer, uma prosperidade sempre limitada, cujos objetos de representação são simulacros daqueles dos ricos. Finalmente, a ficção revela também quanto a classe média, no Brasil, sofre para seguir sendo média estão aí, também da parte de Gildo, o desterro, o trabalho duro no chão de fábrica, o ódio da cidade natal e quanto ela violenta os pobres, sobretudo porque estes a espelham, representando o eterno pavor da queda.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Jun 2006 -
Data do Fascículo
Mar 2006