ARTIGOS
Correspondência: de Émile Durkheim a Salomon Reinach*
Bourdeaux, sexta-feira [março de 1898]
Senhor e caro camarada1,
Estou muito feliz que a revista L'Année Sociologique tenha lhe sugerido a ideia de convidar-me a encontrá-lo. Estarei em Paris nos dias 3, 4 e 5 de abril e passarei ainda alguns dias do final da semana de Páscoa. Salvo qualquer manifestação contrária de sua parte, irei à sua casa no domingo pela manhã, entre 10 e 11 horas. Se estiver ocupado, peço que me diga quando terei oportunidade de encontrá-lo novamente. Meu endereço em Paris é o seguinte: Faubourg Saint-Martin, 162. Eu estarei nesse local a partir de sábado à noite, dia 2 de abril.
Meu senhor e caro camarada, queira receber a garantia dos meus mais devotados sentimentos2,
É. Durkheim
Bourdeaux, Boulevard de Talence, 218, 15 de junho de 1898
Caro senhor,
Recebi ontem de meu sobrinho Mauss, que atualmente está em Oxford, uma carta na qual ele me relata uma conversa que teve com o autor do artigo da National Review. É provável que ele não tenha tomado o conhecimento de nada que o senhor já não soubesse. No entanto, para tranquilizar minha consciência, creio dever reportar-lhe a aquilo que ele me disse, a fim de que possa ver se existe algo de novo e, nesse caso, se há algo a ser feito3.
O sr. Conybeare4 (o autor do artigo) disse-lhe ter obtido as informações do próprio Panizzardi, o qual disse o mesmo que Casella. Mas eis o que me pareceu mais interessante: Esterhazy5 apresentou os documentos como se fossem oriundos das mais altas autoridades do exército, a começar por De Boisdeffre6. Ele contou como todos os oficiais de todos os escritórios repetiam-lhe tudo. Isso me parece uma explicação muito esclarecedora da atitude do Estado-maior. Eis como ele os controla.
Panizardi [sic] afirmou que os atos do processo estão nas mãos do Estado-Maior prussiano, que pretende servir-se deles, como explicou seu irmão em seu recente artigo no Siècle7, em um momento oportuno. A embaixada da Itália possui cópias fotográficas com as quais o sr. Conybeare teve contato por um instante. Isso ocorreu em um momento no qual essas cópias estavam para ser publicadas nos jornais ingleses, quando então chegaram ordens contrárias, impedindo a publicação. Entretanto, o sr. Conybeare acredita que a publicação poderá ocorrer em breve.
Sabe-se tudo isso? E caso não se saiba, ou não se saiba o suficiente, a quem seria preciso informar? Essas são as questões que tomo a liberdade de fazer a você.
Jullian8 comunicou a mim as cartas que o senhor lhe escreveu, ao menos aquelas nas quais o informa sobre alguns fatos que chegaram ao seu conhecimento. Esteja certo de que Jullian não precisa ser convencido. Eu não acredito que ele tenha dúvidas. Eu apenas não consegui fazê-lo compreender que era seu dever afirmar seu sentimento9.
Eu vos peço, caro senhor, que receba a garantia de meus mais devotados sentimentos,
É. Durkheim
Bourdeaux, Boulevard de Talence, 8 de fev. de 1899
Caro senhor,
É de seu conhecimento um artigo de Lucien-Victor Meunier, publicado no Rappel, entre 22 e 30 de agosto, no mais tardar10, e no qual se dava a entender que no dia 22 o sr. Joseph Reinach estava em Évian? Eu me pergunto se essa não seria a origem do falso "Bleu"11.
Eu estava em Vevay no dia 22; ora, poucos dias depois li o artigo e me recordo muito bem de ter tido a impressão, ao lê-lo, de que seu irmão estava em Évian no mesmo momento em que eu estava em Vevay12. Outras pessoas podem ter tido essa mesma impressão e pode ter-lhes sugerido toda essa história.
Em todo caso, envio-lhe essa observação e lhe peço que receba a garantia de meus mais devotados sentimentos,
É. Durkheim
Bourdeaux, 25 de abril de 1899
Caro senhor,
Eu só pude tomar conhecimento de seu artigo há alguns dias13; o exemplar de L'Anthropologie ainda não havia chegado na faculdade no momento em que saí de férias, no final de março. Eu tenho grande apreço pela atenção que o senhor concedeu ao meu trabalho e pelos termos com os quais se referiu a ele. Aliás, estou disposto a aceitar suas conclusões, isto é, suas reservas. Tanto mais me parece correto que a exogamia é o produto de um tabu, e que esse tabu tem sua origem nas crenças relativas ao sangue, tanto mais reconheço que minha explicação sobre essas crenças é ainda incompleta. Acredito que para torná-la mais satisfatória seria preciso retomar e renovar a teoria do totemismo; em virtude da reação contra Smith e Frazer, tendemos hoje a fazer do totemismo um fato secundário; acredito que é preciso manter a importância primária que esses autores atribuíram a ele, mas com a condição de ampliar e aprofundar essa concepção.
No que se refere ao pudor, li com muito interesse a carta que o senhor teve a gentileza de me enviar14. Parece-me que estou de acordo com seu correspondente em dois pontos essenciais. Nós vinculamos o pudor ao uso de vestimentas; ambos vemos nesse costume um rito de magia religiosa. Isso é de importância capital. Resta saber com precisão o que determinou esse rito: a crença no mau olhado ou os preconceitos relativos ao sangue? A vestimenta é um meio de impedir que os fluidos terríveis saiam da mulher, ou, ao contrário, prevenir as influências funestas que a mulher poderia receber do meio exterior? Não tenho qualquer razão para negar a priori que a crença do mau olhado também esteja presente nesse fenômeno de alguma maneira: sabemos o quanto essas representações religiosas, imprecisas por natureza, tendem a se misturar e a se perder umas nas outras, a formar uma nova totalidade e a confundir suas ações em um mesmo sentido. Mas, tomada isoladamente, a crença do mau olhado parece-me uma causa pouco provável para explicar esse fenômeno. Nós sabemos que, de modo geral, a mulher, a partir do momento que surge a menstruação, é acusada de estar sob influências terríveis, dos pés à cabeça, por assim dizer.
A perspectiva do parto, por si só, dificilmente pode dar conta de um estado tão profundamente constitutivo, pois o parto não é mais do que um acidente, algo relativamente raro. Um estado assim tão crônico requer uma causa de um mesmo gênero, ainda que, com efeito, as precauções relativas à gravidez possam ser parte do resultado total. Além disso, considerando tudo o que sabemos sobre a situação religiosa da mulher, não é mais provável que a vestimenta seja destinada a interceptar as influências que se supõe que emanam de sua pessoa, do que a colocar essa pessoa ao abrigo das influências exteriores? São os homens que se protegem contra as mulheres, ainda que a necessidade de proteger a mulher contra ela mesma em certos momentos de sua existência possa ter confirmado ou desenvolvido práticas que essa necessidade sozinha não basta para explicar.
Ademais, seu correspondente traz uma explicação bastante próxima àquela que eu proponho. Ele afirma que a vestimenta primitiva do homem vem do fato de que a alma está supostamente contida no líquido seminal. Mas então por que não admitir que a alma está também no líquido menstrual, e com isso me refiro ao princípio da vida, à coisa sagrada que está em cada um, e assim explicar a vestimenta da mulher da mesma maneira? Essa aproximação é ainda mais fundamentada porque o próprio líquido seminal contamina tanto quanto o líquido menstrual, e assim dá origem às mesmas interdições (embora sejam mais fracas, creio eu). A respeito desse ponto, veja o Levítico. O paralelismo é tal que eu até pensei em utilizá-lo no meu artigo.
O fato de que a mulher deva cobrir seu corpo, e sobretudo seus olhos, vem simplesmente do fato de que ela é impregnada de religiosidade (eu utilizo essa palavra em seu sentido ambíguo) em toda a sua pessoa. Sabemos, por outro lado, que frequentemente é na cabeça que se situa o elemento tabu; daí decorre a obrigação de cobrir a cabeça, que é tão frequente, e que persiste ainda nos ritos semitas, mesmo para os homens.
O único fato que realmente me leva a refletir é que esse costume sobre o uso das vestimentas, em alguns casos, só se torna regra após o casamento. É algo que se deve analisar melhor.
De resto, tudo o mais é relativamente secundário. O essencial é colocar o problema dos costumes sexuais e dos sentimentos a eles relacionados em termos que permitam tratá-los cientificamente. Quando começamos a tratar o pudor, o ciúme e todas essas características distintivas do sentimento sexual como fatos primitivos, não podemos explicar nada; porque assim tudo o que podemos dizer é que os costumes relativos ao pudor vêm do pudor. Mas é diferente quando se vê neles o efeito, e não a causa, quando se explica a reserva sexual, esse mistério que cada sexo tem em relação ao outro, pelo fato de que desde o início certas razões sociais separaram tão violentamente os sexos, tornando-os quase duas espécies distintas. Assim não corremos o risco de estabelecer um fato primeiro, irredutível, a priori, que não podemos explicar. - Esse também é o seu sentimento e fico feliz em ver que estamos de acordo em relação a esse ponto essencial.
Lamentei muito não tê-lo encontrado durante minha passagem por Paris, no final de março. Pensando que iria encontrá-lo, esperava poder manifestar oralmente meus pêsames pela situação de luto que o senhor vivenciou tão cruelmente neste inverno15. Mas agora já é um pouco tarde para isso; contudo gostaria apenas de afirmar que não houve indiferença de minha parte.
Queira aceitar, caro senhor, as minhas desculpas por essa carta tão longa, bem como a garantia de meus mais devotados sentimentos.
É. Durkheim
O tomo II de L'Année foi publicado há alguns dias; portanto já era muito [tarde] para inserir sua interessante carta.
Bourdeaux, Bd. Talence, 218, 7 de dezembro de 1900
Caro senhor,
Tomo a liberdade de me dirigir-me à sua pessoa para obter uma informação que interessa a um de meus colegas da faculdade de letras, o sr. Rodier16.
Ele está publicando uma edição do 17, com tradução e comentários, e gostaria de enviar-lhe um exemplar. Ele deseja apresentar essa obra para concorrer a um dos prêmios atribuídos pela Académie des Inscriptions; ele foi fortemente encorajado a isso pelo M. Croiset18. Brochard19, em uma carta que ele mostrou a mim, sugere-lhe o prêmio Estrade-Delcros (8.000 F) e o prêmio Saintour (3.000). Meu colega deseja saber se não deveria haver temeridade de sua parte em concorrer ao primeiro desses prêmios. Ele ignora - assim como eu - o valor médio das obras às quais o prêmio costuma ser concedido. O senhor poderia dizer-nos quais são os costumes estabelecidos na Academia em relação a isso, e se meu colega poderia ter chances reais de obter esse importante prêmio? Não foi ele quem pensou nisso; a ideia partiu de Brochard. Mas, acima de tudo, ele se preocupa em não ser demasiado pretensioso.
Eu agradeço-lhe pessoalmente por qualquer informação que puder nos dar; tenho muita estima e amizade por Rodier, e ficaria feliz em poder ser útil a ele, ainda que indiretamente20.
Ainda não pude tomar conhecimento de seu artigo da Revue Celtique21; foi Jullian que ficou com esse exemplar depois de meu retorno. Se, como é provável, foi você que me enviou um exemplar à parte de seu artigo sobre o Tabu22, aproveito a ocasião para agradecer. Eu esperava poder encontrá-lo durante minha última breve estadia em Paris durante o mês de outubro; mas, infelizmente, fui impedido de fazê-lo em virtude de meu estado de saúde pouco satisfatório, o qual não me deixava mei juris.
Espero que perdoe a liberdade que tomei e asseguro-lhe os meus mais devotados sentimentos,
É. Durkheim
Bourdeaux, Bd. de Talence, 218, 14 de março de 1902
Caro senhor,
Hubert me enviou as informações que havia lhe solicitado23. Segundo Schurtz24, ele me escreveu, haveria no interior dos clãs totêmicos alguns grupos de indivíduos da mesma idade, os quais influenciam as leis matrimoniais; e é dessa teoria que o senhor gostaria de conhecer a origem provável.
Você sabe como a partir das tabelas de Morgan25, relativas às nomenclaturas das relações de parentesco, pode-se derivar que algumas expressões coletivas, as quais parecem designar uma relação desse gênero, aplicam-se a toda uma geração. Foi a partir disso que Giraud-Telon26 concluiu, há algum tempo, que o clã era divido por segmentos de gerações.
Mas não creio que seja somente a isso que Schurtz faça alusão. O modo como ele utiliza a palavra classe, a influência que ele atribui a esses grupos no que se refere às leis matrimoniais, me fazem pensar que ele pretende falar do que usualmente chamamos de classes matrimoniais, sobre as quais Howitt foi o primeiro a chamar a atenção27. A diferença é que Schurtz apresenta cada uma dessas classes como uma associação de indivíduos de mesma idade. Se essa for sua teoria, ela é a mesma que a de Cunow, formulada em Die Verwandtschaftorganisationen der Australneger28.
Mas essas classes jamais formam bandos, são partes integrantes do sistema social. Por outro lado, eu acredito que é inexata a ideia de que cada uma delas constitua uma geração.
Queira aceitar, caro senhor, a expressão de meus mais devotados sentimentos.
É. Durkheim
Paris, R. St. Jacques, 260, 22 de dezembro de 1902
Caro senhor
Li apenas muito tardiamente o artigo que o senhor consagrou a mim em L'Anthropologie29 porque não tínhamos a assinatura dessa revista, e porque a Sorbonne, menos equipada do que nossa pobre Universidade de Bourdeaux, ao menos nesse aspecto, não a recebeu. Tive alguma dificuldade em encontrá-la. É por isso que não lhe escrevi mais cedo para agradecer a atenção que o senhor nos dispensa tão fielmente, e pela simpatia com que segue o que fazemos. Mas não entendo bem porque se espanta com o fato de eu vincular exogamia e totemismo, pois o objeto de meu trabalho é mostrar que o único caso em que encontramos esses dois fatos dissociados não tinha a importância que se costumava atribuir.
Espero que me permita acrescentar a meus agradecimentos minhas mais sinceras felicitações por sua recente nomeação30. Isso me faz crer que a nomeação de Hubert também não encontrará dificuldades: de todo modo estou muito feliz.
Receba, eu o peço, meu caro senhor, a garantia de meus mais devotados sentimentos.
É. Durkheim
Paris, r. St. Jacques, 260, 28 de julho de 1903
Recebi apenas nesta tarde, em virtude de um erro no endereço, a carta que o senhor me enviou no dia 23 de julho, sobre Hubert. Ela é de fato tudo o que eu desejava, e conferiu maior autoridade à minha atuação junto ao sr. Buisson31. Mas esse pedido ainda é útil? Depois de ouvir Hubert contar-me da conversa que teve com Rougon, acredito que não. Depois de ter lido sua carta, pergunto-me se não seria imprudente simplesmente não fazer nada. Sei que o senhor deve ter encontrado Hubert hoje e me pergunto sobre o que terá dito a ele.
Receba, caro senhor, a garantia de meus mais devotados sentimentos,
É. Durkheim
Eu moro no nº 260 (e não no 161).
Paris, Rua St. Jacques, 9 de novembro de 1903
Caro senhor,
Permita-me pedir-lhe algumas informações sobre um projeto do qual se ocupa a Académie des Inscriptions: trata-se da edição do Corpus dos filósofos bizantinos32.
Tannery33, que acredito ser o responsável por essa ideia, propôs a um de meus antigos colegas de Bourdeaux que assumisse a direção dessa publicação34. Meu colega espantou-se que Tannery não tenha se encarregado ele mesmo desse trabalho; por essa razão, antes de envolver-se mais com a questão, ele gostaria de informar-se melhor e por isso pediu que eu investigasse a questão.
Se lhe faltar tempo, dê essa resposta oralmente a Hubert na primeira ocasião em que o encontrar.
Eu imagino que aquilo que meu colega deseja saber é se há razões conhecidas para que Tannery decline uma direção que pareceria ser sua de direito.
Com meus agradecimentos, receba ainda, caro senhor, a afirmação de meus melhores e mais nobres sentimentos.
É. Durkheim
Rua St. Jacques, 260
Rua St. Jacques, 260. Quinta-Feira. [1903]
Caro senhor,
Mais uma vez só pude encontrar tardiamente o nº da Anthropologie no qual o senhor consagrou algumas páginas ao nosso último artigo em L'Année Sociologique35. Tenho muito reconhecimento por sua fiel simpatia. Tive a impressão - ao menos acreditei ter a impressão - de que há algumas reservas in-facto sobre as questões de fundo da tese. Compreendo isso muito bem; seria deplorável que ela fosse admitida muito rapidamente. Ainda que eu tenha fé nessa ideia, não pretendo tê-la demonstrado, mas apenas tê-la suficientemente estabelecido para que não seja descartada de forma sumária.
Todavia, suas últimas linhas me causaram certa inquietude. Será que ao penetrar nas trevas que queremos destrinchar acabaríamos por aí permanecer?
Com meus agradecimentos, receba também a afirmação de meus mais devotados sentimentos.
É. Durkheim
Paris, Rua St. Jacques, 260, 30 de novembro de 1904.
Caro senhor,
Hubert me informou que o senhor considera indicar L'Année Sociologique para concorrer a um prêmio importante36. Não sei se será possível dar continuidade a esse projeto, mas quero agradecê-lo por tê-lo concebido. Eu lhe tenho em particular reconhecimento por fazer com que L'Année seja reconhecido nesse meio da Académie des Inscriptions no qual ele é, segundo creio, pouco conhecido. Seria já um grande serviço que se falasse dele, mesmo que de seu apoio não resulte nenhum benefício material - o que, apresso-me em dizer, facilitaria muito sua existência.
Junto com todos os meus agradecimentos, receba, caro senhor, a garantia de meus mais devotados agradecimentos.
É. Durkheim
Sábado, Rua St. Jacques, 260 [1907 ou 1908]
Caro senhor,
Chegou-me a informação de que Gabriel Monod37 estaria espalhando rumores segundo os quais Marcel Mauss seria herveísta38, e, nessa condição, não poderia ser aceito no Collège de France. Seria indiscrição de minha parte perguntar-lhe se estou corretamente informado e se posso dizer que foi do senhor que obtive essa informação, pois foi indiretamente de sua parte que a recebi (via Hubert)?
Minha intenção seria simplesmente a de escrever a Monod e a Bédier39, que também foi implicado, para desmentir junto a eles esse rumor que não passa de uma calúnia.
Até o presente esse foi o único obstáculo que encontrou essa candidatura que recebeu uma ótima acolhida.
Eu lhe agradeço desde já e peço-lhe que creia em mim como seu devotado.
É. Durkheim
R. S. Jacques, segunda-feira [1907 ou 1908]
Caro senhor,
Agradeço por sua resposta, a qual me deixou muito feliz. Custei a acreditar que G. Monod pudesse ter sustentado o que me havia sido relatado (e que eu não havia recebido diretamente de Hubert). Foi justamente em virtude de minha dificuldade em aceitar essa informação que decidi me informar melhor junto ao senhor.
O que pode ter contribuído para esse erro foi o fato de que em uma conversa com um professor do Collège, há 8 ou 10 dias, G. Monod insistiu sobre a situação política de Mauss, na qual ele parecia ver uma objeção à sua candidatura, especialmente em virtude do tipo de assunto de que aquela se trata40. Seria, porém, extraordinário que a qualidade de monge (Scheil41) ou de pastor protestante42 não constituísse uma objeção, mas que a qualidade de socialista desqualificasse alguém.
É possível, é bem verdade, que alguma afirmação tenha sido mais uma vez mal compreendida ou dita de maneira errada.
Junto com as desculpas pelos transtornos que lhe causei e com meus agradecimentos, receba, caro senhor, a garantia de meus mais devotados sentimentos.
É. Durkheim
Avenida de Orleans, XIV-e, 26 de outubro de 1912
Caro senhor,
Acabam de me comunicar a resenha que o senhor consagrou a meu último livro na Revue Critique des Livres Nouveaux43. Agradeço por seu esforço em fazê-lo e pela simpatia que seu artigo, em seu conjunto, exprime pelo livro e por seu autor. Fico feliz em saber que aceita as diretrizes nas quais me inspirei.
Mas também tenho que responder a uma questão que o senhor coloca no final desse artigo. Eu não ignoro de forma alguma sua definição de religião44. Se não a citei para dar apoio à minha é porque não acreditava que estivéssemos de acordo; caso contrário, ficaria feliz de poder conferir mais autoridade à minha tese. O senhor definiu a religião como um sistema de escrúpulos. Ora, 1º), eu falei de interditos [interdits], e não de escrúpulos [ scrupules]. Existe um abismo entre essas duas noções. 2º) Eu não creio que a religião seja um sistema de interditos. O interdito é apenas o sinal exterior a partir do qual podemos reconhecer mais facilmente a presença de uma coisa sagrada. Mas isso não esgota inteiramente a religião, pois ela é outra coisa, como procurei demonstrar.
Vou então reler seu livro (que agora não tenho em mãos) e verei se eu me equivoquei quanto a seu pensamento.
O senhor nos faz um grande favor ao acrescentar a nossas queixas a sua severa porém justa apreciação em relação ao papel utilizado pelo editor; trata-se, já há algum tempo, do hábito com o qual ele veste sua coleção. Quanto à ausência de um índex - algo pelo qual me recrimina duramente -, esteja certo de que isso se deve a causas outras que evitar "esforço".
Eu lhe peço, caro senhor, que esteja certo de meus mais devotados sentimentos,
É. Durkheim
Avenida de Orleans, 4, XIV-e, 3 de dezembro de 1913.
Caro senhor, Acabo de receber neste instante (em virtude de um erro no endereço a carta foi enviada para a rua St. Jacques) a convocação para a seção que deverá acontecer amanhã no Conselho do I.F.A.45 às 5 horas. Infelizmente, durante esse período estou dando meu curso na Sorbonne.
É. Durkheim
Recebido para publicação em 4 de novembro de 2011.
Tradução de Raquel Weiss e Edição de Rafael Benthien
Referências bibliográficas
- [*] Uma primeira versão dessa edição crítica foi publicada em uma revista especializada inglesa. Veja-se, quanto a isso, Benthien, R. F. "Lettres d'Émile Durkheim à Salomon Reinach". Durkheimian Studies, 2010, pp. 19-35.
- [3] Em uma carta datada do mesmo dia e endereçada a Mauss, Durkheim faz também referência a essa questão. Durkheim, É. Lettres à Marcel Mauss. Paris: PUF, 1998, p. 146.
- [4] Frederick Cornwallis Conybeare (1856-1924), linguista britânico, professor na Universidade de Oxford. Ele também é autor de um livro em inglês sobre o Caso Dreyfus (Conybeare, F. The Dreyfus Case. Londres: G. Allen, 1898).
- [9] Durkheim se enganou quanto às convicções de Jullian. Veja-se, sobre isso: Durkheim, É. "Lettres à Camille Jullian". Études Durkheimiennes, vol. 7, 1982, pp. 2-3.
- [11] Os telegramas, em fins do século XIX, eram enviados em papel azul (daí a expressão "bleu"). O falso telegrama, ou "faux bleu", é um episódio importante do Caso Dreyfus. Veja-se, sobre esse ponto, Duclert, V. L'Affaire Dreyfus. Paris: La Découverte, 2006, pp. 25-6.
- [13] Trata-se de Reinach, S. "La prohibition de l'inceste et ses origines". L'Anthropologie, vol. 10, 1899, pp. 59-70.
- [14] O referido correspondente não foi identificado. Uma hipótese é que se trate de Franz Cumont, o qual, na época, preparava seu livro sobre o culto de Mitra (Cumont, F. Les mystères de Mithra. Bruxelas: H. Lamertin, 1900).
- [17] Aristote [Aristóteles]. Traité de l'Âme. Trad. de Georges Rodier. Paris: E. Leroux, 1900.
- [21] Trata-se de Reinach, S. "Les survivances du totémisme chez les anciens celtes". Revue Celtique, 1900, pp. 267-306.
- [23] Veja-se, sobre tal questão, a carta que Durkheim escreveu a Hubert em 10 de março de 1902 (Durkheim, É. "Lettres de Émile Durkheim à Henri Hubert, presentées par Philippe Besnard". Revue Française de Sociologie, vol. 28, nş 3, 1987, pp. 524-5).
- [27] Alfred William Howitt (1830-1908). Antropólogo inglês. As classes matrimoniais, típicas de grupos totêmicos em que a filiação era uterina, eram subdivisões de clãs secundários que impunham tabus suplementares para efeitos de casamento. Assim, em uma tribo hipotética composta por dois clãs, A e B, cada qual subdividido em duas classes, A' e A", B' e B", os indivíduos de A' só poderiam se casar com aqueles provenientes de B', o mesmo valendo para A" e B". Boa parte da literatura da época, o que inclui os autores citados na carta, acreditava que se tratava do efeito de uma repulsa natural, de fundo psicológico, quanto ao casamento de cônjuges de idades muito diferentes. Daí a ideia de que a classe seria determinada pela faixa etária. Durkheim, contudo, desenvolve outra teoria. Segundo o sociólogo, as filiações uterinas conviviam geralmente com o fato de que o filho era criado na casa paterna, ou seja, em um clã ao qual ele não pertencia. Como são as mulheres que circulam, cada geração de filhos cresceria em um ambiente moral diferente. A pertença a uma classe diferente situaria o indivíduo nesse jogo de relações entre clãs. Veja-se, sobre isso, Durkheim, "La prohibition de l'inceste et ses origines." L'Année Sociologique, vol. 1, 1898, pp. 9-28.
- [29] Reinach, S. "É. Durkheim. Sur le totemisme". L'Anthropologie, vol. 13, 1902, p. 664-9.
- [32] No que tange tal projeto, veja-se Les Comptes-rendus de l'Académie des Inscriptions & Belles-Lettres, 1903, pp. 318-319 e 329.
- [35] "É. Durkheim et M. Mauss. De quelques formes primitives de la classification". L'Anthropologie, vol. 14, 1903, pp. 601-3.
- [43] Reinach, S. "Une étude sur les réligions primitives". Revue Critique des Livres Nouveaux, 15 out. 1912, pp. 153-4.
- [44] Veja-se, em particular, Reinach, S. Orpheus, histoire générale des religions. Paris: Picard, 1909, pp. 1-38.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Jan 2013 -
Data do Fascículo
Nov 2012