Resumos
A denominada "crise de trabalho", resultante do conjunto complexo de transformações económicas e comerciais em curso nos finais do séc. XIX, constituiu um aspecto estruturante da realidade portuguesa desde os anos 80. Esta circunstância, uma determinante na conjuntura nacional, influenciou largamente a propaganda do Partido Republicano Português. Uma vez implantado o regime republicano, a construção do novo estado, discutido no contexto da Assembleia Nacional Constituinte, confrontava-se com as características de uma realidade social complexa, tanto no espaço urbano como rural, dominada pela "crise de trabalho", pelas reivindicações laborais acompanhadas pelo surto grevista, cujas consequências políticas e económicas conflituavam com a imagem de tranquilidade interna desejada no contexto, difícil, do reconhecimento externo do novo regime.
Estado; República Portuguesa; trabalho
The so-called "job crisis" resulting from a complex set of business and economic transformations taking place in the late nineteenth century, formed a structural aspect of the Portuguese reality since the 80s. This circumstance, decisive in the Portuguese national situation, influenced largely the Portuguese Republican Party propaganda. Once deployed the republican regime, the construction of the new state, discussed in the context of the National Constituent Assembly, was confronted with the characteristics of a complex social reality, both in rural and urban areas, dominated by the "job crisis", by the labor claims accompanied by the strike outbreak whose political and economic consequences conflicted with the inner image of tranquility desired in the challenging context, of the new regime's external recognition.
State; Portuguese Republic; labor
Em 19 de Outubro de 1910, ao ser questionado por Jorge de Abreu em longa entrevista publicada em A Capital, José Barbosa (PARLAMENTARES, 2000, p. 109PARLAMENTARES e Ministros da 1ª República (1910-1926). Coord. por A. H. de Oliveira Marques et. al. Assembleia da República, 2000, p. 109.) explicava a pertinência na manutenção do directório do Partido Republicano, o qual, operada a mudança de regime, adquiria novas funções: "a sua missão não findou porque depois de ter educado o povo para a revolta deve procurar educá-lo para a vida serena e tranquila dentro da atmosfera de liberdade e inteira justiça". (VENTURA, 2010, p. 62VENTURA, António. Os Homens do 5 de Outubro. Nos bastidores da Revolução. Lisboa: Ésquilo, 2010.). Ainda segundo aquele dirigente republicano, ao órgão liderante do PRP competia a fiscalização "severa" - nas suas palavras - "sobre a execução do que julga ser a condição essencial da existência regular do regime republicano. Deve criar comissões, fazer uma larga difusão dos bons princípios de civismo, vigiar por que o poder não caia em mãos que o estraguem, garantir a realização do programa de 1891", definido neste passo como "radical, com tendências socialistas". (VENTURA, 2010, p. 62VENTURA, António. Os Homens do 5 de Outubro. Nos bastidores da Revolução. Lisboa: Ésquilo, 2010.).
No pensamento de José Barbosa confluía uma correlação estreita entre a natureza dos conteúdos programáticos consagrados em 1891 - em vésperas do 31 de Janeiro, por um Directório que se apressou a condenar a insurreição republicana portuense - e a grandeza da tarefa que se impunha aos republicanos triunfantes em 5 de Outubro, na edificação do novo Estado. Contudo, também transpareciam as responsabilidades do Partido Republicano Português que, se no decurso da propaganda havia inflamado os ânimos da sociedade portuguesa em prol de melhores condições de vida, uma vez implantada a República, haveria de pugnar pela tranquilidade e coesão sociais, dois eixos essenciais para o sucesso da causa republicana e da construção do novo regime. Em vista disso, as palavras de José Barbosa eram esclarecedoras quanto ao carácter prioritário das iniciativas destinadas ao incremento da qualidade de vida dos sectores mais desfavorecidos da população portuguesa.
Atida a relevância do Manifesto-programa de Janeiro de 1891, importaria recuperar algumas das orientações daquele documento, subscrito por Teófilo Braga, Bernardino Pereira Pinheiro, José Jacinto Nunes, José Francisco Azevedo e Silva e Francisco Cristo (MANIFESTO-PROGRAMA, 1909, p. 23-27 MANIFESTO-PROGRAMA do Partido Republicano Português, elaborado em Janeiro de 1891 e composto pelos cidadãos Teófilo Braga, Bernardino Pinheiro, José Jacinto Nunes, Manuel de Arriaga, J. F. Azevedo e Silva e Francisco Cristo. Anuário Democrático. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1909, p. 23-27.), nomeadamente no capítulo das "Liberdades Essenciais", a liberdade de trabalho e de indústria e abolição dos monopólios, quando não estejam subordinados à utilidade pública e a taxação do povo pelo povo. Ou, no âmbito das "Liberdades Civis ou objecto da acção individual", "a extinção das últimas formas senhoriais da propriedade no sentido de a tornar perfeita [...] por uma lei de remissão forçada; o arroteamento obrigatório dos terrenos incultos ou na expropriação por utilidade pública; a reforma do regime hipotecário como forma de crédito geral territorial; o estabelecimento do regime de aprendizagem e regulamentação do trabalho de menores; o desenvolvimento das associações cooperativas de consumo, produção, edificação e crédito pelo adiantamento pelo Estado de um fundo inicial; a abolição de todos os direitos de consumo cobrados pelo Estado; a diminuição gradual de todos os impostos de consumo nos géneros de primeira necessidade; a regulamentação do inquilinato; a instalação de tribunais arbitrais de classe para os conflitos entre patrões e operários; a ampliação das competências dos árbitros; o reconhecimento e auxílio às câmaras sindicais, Bolsas de Trabalho e de todos os meios de incorporação do proletariado moderno". (MANIFESTO-PROGRAMA, 1909, p. 23-27 MANIFESTO-PROGRAMA do Partido Republicano Português, elaborado em Janeiro de 1891 e composto pelos cidadãos Teófilo Braga, Bernardino Pinheiro, José Jacinto Nunes, Manuel de Arriaga, J. F. Azevedo e Silva e Francisco Cristo. Anuário Democrático. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1909, p. 23-27.).
O extenso elenco de propostas programáticas de 1891 viria a transparecer no decurso dos trabalhos desenvolvidos pela Assembleia Nacional Constituinte, reunida entre os meses de Junho a Agosto de 1911. Todavia, nem sempre em observância estrita com o espírito modernizante impresso pelos autores de 1891 e até, por vezes, em contradição com ele, como ilustrava a proposta de Código Administrativo apresentado em 15 de Agosto de 1911 por António José de Almeida (PARLAMENTARES, 2000, p. 81-82PARLAMENTARES e Ministros da 1ª República (1910-1926). Coord. por A. H. de Oliveira Marques et. al. Assembleia da República, 2000, p. 109.), então ministro do interior. (PROJECTO, 1910PROJECTO de Código Administrativo elaborado pela Comissão nomeada por decreto de 25 de Outubro de 1910. Lisboa: Imprensa Nacional, 1910.). Segundo o projecto elaborado pela Comissão designada pelo mesmo membro do Governo Provisório, em Outubro de 1910 (formada por José Jacinto Nunes, Francisco António de Almeida, José Maria de Sousa Andrade, Francisco José Fernandes e António Caetano Macieira), o imposto de prestação de trabalho não só era admissível no artigo 121º como aplicável ao serviço de pessoas e coisas em um dia por ano, conforme enunciado: §1º obrigados todos os chefes de família residentes ou proprietários na circunscrição municipal: 1º por si e por cada um dos membros da sua família ou domésticos de vinte e um a cinquenta anos de idade, que residirem na circunscrição municipal e forem varões válidos; 2º por todos os carros, carretas, animais de carga, de tiro e de sela, que empregarem habitualmente na circunscrição municipal; §3º o imposto de trabalho não é devido a mais de seis quilómetros de distância; §4º o imposto que não for pago em trabalho será remido ou pago a dinheiro pelo preço da tarifa camarária. (PROJECTO, 1910, p. 32-33PROJECTO de Código Administrativo elaborado pela Comissão nomeada por decreto de 25 de Outubro de 1910. Lisboa: Imprensa Nacional, 1910.). Estas disposições eram inconciliáveis com a "abolição completa de todas as contribuições de serviços pessoais ou dias de trabalho", prevista no Manifesto-programa de 1891. No entanto, aquela proposta de Código Administrativo fazia jus às orientações de 91, ao estabelecer como despesas obrigatórias dos municípios as referentes à assistência aos inválidos do trabalho (§ 15º, artigo 128º), após a regulamentação da lei respectiva. (PROJECTO, 1910, p. 34PROJECTO de Código Administrativo elaborado pela Comissão nomeada por decreto de 25 de Outubro de 1910. Lisboa: Imprensa Nacional, 1910.).
Outras emanações da perspectiva programática dos inícios de 90 viriam a singrar na Constituinte, depois de serem objecto de uma concretização, não raras vezes polémica. Referimo-nos à "revisão das pautas no sentido de facilitar a aquisição de matérias primas e protecção ao trabalho nacional" (MANIFESTO-PROGRAMA, 1909, p. 23-27 MANIFESTO-PROGRAMA do Partido Republicano Português, elaborado em Janeiro de 1891 e composto pelos cidadãos Teófilo Braga, Bernardino Pinheiro, José Jacinto Nunes, Manuel de Arriaga, J. F. Azevedo e Silva e Francisco Cristo. Anuário Democrático. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1909, p. 23-27.), uma directiva do Manifesto-programa assente numa concepção de Estado a quem se reservava o papel impulsionador e, simultaneamente, regulador da actividade económica sem prejuízo do protagonismo oferecido à iniciativa privada ou, como se referia em 1891: "o Estado não concorre com as indústrias e as suas oficinas serão escolas de artes e ofícios". (MANIFESTO-PROGRAMA, 1909, p. 23-27 MANIFESTO-PROGRAMA do Partido Republicano Português, elaborado em Janeiro de 1891 e composto pelos cidadãos Teófilo Braga, Bernardino Pinheiro, José Jacinto Nunes, Manuel de Arriaga, J. F. Azevedo e Silva e Francisco Cristo. Anuário Democrático. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1909, p. 23-27.). Este pressuposto da retirada do Estado da actividade industrial, se actuante num segmento em que pontificasse a actividade particular, não se concretizaria em 1911, tampouco seria apresentado sob a forma de proposta ou projecto de lei à Constituinte.
No entanto, em Maio de 1911, caberia a Brito Camacho (PARLAMENTARES, 2000, p. 138-139PARLAMENTARES e Ministros da 1ª República (1910-1926). Coord. por A. H. de Oliveira Marques et. al. Assembleia da República, 2000, p. 109.), ministro do Fomento, explicitar os princípios e condições determinantes da atenção protectora do Estado perante sectores de actividade. No preâmbulo do decreto de 27 de Maio de 1911, subordinado à liberdade de venda e fabrico de pão, o referido ministro enfatizava as virtualidades da concorrência a preservar para salvaguarda do interesse dos consumidores - "convindo dar satisfação aos justos clamores do público e evitar a extrema concentração da indústria de panificação a fim de assegurar, pela livre concorrência, a boa qualidade e o preço módico do pão" - e apresentava os fundamentos da reforma anunciada para o enquadramento que regia este sector, cuja evolução, bem sucedida, permitia a dispensa do tratamento preferencial até então concedido pelo Estado.
Assim, o supracitado decreto enaltecia as capacidades adquiridas por essa indústria, a "panificação em Lisboa tem assumido progressivamente, desde 1901, com o aumento do seu capital e o desenvolvimento das suas instalações, a proporção e carácter de grande indústria, o que a preparou para a luta da livre concorrência, dispensando a tutela do Estado, com as suas medidas restritivas de protecção", como clarificava o contexto no qual estas medidas (as "restritivas de protecção") eram necessárias, até desejáveis. Segundo o mesmo ministro e o mesmo decreto, estas medidas só poderiam "justificar-se quando aplicadas à pequena indústria, mais ou menos caseira, em que prepondera o trabalho manual do operário ou do proletário sobre o capital e os meios mecânicos de produção". (DECRETO-LEI, 27/05/1911DECRETO-LEI de 27 de maio de 1911.).
Estas considerações chegavam à Constituinte no âmbito da proposta de lei apresentada por Brito Camacho sobre o "Pão de Família", nos finais de Agosto de 1911 (DIÁRIO, 25/08/1911, p. 10DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.), uma iniciativa do ministro com o propósito de minorar os efeitos da morosidade no processo legislativo sobre os decretos de 27 de Maio e 4 de Junho de 1911 e para colmatar as necessidades básicas da população lisboeta, a partir de um novo tipo de pão, de laboração obrigatória nas padarias da capital. Estas carências, reconhecidas desde o início do funcionamento da Câmara Legislativa, surgiam comummente inscritas no leque de consequências associadas à denominada "crise de trabalho", cuja sazonalidade havia sido substituída por um carácter de maior permanência devido às incertezas suscitadas pela mudança de regime. Segundo Brito Camacho, a "crise de trabalho que nos anos normais começa em Novembro e finda em princípios de Abril, este ano começou em 5 de Outubro e ainda não terminou, tendo trazido ao Ministério do Fomento uma despesa de 300:000$000 reis a mais do que nos anos anteriores". (DIÁRIO, 25/08/1911, p. 7DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Tal era a explicação dada por Camacho na Assembleia Nacional Constituinte, em sessão de 25 de agosto, quando confrontado com a demora na elaboração do orçamento do ministério do Fomento, entidade particularmente pressionada pelos efeitos da contracção do mercado laboral verificada a partir de Outubro de 1910. Pressionada porque, na esteira da política implementada pelos executivos monárquicos a partir da década de 90 - resultante do impacto social da crise financeira de 1891-1893 de pendor polémico como se apreciava na imprensa económica portuguesa da época (ECONOMISTA, 02/02/1896, p. 145O ECONOMISTA, ano 15, 2. série, n. 5, 2 fev. 1896, p. 145.), e com a qual o novo regime não se mostrava disposto a assumir rupturas -, caberia ao ministério do Fomento suprir, na medida das possibilidades, esta carência mediante alargamento do universo de operários afectos às Obras Públicas. (FONSECA, 1949FONSECA, Tomás da. Memórias de um Chefe de Gabinete. Pref. de Lopes de Oliveira. Lisboa: Livros do Brasil, 1949.). Nesse sentido alinhavam as declarações de Brito Camacho em resposta a Pádua Correia, na sessão de 31 de Julho, significativas, pela confissão pública do ministro acerca das dificuldades em administrar o ministério em que se procurava acomodar o maior número de operários e cujo excesso, perante as necessidades e ou possibilidades do Fomento, era resolvido com a transferência de funcionários para os arsenais da marinha e do exército.
Sempre às expensas do ministério do Fomento, como salientava aos interlocutores, dos quais esperava que compreendessem o fundamento da infracção assumida no cumprimento dos desejos do Governo:
tais são os desejos do Governo em garantir trabalho aos que dele precisam. [...] Já vê a Assembleia até que ponto o Governo tem empregado diligência e mostrado boa vontade em colocar os operários empregados, mas não tem sido possível acomodar todos e o que posso afirmar ao Sr. Deputado Pádua Correia é que, neste momento, em que ainda muitos empregados reclamam a sua entrada nas obras do Estado [...]. (DIÁRIO, 31/07/1911, p. 18DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Já em 8 de Agosto seguinte, o ministro do Fomento discriminava o elenco das intervenções assumidas pelo ministério com o propósito estrito de aumentar a contratação de operários, a saber, as obras de conservação do Mosteiro dos Jerónimos, do edifício da Assembleia Nacional Constituinte e do Tribunal da Boa Hora. (DIÁRIO, 08/08/1911, p. 6-7DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
A consequência desta opção era uma evidente sobrecarga financeira para o ministério do Fomento, igualmente objecto das considerações do seu titular no contexto da Constituinte, com particular relevância em vista da disparidade de posições verificada no seio do Governo Provisório da República. Não por algum dos seus membros questionar a necessidade de moralização da vida pública pela contenção de gastos e correcção das contas do Estado, um vector fundamental na afirmação interna e, em particular, externa do novo regime, mas sim pela natureza da premência e da abrangência possíveis associada ao cumprimento do referido objectivo, conforme as ideias defendidas por Afonso Costa (PARLAMENTARES, 2000, p. 175-176PARLAMENTARES e Ministros da 1ª República (1910-1926). Coord. por A. H. de Oliveira Marques et. al. Assembleia da República, 2000, p. 109.) e Brito Camacho na Assembleia Nacional Constituinte.
Se para Costa, ministro da Justiça e dos Cultos, o equilíbrio orçamental constituía uma tarefa de primeira grandeza e obrigação imediata do novo regime enquanto mecanismo diferenciador do passado recente, para o titular da pasta do Fomento, a disciplina orçamental mantinha-se como prioridade, cujo cumprimento deveria contemporizar os propósitos de cada uma das áreas governativas, logo, de cunho menos imediatista. Assim, segundo afirmava na Assembleia aos Constituintes e colegas do Executivo, "no ministério do Fomento é que é difícil equilibrar o Orçamento porque ali não se pode fazer economias. O ministério do Fomento é um Ministério para gastos e não para economias". (DIÁRIO, 25/08/1911, p. 7DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Esta clivagem de posições não era exclusiva do Governo Provisório, como se pode constatar pelas reflexões de Teixeira de Queiroz sobre os conceitos de Estado-providência, Estado-previdência e suas competências:
o Estado não é mais do que a reunião dos poderes, é, por assim dizer, o responsável pelo bem-estar geral, representa o progresso, representa os direitos, garante o exercício completo das faculdades dos indivíduos. [...] O Estado tem tido feições diferentes em épocas diversas em relação à sua função. Por exemplo, temos tido o Estado-gendarme, e assim se lhe chama quando só atende à segurança pública, à ordem material; temos também tido o Estado-providência, o que dá tudo, aquele de quem tudo se espera, pois cada indivíduo julga ver nele o patrono, o pai. É o Estado gerador de preguiça e esta noção facilmente aceite no nosso clima e na nossa raça, tem sido perniciosa. Nenhuma destas formas de Estado corresponde ao fim para que foi criada: porque o dever do Estado é ser simplesmente Estado-previdência. O Estado como regulador de todas as funções deve conhecer as circunstâncias em que deve intervir e fazer melhor uso das forças que tem na mão, para corresponder ao fim da justiça e verdade para que foi organizado. Ora tendo o Estado o direito de fazer triunfar a justiça, é ao Estado que compete regular todas as relações entre os indivíduos e aos diversos elementos da nação. (DIÁRIO, 12/07/1911, p. 21-22DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Ou ainda pelo teor da proposta de lei apresentada por João de Meneses, autor de A Providência do Estado e a Previdência dos indivíduos, à Assembleia Nacional Constituinte, aprovada em 27 de Junho, em que se previa a recusa do "voto aprovativo imediato" dos membros da câmara "a todo o projecto de lei ou proposta que implique o aumento de despesa". (DIÁRIO, 27/06/1911, p. 3DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.). Aceite pela Assembleia, esta disposição funcionaria como um factor condicionante da capacidade e eficácia de resposta da mesma Assembleia à "crise de trabalho", como se extraía da reacção de França Borges à iniciativa de José Montês (DIÁRIO, 27/06/1911, p. 12-13DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.), no sentido de pôr cobro à greve em curso dos ferroviários do norte. (DIÁRIO, 27/06/1911, p. 22DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
A este entendimento redutor das funções da Constituinte opunham-se no mesmo contexto as perspectivas de Júlio Martins - "É necessário que todos se lembrem de que, se Portugal estava mal dentro da monarquia, só estará bem dentro da República quando nós, trabalhando inteligente e conscientemente, o libertarmos de todos os males", e não apenas do défice orçamental (DIÁRIO, 02/08/1911, p. 9DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.) - e, em particular, Estêvão de Vasconcelos (PARLAMENTARES, 2000, p. 433PARLAMENTARES e Ministros da 1ª República (1910-1926). Coord. por A. H. de Oliveira Marques et. al. Assembleia da República, 2000, p. 109.), autor da proposta de criação de uma comissão parlamentar permanente sobre a legislação operária. Acolhida favoravelmente pelos seus congéneres, esta comissão constituída pelo proponente, acompanhado de Ladislau Piçarra, Afonso Ferreira, Alfredo Ladeira, Pedro Botto Machado e António Macieira, a 29 de Junho (DIÁRIO, 29/06/1911, p. 7DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.), era apenas um contributo à resolução dos problemas sociais, cuja grandeza impunha um papel activo das novas instituições mesmo se tivessem repercussões de vulto no tecido económico e financeiro. No seu discurso, Estêvão de Vasconcelos assumia o sentido reformador do Manifesto-programa de 1891, de pendor radical, na definição de José Barbosa: "não devemos fugir das reformas sociais que desorganizam as indústrias e agravam as nossas condições económicas e financeiras", entendendo por reforma social "não apenas aquelas a que se costuma dar essa designação, isto é, aquelas que directa e concretamente produzem uma melhoria material das condições de vida das classes trabalhadoras. Reformas sociais são igualmente as reformas da instrução que consigam levantar o nível intelectual de todas as classes de maneira a que elas possam compreender os seus direitos e as suas responsabilidades. Reformas sociais são as reformas financeiras que dêem à distribuição dos impostos uma base justa e equitativa, racional e científica". (DIÁRIO, 29/06/1911, p. 10-11DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
O espírito conciliatório entre as duas tendências expressas na Assembleia Nacional Constituinte e no Governo Provisório esboçava-se na iniciativa de José Relvas que, na qualidade de titular das Finanças, alinhava pela via da contenção da despesa pública no item dos gastos com novas contratações na função pública, aplicável a todos os ministérios, com excepção das pastas da Justiça e dos Cultos, como do Fomento, para as quais a mobilização de novos recursos era definida como indispensável para o lançamento das instituições republicanas. Comentada por Tomé de Barros Queiroz em 30 de Junho (DIÁRIO, 30/06/1911, p. 2DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.), esta proposta prolongava a polémica suscitada por Alexandre Braga, dois dias antes, em torno das nomeações e vencimentos dos funcionários públicos (DIÁRIO, 27/06/1911, p. 3DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.), recuperada ainda em fins de Julho por Vitorino Godinho, com a proposta para a uniformização dos rendimentos auferidos pelos funcionários públicos consoante a respectiva categoria. (DIÁRIO, 28/07/1911, p. 5-6DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
O apelo pelo carácter uniformizante do tratamento concedido aos trabalhadores dos sectores público e privado não era inédito na Assembleia Nacional Constituinte, em que haviam chegado as invectivas de Estêvão de Vasconcelos, em 22 de Junho, as iniciativas de Francisco Ramos da Costa e de Alfredo Ladeira, em 23 de Junho, e a proposta subscrita por aquele último, por Gastão Rodrigues e Sá Pereira sobre a fixação do horário de trabalho nas oito horas diárias, em 26 de Junho. Nesse sentido, o projecto de lei, apresentado em segunda leitura à Constituinte por Fernão Botto Machado, a 25 de Julho, não era um caso isolado, inserindo-se numa corrente republicana eivada de tendências socializantes mais ou menos explícitas, para a qual a edificação do regime republicano dependia da capacidade de estabelecer uma nova ordem laboral na qual se corrigissem os excessos impostos pela ascendência tutelar do capital sobre o trabalho, para benefício da sociedade, da economia e do sistema político nacionais. Todavia, no projecto de Fernão Botto Machado enfatizava-se o traço de corência solicitado às instâncias republicanas, as mesmas que, antes da implantação da República, na esfera municipal e, depois das jornadas de Outubro de 1910, nos ministérios da Marinha e do Exército, defenderam pontualmente a adopção de um horário de trabalho de oito horas diárias: "é necessário contentar todos os cidadãos com a maior soma possível de igualmente. A mais ligeira diferença suscita perturbações. Os deputados representam a vontade do povo. Nas funções legislativas cumpre-nos seguir os impulsos que nos comunica a vontade popular e nunca trabalharmos contrariando-a ou desprezando-a". (DIÁRIO, 25/07/1911, p. 8DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Esta matéria adquiria particular acuidade em 7 de Julho, quando o cenário de greve geral encontrava eco nos constituintes, na sequência da contestação dos corticeiros às resoluções do Governo Provisório sobre a exportação de cortiça. (DIÁRIO, 07/07/1911, p. 4-5DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.). Esta circunstância contribuía para justificar a iniciativa de Manuel José Dias sobre os tribunais avindores, apresentada em 12 do mesmo mês (DIÁRIO, 12/07/1911, p. 3DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.), com o propósito de dirimir os conflitos entre entidades patronais e operariado, inscrevendo-se na tentativa de encontrar fórmulas de resolução dos problemas e, por extensão, de promover a paz social, uma tarefa difícil, como o mesmo deputado reconheceria em 17 de agosto, quando da apresentação da proposta de criação do Instituto do Trabalho Nacional. Confronte-se esta iniciativa com a apresentada por Alfredo Ladeira e Pedro Sá Pereira, inscrita no mesmo objectivo, mas de maior alcance. Neste caso, previa-se como "obrigatória a criação de tribunais árbitros avindores em todos os distritos administrativos de Portugal e ilhas, em todos os concelhos em que houver centros industriais". As competências abrangiam "todas as controvérsias sobre a execução dos contratos com convenções de serviços em assuntos industriais, comerciais e agrícolas, entre patrões, de uma parte, e seus operários ou empregrados, da outra, ou entre operários ou empregados entre si, em especial, as que dissessem respeito a salários, preços e qualidade de mão de obra, horas de trabalho contratadas ou devidas, observação de estipulações especiais, imperfeição na mão de obra, compensações de salários por alteração na qualidade da matéria prima fornecida ou modificações do trabalho, indemnização por abandono da fábrica ou por licenciamento antes de findo o trabalho ajustado e indemnização por não cumprimento do contrato de aprendizagem". Estas entidades adquiriam a feição de "câmara sindical" desde que fossem reconhecidas nessa qualidade pelas "autoridades administrativas, associações de classe ou grupos de operários ou empregados ou pelo patronato" e ficavam obrigadas a proferir sentença sobre conflitos e reclamações do seu conhecimento em prazo não superior a três dias após a audição de reclamantes e reclamados. (DIÁRIO, 04/08/1911, p. 6-7DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Tomando como fundo a agitação social crescente, registrada desde a implantação da República, mas também a correlação proporcional entre prosperidade política e económica de um povo, Manuel José Dias, em observância às restrições estabelecidas pela Assembleia Nacional Constituinte no âmbito dos encargos financeiros, abdicava da intenção original "de propor a criação imediata de um ministério do Trabalho", para se concentrar numa entidade que, afecta à tutela do ministério do Fomento, se dedicasse ao "estudo e à execução das leis, organização de estatísticas e inquéritos permanentes de quanto diga respeito às classes proletárias, seja qual for o ramo de trabalho a que se dediquem, bem como das suas relações com as classes patronais". (DIÁRIO, 17/08/1911, p. 4DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.). Caracterizada pela transversalidade na abordagem às relações laborais e pela influência da iniciativa legislativa de D. Luís de Castro, em Abril de 1909 (DIÁRIO DO GOVERNO, 28/04/1909, p. 1407-1409DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.), esta proposta de lei não iludia o cerne das preocupações daquele deputado, relacionado com os operários da indústria e com a situação de desprotecção dos trabalhadores da construção civil, em prol dos quais solicitava o desbloqueamento imediato das verbas necessárias para execução ou prolongamento de obras aprovadas no âmbito orçamental de cada ministério. (DIÁRIO, 17/08/1911, p. 6DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Não sendo exclusivamente orientadas para a resolução das tensões laborais no âmbito da indústria e actividade extractiva, mas particularmente sensíveis a elas, os projectos de Fernão Botto Machado e de Manuel José Dias apresentados à Assembleia Nacional Constituinte propunham mecanismos de concertação ou normativos, ajustados ao quadro laboral pré-existente. Afastavam-se, nessa medida, das iniciativas de Henrique Caldeira Queiroz (PARLAMENTARES, 2000, p. 357-358PARLAMENTARES e Ministros da 1ª República (1910-1926). Coord. por A. H. de Oliveira Marques et. al. Assembleia da República, 2000, p. 109.), centradas nas especificidades das relações laborais em meio rural, nas áreas caracterizadas pela predominância do latifúndio, e de Manuel Sousa da Câmara, sobre os benefícios do estímulo à produção de azeite no Alentejo, como forma de diversificar a riqueza gerada na região com impacto nos níveis de procura de mão de obra. (DIÁRIO, 19/07/1911, p. 5DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.). Vocacionada estritamente para o operário rural, este projecto de lei visava a uma dimensão cívica, a da formação para a cidadania plena do trabalhador rural, complementar das motivações económicas assentes num quadro de carências inconstestadas por Manuel de Sousa Câmara. Segundo afirmava: "o meu projecto servirá de preferência para o operário rural que tem necessidade urgente de maiores salários mas que dificilmente os poderá conseguir por incapacidade profissional. É preciso ensiná-lo e educá-lo primeiro, e só então, convenientemente instruído, poderá fazer as suas reivindicações e essas tão absolutamente indispensáveis porque o operário vive em péssimas condições económicas, especialmente o rural". O mesmo deputado apresentava um projecto de lei sobre a possibilidade de obter um pão de mistura "económico". (DIÁRIO, 21/08/1911, p. 5DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Saliente-se a primeira destas iniciativas, de Henrique Caldeira Queiroz (DIÁRIO, 03/07/1911, p. 4-5DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.; VENTURA, 1976VENTURA, António. Subsídios para a História do Movimento Sindical Rural no Alto Alentejo (1910-1914). Lisboa: Seara Nova, 1976.), justificada como forma de assegurar uma retribuição aos anseios suscitados pela implantação da República nas populações rurais do Alentejo as quais, perante a demora no desaparecimento das "iniquidades e injustiças sociais", se lançaram numa onda de greves, por vezes com recurso à violência. (VENTURA, [s/d]VENTURA, António. Alentejo. Lutas Sociais dos Rurais Alentejanos durante a I República. Comunicação apresentada em colóquio realizado no ISCHTE, [s/d]..). Mais, o autor do projecto de lei confrontava os seus colegas da Câmara com as consequências a médio e longo prazo desta onda de reivindicação social, a qual reverteria, em seu entender, em desfavor dos trabalhadores, devido à previsível retracção da procura de mão de obra, provocada pelo aumento salarial, mas também resultaria em prejuízo da economia nacional, uma vez que a não utilização desta mão de obra implicava uma mudança na forma de exploração do solo agrícola alentejano, com prevalência da criação de gado sobre a produção de cereais. (DIÁRIO, 03/07/1911, p. 4DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Perante tais expectativas e tendo como objectivo a satisfação permanente das reivindicações apresentadas pelos trabalhadores rurais no decurso da greve de Junho de 1911 (PEREIRA, [s/d], p. 40-43PEREIRA, José Pacheco, Conflitos Sociais nos Campos do Sul de Portugal. 2. ed. Lisboa: Europa-América, [s/d], p. 40-43.; VENTURA, [s/d]VENTURA, António. Alentejo. Lutas Sociais dos Rurais Alentejanos durante a I República. Comunicação apresentada em colóquio realizado no ISCHTE, [s/d].), o deputado pelo círculo de Elvas defendia a constituição de comissões paroquiais de trabalhos agrícolas, que integrassem representantes dos trabalhadores e dos lavradores, renovadas anualmente, competentes nos domínios da elaboração do cadastros da mão de obra disponível em cada paróquia, com indicação da idade e aptidões especiais no desempenho de funções agrícolas. Mas também habilitadas na composição do cadastro dos lavradores da circunscrição, com referência à importância e extensão das suas lavouras e na fixação dos salários em vigor durante o ano agrícola - de 1 de Setembro a 31 de Agosto - estabelecidos mediante várias condições: as qualidades produtivas do terreno, a carestia de vida, as horas de trabalho e a natureza das funções a desempenhar. Cabia-lhes ainda proceder à distribuição dos trabalhadores pelas diferentes lavouras, de forma proporcional à sua importância e extensão em cenário de crise de trabalho. Segundo a proposta de Caldeira Queiroz, os proprietários rurais ficariam obrigados ao recrutamento prioritário de mão de obra na paróquia e impedidos de angariar trabalhadores fora dos seus limites enquanto existissem trabalhadores recenceados no cadastro em inactividade.
As comissões paroquiais de trabalhos agrícolas teriam ainda competência na resolução de conflitos entre trabalhadores e lavradores, os quais, perante a ausência de consenso, deveriam reverter à análise do diferendo para um tribunal de apelação a instalar em cada sede de concelho; e também na fundação de uma "caixa dos inabilitados" a abranger os trabalhadores que, uma vez inscritos no cadastro, comprovadamente por doença ou idade não estivessem em condições de manter a sua actividade. Convencido do alcance reduzido desta iniciativa na resolução efectiva dos problemas que afectavam as populações alentejanas, Caldeira Queiroz procurava promover a concertação local entre os diferentes intervenientes no desacerto surgido entre trabalhadores e lavradores e, desta forma, contribuir para a manutenção do contingente demográfico regional sem mudança estrutural do enquadramento fundiário.
Afastava-se exemplarmente das ideias apresentadas por Ezequiel de Campos (NUNES, 2011NUNES, Teresa, O Ideário Republicano de Ezequiel de Campos (1900-1919). 2011. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011.), também em Julho de 1911, na Assembleia Nacional Constituinte. Para o deputado de S. Tirso, a reforma da propriedade fundiária nas áreas caracterizadas pela predominância do latifúndio, em particular o Alentejo, seria uma primeira etapa na resolução da crise de trabalho geral, sentida no espaços urbano e no meio rural, perante a impossibilidade de se operar um surto industrializante com capacidade para absorver parte considerável da mão de obra inactiva existente no país.
A avaliar pelas premissas do projecto de lei sobre a utilização dos incultos (DIÁRIO, 31/07/1911, p. 3-8DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.), Ezequiel de Campos procurava sensibilizar os seus colegas constituintes sobre a necessidade de contrariar os fluxos migratórios internos polarizados nas cidades cuja capacidade aglutinante se explicava em face das precariedade das condições de vida nos campos, na esteira das considerações deixadas por Basílio Teles em O Problema Agrícola. Crédito e Imposto, de 1899 e A Carestia da vida nos Campos: Cartas a um Lavrador, de 1904.
Nesse sentido, perante a deterioração do mundo citadino, do "desperdício perdulário" de fundos públicos aplicados pelo ministério do Fomento, como ainda dos efeitos dissolventes a prazo da emigração portuguesa exponenciada após a mudança de regime, Ezequiel de Campos propunha uma reestruturação agrária assente nos incultos do domínio público, mas também particular, fazendo convergir os desígnios de aumento da produção agrícola, diversificada, conseguida em propriedade de pequena e média dimensões, com a fixação populacional em áreas de baixa densidade demográfica. Tais medidas teriam um forte impacto, quer na manutenção da mão de obra activa mais apta (a que comummente se perdia na emigração), quer no reequilíbrio entre os meios urbano, cuja requalificação social ocorria espontânea do descongestionamento das cidades, e rural, cujo fortalecimento se assentava na constituição de uma classe alargada de pequenos e médios proprietários. (DIÁRIO, 31/07/1911, p. 6).
Estes, tidos como relevantes para a economia nacional, também o seriam na consolidação das instituições republicanas, uma asserção assumida pelo autor na linha das convicções que compartilhava com os subscritores do Manifesto-programa de 1891, em razão da réplica política e social previsíveis ao processo de libertação de solo arável preconizado pela República sobre os proprietários rurais absentistas ou sem capacidade financeira para a exploração racional da terra. (DIÁRIO, 31/07/1911, p. 4DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.). Saliente-se, no entanto, o carácter transversal da mobilização para os campos proposto por Ezequiel de Campos, ao defender o investimento descentralizado do ministério do Fomento que convocava para a realização de infraestruturas essenciais ao progresso económico nacional a prazo, um leque no qual a hidráulica agrícola assumia destaque particular. (DIÁRIO, 31/07/1911, p. 7DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.). Ou seja, em seu entender, a relação entre obra pública e oferta de trabalho à mão de obra disponível seria desejável, desde que não implicasse o imobilismo dos serviços do ministério nem o desvio de fundos públicos sem outro impacto além da recuperação patrimonial e do emprego aos operários. Estes também seriam convocados para acompanhar o esforço de regeneração do país, mediante o fomento, o que implicava sua deslocalização para áreas onde a infraestrutura a desenvolver correspondesse aos factores determinantes do investimento público: o benefício do maior número de indivíduos, com retorno financeiro de curto prazo a permitir o reinvestimento dos lucros conseguidos, tão breve quanto possível, em nova intervenção infraestrutural. Assim, a "crise do trabalho" poderia ser solucionada com recurso aos fundos públicos do Ministério do Fomento, de acordo com uma lógica de autofinanciamento, e aos mecanismos de recrutamento utilizados por esta entidade; pressupunha, no entanto, um carácter diferenciado dos investimentos em áreas de melhoramento das condições agrícolas e vias de comunicação, sem dispensar uma intervenção do Estado no reordenamento fundiário nacional.
Neste exercício, a natureza complexa das questões subjacentes ao desenvolvimento económico - assente no alargamento das áreas irrigadas em região de latifúndio e na mudança do perfil dominante da propriedade, com o objectivo de promover o aumento da densidade demográfica bem como a alteração da prática agrícola - justificava o exclusivismo atribuído ao Estado enquanto agente primário da ruptura e, em simultâneo, competente para conciliar o interesse privado com as aspirações e necessidades colectivas. Estas, por seu turno, inspiravam a imagem da agricultura enquanto salvatério possível e imediato da nação - e não apenas do regime republicano - em perigo de sucumbir aos desígnios dos credores externos ou à convulsão social interna, consolidada tanto na expressão quantitativa desta actividade na sociedade portuguesa como nas suas exigências financeiras, mínimas quando confrontadas com o investimento na indústria.
Segundo explicava, a premência da conjuntura económica e social portuguesa, as disponibilidades financeiras do país, considerados o Estado e os agentes privados bem como o ambiente internacional vigente à data da implantação da República, impunham uma política de crescimento que, nacionalmente acessível, se caracterizasse por resultados a muito breve trecho. Nas suas palavras, "de pouco servirá, para esta solução urgente a tomar, começarmos agora, tarde e mal, a fazer uma campanha pela educação e pela ilustração papagueada e letrada; menos nos aproveita de momento encaminharmos para as colónias as nossas atenções exclusivas e a nossa gente; desilusões amargas também nos havia de trazer tentarmos um grande desenvolvimento industrial, ou até somente equilibrarmos umas indústrias com outras que fossemos introduzir, ainda que ao mesmo tempo desassombrassemos ou resolvessemos o problema do trabalho, que tão alarmante se nos mostra, e tivessemos ensejo, que não temos, de trazer uma educação industrial, perfeita em pouco tempo, ao nosso operário fabril. Tudo isso é necessário fazer-se. Mas agora temos de resolver num salto, muito depressa o atraso de juízo que temos posto nos orçamentos com uns grossos números de défice, nós temos de entrar em um lustro a saldar a conta do nosso movimento comercial; e para isto é demorado em demasia qualquer destes expedientes, porque, antes de o obtermos estariamos necessariamente arruinados em toda a linha". (DIÁRIO, 31/07/1911, p. 7DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.).
Em síntese, a Assembleia Nacional Constituinte não se revelou alheada da "crise de trabalho" vigente em Portugal no âmbito cronológico do seu funcionamento (Junho-Agosto de 1911). Tampouco se eximia de estabelecer a relação entre a incidência e acutilância da falta de trabalho suscitada pela mudança política ocorrida em Outubro de 1910. Em larga medida, ocupou-se de dar cumprimento ao conjunto de promessas enunciadas pelo PRP no decurso da propaganda acerca do enquadramento jurídico das relações laborais. Mas também visava às consequências sociais associadas à retracção na procura de mão de obra, fosse no cenário rural, fosse na dimensão urbana onde o Estado, por intermédio do Ministério do Fomento, cuja acção se inscrevia também no âmbito da atenuação dos efeitos dissolventes, assim considerados, do desemprego. Todavia, uma opção pouco consensual entre os constituintes, um universo em que, além do entendimento mais ou menos estrito das competências da Assembleia, se vislumbravam as clivagens surgidas entre os membros do Governo Provisório sobre as prioridades da política republicana, um quadro em que conflituavam, versus e tendencialmente, a perspectiva de moralização financeira imediata do Estado e a ideia de um desenvolvimento económico e social paulatino, em correspondência possível com as reivindicações populares inflamadas pela propaganda republicana, ambos representativos das orientações consagradas pelo Manifesto-programa, de Janeiro de 1891.
Referências
- DECRETO-LEI de 27 de maio de 1911.
- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 7, 27 jun. 1911, p. 3.
- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 10, 29 jun. 1911, p. 7.
- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 11, 30 jun. 1911, p. 2.
- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 12, 3 jul. 1911, p. 4-5.
- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 16, 7 jul. 1911, p. 4-5.
- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 19, 12 jul. 1911, p. 3; 6; 21-22.
- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 25, 19 jul. 1911, p. 5.
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- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 35, 31 jul. 1911, p. 6-18.
- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 36, 2 ago. 1911, p. 9.
- DIÁRIO da Assembleia Nacional Constituinte, sessão n. 38, 4 ago. 1911, p. 6-7.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2014
Histórico
-
Recebido
12 Ago 2014 -
Aceito
16 Set 2014