Open-access VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL DE VERBAS PARA A EDUCAÇÃO PÚBLICA, DEPLEÇÃO DO FUNDO PÚBLICO E AUSTERIDADE

CONSTITUTIONAL BINDING OF FUNDS FOR PUBLIC EDUCATION, DEPLETION OF PUBLIC FUNDS, AND AUSTERITY

VINCULACIÓN CONSTITUCIONAL DE LOS FONDOS PARA LA EDUCACIÓN PÚBLICA, DEPLECIÓN DE LOS FONDOS PÚBLICOS Y AUSTERIDAD

RESUMO

O artigo sustenta que a austeridade inviabilizou a meta de 10% do produto interno bruto (PIB) para a educação pública, disputa decidida na sociedade civil em seus nexos com o Estado, envolvendo o bloco no poder e as classes subalternas (Poulantzas, 1981). Conceitua a austeridade conforme Mattei (2023), como estratégia do capital de enfraquecimento da classe trabalhadora e de inviabilização da soberania popular sobre os assuntos públicos. Focaliza quatro grandes eixos das políticas econômicas e a depleção de verbas públicas. Conclui que o objetivo central da austeridade na educação é a desconstitucionalização da vinculação das verbas educacionais, postulando que a luta pelos 10% do PIB exclusivamente para a educação pública terá de se dar no Estado ampliado, agregando o conjunto das classes trabalhadoras.

Palavras-chave
Financiamento da educação; Austeridade; Plano Nacional de Educação; Bloco no poder; Correlação de força

ABSTRACT

The article argues that austerity has made the goal of 10% of gross domestic product (GDP) for public education unfeasible, a dispute decided in civil society in its links with the State, involving the ruling bloc and the subaltern classes (Poulantzas, 1981). It conceptualizes austerity based on Mattei (2023) as capital’s strategy for weakening the working class and making popular sovereignty over public affairs unfeasible. It focuses on four main axes of economic policies and the depletion of public funds. It concludes that the central objective of austerity in education is the deconstitutionalization of the linking of educational funds, postulating that the fight for 10% of GDP exclusively for public education will have to take place in the expanded State, bringing together the working classes.

Keywords
Education funding; Austerity; National Education Plan; Bloc in power; Correlation of power

RESUMEN

El artículo argumenta que la austeridad ha hecho inviable el objetivo del 10% del PIB para la educación pública, una disputa decidida en la sociedad civil en sus vínculos con el Estado, que involucra al bloque gobernante y a las clases subalternas (Poulantzas, 1981). El artículo conceptualiza la austeridad con Mattei (2023) como una estrategia del capital para debilitar a la clase trabajadora y hacer inviable la soberanía popular sobre los asuntos públicos. Se centra en cuatro ejes principales de las políticas económicas y el agotamiento de los fondos públicos. Concluye que el objetivo central de la austeridad en la educación es la desconstitucionalización de la vinculación de los fondos educativos, postulando que la lucha por el 10% del PIB exclusivo para la educación pública tendrá que darse en el Estado ampliado, aglutinando al conjunto de las clases trabajadoras.

Palabras clave
Financiación de la educación; Austeridad; Plan Nacional de Educación; Bloque en el poder; Correlación de fuerzas

No contexto de elaboração do novo Plano Nacional de Educação (PNE) 2024–2034 e de engajamento em defesa da democracia política e da democracia econômica, o tema do financiamento da educação pública desborda as possibilidades da ação exclusiva das entidades especificamente educacionais, pois a disputa do fundo público (Behring, 2021) está inscrita na estratégia política das classes e das frações de classe desenvolvida na sociedade civil e em seus nexos com a complexa aparelhagem do Estado. A meta de 10% do produto interno bruto (PIB) destinado exclusivamente à educação pública requer a consideração da sociedade civil como “a verdadeira fonte e o teatro de toda história” (Fernandes, 2012a, p. 55).

O artigo sustenta que os pilares macroeconômicos da austeridade frustraram os preceitos constitucionais e inviabilizaram a meta 20 do PNE (2014–2024) (Lei nº 13.005/2014), que dispõe sobre a aplicação de 10% do PIB para a educação. Os gastos seguem estagnados em cerca de 5% do PIB (Brasil, 2022b; Amaral, 2023), percentual semelhante ao do Plano Real (4,5% do PIB, em 1995). Tal fracasso não decorre da propalada crise fiscal que teria provocado obstáculos orçamentários intransponíveis. A sua inviabilização resulta da investida de setores burgueses organizados na sociedade civil, especialmente os que atuam nos negócios do “capital comércio de dinheiro” (Marx, 2017). A posição dessas frações no bloco no poder (Poulantzas, 1981) e nos nichos estatais nos quais as decisões econômicas e orçamentárias são tomadas tem permitido a conversão de seus propósitos hostis aos direitos sociais em políticas de Estado.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial condicionaram a renegociação da dívida pública à realização de reformas constitucionais que impactassem na redução dos gastos públicos. Com efeito, na virada dos anos 1970 para os 1980 ocorreram fissuras no bloco no poder decorrentes do esgotamento do padrão de acumulação da industrialização por substituição das importações. Esse período corresponde à ascensão da burguesia internacionalizada (proprietários do capital financeiro, indústrias multinacionais mundialmente integradas), ao fortalecimento de outras frações da burguesia interna, especialmente operadores do setor de commodities, construção civil e processamento de alimentos. Depois da moratória em 1987, já no contexto de hegemonia crescente da burguesia internacionalizada, o FMI firmou acordos para realizar um vasto Programa de Ajuste Estrutural para reduzir os gastos com os direitos sociais e assegurar superávits primários para ampliar o pagamento da dívida, renegociada no contexto do Plano Brady (1989) (Almeida, 2014). Diversos ajustes foram realizados no bojo de acordos com o FMI até os anos 2000. Após 2005, embora sem depender dos empréstimos do FMI, o país internalizou em suas políticas econômicas as bases da austeridade com o tripé metas de inflação, câmbio flutuante e elevados superávits, a exemplo do pactuado em 2004 (4,25% do PIB), que permaneceram, em diferentes níveis, até o presente (2024).

A nervura central deste artigo propugna que a elaboração da Constituição Federal de 1988 condensou uma nova correlação de forças no país resultante do inédito avanço das lutas dos subalternos contra a ditadura empresarial-militar (Fernandes, 2012b), lutas coetâneas do aprofundamento da crise estrutural do capitalismo dos anos 1970 (Mandel, 1982). Entre 1975 e 1988 irromperam massivas lutas das classes trabalhadoras sem as quais a Constituição Federal não teria assegurado conquistas importantes, apesar da correlação de forças muito negativa no Congresso Nacional (entre os 559 parlamentares constituintes, apenas 120 participavam do chamado campo progressista). No caso da educação, sobressaíram vitórias como a gratuidade, o dever do Estado na garantia do direito à educação, o Regime Jurídico Único, as vinculações orçamentárias, a autonomia universitária, a assistência estudantil e a liberdade de cátedra.

A vinculação constitucional de gastos sociais foi uma conquista organizada politicamente pelo Fórum Nacional de Educação na Constituinte, que centrou suas reivindicações no seguinte enunciado:

Princípios da campanha nacional em defesa da escola pública gratuita para todos:

“l – A educação é direito de todo cidadão, sendo dever do Estado oferecer ensino público, gratuito e laico para todos, em todos os níveis; 2 – O Governo Federal destinará nunca menos de 13% e os Governos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios aplicarão, no mínimo, 25% de sua receita tributária na manutenção e desenvolvimento do ensino público e gratuito; 3 – As verbas públicas destinam-se exclusivamente às escolas públicas [...]; 4 – A Democratização da escola em todos os níveis deve ser assegurada quanto ao acesso, permanência e gestão”

(Fernandes, 1987, p. 4416, grifos nossos).

Para dimensionar a conquista da vinculação de verbas na nova Constituição, é relevante registrar que a autocracia burguesa que caracterizou a ditadura empresarial-militar de 1964 instituiu pela força um garrote nos gastos com os direitos sociais. A expansão dos ensinos fundamental, médio e superior se deu de forma concomitante ao estrangulamento orçamentário (Algebaile, 2009) e ao privilegiamento da educação privada. Em 1970, o montante de recursos foi inferior a 2,8% do PIB para toda a educação, incluindo gastos que não se coadunam com o conceito de manutenção e desenvolvimento do ensino (Pinto, 2018, p. 850). As derrotas relativas das frações burguesas dominantes no texto constitucional exigiram ajustes estratégicos. Sob a liderança da burguesia internacionalizada, a coalizão burguesa desde então vem erodindo as conquistas constitucionais por ações empreendidas em nome da austeridade nos bastiões do Estado sob controle do bloco no poder, como discutido no presente artigo.

Renomeado como Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP), o fórum inseriu na agenda educacional a necessidade de vinculação dos gastos em educação ao PIB, no “Plano Nacional de Educação: Proposta da Sociedade Brasileira”, elaborado no II Congresso Nacional de Educação, em 1997 (Nogueira; Tavares, 2020). O uso de uma referência como o PIB, embora não isento de polêmicas (Smith, 2024, p. 415-460), foi uma necessidade objetiva, pois as políticas de austeridade já haviam consolidado mecanismos de burla à vinculação constitucional como a expansão relativa das contribuições sociais – ferramenta de arrecadação sobre a qual não incide a vinculação dos gastos em educação (Pinto, 2018).

Na primeira seção, o artigo discute os nexos entre Estado e sociedade civil e apresenta o conceito e o significado de bloco no poder referenciado em Poulantzas (1981). Na seção seguinte, conceitua a austeridade (Mattei, 2023), defendendo que esta não pode ser reduzida ao ajuste fiscal, pois seus objetivos centrais são enfraquecer a classe trabalhadora e inviabilizar a soberania popular sobre os assuntos públicos. Na terceira seção, busca comprovar, por meio da análise de medidas econômicas, que as conquistas constitucionais de 1988 foram sendo corroídas pela depleção do fundo público destinado aos gastos sociais, afetando fortemente a educação. Destaca que a perda de recurso decorre da destinação de parte substantiva do orçamento geral da União para os operadores do capital comércio de dinheiro e de medidas contrarreformistas instituídas por uma tecnocracia funcionante disposta a encaminhar as demandas do bloco no poder. Finalmente, na conclusão, faz indicações sobre os desafios para assegurar a meta de 10% do PIB exclusivamente para a educação pública no bojo do Regime Fiscal Sustentável (RFS), que, conforme o bloco no poder, pressupõe como corolário a desvinculação das verbas para a educação assegurada pela Constituição Federal de 1988, completando uma etapa decisiva na desconstitucionalização dos direitos sociais fundamentais.

Estado e Sociedade Civil: Bloco no Poder e as Lutas de Classes

Fernandes (2012a, p. 215) enfatiza que o Estado é o elemento “secundário” e “determinado”; a sociedade civil, o elemento “principal” e “determinante”. As políticas do Estado expressam a resultante da correlação de forças na sociedade civil: “Todas as necessidades da sociedade civil – qualquer que seja a classe no poder – passam pela vontade do Estado” (Fernandes, 2012a, p. 215). Essas necessidades constituem-se como “vontade do Estado” por meio do que Gramsci (2012) denominou de aparelhos privados de hegemonia (APH), conformando o Estado integral (Estado ampliado). O fato de o Estado ser o elemento determinado não torna sua análise secundária; é por seu intermédio que a vontade da sociedade civil se expressa como prática.

Isso significa que é não possível restringir a análise das políticas educacionais ao âmbito do que Gramsci (2012) denominou de Estado estrito senso. O método de investigação considera a unidade e a distinção entre Estado e sociedade civil, recusando o direcionamento das investigações apenas para os processos (intra)parlamentares e intragovernamentais. As políticas de financiamento estão longe de estar circunscritas ao aparato intraestatal – ministérios, parlamento, Judiciário e demais regulamentações. Os embates parlamentares são cruciais, porque existem movimentos subjacentes na esfera da sociedade civil que se confrontam em torno de concepções e projetos distintos. A resultante da relação de forças não pode ser avaliada exclusivamente pelo teor intrínseco das leis, como é possível exemplificar com a Lei nº 13.005/2014, que estabeleceu a meta de 10% do PIB para a educação pública. Inexiste um Estado ético capaz de civilizar autonomamente a sociedade civil.

Destacadas as preocupações com a reificação do Estado como sujeito autônomo, é necessário colocar em relevo suas particularidades. “O Estado não deve ser considerado nem como um sujeito nem como um objeto, mas como a condensação material de uma relação de força” (Poulantzas, 1981, p. 84). “O Estado capitalista apresenta uma especificidade institucional própria”, possui “materialidade enquanto aparelho capitalista de Estado” (Poulantzas, 1981, p. 84) e não pode ser dissolvido na economia nem nas relações de produção. Como aparelho, pode absorver e conduzir consequências de crises políticas advindas dos confrontos entre classes e frações de classe sem que essas crises se convertam em crises do Estado – embora, no fascismo e nas ditaduras, esses embates possam desbordar muito mais facilmente em crises na estrutura estatal. “É nesse sentido que se deve entender a frase de Lenine de que a democracia parlamentar é o melhor invólucro do capitalismo” (Poulantzas, 1981, p. 85).

Decorrem da formulação de Poulantzas (1981, p. 87) duas questões cruciais:

  • O Estado condensa em si as contradições de classes e frações de classe – portanto, é atravessado e constituído pelas lutas de classes e frações de classe;

  • No Estado se encontram não apenas as classes dominantes, mas também a relação das classes dominantes com as classes dominadas; as lutas de classes encontram-se também no interior do Estado, atravessando-o.

Essas contradições foram teorizadas com o conceito de bloco no poder. Este compreende um conjunto de classes e frações de classe dominantes dirigidas em termos políticos pela classe ou fração que tem papel dominante, mesmo ideologicamente:

Por bloco no poder, entendo as classes e frações de classes que ocupam o espaço da dominação política, quer dizer a ou as classes e frações dominantes. [...] Em contrapartida, aquelas classes, entre as classes dominadas, que têm uma função particular em relação ao bloco no poder, quer dizer as que apoiam muito claramente o poder do bloco no poder [são] classes-apoios do bloco no poder, como [...] a pequena burguesia, as frações do campesinato etc. Portanto, quando falo de bloco no poder, não me refiro ao conjunto de camadas que apoiam o poder de Estado, refiro as que participam no espaço da dominação política, portanto aquelas que têm áreas de poder próprias no seio do aparelho de Estado

(Poulantzas, 1981, p. 91).

As contradições entre o bloco no poder e as classes dominadas, “incluindo as classes-apoio, que atravessam o Estado, mas de modo muito particular” (Poulantzas, 1981, p. 92), são as mais decisivas.

Para discutir o tema central do presente artigo – o fundo público nos gastos educacionais –, é imperioso distinguir o modus operandi e as prerrogativas do bloco no poder e das classes ou frações de classe subalternas. Enquanto os setores do bloco hegemônico possuem bastiões de poder relativamente autônomos no seio do Estado (como no caso do orçamento, do Banco Central, da alta hierarquia da área econômica, de agências de avaliação de riscos), “a existência e a luta das classes dominadas não se manifestam por células autônomas de poder próprio dessas classes (incluindo as classes-apoios) no seio do Estado” (Poulantzas, 1981, p. 92).

Ao contrário da posição reformista, penso que não se pode considerar que as classes dominadas podem se apropriar do Estado, aparelho por aparelho, utilizando ramos ou aparelhos do Estado para neles constituírem poderes barricados próprios

(Poulantzas, 1981, p. 92).

Como as classes trabalhadoras não possuem territórios próprios de poder no seio do Estado, a alteração das políticas econômicas depende da correlação de forças na sociedade civil. Longe das concepções economicistas, é preciso reiterar a sociedade civil como a fonte e o teatro da história, nos quais a cultura popular circula, forjando o senso comum e a constituição da hegemonia. Na sociedade civil ocorrem as relações econômicas, a exploração do trabalho, a extração e apropriação da mais-valia, unidade dialética de base e superestrutura, e as lutas de classes (Gramsci, 2012). A sociedade civil mantém uma relação de unidade e distinção com o Estado na qual os APH estruturam o Estado ampliado. O propósito dos APH e de seus intelectuais é lograr hegemonia política e cultural de determinadas frações de classe sobre toda a sociedade, conformando o Estado.

Em função da particularidade capitalista dependente, as frações burguesas estão imersas no terreno ideológico das frações hegemônicas. É a austeridade que assegura a coesão das frações dominantes do bloco no poder, tanto em suas características dirigentes como no domínio sobre as demais frações de classe. A austeridade, nesse prisma, é um programa político com os objetivos de ampliar a exploração, reconfigurar a distribuição de renda e redefinir o fundo público. Como ameaçou o ex-ministro Paulo Guedes (apud Dias, 2019), a austeridade se coaduna-se com a autocracia. A austeridade, é importante frisar, germinou no fascismo italiano com Mussolini, Pantaleoni e De Stefani (Mattei, 2023).

Austeridade e Autocracia

O trabalho analítico de compreensão do sentido da austeridade – principal força motriz da política e da economia sob o capitalismo – não pode estar circunscrito ao período compreendido entre o golpe de 2016 e o governo Bolsonaro, sob pena de subestimarmos a longa duração das estratégias do capital para a atualização de sua hegemonia nos planos internacional e, particularmente, na sociedade brasileira. O espectro da autocracia burguesa está sempre presente, como é possível depreender do golpe empresarial-militar de 1964.

Em uma entrevista de grande relevância histórica para compreender o movimento do bloco no poder na virada de 2015 para 2016 (Pinto, 2015), Armínio Fraga, um dos intelectuais da Casa das Garças1, um APH que vocaliza frações burguesas bem posicionadas no bloco no poder e referência destacada do documento Uma ponte para o futuro, delineou os objetivos e as motivações reais do impeachment. A imagem então construída era a de que a alternativa à destituição de Dilma Rousseff era o Armagedom: “O Brasil caminha para o caos profundo se não mudar de rota” (apud Pinto, 2015). “É preciso que haja um grupo suficiente coeso” (apud Pinto, 2015) – isto é, coesão no bloco no poder em prol da destituição da presidenta. Um dos eixos da sua crítica segue a mesma linha dos inimigos da Constituição Federal: “O primário negativo [gastos públicos maiores que as receitas, exceto despesas com juros]” (apud Pinto, 2015). Daí conclui Fraga: “[É preciso] desvincular tudo” (apud Pinto, 2015).

A convocatória da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp)2 em defesa do golpe confirma que o bloco logrou unidade. Mesmo uma democracia limitada, na qual drásticos cortes sociais foram empreendidos pelo ministro da Fazenda de Dilma Rousseff, Joaquim Levy, foi considerada um obstáculo ao avanço da austeridade.

Michel Temer reconhece que a resistência à agenda de Uma ponte para o futuro foi a causa do impeachment:

“Lançamos um documento chamado ‘Ponte para o Futuro’ [...] sugerimos ao governo que adotasse as teses que nós apontávamos naquele documento”, afirmou Temer. “Como [...] não houve a adoção, instaurou-se um processo que culminou, agora, com a minha efetivação como presidente da República

(Carta Capital, 2016).

Mais do que uma interrupção da sequência de governos identificados com a centro-esquerda, a destituição do governo constitucional anunciou um marco na história de reafirmação do bloco no poder em defesa do aprofundamento da austeridade.

O Estado maior do capital se mostrou capaz de operar por meio de prepostos que efetivaram um conjunto de (contrar)reformas estruturais (trabalhista, previdência e a constitucionalização do corte de gastos sociais). Com a agudização das contradições entre austeridade e democracia, as saídas defendidas pelo bloco no poder envolveram apoio a um governo de extrema-direita de inequívoco cariz fascistizante, como Bolsonaro em 2018. O cimento ideológico das contrarreformas não é um vago neoliberalismo, mas um corpus teórico-político com longa tradição nas ofensivas do capital contra o trabalho, a austeridade, tal como conceituada por Mattei (2023). Embora possa ser encaminhada por governos progressistas, inexiste austeridade democrática, pois o seu cerne é o esvaziamento da soberania popular sobre os assuntos públicos.

O conjunto de princípios que rege a austeridade, fio condutor da categorização dos fenômenos da economia e da educação aqui estudados, foi sistematizado em A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, de Mattei (2023). A economista revela as raízes da austeridade como direção e domínio burguês em seu propósito de derrotar a classe trabalhadora e usurpar seus direitos, culminando no fascismo. Recolhendo prescrições econômicas dos documentos-síntese dos principais congressos econômicos da Europa do início dos anos 1920 para a saída da crise, constatou que a austeridade havia sido forjada como nova estratégia para orientar um modus operandi econômico das políticas governamentais e o “comportamento” da classe trabalhadora, massacrada durante a Primeira Grande Guerra. A criação de uma “casta” de tecnocratas se tornou uma das principais estratégias burguesas utilizadas para conferir legitimidade às escolhas políticas e econômicas dos governos, pois se difundia que seus representantes eram mais bem habilitados tecnicamente para a tomada de decisões, e essas escolhas eram supostamente técnicas e neutras.

Mattei (2023) sintetiza as principais nervuras do pensamento da austeridade (fiscal, monetária e industrial) identificando um modelo de intervenção social voltado para a usurpação dos direitos e a participação da classe trabalhadora no Estado. Com uma metodologia que dialoga com a autora, identificamos as manifestações concretas do conteúdo dos princípios subjacentes à racionalidade da austeridade nos documentos-síntese da burguesia pró-austeridade, apresentados adiante, em diferentes momentos histórico-políticos recentes.

Poulantzas (1981) assinala que a política não é um reflexo mecânico da economia. O processo de fascistização colocado em ação de modo sui generis por Bolsonaro deflagrou arestas avaliadas como negativas para a acumulação do capital em diversos ramos da economia. Entre as mais relevantes, o negacionismo como método de governo no período da pandemia de Covid-19, a exacerbação de conflitos socioambientais, o isolacionismo ideológico da política externa, entre outros. Por isso, diversas frações burguesas do bloco, especialmente a burguesia interna, bancos, indústria e segmentos organizados na Faria Lima, reaproximaram-se de Lula da Silva, condicionando o apoio à permanência da austeridade (Singer; Rugitsky, 2023). Iniciativas como o Regime Fiscal Sustentável (RFS) de Fernando Haddad, a composição do Ministério da Educação e sua parceria com os projetos de “reconstrução” da educação liderados por APH empresariais são consequências da aliança pró-austeridade.

A racionalidade da austeridade obstrui a participação da classe trabalhadora nas decisões sobre os recursos provenientes da mais-valia, afastando da agenda as imperiosas reformas estruturais que favoreçam os mais pauperizados. As definições sobre o orçamento e as prioridades econômicas do país seguem a gramática tecnocrática. Na composição parlamentar da 57ª Legislatura (2023–2027), o bloco majoritário, liderado pelo presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira, tem exigido o aumento do valor das emendas parlamentares, que em 2024, conforme a Lei Orçamentária, chegarão a R$ 53 bilhões (Vinhal, 2023), e, o que compõe o cerne da austeridade, a renúncia de tributos como a política de desoneração da folha, que custará R$ 26,3 bilhões em 2024 (Ministério da Fazenda, 2024). Entre 2021 e 2022, o valor dos benefícios creditícios no Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) passou de R$ 15 bilhões em 2021 para R$ 41,4 bilhões em 2022 (Brasil, 2023c). Tais ações encolhem o fundo público destinado aos gastos sociais. Desde que as despesas primárias estejam sendo reduzidas, o jogo político torna-se aceitável para os arautos da austeridade. O encolhimento do orçamento primário, o foco da Emenda Constitucional nº 95/2016 e do RFS, reduz os gastos com os direitos sociais, ampliando a possibilidade de crises políticas.

A despolitização refere-se à retirada do Estado das atividades econômicas, que por sua vez permitiu 1) que as relações de produção [...] retornassem ao comando das forças impessoais do mercado [...] 2) que as decisões econômicas [...] [ficassem] isentas [de] escrutínio democrático, especialmente por meio do estabelecimento e proteção de instituições econômicas “independentes”; e 3) que [...] [se promovesse] uma concepção da teoria econômica como “objetiva” e “neutra” e, por isso, transcendendo as relações de classe – o tipo de onisciência que fundamentava um dos fins da austeridade: produzir consenso

(Mattei, 2023, p. 192).

Para atingir esse status de neutralidade da economia, os especialistas econômicos construíram um consenso no qual o trabalho não é mais o motor central da máquina econômica (Mattei, 2023).

Embora as políticas de austeridade possam não ser identificadas pelo nome, elas salientam os tropos mais comuns da política contemporânea: cortes orçamentários [...], tributação regressiva, deflação, arrocho salarial e desregulamentação das relações trabalhistas. Tomadas em conjunto, essa gama de políticas consolida a riqueza existente e a primazia do setor privado e tende a ser afiançada como chaves econômicas que conduzirão a nação para dias melhores

(Mattei, 2023, p. 18).

Trata-se de apresentar à classe trabalhadora a alternativa de cortar a própria carne enquanto o bloco no poder assume o controle da navalha.

A Desconstitucionalização do Fundo Público pela Austeridade

São classes e frações de classe do bloco no poder que atuam diretamente ou por meio de prepostos e tecnocratas nos espaços de poder (Poulantzas, 1981) que definem, mediante contrarreformas, a ordem de grandeza dos gastos públicos de fato executados na função educação. O processo de reversão das conquistas orçamentárias de 1988 possui quatro grandes condensações de forças:

  • A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), no contexto do Plano Real (1994);

  • A Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016 e Uma ponte para o futuro;

  • O Regime Fiscal Sustentável (RFS) (2023);

  • A depleção do fundo público pelos crescentes deslocamentos deste para o setor privado-mercantil.

Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal

No período de ocaso da ditadura empresarial-militar, a Crise da Dívida de 1982 deflagrou mudanças profundas no bloco no poder, que não obteve controle pleno da Constituinte, o que possibilitou o aumento das despesas primárias. Desde a promulgação da Constituição Federal, os setores dominantes pretenderam efetivar sua reforma, objetivo inviabilizado pela crise do governo Collor, que culminou com seu impeachment.

Nos anos 1990, os rearranjos alicerçados pelo FMI e Banco Mundial e pelo Plano Brady pesaram favoravelmente na correlação de forças em prol da burguesia internacionalizada, com consequências tanto no plano interno como em âmbito externo. A vitória de Collor e o desfecho “dentro da ordem” de seu impeachment evidenciaram o triunfo do bloco no poder na direção da reprodução da ordem social. A maior explicitação da capacidade de iniciativa política dos setores dominantes foi o estabelecimento do Plano Real, como ressalta Fiori (1994):

O Plano Real não foi concebido para eleger [Fernando Henrique Cardoso] FHC, foi FHC que foi concebido para viabilizar no Brasil a coalizão de poder capaz de dar sustentação e permanência ao programa de estabilização do FMI, e dar viabilidade política ao que falta ser feito das reformas preconizadas pelo Banco Mundial.

O objetivo de corroer as conquistas sociais da Constituição Federal finalmente encontrou as condições objetivas no plano político. Em curto espaço de tempo, medidas como o Plano Diretor da Reforma do Estado, da (contrar)reforma administrativa (EC nº 19/1998) e da (contrar)reforma da previdência (EC nº 20/1998) foram aprovadas, redefinindo o serviço público.

Apesar da regressividade dos tributos, das isenções e da imensa sonegação, as receitas tributárias mantiveram-se em patamar elevado. No período pós-constitucional, as receitas saltaram de 21,89% do PIB (Afonso; Villela, 1991), em 1988, para 32% (2004, 2008, 2012, 2016, 2020) (Pires, 2021). Entretanto, no período que antecedeu o Plano Real, houve redução sistemática de gastos educacionais federais. Considerando 1989 como índice 100, em 1991 era de 57, em 1992 de 49,2 e em 1993 de 73,1 (Oliveira, 1999). No Plano Real os gastos federais em educação e cultura corresponderam a 1,57% do PIB em 1994 e a 1,12% em 1995, corroborando o significado do Plano Real apontado por Fiori (1994). No rastro das crises mundiais em 1998, foi aprovado um pacote de ajuste fiscal determinando a redução de gastos da administração em 2,5% do PIB, processo estreitamente monitorado pelo FMI (Almeida, 2014) e que obstruiu de modo radical as bases do futuro PNE.

A estratégia política da austeridade foi bem-sucedida. O objetivo de afastar a classe trabalhadora dos assuntos públicos pode ser evidenciado pelo fato de que a ação política em defesa da educação pública não foi liderada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT). Parte dos grandes sindicatos da educação, então filiados à CUT, almejou a criação de um Departamento Nacional de Trabalhadores da Educação que inserisse a educação nas lutas gerais da classe trabalhadora, objetivo não concretizado. A questão educacional foi dirigida pelo FNDEP com foco na Lei de Diretrizes e Bases e no PNE.

Os revezes nas referidas leis gerais confirmam que a luta pela educação pública necessita envolver outros segmentos da classe trabalhadora, colocando em relevo outros prismas das políticas em curso no Estado. A debilidade da reação ao veto do estabelecimento de 7% do PIB para a educação previsto na Lei nº 10.172/2001, ecoando os termos do acordo com o FMI, não pode ser dissociada da desvinculação da agenda educacional em relação às lutas gerais das classes trabalhadoras.

Como consequência dos acordos (ou intentos) de renegociação da dívida, a complexa aparelhagem estatal foi sendo redefinida com o propósito de operacionalizar as medidas de austeridade. Um dos eixos foi a fragilização da autonomia dos entes subnacionais com a limitação de gastos com pessoal (Lei Complementar nº 82/1995) e de acesso ao setor bancário, assim como de privatizações de empresas de energia e bancos públicos. Entre as reformulações, destacam-se a criação da Secretaria do Tesouro Nacional, em 1986, a obrigatoriedade de registros da execução orçamentária (1987) e de pagamento de pessoal no Sistema Integrado de Administração Financeira até mais recentemente, no período autocrático do governo Bolsonaro, e a autonomia formal do Banco Central (Lei Complementar nº 179/2021).

As medidas econômicas, definidas e operacionalizadas nos bastiões sob direção do bloco no poder (Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Secretaria do Tesouro Nacional, Ministério da Economia, Banco Central) (Leite, 2011), afetaram severamente os gastos com os direitos sociais. No período, a mais abrangente delas foi a LRF, instituída pelo Projeto de Lei Complementar nº 18/19993, materializado como Lei Complementar nº 101/2000. Esta institui alguns dos pilares econômico-orçamentários da austeridade – o equilíbrio fiscal, a disjunção entre gastos primários e financeiros, a redução da relação entre a dívida pública e o PIB –, buscando conter as despesas primárias para obter superávits primários por meio de medidas coercitivas, como no caso das restrições de gastos com pessoal tipificadas como crime (prevista na Lei nº 10.028/2000) – antecipando as bases utilizadas no impeachment de Dilma Rousseff.

Uma das consequências dessa lei foi o controle de despesas de pessoal (não se pode ultrapassar 60% da receita corrente líquida), afetando especialmente a educação nos municípios (nestes, os gastos com o funcionalismo pesam mais). Esse processo naturalizou, nas décadas seguintes, os contratos precários no serviço público – na rede estadual, quase 200 mil contratos deixaram de ser estatutários na última década, e mais de 200 mil postos passaram a ser ocupados por docentes temporários –, a ausência de reajustes para corrigir perdas inflacionárias, confirmando a interdependência entre a LRF e a reforma administrativa (EC nº 19/1998).

Resulta dessa situação uma forte colisão, em diferentes proporções, conforme os municípios e estados, com a garantia de direitos fundamentais como a educação pública e a saúde pública, que “agride os princípios fundamentais do pacto federativo ao interferir na autonomia de estados e municípios” (Miranda, 2001, p. 58). A tendência de redução de gastos com educação pode ser vista mediante um estudo focalizando o estado de Minas Gerais:

As despesas com a função educação representavam 28,0% em 1999 e 22,0% em 2002. Após o início do governo Aécio Neves, em 2003, esse valor percentual decresceu passando para 19,6% em 2004, 12,4% em 2006 e 12,2% em 2008. O decréscimo continuou nas despesas com a função educação perfazendo 11,7% em 2009 e 11,5% em 2011

(Brito; Braga, 2016, p. 258).

O Plano Real engendrou o Fundo Social de Emergência (FSE) (EC de Revisão nº 1, de 1º/3/1994), alterado pela EC nº 10, de 4 de março de 1996, como Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), vigorou até 31 de dezembro de 1999 e foi alterado novamente como Desvinculação das Receitas da União (DRU) (EC nº 27/2000), cuja vigência foi prorrogada em 2011 pela EC nº 68/2011, outra vez em 2016 pela EC nº 93 até 20234 e em 2023 pela EC nº 132/2023, até dezembro de 2032.

Em análise sobre os conflitos em torno do financiamento da educação nos 30 anos subsequentes à promulgação da Constituição Federal de 1988, Pinto (2018, p. 853) aponta que a primeira versão do FSE objetivava o “saneamento financeiro da Fazenda Pública Federal e de estabilização econômica, cujos recursos serão aplicados prioritariamente no custeio das ações dos sistemas de saúde e educação”. Em seguida, traduz o montante de recursos sonegados à educação por meio da referida sequência de mecanismos de desvinculação de receitas de impostos:

Durante os 18 anos em que estiveram em vigor para os recursos educacionais, os mecanismos de desvinculação da receita de impostos da União (FSE, FEF e DRU) confiscaram 2,9% do PIB que seria destinado ao ensino. Do ponto de vista didático, os 18% de impostos da União previstos na CF para [manutenção e desenvolvimento do ensino] MDE se transformaram em 14,4%

(Pinto, 2018, p. 853).

As decisões de política econômica exarada dos bastiões do bloco no poder nos anos 1990 e 2000 colidiram com os preceitos legais que deveriam assegurar patamares mínimos de recursos para todos os entes federados. As medidas econômicas (LRF, DRU e seus congêneres) alcançaram a própria legislação do financiamento da educação. Com a aprovação da EC nº 14/1996, o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) estabeleceu que a União teria um papel complementar para assegurar aos entes subnacionais o valor aluno-ano quando este estivesse abaixo do mínimo nacionalmente definido, no entanto a ordem de grandeza de recursos adicionais da União nunca assegurou um gasto-aluno compatível com a garantia do dever do Estado em prover educação pública de qualidade. A legislação estipulou um prazo de cinco anos para o atingimento de recursos por aluno que garantissem um “padrão mínimo de qualidade de ensino” (Brasil, 1996 apud Pinto, 2018), entretanto o Custo-Aluno-Qualidade inicial (CAQi) não foi concretizado.

Emenda Constitucional Nº 95/2016: A Constitucionalização da Redução dos Gastos Sociais

O bloco no poder é dinâmico, expressa correlações de forças intraburguesas (entre a burguesia internacionalizada e as frações burguesas internas) e destas com as classes trabalhadoras. O artigo converge com a periodização do sistema de acumulação neoliberal adotada por Saad Filho e Morais (2018). O período entre 1994 e 2005 pode ser caracterizado como neoliberal convencional, cujas bases foram implementadas no Plano Real e reafirmadas na “Carta aos Brasileiros”, que referenciou o primeiro governo Lula; o período 2007–2014 foi definido como de neoliberalismo novo desenvolvimentista; 2015 – 2018 foram anos de crise e retomada do neoliberalismo convencional; e 2019–2022, de neoliberalismo explicitamente autocrático.

A meta de 10% do PIB no PNE de 2014 foi aprovada nesse contexto de mobilização do setor. A luta em prol da educação pública agregou diversas entidades da área e assumiu presença no espaço público, como na manifestação de agosto de 2011, que reuniu 20 mil pessoas em Brasília (DF), período acompanhado de greves em diversos estados da federação.

Entretanto, a exemplo do PNE anterior, as políticas econômicas interditaram sua efetiva aplicação. Em 2015 ocorreu um giro na política econômica radicalizando o ajuste fiscal, e, no ambiente de preparação do golpe, foi publicado o documento Uma ponte para o futuro, que pressupunha a completa desvinculação de verbas prevista na Constituição Federal. O “novo regime fiscal” dele derivado voltado para “equilibrar as contas públicas” culpabilizava abertamente as indexações e vinculações constitucionais pelo dito “aumento desenfreado” das despesas públicas, atacando especificamente a saúde e a educação:

No Brasil, a maior parte do orçamento chega ao Congresso para ser discutido e votado, com a maior parte dos recursos já previamente comprometidos ou contratados, seja por meio de vinculações constitucionais, seja por indexação obrigatória dos valores. [...] Esta é uma das razões principais porque as despesas públicas têm crescido sistematicamente acima do PIB. [...] é preciso assegurar autonomia do orçamento [...] [acabando] com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação

(PMDB, 2015, p. 8-9, grifo nosso).

O PNE (2014) é coetâneo da gestação do golpe efetivado em 2016. Na sequência do golpe, a aprovação da EC nº 95/2016 instituiu “a mais rígida política fiscal colocada em prática no mundo” (Tavares; Vaz; Deccache, 2024). A sua aprovação impôs uma derrota precoce da meta de financiamento da educação no PNE e, consequentemente, deste como um todo, pois a ampliação e melhoria do sistema educacional brasileiro dependem do aumento dos recursos destinados à educação.

A EC nº 95/2016 significou redução do mínimo constitucionalmente estabelecido: “Houve um achatamento entre a diferença da execução orçamentária e o mínimo constitucional, evidenciando que o governo promoveu tantos cortes na área da educação que o gasto da União já é menor que o antigo mínimo constitucional” (Resende; Dweck, 2022, p. 11). De fato, a referida EC resultou na aplicação de 17,88% da Receita Líquida de Impostos em educação em 2021 (contra os 25,77% de 2016). Essa redução é fruto do dramático corte de 44% nas despesas discricionárias no período (correspondentes ao custeio e aos investimentos da educação). Quanto aos investimentos públicos das universidades federais (que incluem obras e material permanente), “o volume de recursos destinados aos investimentos em 2023 corresponde a 7% do montante disponibilizado em 2014, isto é, um corte de 93%” (Resende; Dweck, 2022, p. 14).

O governo Bolsonaro lançou, em 2019, o Plano Mais Brasil, composto de três projetos de EC, as Propostas de EC (PEC) nº 186, 187 e 188, denominadas, no portal do Ministério da Economia, respectivamente: “Emergencial”, “Fundos Públicos” e “Pacto Federativo”. A PEC da Descentralização, da Desindexação e da Desvinculação, firmada pelos senadores Fernando Bezerra, Simone Tebet, entre outros, objetivou flexibilizar os gastos com educação e saúde e inviabilizaria programas do FNDE, visto que o Salário-Educação seria totalmente direcionado aos entes subnacionais.

O Plano Mais Brasil é uma ampla e decisiva agenda de transformação do Estado. O seu objetivo é criar condições para impedir novas crises das contas públicas, como a que o país atravessou nos últimos anos, e oferecer estabilidade fiscal à União e aos entes subnacionais

(Brasil, 2020).

As emendas foram propostas “com o objetivo de reduzir gastos obrigatórios, revisar fundos públicos e alterar as regras do Pacto Federativo”, que propõem, entre outras medidas, “a redução da jornada com redução de remuneração dos servidores, a redução de repasses a estados e municípios, permitir a compensação dos mínimos de saúde e educação” (Dweck, 2020, p. 93). As três emendas propunham um conjunto de mecanismos de gatilho para o acionamento de medidas de contenção de despesas da União, estados, municípios e poderes autônomos, a destinação de superávits financeiros de fundos para o pagamento da dívida pública e a revisão seletiva de benefícios fiscais. Em março de 2021, a PEC nº 186 foi aprovada pelo Congresso Nacional e convertida na EC nº 109/2021, incorporando medidas presentes nas três PEC citadas, tornando permanentes medidas de ajuste fiscal.

Na Nota Técnica nº 9/2021, a Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados orçou a estimativa do estoque do superávit financeiro de fontes de todos os poderes em R$ 381,9 bilhões relativa ao exercício de 2020 (Tavares et al., 2021). O total destinado ao auxílio emergencial representou 11,5% do caixa dos fundos, enquanto os demais R$ 337,9 bilhões estariam disponíveis para o pagamento da dívida pública. A redução progressiva dos benefícios fiscais propugnada pela EC nº 109 não impacta o setor privado da educação. Entre as ressalvas para a extinção dos benefícios fiscais, estão os incentivos e benefícios “concedidos a entidades sem fins lucrativos” ou os “concedidos aos programas estabelecidos em lei destinados à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais para estudantes de cursos superiores em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos” (Brasil, 2021).

Outra medida que restringiu o orçamento da educação foi a Lei Complementar nº 194/2022, que limitou a alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo. Segundo estudo do Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal, os estados perdem R$ 83,5 bilhões anuais. Por consequência, há a perda de no mínimo R$ 21 bilhões por ano destinados à manutenção e ao desenvolvimento do ensino (apud Rede Pesquisa Solidária, 2021).

A austeridade autocrática foi consolidada com a usurpação da soberania popular no serviço público. A medida mais estruturante foi a PEC nº 32/2020, que converteu o Estado em esfera subsidiária, determinando a supremacia do privado diante do público, inviabilizando os direitos sociais. O alcance das medidas de Bolsonaro explica o apoio de frações burguesas à via da austeridade autocrática.

Regime Fiscal Sustentável e a Desconstitucionalização da Vinculação de Verbas Educacionais

O RFS, instituído pela Lei Complementar nº 200/2023 (Brasil, 2023b), foi apresentado como uma superação da EC nº 95/2016, que possibilitaria a retomada de políticas desenvolvimentistas e do protagonismo estatal em setores estratégicos da economia, no entanto ele mantém a lógica da compressão dos gastos sociais, pois reafirma a distinção entre despesas primárias (a serem controladas) e despesas financeiras (sem as mesmas restrições), a exemplo da LRF e da EC nº 95/2016. Limita o crescimento do gasto primário em 70% do aumento da arrecadação, restringindo o aumento dos gastos a no máximo 2,5% ao ano, mesmo em caso de crescimento de receitas.

Mais uma vez a política fiscal foi criminalizada. O descumprimento das metas pode implicar crime de responsabilidade. Caso o governo não consiga zerar o déficit em 2024, em 2025 os gastos serão limitados a 50% do crescimento da receita. A partir daí uma série de contingenciamentos será aplicada (proibição de concursos e alterações nas carreiras de servidores públicos, por exemplo), e, caso os cortes sejam insuficientes para alcançar as metas, em 2026 os reajustes salariais do funcionalismo serão proibidos e até mesmo o novo Programa de Aceleração do Crescimento seria enterrado. As metas de déficit zero em 2024 e de superávits em 2025 e 2026 estabelecidas pelo RFS aprofundam a austeridade.

Projeções iniciais (Dieese, 2023) sugerem que o RFS impedirá a mudança na ordem de grandeza dos recursos para os direitos sociais. Como as despesas primárias somente podem crescer o equivalente a 70% da arrecadação e os gastos com educação e saúde, em virtude de vinculação constitucional, crescem o equivalente a 100% das receitas, o crescimento diferenciado desses gastos provocará uma autofagia nas despesas sociais. Por isso, a vinculação constitucional de recursos para a educação está ameaçada.

Quando a economia cresce e a arrecadação aumenta, o país vê-se juridicamente obrigado a elevar os dispêndios com essas duas áreas [...]. Sob a nova regra, contudo, se os demais gastos se dilatam apenas até 70% do aumento da receita, é inevitável que, em algum momento, as despesas com esses dois direitos fundamentais absorvam as demais, inviabilizando a máquina pública

(Tavares; Vaz; Deccache, 2024).

Estudo da Secretaria do Tesouro Nacional sugere que está no cenário desconstitucionalizar as verbas da saúde (art. 186, Constituição Federal) e da educação (art. 212). O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025 projeta forte redução dos gastos primários totais de 19,23% do PIB em 2023 para 17,85% em 2028 (Brasil, 2024a, p. 146).

Como destaca Deccache (2024), a redução das despesas obrigatórias está claramente apresentada no PLDO 2025. O processo de revisão de gastos no âmbito do Poder Executivo federal surge como uma resposta estratégica e proativa ao desafio de reduzir a pressão das despesas obrigatórias, que têm previsão de crescimento, por força legal. Novamente, a redução de gastos poderia ser mitigada com o aumento da eficiência no uso dos recursos públicos. As tabelas anexadas ao PLDO 2025 e o Relatório de Projeções Fiscais do Tesouro (Brasil, 2024a) preveem a retirada de mais de R$ 500 bilhões de gastos em educação e saúde até 2033.

Desde sua promulgação, em 1988, a Constituição Federal está sendo metodicamente desfeita. A possibilidade de que a etapa conclusiva da desconstitucionalização das verbas da educação e da saúde seja concluída no governo que mobilizou todo o campo democrático contra a extrema-direita e sua política de austeridade autocrática é uma questão que assume a dimensão da grande política a que se refere Gramsci (2012). A degradação da educação pública e, destacadamente, a desconstituição das universidades públicas federais e dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia alcançam mais de 50 milhões de pessoas em um setor violentamente atacado pelo governo Bolsonaro e que, afinal, foi crucial na resistência às ações fascistizantes. A equação corrobora a tese de que a austeridade pode conviver com governos progressistas, mas, após curto intervalo de tempo, faz sobressair a necessidade de governos de direita e de extrema-direita.

Depleção de Recursos para a Educação Pública: Um Desdobramento da Austeridade

O objetivo desta seção é indicar que a indiferenciação entre o público e o privado em favor da mercantilização é condição necessária para efetivar a comodificação da educação, um dos pilares da austeridade.

A ressignificação do público por meio do desaparecimento das fronteiras entre o público e o privado é constitutiva da austeridade. Nos termos de Haddad:

Nós pretendemos quebrar um muro que separa hoje as instituições privadas das públicas, aproximar os dois sistemas com benefícios mútuos. […] Ou seja, estamos pensando agora o setor em termos sistêmicos, e não mais de forma compartimentada, sem coesão e sem coerência interna

(apud Leher, 2004, grifo nosso).

O próprio PNE (Lei nº 13.005/2014) reitera a imbricação entre o público e o privado, quando institucionaliza inúmeras modalidades de repasse do fundo público para instituições particulares.

O investimento público em educação [...] engloba os recursos [...] aplicados nos programas de expansão da educação profissional e superior, inclusive na forma de incentivo e isenção fiscal, as bolsas de estudos concedidas no Brasil e no exterior, os subsídios concedidos em programas de financiamento estudantil e o financiamento de creches, pré-escolas e de educação especial

(Brasil, 2014).

Também na educação básica ocorrem desvios para o setor privado. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação viabiliza tais repasses na forma de subsídios para escolas conveniadas na educação infantil e especial (Pinto, 2018, p. 854).

Com o propósito de apagar as fronteiras entre o público e o privado, toda uma legislação foi elaborada em desacordo com a Constituição Federal de 1988. A flexibilização legal da oferta privada, as isenções tributárias e os repasses do fundo público levaram a um crescimento desenfreado do setor privado-mercantil, constituído principalmente de sociedades anônimas, grande parte dele com abertura de capital na bolsa de valores e sob controle de fundos de investimentos e de empresas de private equity (Leher, 2022).

No processo constituinte, uma fração burguesa interna que atua no ramo dos negócios educacionais, a Federação dos Estabelecimentos de Ensino (Fenen), exerceu pressão para que a Carta incorporasse as instituições com fins de lucro entre as que poderiam receber verbas públicas, entretanto o Art. 213 restringiu os repasses às instituições educacionais que comprovem ser sem fins lucrativos (filantrópicas, comunitárias e confessionais).

Porém, no primeiro governo do Partido dos Trabalhadores (PT) – sob o manto da publicização da contrarreforma do Estado, que ressignificou o conceito de público equiparando-o ao que é ofertado pelo setor privado com verbas públicas –, foi criado o Programa Universidade para Todos (ProUni), revertendo, por meio de lei ordinária (Lei nº 11.096/2005), a derrota da Fenen no Art. 213 e possibilitando repasses do fundo público para as instituições mercantis por meio de isenções tributárias. Em seu artigo 1º, estabelece: “Fica instituído [...] o Programa Universidade para Todos – PROUNI, destinado à concessão de bolsas de estudo [...] em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos” (Brasil, 2005, grifo nosso).

Os gastos tributários do ProUni, que somaram significativos R$ 26,2 bilhões entre 2014–2022 (Brasil, 2023c), reinauguraram em 2015 um período de acentuada queda nas despesas públicas com as universidades federais. O programa significou um inédito movimento de conversão das instituições educacionais sem fins lucrativos em instituições propriamente mercantis – redesenhando o setor privado, inicialmente no ensino superior e, após 2017, também na educação básica. Os grupos familiares foram convertidos, em sua maioria, em sociedades anônimas, e os maiores grupos abriram capital na bolsa de valores. Em poucos anos o Brasil passou para a condição de vanguarda mundial da mercantilização de novo tipo (Leher, 2022). Resulta desse processo a concentração das matrículas nas modalidades de baixo custo, extensivamente ofertadas para a classe trabalhadora. Segundo Bielschowsky (2023, p. 89), “60,5% dos ingressos das [instituições de ensino superior] IES privadas em 2020 foram em [educação a distância] EaD, sendo que destes 80% estão nos dez maiores grupos privados”.

A reforma tributária do terceiro governo Lula constitucionaliza os repasses do fundo público para o ProUni: a EC nº 132/2023 permite redução de impostos e isenções que favorecem a educação privada-mercantil, especialmente por meio da isenção de 100% das contribuições sociais para o ProUni (Brasil, 2023a).

O Fies é a mais emblemática política estatal em educação da etapa financeirizada do capitalismo que gera lucro adicional por meio da dívida pública, visto que requer a emissão de títulos da dívida, entregando pouco em termos de benefício à sociedade. O PNE (2014–2024) contabiliza apenas o valor de seus subsídios (afinal, um empréstimo não deveria ser contabilizado como despesa primária, porém o desembolso existe e veremos o porquê ele é caro). Os subsídios implícitos são oriundos dos gastos do governo federal, que oferece o financiamento de mensalidades aos estudantes com taxas muito inferiores ao custo arcado pelo Ministério da Educação ao tomar emprestado os recursos do Tesouro, que corresponde à taxa de juros da emissão de títulos da dívida pública.

Por meio do referido mecanismo, em 2022, o Fies entregou muito mais recursos aos credores da dívida pública do que aos estudantes. Enquanto as matrículas efetuadas por meio do Fies apresentaram trajetória de queda (1.344.379 matrículas em 2015 ante 169.005 em 2022), o subsídio implícito do programa aumentou de R$ 3,1 bi em 2014 para R$ 43,7 bi em 2022, conforme as Figs. 1 e 2.

Figura 1
Matrículas de graduação financiadas pelo Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) (2015–2022).
Figura 2
Gastos com o subsídio implícito do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) (2014–2022), R$ bilhões, Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, jan. 2024.

O Relatório de Subsídios Tributários, Financeiros e Creditícios do período de 2003 a 2022 (Brasil, 2023c) atesta que o crescimento abrupto do referido subsídio se deve ao crescimento das taxas de juros da economia, que impactou o custo médio de emissão da dívida pública pelo Tesouro Nacional. Assim, o gasto com subsídio implícito do Fies em 2022 (R$ 43,7 bilhões) foi 10 vezes maior do que o montante despendido em empréstimos para os estudantes naquele ano (R$ 4,3 bilhões) (Brasil, 2024c)5.

Os exemplos da dominância das diretrizes, ações, proposições, leis advindas dos bastiões em que operam os representantes do bloco no poder são diversos e corroboram a proposição de Poulantzas (1981) de que os subalternos não ocupam os territórios do Estado em que as questões fundamentais do Estado são decididas. Corroboram também que o objetivo da austeridade é deslocar o fundo público para a ordem do capital. Apenas quando ocorre acirramento das lutas de classes, as reivindicações estruturais dos de baixo podem ser de fato incorporadas como políticas de Estado, como ocorreu parcialmente na Constituição Federal.

Conclusões

As frações de classe no bloco no poder que afiançaram apoio a Lula em 2022 o condicionaram à manutenção da austeridade e exigiram a permanência do teor das contrarreformas efetuadas nos períodos Temer e Bolsonaro. De fato, o principal guia da política econômica de Lula, o Regime Fiscal Sustentável (RFS), consolida em grande parte tais compromissos, contudo engendra contradições que podem definir o futuro da educação pública com repercussões na governabilidade de seu governo. O novo PNE será decidido no período do governo Lula, e, mantido o RFS, a efetividade da meta de 10% do PIB exclusivamente para a educação pública será inviabilizada, como a do PNE atual. Estudos indicam a forte possibilidade de desconstitucionalização das vinculações de verbas da saúde e da educação, um desdobramento previsível do RFS com consequências sistêmicas para o país.

Um obstáculo ideológico à reconstrução do movimento em defesa da educação pública no bojo das lutas gerais das classes trabalhadoras advém do fato de que setores majoritários da esquerda têm se esforçado em defender que a austeridade é uma política restrita ao plano tático e, por conseguinte, compatível com a democracia e os direitos sociais. As evidências de que o bloco no poder desde 1988 está desconstituindo as vinculações orçamentárias parecem estar sendo ignoradas, como se a manutenção da economia de guerra na educação, ciência e tecnologia, arte e cultura pudesse ser eternizada sem desmobilização, ressentimento e debilitamento do desejo transformador em favor de uma vontade nacional-popular transformadora da ordem social comprometida com o bem-viver dos povos. No fundo, é como se fosse possível enfrentar a extrema-direita sem alterar a base material da sociedade.

Huebscher, Sattler e Wagner (2022) comprovam, com base em um amplo levantamento de eleições em diversas regiões do mundo, que governos progressistas que seguem a austeridade fazem crescer os partidos ditos antissistêmicos, principalmente de extrema-direita. Pachukanis (2020) e Mattei (2023), na contracorrente ao pensamento político e econômico estabelecido, evidenciaram as raízes da austeridade no fascismo e seu aprofundamento em governos de extrema-direita. Essas vertentes apresentam-se como alternativas e antissistêmicas, mas combatem a austeridade para, no poder, aprofundá-la por meio da coerção. Corroborando Huebscher, Sattler e Wagner (2022), Meloni, na Itália, e Javier Milei, na Argentina, exemplificam a indissociabilidade entre austeridade, neoliberalismo extremo e autocracia.

A constituição de um Sistema Nacional de Educação (Saviani, 2010) que sustente a escola unitária e a requalificação da infraestrutura das universidades públicas não poderá ser alcançada nos marcos da austeridade. Estudo de Amaral (2024) demonstra que, enquanto o gasto por estudante no Brasil é de US$ 2,3 mil por ano, na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de US$ 8,9 mil. Sem enfrentar as travas da austeridade, a tendência do próximo decênio será de encolhimento dos já parcos recursos aplicados. A reversão da austeridade requer, simultaneamente, estratégia organizada no bojo das classes trabalhadoras, práticas de autogoverno das escolas e universidades e o resgate da planificação pública do Estado, ultrapassando os marcos fiscalistas dos planos plurianuais e das leis de diretrizes orçamentárias.

No período em que a democracia foi forjada pelo ascenso das lutas sociais, entre 1975 e 1988, os subalternos e as entidades acadêmicas em prol da educação pública constituíram o FNDEP, frente de unidade de ação auto-organizada, autônoma em relação aos governos e partidos e que logrou conquistas estruturais na Constituição Federal de 1988 e influenciou as disputas pelo teor da Lei de Diretrizes e Bases e do PNE. Fernandes (2012b) defendeu a necessidade de um novo ponto de partida para a educação pública, acentuando que a construção de uma escola pública unitária requeria coalizões abrangendo o conjunto dos subalternos. O maior desafio para superar a austeridade e suas consequências educacionais é a afirmação da sociedade civil como lugar decisivo para conformar uma vontade nacional popular na qual a luta pelo PNE pode contribuir para catalisar o porvir da democracia no país.

Notas

  • 1
    Sobre a Casa das Garças, ver https://iepecdg.com.br/. Acesso em: 13 abr. 24:
  • 2
    A Fiesp, juntamente com centenas de entidades, fez um anúncio nos principais jornais de grande circulação no país (Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Correio Braziliense): “Somos milhões de empregos e bilhões de reais em impostos. [...] Vemos que o país está à deriva. A hora de mudança é agora. Dizer SIM ao impeachment, dentro dos parâmetros constitucionais, é dizer NÃO ao descontrole econômico, ao descaso com as empresas, com o emprego e, principalmente com você. Chega de pagar o pato. O Brasil tem jeito” (Estadão; Folha, 2016).
  • 3
    Ementa: Regula o art. 163, incisos I, II, III e IV, e o art. 169 da Constituição Federal, dispõe sobre princípios fundamentais e normas gerais de finanças públicas e estabelece o regime de gestão fiscal responsável, bem assim altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990.
  • 4
    Conforme estudo de Pinto (2018, p. 853), em 2016 a DRU retirou do fundo público o equivalente a expressivo 3,5% do PIB. Nos 18 anos em que a DRU incidiu sobre o ensino, a perda acumulada foi de 2,9% do PIB; o percentual de 18% estabelecido pela Constituição Federal foi reduzido para 14,4%.
  • 5
    Pago + RP Pago na ação 00IG – Concessão de empréstimos (R$ bi Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo jan./2024).
  • Financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo: 310058/2021-0) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Processo: E-26/201.236/2022).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2024
  • Aceito
    08 Jul 2024
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