Resumo
Este artigo objetiva identificar as motivações políticas regionais presentes na elaboração do ideal de brasilidade, bem como mapear as distintas formas de apropriação das concepções científicas, políticas e historiográficas em voga entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Para isso, analisa a produção intelectual e historiográfica de Nelson Coelho de Senna (1876-1952). Muito embora hoje seja um nome praticamente desconhecido, considerado um “autor menor”, Senna realizou estudos sistemáticos sobre a miscigenação e a contribuição que negros, indígenas e europeus deram à língua, cultura e história, na esteira de autores canônicos como Silvio Romero, Capistrano de Abreu e João Ribeiro. Como diferencial, dedicou-se a tais questões com vistas a pensar a história do Brasil a partir de Minas Gerais, sua “pátria”.
Palavras-chave: historiografia brasileira; Minas Gerais; Nelson de Senna; brasilidade; miscigenação
Abstract
This paper aims to identify the regional political motivations intertwined in the creation of the ideal of “Brazilianness” (brasilidade), as well as to map the varied appropriations of scientific, political, and historiographical perceptions that were in fashion by the end of the nineteenth century and the beginning of the twentieth. To do so, the paper analyzes the intellectual and the historiographic production of Nelson Coelho de Senna (1876-1952). Even though Senna’s name is less known nowadays, being considered as a “minor author”, he accomplished systematic studies on miscegenation and on the contribution that Afro-Brazilians, Indigenous-Brazilians, and Europeans gave to the language, culture, and Brazilian history, building on works of canonical authors as Silvio Romero, Capistrano de Abreu, and João Ribeiro. As a particular contribution to the debates, Senna studied those topics regarding Brazilian history from the perspective of the state of Minas Gerais, his “Nation”.
Keywords: Brazilian historiography; Minas Gerais; Nelson de Senna; Brazilianness; miscegenation
O final do Império e início da República foi um período prenhe de projetos que buscavam explicar o Brasil. O momento era de profundos ajustamentos no interior da sociedade: “substituir um governo e construir uma nação, esta era a tarefa que os republicanos tinham de enfrentar” (CARVALHO, 1990, p. 24). Historiograficamente, o advento da República trouxe a necessidade de reorganizar a história nacional e de entender a sua relação com os Estados federados (ARAÚJO; MEDEIROS, 2007). Um nome hoje praticamente desconhecido, mas que à época envidou esforços nesse sentido foi o de Nelson Coelho de Senna. Nascido no Serro, Minas Gerais, em 4 de outubro de 1876, Senna realizou os cursos preparatórios como normalista, entre 1894 e 1896, em Rio de Janeiro e São Paulo. Anos mais tarde frequentou o Colégio Mineiro e o Ginásio Mineiro, em Ouro Preto. Apesar de ser filho de Cândido José de Senna, um político e coronel da Guarda Nacional, procedente da Bahia, e Maria Brasiliana Coelho de Senna, que era professora e natural de Ganhães (APCBH - NCS 3.1 (2), 1914, 20p ), Nelson de Senna coloca-se, em suas notas autobiográficas (APCBH - NCS 3.1 (7), 1947), como moço pobre. Segundo ele, quando no curso preparatório para o Colégio Mineiro, custeou a manutenção de seus estudos com o que ganhava lecionando para a classe elementar.
Por concurso, foi nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, em dezembro de 1894, mesmo ano em que foi eleito presidente do Clube União do Norte, de Ouro Preto. Durante a sua estadia na então capital de Minas Gerais, Nelson de Senna teve contato muito próximo com aqueles que viriam a se tornar importantes nomes da política mineira e nacional. Ele próprio sentia-se privilegiado por ter vivido no local em seus momentos derradeiros, “quando era o quartier latin do Brasil”, em referência ao bairro que fica no entorno da Universidade de Sorbonne, na França, reduto de estudantes e intelectuais.
Dado o pouco recurso financeiro, o diretor do Colégio Mineiro, o engenheiro José Ignácio Carneiro, permitia que ele e outros estudantes rapazes morassem nos quartos das “casinhas”, pequenos edifícios que faziam fronteira com o Casarão da rua da Barra. Dentre os companheiros de morada estavam Arthur Bernardes e Raul Soares, com os quais, juntando-se a Theofilo Pereira e Joaquim Marra, fundou a revista A Academia. Ainda que não tenhamos notícia sobre o conteúdo dessa publicação, o convívio com esses nomes na juventude não deve ser menosprezado. Soares e Bernardes continuaram como referência de caráter cívico e político na vida adulta de Senna.
A formação acadêmica foi contrária àquela que realmente desejava. Na autobiografia, Nelson de Senna afirma que tinha pendores para as Ciências Naturais e chegou a pensar em ingressar como anexim na célebre Escola de Minas ou mesmo na Escola de Farmácia, ambas em Ouro Preto. Acabou optando por fazer a vontade de seus pais, cujo sonho de ver o filho único formar-se bacharel em Direito foi realizado em 25 de novembro de 1897. A inclinação para as ciências naturais, no entanto, não foi abandonada. Ao contrário, parece ter influenciado na escolha dos temas com que posteriormente trabalhou, e no linguajar científico e especializado que adotou como diletante em muitas de suas obras.
Casou-se em 12 de dezembro de 1896, quando ainda cursava Direito, com Emília Gentil, filha do Coronel Antonio Gentil Gomes Cândido, advogado e antigo deputado. Falecido em 16 de setembro de 1911, o sogro, que havia sido chefe político de Mariana no tempo do Império, pode ter contribuído para a sua incursão parlamentar. Mas, foi pelos “braços fortes” de João Pinheiro, a cujo direcionamento político-econômico se enfileirou, que adentrou a política. De 1907 a 1921 foi deputado estadual pela Câmara Legislativa de Minas Gerais. Como representante da região de Diamantina e do Vale do Jequitinhonha, economicamente estagnada, e fazendo uso dos seus conhecimentos como professor, dedicou-se fortemente a pesquisar temas relacionados à energia e aos transportes, que considerava de suma importância para a arrancada econômica e para o desenvolvimento de Minas Gerais e do Brasil.
Reconhecido o seu diploma como deputado federal, em abril de 1921, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1929. Na Câmara Federal a defesa do seu Estado não esvaneceu, mas a atuação, a julgar pelos discursos publicados nos Anais da Câmara1, foi mais tímida. De todo modo, fez da defesa da indústria nacional o seu carro chefe, na esteira do que pregou João Pinheiro no Senado e na Presidência de Minas Gerais. Entusiasta da mineração e siderurgia, Senna ocupou-se com afinco do tema, em um contexto propício à defesa de seus ideais, imediatamente posterior à fundação da Companhia Siderúrgica Mineira (1917), e no momento de criação da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineiro (1921), e do início das atividades da Usina Sabará (1925).
De acordo com Romeu Florival, o apadrinhamento de João Pinheiro e a fidelidade a essa e outras “sinceras amizades”, como a de Delfim Moreira e Wenceslau Braz, teriam lhe garantido eloquência na ação política. Afirmação esta que precisa ser relativizada. O poder retórico, talhado na formação em Direito e no exercício do magistério, foi, não há dúvida, importante para fazer aprovar projetos importantes, como o da criação do Museu Mineiro, a Escola de Aprendizes de Marinheiro, e a lei de prêmios para a educação no estrangeiro. Senna foi condecorado com prêmios e distinções, e era lembrado por seus pares com enobrecimento, como podemos perceber pelas exéquias presentes em seu acervo pessoal2. O seu reconhecimento político, contudo, não ficou para a posteridade.
Dois podem ser os motivos. Para Vera Alice Cardoso (2006), a explicação está no fato de não ter liderado reformas nem ocupado cargos no Executivo, lugar do poder efetivo na Primeira República. A este acrescentaríamos o seu posicionamento frente à sucessão presidencial de 1930 e 1938, ao lado das forças derrotadas, e, portanto, no polo oposto àqueles que foram, em grande medida, responsáveis pelo projeto de escrita da história e construção da memória na Era Vargas. O preço de seu alijamento político recai, inclusive, sobre a sua produção intelectual, que, embora vasta e conectada às preocupações que animavam os espíritos da época, é pouco conhecida até mesmo entre historiadores.
Ao menos inicialmente, o grande cenário para a formulação de seus estudos, digamos, acadêmicos, foi a sala de aula. Por influência da mãe ou por ingerência do destino, pois, como vimos, era a atividade que garantia o custeio de seus estudos, Nelson de Senna iniciou cedo a carreira no magistério. No alto de seus 19 anos, em abril de 1896, foi aprovado, com “as melhores provas”, para ocupar a cadeira de História Universal e do Brasil, na vaga deixada por Afonso Arinos, como catedrático do Ginásio Mineiro. Em 1898, mudou-se para Belo Horizonte, a convite da Escola de Engenharia, para atuar como professor substituto da lente em Direito Administrativo e Legislação de Terras.
A listagem das instituições educacionais e de saber científico das quais foi membro efetivo ou associado seria exaustiva, mas algumas, pela importância que adquiriram na construção de seu pensamento, ou como resultado deste, merecem destaque. Desde a sua entrada no Ginásio Mineiro, Nelson de Senna defendia a criação de um Instituto Histórico e Geográfico Mineiro. A súplica só se materializou em 1907, seis anos após entrar como sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o que certamente abriu portas para que fosse correspondente de diversos IHG’s regionais e internacionais. Das instituições internacionais, destacam-se a Societé Academique D’Historie Internacionale de Paris (1911) e o Instituto Geográfico da Universidade Alemã de Wurzburgo (1927). O reconhecimento de seu valor como literato veio ao entrar para a Academia Mineira de Letras, em 1910.
Foi no âmbito dessas instituições e da atuação como Deputado estadual e federal que Nelson de Senna elaborou a sua produção historiográfica. De maneira geral, podemos considerar que a sua produção é ampla. Não só publicou razoavelmente, como tinha uma obsessão arquivística. Ensaios, artigos de jornal, discursos parlamentares e acadêmicos, planos de aula, anotações esparsas, obras completas, esboços e índices de pesquisa, constituem a base do arquivo pessoal de Nelson de Senna, doado em abril de 1999 pela sua neta, Eliana Ahouagi, ao Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte - APCBH. Para fins de sistematização, dividimos a produção historiográfica aí presente em três conjuntos principais: a proveniente dos debates e discursos parlamentares; as dos seus programas de curso de História Universal e História do Brasil para o Externato Ginásio Mineiro; e a de suas obras bibliográficas. Neste artigo, enfatizaremos o terceiro conjunto, do qual fazem parte os trabalhos A terra e o povo montanheses (tradições mineiras), de 1909; O que deve o Brasil à cultura e à cooperação germânicas, de 1935; e Africanos no Brasil, de 1938.
Nas três obras, esse polígrafo colocou-se como portador da missão de desvendar o verdadeiro ethos da nacionalidade brasileira e de indicar os caminhos para o progresso do país, a partir de Minas Gerais. Tributário de uma ideia de nação que remonta ao século XIX e tem como principais elementos identificadores o território, a língua, a religião e a cultura (DUTRA, 2005), Senna preocupou-se com o sentido da miscigenação; realizou pesquisas sistemáticas acerca da contribuição de negros, indígenas e europeus para a língua, cultura e história de Minas Gerais e do Brasil. Muito embora essas temáticas estivessem em voga à época, acreditamos que suas ideias merecem ser investigadas por duas razões. A primeira é porque evidenciam um projeto integracionista regional que se propunha nacional; e a segunda é porque, na categoria de um autor considerado “menor”, posto que seu reconhecimento intelectual não passou à posteridade, estamos diante de um projeto que não triunfou. Desses motivos emergem também os nossos objetivos nesse artigo. De um lado, evidenciar as motivações políticas fortemente regionais presentes na elaboração do seu ideal de brasilidade; de outro, contribuir com o mapeamento das distintas formas de apropriação das concepções científicas, políticas e historiográficas circulantes na Primeira República.
O “caudal de ideias novas”
A constituição de um povo e de uma pátria impunha aos homens de letras da Primeira República algumas questões fundamentais: quais são os antecedentes? Quem compõe esse conjunto - pretensamente - coeso da nação? Nesse processo de definição, uma miríade de correntes filosóficas e científicas entrou muitas vezes em disputa. De acordo com Lilia Schwarcz (1993), o século XVIII deixou em aberto a discussão sobre o verdadeiro conteúdo do termo “povo”. O temor de que o “povo” das revoluções burguesas significasse princípios igualitários em termos de cidadania levou ao surgimento da ideia de raça e, consequentemente, de novas formas de hierarquização a partir de pressupostos biológicos. Até meados do Oitocentos, prevaleceu a noção monogenista, que acreditava que a humanidade era una e indivisa. A partir da segunda metade do século XIX, a hipótese poligenista encontrou ressonância tanto na preocupação de diferenciar espécies diversas no interior da raça humana quanto no próprio desenvolvimento das ciências biológicas.
A publicação de A origem das espécies (1859), de Charles Darwin, diluiu as querelas mais evidentes entre os polos em debate. A ideia de evolução a partir de um ancestral comum agradava os monogenistas, que seguiram com a hierarquização de raças e povos em função dos distintos níveis mentais e morais; e atendia aos poligenistas, que atribuíam as heranças e aptidões diversas de cada raça ou povo justamente a uma separação desses ancestrais pré-históricos. Nesse ínterim, a cultura passa a ser vista sob a ótica evolucionista e a constituir o foco dos estudos da Antropologia cultural, que então se firmava como disciplina. Civilização e progresso são transformados em conceitos universais em torno dos quais a cultura gravita em estágios sucessivos de desenvolvimento. De maneira geral, sobressaíram duas diretrizes. A otimista, que entendia o progresso como destino obrigatório comum a todos os povos; e a pessimista, que defendia a existência de tipos “puros” e enxergava a mestiçagem como degenerescência racial e social (SCHWARCZ, 1993).
Associados, a invenção de uma classificação racial universal e o etnocentrismo ajudam a explicar a construção da Europa como naturalmente superior e vanguardista da modernidade. Com esse embasamento, os europeus geraram uma nova perspectiva temporal da história e situaram os povos colonizados no passado de uma trajetória histórica cuja culminação era a própria Europa. Isso fez com que a modernidade e a racionalidade fossem consideradas produtos exclusivamente europeus (MIGNOLO, 1993). Numa postura profundamente binária, todos os povos encontrados pelos europeus na América, a despeito de suas memórias e identidades diversas, foram reduzidos a uma única identidade: índios. O mesmo com os povos trazidos de África como escravizados - homogeneizados como negros. Mais do que construções ou reduções, essas denominações foram a imposição de uma nova identidade que era “racial, colonial e negativa”. Dali para frente, índios e negros “não seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas inferiores” (QUIJANO, 2005, p. 116).
No Brasil, essas ideias deram origem a posicionamentos de um racismo à brasileira. Com base nas teorias de Césare Lombroso, Arthur de Gobineau e outros, Nina Rodrigues, por exemplo, defendia que a mistura apenas levaria à exacerbação dos vícios das raças inferiores, dentre os quais a predisposição afro-indígena à criminalidade. Para ele, o comportamento social era diretamente afetado por características raciais inatas (SKIDMORE, 1976). Já Silvio Romero agarrava-se à ideia de que, se somos inferiores porque mestiços, em uma linha evolucionista e organicista, essa mesma mistura garantiria a preponderância do sangue branco no futuro de dois ou três séculos: “O mestiço, que é a genuína formação histórica brasileira, ficará só diante do branco quase puro, com o qual se há de, mais cedo ou mais tarde, confundir” (ROMERO, 1994, p. 20), afirmava Romero (1994).
A mestiçagem é aqui apresentada como uma obra inconclusa, e, portanto, em aperfeiçoamento - um subterfúgio para ampliar o “horizonte de expectativa” brasileiro. Trata-se de uma teoria do branqueamento que não mais se prende à necessidade de inserção de imigrantes para ocorrer. É a lenta e gradual evolução no sentido do progresso, inclusive das raças. No que ficou conhecido como Atavismo, a tese era de que no cruzamento racial a longo prazo sobreviveriam apenas as características das raças superiores, logo dominantes. Assim como Romero, Senna entendia a mistura de raças de maneira positiva e, mais do que isso, como responsável pela singularidade e força de nossa nacionalidade - ainda em formação.
Em meio ao caudal de teorias científicas sobre a constituição do ser humano, era complexa a tarefa de definir os elementos contidos no conjunto da nação, e conciliar esta eleição com um projeto de modernidade esculpido à imagem e semelhança da Europa, em tudo destoante do contexto brasileiro. A ideia de que uma determinada raça poderia ser inferior e inadaptável à civilização era um desafio a ser enfrentado.
O mosaico: a formação do povo brasileiro
A hipótese do branqueamento ou da possível neutralização de elementos negativos por parte do branco europeu se sofisticou em termos ideológicos no exato momento de formulação e consolidação do pensamento e da obra intelectual de nosso autor. Nessa esteira, Nelson de Senna apostou na temática da miscigenação para a sua escrita da história, tônica que advinha da concepção histórica do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em Como se deve escrever a história do Brasil (1844), Karl Friedrich Von Martius postulou que a chave para se compreender a história brasileira residia no estudo do cruzamento das três raças formadoras da nossa nacionalidade - a branca, a indígena, a negra -, esboçando a questão da mescla cultural sem, contudo, desenvolvê-la. Após o projeto de Martius, coube a Francisco Adolfo de Varnhagen, em 1852, lançar as bases de nossa história oficial: encontrou na expulsão dos franceses e, principalmente, dos holandeses, as bases da cooperação das três raças. Evidentemente, pela maneira como se formou a sociedade brasileira, é impossível falar em cooperação de três raças ou de três culturas, seja porque a mistura se deu pelo violento processo de submissão, ou porque havia variadas etnias e grupos culturais reunidos sob a alcunha de europeu, africano e indígena (CARVALHO, 2004). Em que pese este argumento, fato é que a temática emplacou.
Do ponto de vista historiográfico, desde a década de 1870 é possível identificar uma renovação interpretativa interessada em “acessar os estratos mais profundos do passado colonial” e pensar uma história que não poderia mais desconsiderar os “selvagens” ou mesmo ficar restrita ao litoral. A questão indígena e os sertões emergem, pois, como “objetos enigmáticos” indispensáveis para pensar a nação (FRANZINI; GONTIJO; OLIVEIRA, 2018). O “povo” foi, a um só tempo, selecionado como objeto e instância legitimadora da enunciação historiográfica, em cuja unidade deveria ser buscada a formação histórica da nação (TURIN, 2009A). Assim, a narrativa sobre a mescla racial presente nos trabalhos de Senna é não só explicativa, como condizente com a visão corrente na historiografia. Tal como no modelo varnhageniano, o ponto de partida da miscigenação foi o século XVI; primeiro entre indígenas e europeus; e, depois, entre europeus e negros africanos. Sobre o grau de contribuição de cada uma delas, Senna foi tão tendencioso quanto, embora menos indisposto com indígenas e africanos do que Varnhagen.
Por serem portadores da língua neolatina, de uma religião civilizadora-cristã e de um processo de conquista política e militar devidamente orientada, afirma Senna, os portugueses representavam, desde o início, a cultura europeia no Brasil. Da colaboração direta lusitana resultaram o povoamento do solo, as tradições político-administrativas, a educação católico-monárquica do nosso povo, entre outros. O elemento africano adentrou, ao longo de quatro séculos, com o “formidável contingente do seu mórbido temperamento, das suas rudes paixões e superstições” na formação social do nosso povo. Para comprovar as profundas marcas que o negro deixou na alma nacional, argumenta o autor, bastava contemplarmos as modificações operadas em nossa língua, cultos, costumes familiares e sentimento de autoridade.
Também na alma do brasileiro teria se fixado o “ardente temperamento” do aborígene “indolente e bravio, incapaz de poder suportar o peso de uma civilização, ingênuo, ocioso e rebelde, estranho ao domínio”, principalmente no brasileiro de “impressão nativa”, isto é, descendente de indígenas. Na língua e na cultura, material e imaterial, sua presença é extremamente marcante. A partir de seus estudos linguísticos, Senna identifica na fauna e na flora brasileiras centenas de nomes de plantas, árvores, madeiras, frutas. A técnica indígena de fabrico de utensílios, artefatos, enfeites, está no nosso artesanato, da mesma forma que o cultivo da terra. E, ainda, “pela inteligência do gentio” nos foram legados mitos, superstições e tradições que enriqueceram sobremaneira nosso vocabulário e folclore (APCBH - NCS 3.4, s/d).
Da mistura do sangue indígena com o português, emergem o que Senna denomina como “mágicos mestiços-mamelucos, verdadeiros pioneiros do deserto”; da fusão do índio com o negro, os caribocas ou cafusos; e, da mescla do branco europeu com o negro, a maioria da população brasileira, a gente parda-mulata. No tocante aos traços mais gerais, ele afirma insistir no “problema genético da nacionalidade brasileira” por se orgulhar cada vez mais da nossa formação social e acreditar que a página da história nacional precisa ser enriquecida com este assunto. A fusão étnica do sangue lusitano com o “sangue puro” do silvícola e o sangue do “paciente escravo africano”, resultante de três séculos de colonização é, para ele, a “prova triunfal de nossa vitalidade e de nosso esforço”. Estas três raças prepararam “a primeira mescla dos sangues, nas variantes e matizes diversos pigmentos, exatamente para deixar bem nítida essa diversidade dos fatores do nosso povoamento”. (APCBH - NCS 5 (38), s/d, p. 406).
Senna não chega a um consenso sobre o valor de negros e índios na formação do povo brasileiro (SILVA, 2006). Para ele, ambos ocupavam um grau de inferioridade racial, por isso a mistura com o branco teria sido essencial. Há claramente uma percepção eurocêntrica na proposição de que o povo brasileiro herdou a racionalidade do branco europeu e o lado passional afro-indígena. A maior predisposição para com os índios pode, à primeira vista, ser sinalizada em um discurso pronunciado no Ginásio Externato Mineiro, sua primeira audiência pública como “jovem catedrático de pouco mais de 20 anos” (SENNA, 1938, p. 24), em 13 de maio de 1897, por ocasião do aniversário da Abolição (APCBH - NCS 5 (38), 1897).
A fala de Senna é iniciada com a afirmação de que, se por um lado a escravidão que submetia a açoites e martírios foi horrenda, por outro, livrou as tribos primitivas de morrer em rituais canibais, comuns quando da conquista do inimigo. E assim foi até a passagem para o mundo moderno, que iniciou a escravidão do “inditoso aborígene”, espoliando-o de sua vida nômade e livre. O autor faz, então, uma distinção entre a escravidão antiga e a moderna. A primeira era um “mal menor” não só porque livrava o cativo da morte por canibalismo, mas porque a sua intenção era a de premiar pela vitória numa batalha, ao passo que na moderna o objetivo único era o espólio e a crueldade.
A conquista da América, frisa o autor, se fez à custa de levas de trabalhadores indígenas, “que dentro em pouco eram cadáveres! Pilhas de esqueletos, sinais de incêndio, sangue e latrocínios abomináveis por toda a parte” (APCBH - NCS 5 (38), 1897, p. 296). Genocídio este que despovoou o continente e não ofereceu alternativa a espanhóis e portugueses que não a do “cérebro de um maldito da história [que] acudiu a diabólica ideia de vender ébano vivo à terra americana”. (APCBH - NCS 5 (38), 1897, p. 296). A escravidão seria uma mancha para o Brasil. Contudo, mesmo se considerando filho de “uma nova época de altruísmo e nivelamento social, nascidos ao despontar de uma política mais humana e regeneradora”, Senna não deixa de apontar os africanos como “tipos ideais de servos”, sempre dóceis e humildes, o que garantiria o sucesso do escravismo africano no Brasil. Raça e meio se encontram de maneira inquestionável na máxima em que explica o porquê da predominância quantitativa do negro entre o povo brasileiro: “o cruzamento, a mestiçagem, a própria fecundidade da raça preta, influenciada pelas nossas condições mesológicas, já faziam indubitável a supremacia do negro, pelo número, sobre a população branca no Brasil”. (APCBH - NCS 5 (38), 1897, p. 301).
De 1897 para 1938, data do Cinquentenário da Abolição da Escravidão no Brasil, o discurso de Senna se torna mais assertivo com relação à influência do negro na cultura brasileira, para o que se embasa na obra O abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco. A fala pode ser dividida em dois momentos. O primeiro sinaliza como a temática afro-brasileira inspirou comédias, poemas, dramas, contos e outras tantas produções literárias de autores brasileiros, entre os quais cita Afrânio Peixoto, José Lins do Rego, Jorge Amado, Cruz e Souza, Viriato Corrêa e Casto Alves. Já o segundo, aponta quantas as inspirações literárias retiradas do folclore afro-negro, das lendas e mitos transmitidos pela tradição oral brasileira, como do cágado, do bugio, do caxinguelê, do calunga e do tutu-marambaia.
Ainda em 1938, Senna publicou seus estudos sobre a influência afro na linguagem e nos costumes brasileiros sob o nome Africanos no Brasil, definido pelo próprio autor como mais genérico. Nesse trabalho, além de uma extensa lista de vocábulos, alcunhas, apelidos e expressões, são apresentadas as influências na música, nos ritos e fetichismos religiosos e culturais; e indicadas algumas teses. Em face da pergunta sobre quais motivos o levaram a se dedicar ao tema, Senna explica que há mais de 30 anos vinha se dedicando aos africanismos e indigenismos na linguagem brasileira, publicados no Anuário de Minas Gerais e em revistas de filologia, de modo que o tema não lhe era novo. Havia nele a “ternura de ‘branco’ agradecido aos carinhos da velha ‘Mãe-Bá’”, uma negra africana que havia lhe embalado a infância com suas histórias e cantigas. À memória afetiva acrescenta um dever patriótico de conhecer melhor os povos daquele continente para onde foram degredados os seus compatriotas da Inconfidência Mineira (SENNA, 1938, p. 25).
Nesse ponto, é inevitável o paralelo com a prática historiográfica que foi se firmando a partir da chamada “Geração de 1870”, da qual fizeram Silvio Romero e Joaquim Nabuco: a de lançar mão do saber etnográfico para uma reelaboração da história nacional. Estamos diante de uma estratégia para escapar do modelo historiográfico erigido pelo IHGB e pelo Museu Nacional, que direcionava o saber etnográfico para o passado indígena em particular, mas não para a nação como um todo. Nos dizeres de Turin (2009A, s.p), esses autores “se voltavam para a etnografia como um remédio à linguagem vazia da retórica e da erudição documental”. A partir daí, construíam uma temporalidade própria para a nação de maneira distinta da que vinha sendo trabalhada pela historiografia do Império. Seria esse o caso de nosso autor? A julgar pelas suas próprias afirmações, o posicionamento parece ser dúbio.
Por um lado, Senna justificava não se aprofundar nas características de cada um dos mestiços, pois um estudo mais detalhado do problema escapava à história e adentrava o terreno da sociologia, para o que indicava as leituras de História da Literatura Brasileira (1888), de Silvio Romero; O Compêndio de História do Brasil (1900), de João Ribeiro; e Capistrano de Abreu. (APCBH - NCS 5 (6), 1905, p.85-86). Por outro, dizia-se convicto de que para bem conhecermos as “fontes e diretrizes da civilização brasileira” não bastava conhecer o elemento colonizador europeu, a quem devemos a posse da terra, a unidade territorial, a língua nacional, a crença cristã, a organização social e familiar. Segundo ele, tínhamos
de descer aos subterrâneos da História Pátria, saindo por algum tempo da superfície (no caso, a civilização de raça branca) e aprofundando as buscas e pesquisas nos elementos “ameríndio” e “africano”, plasmadores, em concorrência com os elementos luso-ibéricos, de muitas feições típicas do caráter, das tendências, do temperamento, da sentimentalidade, enfim, dos defeitos e qualidades do povo brasileiro. Devemos, portanto, até pelo lado moral, resgatar essa dívida de gratidão para com duas raças esquecidas e injustamente desprezadas (a “preta” e a “vermelha”), cujo sacrifício foi imposto através de quatro séculos de opressão, pelas exigências da “raça branca”, mais civilizada e dispondo de melhores meios de civilização. (SENNA, 1938, p. 25).
Definidas as matrizes nacionais a partir desse “mergulho profundo”, o passo seguinte era mapear os acréscimos. Foi o que Senna fez em um discurso pronunciado na Câmara Federal, no qual identificou as outras nuances somadas ao povo brasileiro a partir da Independência, com a chegada dos imigrantes europeus, ainda arianos, como os ítalos, germânicos, slávicos e escandinavos, seguidos do elemento mongólico puro dos japoneses, e o elemento oriental semita dos sírio-libaneses e turco-árabes. Em 1926, ano desta fala parlamentar, já não era possível ignorar a maciça presença estrangeira impulsionada pela política de imigração do Governo do Brasil (COSTA, 1998). De todos os expoentes de outras nações que aqui chegaram nas primeiras décadas do século XX, chama a atenção o fato de Senna dedicar espaço aos alemães. Temos, junto a este, outros indícios de que era um admirador da cultura germânica, e adepto do culturalismo alemão - apesar de ter flertado mais diretamente com a teoria dos tipos sociais de Émile Durkheim ao indicar os tipos representantes de cada região do país.
A obra O que deve o Brasil à cultura e à cooperação germânica (APCBH - NCS 5 (61)A, 1931/1932) foi publicada em 1935. Seguindo a lógica de que o texto tem um significado e uma intenção no momento em que é escrito e é para ele que o historiador deve olhar (SKINNER, 1969), é necessário problematizar o período. O manuscrito contido em seu Arquivo Pessoal tem duas datações: o texto é de outubro de 1931, e a nota suplementar com os nomes e apelidos teuto-brasileiros espalhados pelo Brasil é de abril de 1932, com a localização do Rio de Janeiro. Isto nos permite supor que a obra foi, se não completamente, ao menos boa parte, construída no momento de surgimento e gestação do nazismo. O trabalho vem a público apenas dois anos após a ascensão de Adolf Hitler ao poder. Curiosamente, Senna guardou em seu acervo pessoal um recorte de jornal sobre este evento. (APCBH - NCS 6.3, s/d).
O fato per si não nos permite afirmar que Senna fosse um entusiasta do nazismo, mas abre a perspectiva para pensarmos a questão pelo viés do imbricamento da ideologia nazista com o darwinismo social e, sobretudo, do nacionalismo. Isso porque as ideias não se formam de maneira isolada, mas a partir de um trânsito constante. As teorias de Joseph de Gobineau, Francis Galton, Friedrich Ratzel, entre outros, que diferenciam a raça em níveis hierárquicos e vinculam-na com a nacionalidade, influenciaram pensadores de diversas partes do globo. São o substrato comum nas interpretações raciais nazistas (WEIKART, 2004), da mesma forma que apresentam resquícios nas formulações de Senna. As variações estão na leitura e no peso atribuído a cada teoria. É provável que em um primeiro momento, anterior ao horror dos campos de concentração, nosso autor tenha enxergado com simpatia o discurso hitlerista de fortalecimento dos sentimentos nacionais para a superação das dificuldades econômicas e sociais. Não estaria aí o remédio para a realidade a partir da qual Senna escreve? A resposta nos parece positiva e encontra reforço na admiração que nosso autor nutria pela cultura letrada germânica.
De acordo com Senna, devemos aos alemães as mais inestimáveis colaborações para a exploração geográfica e geológica do Brasil, bem como para o estudo da nossa fauna, flora, antropologia, etnografia, folclore e linguística indígena. Sua iniciativa de elaborar um sistemático levantamento sobre o que foi produzido, editado ou publicado por alemães sobre o Brasil até 1930, seria seu sinal individual de uma sincera gratidão que o povo brasileiro devia aos esforços de cientistas, professores, engenheiros, técnicos e militares germânicos que “trabalharam pela nossa civilização do ponto de vista intelectual, moral e material” (APCBH - NCS 5 (61)A, 1931/1932). A cronologia é iniciada em fins do século XV, com Martim Behaim Nuremberg, passando por Hans Staden, Humbolt, Eschwege e Von Martius; chegando até os industriais da Casa Siemens-Schukert, responsáveis pela expansão dos serviços de eletricidade.
As contribuições de descrições científicas e da cultura letrada germânica que Senna apresenta inicialmente são as provenientes de viajantes e expedições, que aqui aportaram no período que Sérgio Buarque de Holanda (2006) de maneira perspicaz denominou como “redescobrimento do Brasil”. A partir da Guerra do Paraguai (1870), explica Senna, o Brasil experimentou o vigor de um renascimento social, político e intelectual, que naturalmente desembocou na ânsia por “nova orientação reformadora dos velhos métodos e sistemas”, para o que o germânico estendeu sua influência até nós, “por intermédio de um grupo de brasileiros dominados pela nova corrente de ideias que agitava a mentalidade do Novo Mundo”. (APCBH - NCS 5 (61)A, 1931/1932, p. 25). A referência aqui é o “bando de ideias novas” de que fala Silvio Romero, representante deste grupo no qual Senna também parece se inserir, apesar da fala em terceira pessoa. O evento ilustrativo desse prestígio seria, segundo ele, o Centenário de Goethe, em 1932, que contou com a presença de nomes como Gilberto Amado, Roquette Pinto, Fróes da Fonseca e João Ribeiro.
Longe de ser uma via de mão única, Senna prefere entender a relação Brasil-Alemanha como um intercâmbio. De terras alemãs importávamos maquinaria elétrica, motores e dínamo para a indústria fabril, bem como drogas, tintas, vernizes e medicamentos. Em contrapartida, para lá o Brasil exportava café, cacau, borracha, madeiras, castanha, doces, minérios, entre outros. (APCBH - NCS 5 (61)A, s/d). A imigração seria uma forma de incentivar a manutenção dessas relações. Esses novos componentes, os imigrantes, Senna denominava como “tipo brasileiro do futuro”.
A “forte presença germânica” entre nós - não só a das ideias, mas a material - seria corroborada com dados do Reich, de 1914, que apontavam o Brasil como a quarta colônia alemã no mundo, somente superado por Estados Unidos, Rússia e França. Como pioneiras nos ensaios de colonização, Senna aponta as terras paulistas e mineiras: a primeira na Fazenda Ibicaba (Limeira), por iniciativa de Nicolau Vergueiro; a segunda na Vila de Paraibuna (Juiz de Fora), levada a cabo por Mariano Procópio; e a terceira a de Philadelphia (Vale do Mucury), criada por Teófilo Ottoni. Em 1932, Senna orçava em meio milhão de teuto-brasileiros, muitos com destaque no cenário político-social, administrativo, militar, diplomático, religioso. Os nomes de origem teutônica estariam em várias localidades, prenomes e sobrenomes brasileiros.
Cada um dos componentes étnicos, a seu ver, representa um expoente da nossa força de adaptação ao solo. É sempre, afirma Senna, o mesmo tipo “valente, astuto, fiel e bravo” que se acha entre nós: o canoeiro do São Francisco; o tropeiro de Minas; o faiscador de ouro; o garimpeiro da Bacia do Jequitinhonha; o caipira de São Paulo; o capinador baiano; o boiadeiro goiano ou do Triângulo Mineiro; o jagunço dos sertões nortistas; o curumim amazônico; o pescador de Santa Catarina; o barriga verde de Laguna e da costa do São Francisco do Sul; o gaúcho das coxilhas riograndenses; e o campeiro do Mato Grosso. Esses tipos, segundo ele, representam nosso povo. (APCBH - NCS 5 (38), 1916).
Brancos arianos, indígenas e africanos. Racionalidade e sentimentalismo. Civilização e folclore. Uma mescla que, para Senna, deu certo e garante a peculiaridade da nação brasileira na América e no mundo; que só ocorreu porque foi o Brasil “graças a Deus formado sem preconceitos raciais”. No seio dessa população heteróclita - que o autor descreve quase como uma tela colorida com matizes branca, preta-africana, vermelha-americana, aos quais vieram juntar-se os amarelos-asiáticos (japoneses) - não vingou a doutrina “anticristã” das paredes estanques que separam as raças (SENNA, 1938, p. 47). Segundo Senna, dos 38 milhões de brasileiros em 1946, pelo menos 50% eram “cruzados”, “oriundos da mescla profunda do sangue ariano, superiorizando a nossa formação racial sem, todavia, apagar dela as virtualidades, as tendências e o temperamento das sub-raças formadoras”. (APCBH - NCS 5 (38), s/d, p.406).
O autor considerava que no Brasil a assimilação e absorção raciais entre brancos e negros era um problema solucionado. Uma visão que não lhe é particular e, guardadas as proporções, encontramos até mesmo na chamada virada historiográfica da Geração de 1930, nos intérpretes do Brasil. Em Gilberto Freyre, a colonização do Brasil foi vista como um sucesso justamente por originar uma sociedade que soube promover “um bem-sucedido ajustamento para um profundo desajustamento”. Por um lado, é preciso entender Casa Grande & Senzala pelo que a obra é - um estilo de história cuja pretensão é falar sobre a própria vida de Freyre, resguardando do esquecimento os traços presentes em sua memória (NICOLAZZI, 2008). Por outro, há aí elementos que o levaram a ser acusado de escamotear o preconceito de cor sob a égide de uma “democracia racial” - a começar pela visão de que o nosso processo de miscigenação teria sido em certa medida maleável e harmônico. Segundo José Carlos Reis (2007), Freyre acreditava que a superioridade militar garantidora da dominação inicial, se perpetuou e evoluiu, sem abandono da violência, para uma “exacerbação da afeição pelo vencido” (REIS, 2007, p. 52-68). O português foi aquele europeu que melhor enfrentou as intempéries tropicais e a ausência de mulheres “socialmente aceitas” na Colônia.
A teoria freyriana buscou no passado de Portugal, na presença dos mouros na Península Ibérica, uma “pré-disposição psicofisiológica” à essa mistura de raças. É também nesse passado que Sérgio Buarque de Holanda identifica as raízes de uma “ausência de qualquer orgulho de raça”, explicável pelo fato de os portugueses serem eles mesmos um povo mestiço quando do início da colonização. Essa “plasticidade social” teria nos legado um domínio brando e mole, propiciador de uma vida “incomparavelmente mais suave, mais acolhedora das dissonâncias sociais, racionais e morais” (HOLANDA, 2006, p. 52). O brasileiro resultante é o “homem cordial”, concepção ainda hoje deturpada e simplificada como o homem permissivo, ausente de caráter, mas que, no pensamento buarquiano, se relaciona com a sobreposição do passional em instâncias organicamente racionais, inspirado no conceito de patrimonialismo de Max Weber (MATA, 2013).
A questão que Reis coloca ao trabalho de Freyre pode ser estendida não só a Holanda, mas também a Senna: teria a miscigenação degenerado os brasileiros? Para esses três autores o problema estava não na miscigenação, e sim no sistema em que ela foi gestada. Na concepção de Holanda, teria confundido os limites entre a esfera pública e a privada. No entender de Freyre, o que debilitava o povo brasileiro era a monocultura latifundiária, responsável pela desnutrição e miséria do Nordeste. Seguindo lógica semelhante, Senna associava a “qualidade eugênica da população” à pequena propriedade (SILVA, 2006).
O posicionamento desse intelectual mineiro é bastante claro - e, por isso mesmo digno de nota - frente aos debates sobre eugenia e mestiçagem da época. Era com “íntima ironia” que via os que se agitavam no Parlamento sobre a questão da inferioridade das raças e a possibilidade de um branqueamento. Amparado “nos melhores etnólogos e sociólogos”, afirmava não ser mais possível discutir e rechaçar “as tonalidades de pigmentação da pele”, porque nenhuma das raças poderia preponderar aqui no Brasil. O destino de todas era o “de se misturar sofrendo o efeito de uma quase endosmose transformadora que, ao solo americano, as penetra vivamente, adaptando-se ao ambiente, à tradição, aos costumes e à língua do país para onde emigravam”. (APCBH - NCS 5 (38), s/d). Sobre o medo do elemento estrangeiro deturpar a cultura nacional, Senna não é menos pragmático. Dizia-se favorável ao investimento na produção de vinho das colônias do sul do Brasil, pois sempre que enriquece o colono se associa economicamente ao país e se faz mais brasileiro. (APCBH - NCS 4 (15), 1925).
Evidentemente, essa crença na não-preponderância de uma raça sobre outra deve ser vista para além de um esforço de coesão do corpo da nação. Era, antes, uma forma de neutralizar possíveis “riscos” de que o Brasil continuasse a ser visto pelas lentes eurocentradas como uma nação de “pretos” e “índios” que, como tal, seria inapta à civilização, ao progresso e à modernidade. De toda forma, isso nos leva a uma segunda indagação: o que daria liga a essas partes, o que manteria povo e território unido em torno da nação? Qual a moldura para este quadro multicolor de raças brancas, negras, vermelhas e amarelas? A resposta está em Minas! A tradição, história, política e geografia de Minas Gerais garantem para ele a força centrípeta, a conexão, o cimento firme e indissolúvel das peças do mosaico.
O amálgama mineiro
O temor imperial de esfacelamento e fragmentação político-territorial chegou até a República. O sistema federalista era uma forma de manter unidas as distintas - e com interesses muitas vezes conflitantes - partes regionais do território brasileiro, mas também possuía o efeito colateral de aumentar a influência dos potentados locais. Eis o grande paradoxo que os republicanos teriam de enfrentar para levar a termo o projeto de construção de uma nação (COSTA, 1998; FAORO, 2001).
De um lado, republicanismo e nacionalismo aparecem intrinsecamente articulados, muitas vezes sombreando as nuances das fronteiras entre um e outro. De outro, a partir da década de 1920 o Rio de Janeiro perdeu a primazia como modelo e vanguarda de propostas nacionalistas. Nesse processo, “a nacionalidade passa a ser identificada com outros modelos regionais que competem entre si na definição do mosaico da cultura brasileira” (OLIVEIRA, 1990, p. 25). Era esse o cenário ideal para Senna buscar em fatos históricos um tradicional patriotismo e republicanismo, expondo, assim, a fidelidade mineira e a sua imprescindibilidade para a nação.
À primeira vista, parece haver um conflito em suas obras entre a dimensão ampla da nação e uma ideia de pátria mais ligada ao caráter localizado em Minas Gerais. No entanto, quando analisadas em profundidade, podemos identificar uma abordagem que foi muito presente na intelectualidade brasileira a partir das décadas de 1920 e 1930. Nesse momento de integração entre o modernismo e o Estado Novo, a solução para a crise de patriotismo3 então reinante foi buscar as razões para “amar o Brasil” nos antigos valores nacionais e numa ideia que coloca o regional como ponto de partida para se alcançar o nacional (OLIVEIRA, 1990).
Interessante a esse respeito, é na Câmara Federal que nosso autor proferiu uma de suas mais incisivas falas sobre o tema. Na ocasião, dizia ele, aquele que lesse as páginas da história mineira logo ficaria convencido de que Minas Gerais e seus filhos tinham o “mais acentuado espírito de brasilidade”, pois o que sempre dominou o espírito de seus conterrâneos foi a prática de uma “elevada e sadia política republicana”, com vistas a “enlaçar numa cadeia de recíprocas afinidades e fundamentais interesses, a todas as unidades da federação”. O autor frisa que, no Império ou na República, sempre foi vivo entre os mineiros o pendor da confraternização, a amizade com os Estados co-irmãos que compõem o
formidável bloco nacional em que 40 milhões de brasileiros cimentam a comunhão do seu sangue, da sua língua, das suas crenças religiosas, das suas instituições políticas e sociais, em constante ascensão para os nossos irreprimíveis destinos históricos de nação verdadeiramente digna da atenção e do respeito do mundo. (APCBH - NCS 4 (23), s/d, p.02).
Desinteressada, eficiente e fraternal seria a corroboração dos mineiros para com os imperativos patrióticos de uma firme comunhão com todos os Estados. Uma postura derivada de seu próprio temperamento, “conservador sem emperramentos”, que não tem a pretensão de sobressair-se, mas sim de fazer jus ao seu labor junto à pátria. Senna é enfático na afirmação de que Minas Gerais entendia a política federalista republicana sem eivas de regionalismos desagregadores, e que, na concepção dos mineiros, não existia norte ou sul, centro ou ocidente, sertão ou litoral, apenas, “antes de tudo, uma única nacionalidade da qual todos nós temos que cuidar para bem servi-la”. (APCBH - NCS 4(23), s/d, p.05).
Não estamos somente diante de uma exaltação patriótica do caráter mineiro. É preciso compreender esse discurso no específico momento político a que ele se destina. Trata-se de uma carta de referência para o apoio prestado por Senna à Aliança Liberal. Na eminência das eleições presidenciais de março de 1930, o então presidente da República, o paulista Washington Luís, rompeu o pacto São Paulo-Minas Gerais e indicou a candidatura de seu conterrâneo, Júlio Prestes, e não a do mineiro Antonio Carlos, como esperado pela política de alternância implicitamente acordada entre os dois Estados. Minas Gerais uniu-se ao Rio Grande do Sul e ambos formaram, no início de agosto de 1929, uma coligação de oposição para apoiar a candidatura de Getúlio Vargas e João Pessoa à presidência. Como explica Boris Fausto (1975), a Aliança Liberal exprimia as reivindicações de vários grupos desvinculados da economia cafeeira, os quais, colocados como um instrumento de pressão, fizeram da reforma política o cerne de seu programa.
De acordo com Senna, seu maior desejo era de que os lados opostos levassem a uma contenda cívica e não ao simples ódio. Unia-se à Aliança Liberal por acreditar que o quatriênio a se iniciar asseguraria dias de prosperidade à nação, o que, pode-se especular, significava a contemplação dos anseios mineiros por intermédio de Arthur Bernardes, figura que “conjugava a retilínea conduta moral e a serena de uma alma enérgica”. O curso da história não correu como o esperado. Getúlio Vargas chegou ao poder, promulgou uma Constituinte democrática, que garantia o voto direto e secreto, pluralidade sindical, alternância de poder, entre outros. Em 1937, entretanto, amparado em uma suposta ameaça comunista do Plano Cohen - posteriormente desmascarada como parte do projeto golpista - Vargas decretou estado de guerra, fechou o Congresso e deu início ao período que ficou conhecido sob a alcunha de Estado Novo. Em defesa da redemocratização, um grupo de intelectuais de Minas Gerais, dentre os quais Senna, assinou uma carta aberta, publicada em 24 de outubro de 1943, que ficou conhecida como Manifesto dos Mineiros.
Em linhas gerais, ao menos simbolicamente, o documento procurava reforçar o papel de Minas Gerais na defesa dos interesses republicanos e democráticos. Para Sérgio Miceli (1981) há um elemento de fundo empalidecido por este discurso mais evidente que merece atenção. Os signatários do documento seriam aqueles alijados da política varguista, órfãos de um Partido Republicano Mineiro - PRM e de um Bernardismo em declínio. Essas questões ganham sentido quando lembramos que Senna não conseguiu se reeleger deputado após 1929, abandonando a carreira política, e, a partir de então, dedicando-se ao ofício intelectual e do magistério. A tal postura Vera Alice Cardoso Silva (2006, p. 38) chamou “coerência”, uma vez que não aderiu ao novo pacto.
Com efeito, a devoção aos ideais originais do PRM é perceptível na afirmação de que o partido traduzia a “alma republicana” de Minas Gerais, “essa grande força eminente” que dentro da comunhão nacional representava um “bloco vivo de energia”, de apego à tradição e à constância da fé republicana, de amor intenso pela liberdade, e de respeito à lei. (APCBH - NCS 4 (31), s/d). Do alto da tribuna ou nos misteres do magistério, fato é que, por ser mineiro, nosso autor se autolocalizava em um patamar privilegiado, portador de uma máxima virtude política construída em anos de história, no lastro de nomes como Tiradentes, Afrânio de Melo e João Pinheiro.
Aos olhos de Senna, a Conjuração Mineira, “acentuadamente republicana”, deu a Minas Gerais a “preeminência e a primazia, até o sangue, dos ideais democráticos”. (APCBH - NCS 4 (24)B, 1929, p. 6086). Segundo ele, “deste alto miradouro das nossas montanhas no Planalto Central, temos como que a visão mais larga, mais dilatada e mais ampla dos problemas da Pátria brasileira”. (APCBH - NCS 4 (30), s/d, p. 02). O tom laudatório é expresso em uma espécie de “mineirocentrismo”, cuja análise nos revela um dito “amálgama” que não se dá apenas no campo subjetivo das ideias políticas, mas que ganha materialidade na terra e no homem.
A terra e o povo montanheses (tradições mineiras) é uma verdadeira ode nesse sentido. Senna defende que cada quadro da paisagem mineira traz a odisseia de desbravamento do sertão. O povo mineiro é aquele resultante desse embate; é aquele que, numa labuta contínua, conseguiu vencer as asperezas do meio. Igualmente formado da mescla, interessante é que Senna resgate um mito paulista para explicar o seu povo. Em última instância, o mineiro resulta do trabalho do bandeirante. Esse “desbravador” encarnou o caldeamento entre o “sangue forte do selvagem”, o do “negro humilde e amoroso” e o do “rude e ambicioso aventureiro do além-mar”. O resultado foi a produção de “uma liga de camadas étnicas, a população forte e enérgica e ousada das Minas Gerais”. (APCBH - NCS 5 (38), 1909). Se a intenção é demarcar as peculiaridades, o que explica buscar as origens no bandeirante? Aproximar-se de São Paulo seria uma forma de demonstrar-se tão relevante quanto para a nação? Seria um exercício de alteridade?
São Paulo forneceu o substrato, mas a lapidação do mineiro, aquilo que o tornou autêntico, foi aperfeiçoado no solo de Minas Gerais, no longo processo do bandeirante, o emboaba, o silvícola e o africano. Dessa mistura saíram os tipos mestiços do “branco-crioulo ou natural da terra”, do “mameluco ou caboclo”, dos “mulatos e pardos”. Foi o meio e a tradição, história e natureza, e não o paulista, que deram a ethos da mineiridade. O caráter do povo montanhês, isto é, nascido e criado nas montanhas de Minas Gerais, afirma ele, era forte, reto, honrado, cheio de civismo, hospitaleiro, modesto. O mineiro foi desenhado
acentuadamente pelo modelo dos seus ancestrais latinos ou brancos, com a larga cultura das artes e das boas letras; pelo espírito sereno da ordem, sem temor das reações legítimas povo contra o despotismo; e pelo constante anhelo da liberdade, ali acentuada e praticada, na sucessão lenta de três regimes políticos: Capitania, Província e Estado, sob o jugo colonial, durante o Império e com a República. (APCBH - NCS 5 (38), 1909, p. 317-318).
Dito de outra maneira, apesar de historicamente republicana, a lealdade e o civismo mineiro independiam do regime, pois estavam no espírito, na alma de Minas Gerais.
Na história como na historiografia não existem meras coincidências; sempre que detectadas elas devem ser observadas em meio a um contexto ou a um fluxo constante de ideias. Senna não é um caso à parte; ao contrário, a sua prática historiográfica vem na esteira de nomes como Diogo Pereira de Vasconcellos, para quem o ponto de partida da escrita da história era o micro e não o macro; era do regional para o nacional. Tal abordagem pode, à primeira vista, parecer destoante nos anos iniciais da Primeira República, quando os esforços políticos federalistas se concentravam na unidade frente aos anseios regionalistas. Porém, a estratégia consistia em pensar como lograr esse propósito fazendo valer os interesses de uma parcela da elite política de Minas Gerais.
Diogo de Vasconcellos foi importante para o surgimento de uma cultura historiográfica voltada para a valorização do elemento regional e para a criação do essencialismo identitário da mineiridade (SILVA, 2011; RAMALHO, 2015). Emerge daí uma ideia de unidade da nação que se dá a partir do amálgama mineiro, especificamente, da força que Minas Gerais possuía no Setecentos, época de seu apogeu minerador, e que deveria ser resgatada a fim de seguir o caminho inexorável do progresso e da civilização da nação mineira - e brasileira.
Isso posto, Senna pode ser enquadrado em um grupo de intérpretes de Minas Gerais que entendia o mineiro como “um tipo social que se particulariza por pretender absorver o Brasil”. Ao identificar um conjunto de valores morais e políticos, crenças, costumes, tradições que seriam próprios de Minas Gerais, esses autores constroem a simbologia da mineiridade. Tal construção mítica desempenha uma estratégia de atuação política regional e nacional, visto que moderação e equilíbrio, propalados como genuinamente mineiros, são características importantes de movimentação no jogo político em períodos históricos de transição - seja da Colônia para o Império ou deste para a República. E ela foi reafirmada e recriada não só por figuras políticas, mas também por memorialistas, os quais, imbuídos de um sentimento marcante de origem, definiam-se “como mineiros, para além da percepção de pertencerem a uma cidade, uma vila, uma propriedade rural” (ARRUDA, 1990; 1988, p. 25; 2006, p. 362).
Senna publicou apenas uma Memória ao longo da vida, mas os memorialistas lhe serviram de fonte, foram suas leituras, e fizeram parte de seu convívio, de modo que não nos parece equivocado inferir que tenha se inspirado nesse tipo de obra. Podemos também indagar se a necessidade de rastrear os componentes de mineiridade e brasilidade não seria uma forma de conhecer a si próprio, um objetivo muito mais intimista do que propriamente altruísta ou patriótico. Se partirmos dos pressupostos de Paul Ricoeur (1994), de que o tempo fragmenta as identidades, a resposta a essas questões é afirmativa. Há para ele uma “conexão significativa” entre a função narrativa e a experiência humana do tempo. Conforme esta perspectiva, o sujeito conhece a si próprio no momento em que revive as suas experiências por meio da narrativa. A pergunta seguinte ao “quem eu sou?” é, via de regra, “quem eu quero ser?”. Passado e futuro são fundidos no presente por meio da escrita da história. Daqui podemos extrair duas motivações que nos encaminham para as considerações finais.
A primeira é que faz parte do ethos historiográfico de fins do período imperial e início do período republicano tanto a interpretação de uma identidade regional mediante a sua relação com o quadro geral da nação (FERRETI, 2004), quanto à vinculação da trajetória pessoal com a nacional. Havia como que “o estabelecimento prévio de uma relação entre a pessoa que escreve, o lugar que lhe é próprio e o projeto que defende” (TURIN, 2009B, p. 14). A escrita da história nacional se dá, portanto, como um ato essencialmente político. Deriva daí a segunda motivação: equacionar as diferenças temporais num momento de reavaliação da nação e de seu destino, dilema que marcou as duas primeiras décadas do século XX. Voltar ao passado era imprescindível não só para identificar os vestígios fundamentais da formação da nossa brasilidade, como também para buscar a chave de um futuro promissor e de um presente a ser superado (FRANZINI; GONTIJO; OLIVEIRA, 2018).
Considerações finais
Mineiro, autointitulando-se portador de uma alma republicana inconteste, Nelson de Senna se colocava à serviço da pátria. Desvendar o ethos da nacionalidade brasileira e indicar os caminhos para o progresso do país, a partir da contribuição indispensável de Minas Gerais, era o intuito de sua trajetória parlamentar e intelectual. Para tanto, seguiu a temática da mescla racial e dedicou-se a pensar a “questão afro-indígena” e o povoamento dos “sertões”.
Da análise de seus escritos concluímos que Senna foi um intelectual de transição entre o historiador cronista/memorialista e o historiador moderno, que passa a se dedicar à pesquisa intensa, ao rigor da crítica documental, à revisão dos parâmetros da história nacional (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018). Por um lado, abarcou o exame dos contingentes étnicos e a síntese entre as províncias, conforme postulado por Martius (IGLESIAS, 2000); e fez um elogio à empreitada colonizadora, apesar de mais crítico com os portugueses e mais simpático aos indígenas e africanos do que Varnhagen. Por outro, condenou a escravidão, tal como Joaquim Nabuco, dedicando-se ao estudo dos vocábulos afro-indígenas. E o fez não só porque queria conhecer melhor os componentes sociais da nossa nacionalidade - ainda em formação, mas porque estava alinhado à uma atmosfera de produção intelectual na qual os métodos etnográficos, sociológicos e filológicos foram ganhando espaço entre historiadores que, como mostramos acima, eram suas referências confessas.
De Capistrano de Abreu, Senna teria extraído a preocupação com o embasamento e a produção de fontes, além do olhar voltado para o interior. De Silvio Romero incorporou a visão positiva da mistura de raças, embasada numa teoria de branqueamento que compulsava à marcha evolutiva a solução do problema do Brasil no sentido da civilização, modernidade e progresso. E de João Ribeiro tomou como diretriz a relação entre língua e construção nacional. Conjugar essa tríade de influências com o modelo herdado de Martius e do IHGB certamente não se fez sem conflitos. Aqui merece destaque o posicionamento aparentemente contraditório de dizer que um estudo etnográfico detalhado é parte da sociologia e não da história, ao mesmo tempo em que reivindica que a prática historiográfica se faça por um mergulho profundo.
Igualmente digno de nota é que Senna levou à cabo, e com maestria, a máxima de que a escrita da história nacional é um ato político, uma marca presente no ethos do historiador oitocentista (TURIN, 2009B). Tanto assim que muito da sua visão histórica e da dinâmica da sua prática historiográfica pode e deve ser buscada nos discursos que proferiu como deputado estadual e federal, e não somente nos trabalhos publicados e considerados pelos pares como efetivamente históricos. Talvez esteja aí uma característica dos autores “menores” que carece de maior atenção e cuidado. Subestimar ou ignorar esses escritos pode nos levar a negligenciar visões históricas que se formam no entrecruzamento de concepções científicas, políticas e historiográficas e que penetram no interior da sociedade por meio de ações políticas ou, como denominamos atualmente, de políticas públicas. Compreender como esses “autores menores” subverteram, remodelaram e adequaram os grandes modelos historiográficos e conceituais aos seus anseios é, certamente, um importante caminho para mapear as aplicações efetivas do discurso histórico enquanto prática social (CERTEAU, 2008).
Referências - Fontes
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- APCBH - NCS 3.4 - Brasilidades Idiomáticas Vocabulário de brasilidades idiomáticas: termos indígenas e portugueses presentes na flora, fauna e no folclore, s/d.
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- APCBH - NCS 5 (38) - Cousas brasileiras A escravidão Negra no Brasil - A campanha abolicionista e o Treze de Maio - Esboço Histórico. Discurso pronunciado no Externato do Ginásio Mineiro, em 13 de maio de 1897.
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NOTAS
- 1
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2
Não só as exéquias (APCBH-NCS 8) indicam isso, mas igualmente afirmação de seu biógrafo Romeu Florival, segundo o qual Nelson de Senna foi “festejado com afetuoso acolhimento” por intelectuais como Oliveira Lima, João Ribeiro, Enrique Rodé, entre outros. APCBH - NCS 3.1 (2).
-
3
A crise de patriotismo advinha, sobretudo, das dificuldades encontradas pelas elites política e intelectual em adequar o “Brasil real” ao “Brasil legal”, aquele imaginado como ponta de lança na empreitada modernizadora (GOMES, 1998).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
29 Maio 2021 -
Aceito
14 Out 2021