CRÍTICA
L'il anjil - I dreamt he kissed me* [* ] Agradeço a Nobu Chien pelas indicações bibliográficas, leitura e comentários.
Rafael Campos Rocha
KRAZY KAT & THE ART OF GEORGE HERRIMAN: A CELEBRATION,
de Herriman, George e Yoe, Craig. Nova York: Abrams Comic Art, 2011.
Em 2009, a prestigiosa publicação The Comics Journal colocou Krazy Kat, de George Herriman (1880-1944), no topo de uma lista das melhores tiras de jornal do século xx. Foi uma decisão pouco polêmica. Herriman é, há muito tempo, considerado um dos mais importantes artistas da riquíssima história da arte americana desse século. Em panegírico de 1922, o crítico Gilbert Seldes se refere a ele como "o maior artista vivo e em atividade"1 [1 ] Seldes, G. "The Krazy Kat that walks by himself". In: McDonnel, P., O'Connell, K. e Riley, G. Krazy Kat: the comic art of George Herriman. Abrams, 2004. .
Krazy Kat estreou em 1913 no New York Evening Journal, de propriedade do magnata das comunicações William Randolph Hearst2 [2 ] Hearst foi a inspiração de Orson Welles para o protagonista de Cidadão Kane (1941). , e foi publicada até a morte de seu criador, em 1944. Herriman, um mestiço de Nova Orleans de traços indefinidos - foi apelidado de "O Grego" por um colega de jornal -, passou por vários jornais com algumas tiras e personagens de relativa importância até ser definitivamente adotado por Hearst. Herriman pagou a atenção do magnata com sua maior criação: um triângulo amoroso multirracial, homossexual e sadomasoquista entre um gato, um rato e um cachorro. O gato é Krazy Kat, personagem amoroso, estranhamente ingênuo e de sexualidade indefinida. Também sua linguagem é indefinida. Krazy manifesta suas divagações existenciais estapafúrdias tanto em creole, no dialeto yap das ruas de Nova Orleans, no iídiche nova-iorquino ou na fala mestiça das fronteiras mexicanas e navajo. E assim como o seu gênero e a sua fala, os próprios cenários de suas aventuras (a cidade de Coconino e seus arredores) modificam-se de quadro a quadro, sendo o próprio local da trama um vilarejo quase imaginário da região de Monument Valley (nos estados norte-americanos de Utah e Arizona). Quase porque as formações que compõem o pano de fundo da tira (e que lembram mãos voltadas para os céus ou patas de elefantes), apesar de realmente existirem, não batem palmas quando entusiasmadas ou saem andando para lá e para cá, como em Krazy Kat, reforçando o estranhamento que a fala do protagonista e também a trama bizarra causam ao leitor.
Krazy Kat sustenta um amor implacável por um rato de maus modos chamado Ignatz, que retribui esse amor com tijoladas em sua nuca, interpretadas por Kat como mensagens de amor. Na verdade, a obsessão de Ignatz por Krazy é exatamente proporcional à de Kat pelo rato. Quase todos os episódios da história se passam em torno das tentativas de Ignatz de cumprir o seu intento agressivo. O outro vértice do triângulo é Officer Pupp (ou "Ofissa Pup", na pronúncia de Krazy), um cachorro fardado como policial cuja obsessão particular é impedir que Ignatz agrida Kat com um tijolo, ou prendê-lo quando a agressão se cumpre. Pupp sustenta uma paixão parcialmente recalcada por Kat, a quem busca proteger de Ignatz, por sua vez amado por Krazy, que não poucas vezes colabora para que a agressão do rato se cumpra, escondendo-o de Pupp ou tornando-se propositadamente alvo fácil - e assim repetidamente, tira após tira, ano após ano.
Outros personagens habitam a tira, quase sempre etnicamente identificados: o pato chinês que abandona a profissão de tintureiro para ser adivinho, uma ave pernalta cosmopolita (um nova-iorquino?) que não para de se queixar do provincianismo de Coconino, um coiote da aristocracia mexicana, um cão irlandês capitalista que fabrica os tijolos usados por Ignatz para arremessar na cabeça de Kat, entre outros. Uma multiplicidade étnica que, de Herman Melville à ficção de horror, parece ser uma tradição da narrativa americana.
Kat é negra3 [3 ] Vou referir-me à personagem Krazy Kat no feminino por comodidade e opção, já que não contamos com a ambiguidade natural da língua inglesa para o gênero. . E afeminada, se for macho. Também é por demais independente e libidinosa para o papel de heroína, se for fêmea. Personagens heroínas mulheres, mesmo nos quadrinhos eróticos, nunca são totalmente responsáveis pelos seus desejos. As situações sexuais são quase sempre criadas por uma espécie de pressão e sedução na direção da personagem, que parte da passividade para o orgasmo, por sua vez incontrolável perante o desejo do Outro - vide Valentina, de Guido Crepax, Drunna, de Paolo Serpieri, e as mulheres de Milo Manara.
Também é comum que, ao contrário de Kat, os protagonistas da ficção popular americana sejam filisteus convictos. Em geral são homens de ação que honram a família, o país ou a memória do pai perdido. As sensibilidades estéticas são reservadas para os vilões, quase sempre afeminados, amantes da arte e da decadente cultura europeia. Kat, por sua vez, jamais é vista em ocupação formal alguma. Quando não está filosofando, está tocando o seu bandolim, pintando ou simplesmente dando uma banda por aí com seu guarda-chuva.
Kat é, portanto, de origem mestiça, apátrida, independente, boêmia e agressivamente apaixonada por Ignatz, que, escapando também do estereótipo chauvinista, foge do desejo da protagonista. É um objeto de amor, não um agente, como costumam ser objetos de amor e desejo as heroínas de Manara, por exemplo. E o desejo de Kat é um desejo direcionado a um lado da sociedade ainda mais baixo que sua boemia vagabunda, um lado literalmente marginal: Ignatz chega a organizar bandos para roubar sua admiradora em algumas tiras. Para coroar a heterodoxia de Herriman, essas ligações amorosas incorrem no pecado da miscigenação, impensável, por exemplo, na estrutura de parentesco e relacionamento social típicas do universo de Walt Disney.
Kat também é objeto do desejo, mas parece não notar. E logo daquele que seria o herói das tramas tradicionais: o cão branco símbolo do poder, da lei e da ordem, truculento e convicto de seus deveres cívicos. Seu desejo é de saída proibitivo: um amor possivelmente homossexual por um gato negro (tanto Pupp quanto Ignatz parecem tratar Krazy como macho, excetuando em uma deliciosa história em que Kat vai ao salão de beleza e sai branca, despertando a paixão de Ignatz, que pensa tratar-se de outra gata). E, apesar da diferença racial e social (afinal, Kat não passa de um artista boêmio, um tocador de banjo vagabundo que passa a vida na flauta), o conto da carochinha, do príncipe que escolhe a plebeia, não se cumpre: Kat prefere o rato lúmpen ao cachorro pequeno-burguês.
George Herriman nasceu em 1880, em Nova Orleans, e em sua certidão está registrado como "colored", de pais "mulattoes". A segregação racial ainda não havia atingido os píncaros do início do século xx, e vários creoles como os pais de Herriman podiam ter uma vida razoavelmente confortável e oferecer a mesma educação esmerada que deram a seu filho, versado em três línguas e, segundo testemunhos, excelente intérprete de bandolim e piano. Ao que tudo indica, os pais de Herriman, nascidos nos eua, tinham ascendência francesa e alsaciana, com algo de sangue índio e negro. Muito da tolerância, e mesmo da indeterminação racial e social que envolve Krazy Kat, pode ser atribuído à peculiaridade da formação de Herriman. Além da brumosa identidade social e racial dos personagens, sua fala atravessa diversas línguas (do espanhol ao iídiche), sotaques (do creole ao inglês italianizado do Brooklin) e entonações com repercussões sociais (do gueto à cátedra ou ao salão aristocrático do século XIX).
O pai de Herriman era uma espécie de faz-tudo que tentou convencer George a segui-lo no ramo de artesão. O menino não aceitou a sugestão, chegando a colocar um rato morto dentro de um pão, numa das aventuras profissionais (desta vez como padeiro) a que o pai o arrastava. Pelo visto o atentado deu resultado e - ao terminar seus estudos básicos, aos 17 anos - Herriman pôde sair para o mundo em busca da realização de seu projeto de vida: ser cartunista.
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No dia 26 de julho de 1910, Ignatz Mouse arremessa, em gesto hoje histórico, um objeto na cabeça de Krazy Kat pela primeira vez. O título dessa tira diária é "Mr. Dingbat exige seus direitos", de The family upstairs. [Sra. Dingbat: "É incrível como a família do andar de cima é incapaz de regar as plantas sem molhar as nossas janelas. Me desculpe, você aí em cima, mas..." Sr. Dingbat: "Ei!" Sra. Dingbat: "Ah, meu pobre marido! Cícero, meu filho..." Cícero: "Paiê, o menino do andar de cima acabou de me dar um soco no olho!"] (KRAZY KATTM Hearst Holdings, Inc. Cortesia da coleção Herriman de Craig Yoe).
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A essência do triângulo formado por Kat, Ignatz Mouse e Officer Pupp (1932). [Em tradução literal: Officer Pupp: "Ei! Te peguei, heim? Agora largue esse tijolo no penhasco! Muito bem! Agora, se man... Aquele rato não vai ter do que rir hoje, sem tijolo para arremessar naquele gato querido! Ahn? Do que você está rindo?" Ignatz: "Olhe no fundo do penhasco!" "Te peguei!"] (KRAZY KATTM Hearst Holdings, Inc. Cortesia da coleção Herriman de Craig Yoe).
Não era como sair de casa para tornar-se pintor vanguardista em Paris, ou refugiar-se de um amor fracassado na Legião Estrangeira. Os grandes desenhistas eram disputados pelos jornais, e muito bem remunerados. O status que esses artistas tinham nos jornais do começo do século passado era justificado pela dificuldade de conseguir conteúdo - e não apenas visual - para preencher todas as páginas. Uma história em quadrinhos influía diretamente na venda e na tiragem de um jornal.
A viagem de Herriman para Nova York era uma tentativa de participar de um dos mais celebrados e espetaculares momentos da história da arte americana. Compunham esse momento criações como The Yellow Kid, de Richard F. Outcault, o menino que levava escrito em seu gibão amarelo mensagens no dialeto do gueto de imigrantes onde vivia fazia tanto sucesso que deu origem à expressão "yellow press" para a imprensa sensacionalista. Winsor MacCkay, cujos desenhos oníricos da página dominical Little Nemo transformaram-no em sério candidato a maior artista do Art Noveau de todos os tempos, foi também um dos inauguradores da arte nascente dos desenhos animados. Frederic Burr Opper era considerado o Voltaire dos quadrinhos, assim como Happy Holligan seu Candide. Opper, do qual a obra de Herriman parece ser tão devedora, levava toda a herança da caricatura francesa para o cenário mais comum das tiras do início do século xx: a vida dos americanos pobres. Outro artista a que Herriman deve muito, principalmente na liberdade em lidar com a diagramação e a narrativa das histórias, é Lyonel Fellinger, com seu extraordinário Wee Willie Winkie's World. E mais E. C. Segar com seu Popeye, o grande Cliff Sterret com Polly and Her Pals, o cartunista esportivo tad e tantos outros. Talvez não seja injusto dizer que os quadrinhos nunca mais atingiriam a popularidade, o status e a abrangência - talvez a qualidade - dos primeiros trinta anos do século XX.
Em 1897, Herriman começava sua carreira trabalhando como assistente do departamento de gravuras do Los Angeles Herald, para o qual havia vendido um desenho. Três anos depois, como tantos outros jovens e ambiciosos artistas de sua época, subiu clandestinamente em um trem para Nova York. Lá, começa a trabalhar como pintor de placas e padeiro (às vezes até mesmo os pais estão certos em ensinar um ofício aos filhos). Um ano depois, começa a publicar seus desenhos na Judge Magazine e nos jornais de Joseph Pulitzer. Em 1902, já com algum reconhecimento profissional, viaja de volta para Los Angeles para casar com a antiga namorada, Mabel Lilian Bridge. No ano seguinte já faz parte da equipe do New York World, de Pulitzer, e em 1904 troca um magnata da comunicação por outro, indo parar no New York Daily News de Hearst, que já havia roubado Outcault e seu Yellow Kid de Pulitzer.
Profissional reconhecido e disputado pelos dois maiores conglomerados de informação da América, Herriman volta para a sua amada Califórnia e torna-se cartunista do Los Angeles Times, também de Hearst. Por essa época Herriman, agora com 25 anos, já havia criado mais de meia dúzia de tiras e personagens de relativa importância como Musical Moose, Professor Otto and his Auto, Acrobatic Archie, Two Joolie Jackies e uma das tiras com um dos títulos mais estranhos de que tenho notícia, Major Ozone's Fresh Air Cruzade.
Foi em julho de 1910, em The Dingbat Family, uma das criações iniciais de Herriman, que apareceu pela primeira vez a cena de um rato atirando um tijolo na cabeça de um gato, bicho de estimação da família que protagoniza a tira. Em 1913, o New York Evening Journal publica a primeira tira de Krazy Kat, que nasce como spin-off de The Dingbat Family.
A pobreza, assim como os imigrantes e mestiços, são temas de época, usados por Opper, Outcault e quase toda a geração de primeiros cartunistas, como uma forma de falar ao público de si mesmo e fazê-lo rir de sua própria miséria. O mesmo vale para a linguagem dos personagens. Os dialetos do gueto são amplamente usados, de Yellow Kid a Happy Holligan. Mas não como em Herriman. A construção do mundo dos personagens de Herriman não é extraordinária por falar do lado desafortunado da sociedade, mas por tratá-la de forma tão sofisticada e inusitada, assim como esses seres de nanquim e papel, enlouquecidos em suas obsessões, são tão familiares à nossa vida neurótica.
No desenho de Krazy Kat podemos seguir o mesmo raciocínio. Herriman usa da mesma técnica de pena que Opper e tantos outros. Traços diagonais para indicar volume em personagens desenhados agilmente, aparentando as gravuras em metal das quais as tiras de jornal, na verdade, evoluíram. Mas a essa técnica de desenhar Herriman acrescentou uma dureza do traço e uma velocidade de execução que provavelmente aprendeu da sua paixão por manifestações visuais populares, como o desenho navajo, a cerâmica mexicana, além da decoração das casas de sua Nova Orleans natal. Mesmo a aliteração no título da tira - a repetição do "k" - não é exclusividade da tira. Aparece em Happy Holligan de Opper e em Wee Willie Winkie's World de Feyninger, para ficarmos só em dois exemplos. Aparecem também, é claro, em quase todos os títulos das tiras anteriores de Herriman. Entrentanto, esses "k" do título ressoam em quase todas as falas dos personagens e refletem muito do traçado duro e ágil de Herriman.
Herriman, como todo grande artista, compartilha o vocabulário temático e mesmo o arcabouço técnico de sua época. Mas é a capacidade de pensar a arte de seu tempo e seu lugar na sociedade que o destaca em uma geração de artistas extraordinários.
Vários fatores podem estar envolvidos na admiração que uma plateia seleta de vanguardistas cultos, de e.e.cummings a Willem de Kooning, nutria por Krazy Kat, e que, ao mesmo tempo, afastavam a tira do grande público. O realismo, em detrimento do naturalismo, é uma das pedras de toque da vanguarda desde o século xix. Grosso modo, esse realismo modernista se baseava em duas premissas. Primeiro, descer do pedestal da arte e de seus grandes temas e buscar seu combustível na vida contemporânea, do "povo" ao próprio ambiente da vanguarda. Segundo, e reforçando a ideologia realista, apregoada principalmente pela geração de Courbet, a ênfase na materialidade do meio e do suporte, que reafirmava a arte como produto do meio e da vida, do aqui e do agora. A soma do estruturalmente humano e do cotidiano contingente de Baudelaire.
Herriman, amiúde, comenta o próprio suporte "quadrinhos" com intervenções na diagramação, no roteiro, no desenho, que acabam por criar uma opacidade do veículo que chega a interferir na trama, em contraste com a transparência dos meios da arte naturalista, que se esconde para criar a verossimilhança ficcional da arte tradicional. É natural que Herriman tenha atraído o entusiasmo de um artista como cummings, cujas construções poéticas se refletiam na tipologia e na diagramação. O mesmo vale para a pintura de Kooning, que usa os estilos de pinceladas da história da arte como quem escolhe uma roupa para o dia de trabalho. Essa despreocupação no uso dos meios, essa fluência com relação ao que se fala e à forma com a qual se fala, parece reservada aos grandes talentos técnicos. E arte, até que provem o contrário, é acima de tudo uma questão técnica, não um esgar da alma, um dó de peito do Espírito Universal ou qualquer outra fantasia metafísica.
e.e.cummings faz uma sugestão surpreendente e aparentemente acertada, apesar de algo excêntrica. Para cummings, Krazy Kat, graças às suas fronteiras lábeis e movediças entre o que é "alto" e "baixo" (social e moralmente), certo e errado, coloca, por assim dizer, todos os comportamentos sociais pelo prisma da piedade amorosa de Kat, em uma pregação igualmente amorosa, piedosa e democrática4 [4 ] cummings, e. e. "A foreword to Krazy", republicado em Krazy Kat & the art of George Herriman: a celebration. . É a salvação da democracia, da igualdade entre os homens e os povos pelo amor. Kat, por não distinguir a agressão do amor, faz prosperar o amor. Por não distinguir entre o medo e a esperança, é toda esperança. Sua inocência seria, na verdade, a inocência da indiferença: indiferença perante as minúsculas - em uma escala cósmica - diferenças entre os homens.
Para a crítica de quadrinhos americana Sarah Boxer5 [5 ] Boxer, Sarah. "George Herriman: the cat in the hat". In: The best American comics criticism. Seattle: Fantagraphics Books, 2011 , o frescor de Krazy Kat se deve também a essa indeterminação (que ela chama de "fluxo"). Tudo o que é sólido em Krazy Kat se transubstancia, do comportamento dos personagens aos cenários. A própria Kat, e isso cummings já havia notado, não tem nada da estruturação, da tridimensionalidade, do conteúdo emocional tão comum na prosa tradicionalista, que se refletiria nos atos. Krazy é vaga e incerta como a tira que habita, com seus cenários cambiantes, seus balões que se transformam em papiros e fumaça, sua diagramação que deixa de auxiliar a narrativa para balbuciar histórias paralelas que tomam a frente dos personagens. Nada é sólido, nada é declarável. Por isso Kat não é macho ou fêmea, fala creole ou folk, é caipira ou cosmopolita, ingênua ou manipuladora. É tudo isso simultaneamente. Krazy é só adição, só ganho e qualidade. A lógica binária e maniqueísta não funciona aqui, no universo dessa tira. Sua moral é dúbia e vaga, o que também torna obscuros os intentos do seu criador - e isso talvez tenha contribuído para afastar boa parte do seu público (no auge da fama, Krazy Kat aparecia em sessenta jornais diferentes; uma tira como Blondie, de Chic Young, mais ou menos na mesma época, em mais de mil).
Só uma coisa é constante nesse mundo flutuante e difuso como as pinturas de Leonardo da Vinci (a quem Robert Crumb comparou Herriman): o amor de Kat por Ignatz. Mesmo o ódio de Ignatz por Kat e o desprezo de Pupp por Ignatz é relativo. Ignatz está na "prisão" do dominador violento descrita por Masoch em seu A Vênus das peles. O mesmo vale para Pupp, obcecado tanto por Krazy quanto por Ignatz. Como, afinal, cumprir a lei sem um contraventor? Ou melhor, como proteger e se aproximar de Krazy sem a ameaça de Ignatz? Em muitas
histórias todos os personagens encontram-se juntos e em paz, observando algum acontecimento ou elucubrando em conjunto sobre o destino dos animais e das coisas. Krazy, notadamente, sempre vê nas prisões de Ignatz por Pupp uma brincadeira, um jogo entre dois amigos. Nas palavras da própria Kat: "like lil innisint childrens they play togeda"6 [6 ] Em tradução literal: "Como crianças inocentes, os dois brincam". [N. do E.] . Como disse cummings, Kat assemelha-se a uma mestra do amor e da compreensão do jogo cósmico, do qual é um dos regentes e, ao mesmo tempo, como tudo nessa história, observador parcial e vítima.
A chegada da cor às páginas dominicais de Herriman eclode mais uma faceta do seu talento. Que pigmento se não a aquarela pode declarar melhor a evanescência dinâmica do mundo de Herriman? E quando a fotografia da arte original era substituída pela aplicação de cores na gráfica, não era diferente. Em vez da estridência dos produtos impressos de então, Herriman rebaixa sua palheta, sem por isso perder a fluência e a capacidade de criar inúmeras combinações diferentes. A segunda mudança perceptível no estilo de Herriman acontece nos últimos anos de vida. Uma artrite, que ataca seus dedos, torna seu desenho mais rápido e rarefeito, quase como os desenhos de personagens das aquarelas chinesas do século XVI. O seu texto continua contendo a mesma cadência poética explosiva e incongruente. Ao falecer durante o sono em abril de 1944, Herriman havia deixado sobre a mesa de trabalho o equivalente a uma semana de publicação. Era uma tradição nos jornais a continuidade de uma tira de relativo sucesso depois da morte de seu criador. Hearst, sabiamente, não deixou que isso acontecesse.
Em seu atestado de óbito, Herriman aparece como "white", em vez do "colored" de sua certidão de nascimento.
Krazy Kat foi publicada pela primeira vez no Brasil na revista Tico-Tico, em 1905, com o nome Gato Maluco. O artigo masculino no português, entretanto, já compromete uma das principais características do personagem, a ambiguidade sexual. De lá para cá, pouca coisa melhorou na divulgação da tira, com a exceção heroica de sua publicação na Folha de S.Paulo, em 1990, até hoje sua melhor edição brasileira. Duas tentativas posteriores foram feitas pela editora Opera Graphica, cujas opções editoriais, no entanto, chegam a comprometer a louvável iniciativa.
Além das três linhas dedicadas à obra em Shazam, de Álvaro Moyá, o mais famoso livro sobre quadrinhos publicado no Brasil, pouco se escreveu sobre Krazy Kat. Em vários artigos, como o de Uchoa Leite, o humor anárquico - no sentido de demolição das instituições - de Krazy é corretamente entendido, apesar do velho cacoete da crítica brasileira de separação entre arte erudita e popular. Ainda assim, temos mais textos teóricos de qualidade sobre Krazy Kat, em português, do que uma edição satisfatória da tira.
Evidentemente, o maior problema reside na tradução da obra de Herriman para o público brasileiro. A transposição da forma enviesada e poética da fala dos personagens, e principalmente da mais elaborada de todas, a de Kat, corre o risco de destruir o sentido da obra. Uma das maiores violências possíveis é transformar a fala de Kat em locução de uma pessoa iletrada ou - o que é pior - bronca, como parece ser a opção de boa parte de seus tradutores para a língua portuguesa. Talvez seja justamente essa, para além da tradução, a maior dificuldade de trazer Krazy Kat para o Brasil, um país que se ufana, ainda que de forma crítica, de possuir uma maleabilidade de costumes que engendrariam uma cultura mais tolerante que outros países, mormente os Estados Unidos. E que um mestiço da Louisiana, no início do século XX, publique, nos maiores jornais de seu país, histórias de um personagem hermafrodita negro, encharcado da cultura mestiça do sul, amante da sua presa e amado pelo braço branco e opressor da sociedade, e ainda adornado com as perigosas iniciais KK, é uma lição de malemolência difícil de ser digerida.
RAFAEL CAMPOS ROCHA é cartunista e ilustrador.
- [1] Seldes, G. "The Krazy Kat that walks by himself". In: McDonnel, P., O'Connell, K. e Riley, G. Krazy Kat: the comic art of George Herriman. Abrams, 2004.
- [5] Boxer, Sarah. "George Herriman: the cat in the hat". In: The best American comics criticism. Seattle: Fantagraphics Books, 2011
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Maio 2012 -
Data do Fascículo
Mar 2012