IMAGENS & PALAVRAS
Para além dos muros da escola* * Resenha do filme Entre os muros da escola, baseado no livro de François Bégaudeau. Direção de Laurent Cantet (França, 2008).
Vânia Gomes Zuin
Doutora em Ciências e professora do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). E-mail: vaniaz@ufscar.br
As tensas relações entre os povos dos países colonizadores e dos colonizados foi muito bem caracterizada por um filho da Martinica, que teve formação universitária na França, onde foi estudante de Merlau-Ponty e leu os escritos de autores tais como Sartre e Marx. Ele se chamava Franz Fanon e foi autor do livro intitulado Os condenados da terra (1979), no qual analisou e também denunciou as barbáries físicas e psicológicas cometidas pelos colonizadores. Fanon foi dono de uma voz que clamava pela liberdade dos países colonizados, com destaque para a independência da Argélia em relação ao jugo dos colonizadores franceses. As reflexões de Fanon foram decisivas no pensamento de Paulo Freire, que elaborou seu famoso conceito hospedagem do opressor muito em função da forma como Fanon denunciou o desejo do colonizado de lutar contra seu semelhante, ao invés de canalizar suas energias para a figura daquele que verdadeiramente oprimia. O colonizado ou oprimido, que hospeda o opressor dentro de si, empunha "a faca contra o irmão, acredita destruir, de uma vez por todas, a imagem detestada de seu aviltamento comum" (Sartre, apud Fanon, 1979, p. 12). Foi Sartre quem prefaciou Os condenados da terra. Já Paulo Freire certamente teria concordado com essa interpretação sartreana da obra de Fanon, pois foi o educador pernambucano que observou, em sua Pedagogia do oprimido, as dificuldades dos oprimidos que, em muitas ocasiões, lutam entre si não para acabar com a relação de opressão, mas sim para assumirem o posto dos opressores (Freire, 1978).
Quase seis décadas mais tarde, o cenário é o da França ocupada pela presença dos netos daqueles que foram anteriormente colonizados, e que agora frequentam as escolas francesas na perspectiva de serem, de alguma forma, posteriormente integrados no mercado de trabalho. Em um primeiro momento, tanto no filme Entre os muros da escola, quanto no livro que deu origem ao mesmo, procuramos as semelhanças e dessemelhanças existentes entre aquilo que se apresenta em uma escola pública de um bairro de Paris e a nossa realidade escolar brasileira; o alarido dos estudantes, a alegria e resistência ao se retornar à escola, os novos encontros e reencontros docentes e discentes, os valores atribuídos aos atores sociais, o reconhecimento e disputa pelos espaços. De fato, ambas as obras são profundamente impactantes, pois vemos retratadas e aguçadas as tensões entre todos aqueles que compõem o cenário, real e ao mesmo tempo ficcional, protagonizado por François Bégaudeau (autor do livro e responsável pelo papel do professor François Marin no filme) e os estudantes (como Nassim, Esmeralda, Cherif, Wey Huang, Boubacar e Souleymane). As diversas culturas, obrigadas a coexistir nesse contexto educativo, compõem um mosaico pretensamente multicolorido e potencialmente belo e enriquecedor, e disputam violentamente o olhar mais demorado de quaisquer leitores/espectadores. Não por acaso, o filme pode ser praticamente caracterizado como um documentário e o livro, por sua vez, possui cortes como que cinematográficos, os quais pululam em sua narrativa ágil, mas de forma alguma inconsistente. O que procura o professor François quando luta para nos conquistar a simpatia, mesmo enquanto parece temer aquilo que se apresenta ou que ajuda a construir? Convencer-nos da penúria de sua condição, ao ensinar a língua francesa aos adolescentes de diversas origens étnico-sociais? Estes mesmos adolescentes, estudantes da sétima série, experimentam de diferentes maneiras o contato com a língua e costumes franceses. Rapidamente, como diria Foucault em Vigiar e punir (2001), os olhares classificadores dos professores rotulam os destinados ao fracasso e ao sucesso adaptativo. Não por acaso, umas das primeiras cenas do filme se refere ao diálogo entre os professores de diferentes séries, que trocam informações sobre os estudantes que prestam e os que não prestam, quando apontam o futuro de cada um, à medida que o dedo percorre as linhas das listas de presença (...esse é bem comportado, esse é mal-comportado, muito mal-comportado mesmo...). Dentre eles, se destaca a figura do filho de imigrantes chineses Wey Huang, identificado como o estudante-estrangeiro perfeito, dado que é dócil e obediente. Para fazer uso de categorias de Bourdieu, o comportamento de Wey se adapta muito bem aos juízos professorais com os quais convive (Bourdieu, 2006). Mas esse estudante parece ser mais uma exceção, haja vista o fato de que também nas escolas francesas impera o hábito de intercambiar os estudantes expulsos de suas respectivas escolas de origem.
François tem a ideia de promover um exercício entre os estudantes, a saber, a exposição pública de suas características de personalidade, numa tentativa de recrudescer a comunicabilidade e, portanto, o contato entre os agentes educacionais. A tarefa de se fazer um autoretrato - que escrevam sobre si próprios, os seus gostos, suas qualidades, falhas, o que gostariam de ser - poderia ter um papel importante nessa aproximação, mas torna-se majoritariamente um instrumento de humilhação coletiva por parte de todos os envolvidos, no qual as consideradas limitações são evidenciadas. As novas formas de colonização, presentes no capitalismo globalizado, se tornam mais evidentes nesse tipo de violência simbólica, que aparenta preocupação com a identidade dos estudantes para terminar justamente as violentando. Contudo, os estudantes percebem a falsidade dessa promesse de bonheur, uma promessa de felicidade feita pelo professor. Vários estudantes protestam, pois não aceitam a proposta, afirmando que as suas vidas não são tão dignas de nota aos olhos do professor - quanto às próprias existências dos chamados profs., ou mesmo de Anne Frank -, já que não haveria nada de apaixonante em só ir à escola, voltar para casa, comer e dormir. "Eu me chamo Souleymane. Sou na verdade calmo e tímido em classe e na escola. (...) Eu gostaria de levar a minha vida numa boa e, sobretudo, não gosto de conjugação". "Koumba é meu nome, mas não gosto muito dele. Gosto de francês, desde que o professor não seja um zero à esquerda" (Bégaudeau, 2009, p. 19). Após ser solicitado a participar da apresentação pelos estudantes, o professor escreve seu nome na lousa. Só. Faz uma pausa e pergunta a um estudante, que cochilava, como faria para falar com o mesmo. Concluiu que, de acordo com os dizeres da camisa pólo amarela que vestia, poderia denominá-lo com aquela marca/logo, ao que o estudante logo discordou.
Os representantes da escola, portadores da porção da cultura tida como de referência nesse processo de aculturação, mostram com frequência a sua condição de superioridade intelectual, social e econômica. Quando o diretor adentra a sala do professor François, exige que os estudantes se levantem para cumprimentá-lo e arremata que esses "não precisam se sentir humilhados" (idem, p. 14). Como ele sabia que os estudantes poderiam se sentir humilhados com tal atitude? O conteúdo latente dessa sua assertiva parece ser exatamente o seu contrário: sintam-se humilhados e se coloquem, literalmente, em seus lugares. No limite, essa fala reverbera os dizeres ainda presentes nos portões do campo de concentração de Buchenwald, nas redondezas da cidade alemã de Weimar, que anuncia "Jedem das seine", ou seja, "A cada um, o que merece". Quem deve dizer ao outro aquilo que merece? Quem é o outro? Qual é o seu valor? Atribuído por quem e por quê?
Interessante notar que, em momento algum, o professor se desculpa pelos seus deslizes, muitos dos quais graves, apesar de reclamar imperiosamente que seus estudantes o façam. A insolência ou soberba é uma característica apenas discente? O professor, assim como todos os demais atores sociais, parece não se perceber sujeito, integrante e construtor da própria realidade que percebe miserável. É sua própria miséria que acentua a carência. Se ele diz que uma estudante é uma idiota, é porque é idiota. "Eu te insulto se tiver vontade (...), e se eu digo você é idiota, é porque é verdade. Você pode ir embora, já te vi o bastante por hoje" (idem, p. 44). Quando os estudantes dizem que não aprenderam nada, apenas ignoram seu aprendizado, que se dá pelo processo de educação pela dureza sarcástica, dolorosamente apreendida. Um exemplo é a pergunta afirmativa "Vocês sabem o que são as Galeries Lafayette? Não, evidentemente vocês não sabem, pois fica em um outro bairro" (idem, p. 45). O escárnio e o tom sarcástico do professor, que dilaceram os argumentos desses estudantes, servem também como atitude que justifica a reação em cadeia dos demais colegas que se sentem impelidos a ridicularizar o seu colega, pois estão respaldados pelo professor, que age da mesma forma, conferindo a validade e a reprodução desse mecanismo de hospedagem do opressor. De forma geral, são raras as ocasiões de um desejo real de aproximação do professor com seus estudantes, embora elas existam, tal como no momento em que o professor François se sente de certa forma culpabilizado com a sentença de expulsão do estudante Souleymane. Por um instante, ele sente que o fracasso escolar de Souleymane representa também o fracasso de sua condição de docente. São notórios os sinais de que sua vitória se aproxima do sentido da vitória de Pirro, o mítico general grego que, na batalha de Ásculo contra os romanos, teria deixado escapar o comentário de que mais uma vitória daquelas e ele estaria perdido, por conta do enorme número de mortos de seu exército. Contudo, as cenas finais do filme representam outro campo de batalha, algo diferente das travadas nos tempos de Fanon. Souleymane é expulso não apenas da escola. Wey e sua mãe muito provavelmente permanecerão na França. Esmeralda lê A república e revida o olhar estupefato do professor que nunca poderia ter imaginado que uma estudante como ela pudesse ler tal livro. O jogo pedagógico continua; são os últimos momentos do filme. A bola rola no pátio, disputa alegre entre os times dos professores e dos estudantes. Ela quica e o jogo corre, pois todos estão coenvoltos na mesma partida. Torcida. Expectativa e esperança de dias melhores. O sol, manso, participa da festa. As linhas de campo são definidas provisoriamente e referendadas coletivamente. Camisas cosmopolitas de times diversos, o resultado desse jogo é um empate. Será esse mesmo o fim?
- BÉGAUDEAU, F. Entre os muros da escola Trad. de Marina Ribeiro Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
- BOURDIEU, P. Escritos de educação Petrópolis: Vozes, 2006.
- FANON, F. Os condenados da terra Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
- FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2001.
- FREIRE, P. Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978.
- SARTRE, J.P. Prefácio. In: FANON, F. Os condenados da terra Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Maio 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2009