RESUMO
A atresia anal com fístula retovaginal, é considerada uma afecção congênita rara nos ovinos. Em virtude disso, buscou-se descrever o reparo cirúrgico e cuidados pós-operatórios em uma borrega que apresentava essa afecção. Nesse sentido, uma borrega, sem raça definida, de 25 dias de idade e pesando 7,2kg, apresentou sinais de distensão abdominal e defecação pela vulva. A afecção foi diagnosticada por meio do exame clínico e confirmada radiograficamente, constatando-se atresia anal do tipo III em associação com a fístula.
Palavras-chave: borrega; malformação congênita; atresia anal; cuidado pós-operatório; correção cirúrgica
ABSTRACT
Atresia ani associated with rectovaginal fistula is considered a rare congenital anomaly in sheep. Therefore, the surgical correction and post-operative care of a lamb presenting atresia ani with rectovaginal fistula has been detailed in this case report. A 25-days old, mixed breed lamb, weighing 7.2 kg, showing signs of abdominal bloating, and stool passage through the vulva was admitted at our hospital. An atresia ani type III condition associated with rectovaginal fistula was diagnosed by clinical examination and confirmed by radiographic examination.
Keywords: lamb; congenital malformation; atresia ani; post-operative care; surgical repair
INTRODUÇÃO
A atresia anal ou imperfuração do ânus é uma anormalidade congênita associada aos desenvolvimentos embrionário ou fetal, passível de ser observada em todas as espécies. Pode se manifestar isoladamente ou estar associada a outras malformações congênitas, tais como fístula retovaginal, agenesia renal, rins policísticos, criptorquidismo, agenesia do cólon, disrafismo espinhal e agenesia sacral ou coccígea (Brown et al., 2007). Dentre as espécies animais, é mais comumente observada em bezerras e cabras (Johnson et al., 1980; Mattu et al., 1989 , citados por Singh, 2003).
A atresia anal com fístula retovaginal, caracteriza-se pela comunicação entre a parede dorsal da vagina e a porção ventral do reto, de modo que a defecação e a micção ocorrem por abertura comum na vulva (Johnson et al., 1985). Essa anormalidade pode ser classificada em quatro tipos: tipo I - estenose anal; tipo II - reto terminando como fundo (bolsa) cego, imediatamente cranial ao ânus imperfurado (membrana anal persistente); tipo III - semelhante ao tipo II, com localização mais oral do fundo (bolsa) retal; e tipo IV - atresia retal do segmento intestinal no canal pélvico, com agenesia da porção final do segmento retal e reto e ânus presentes (Rahal, 2007).
As atresias anais tipos II e III, caracterizadas pela imperfuração do ânus, já foram reportadas em várias espécies de animais. Aparentemente, são mais observadas nos machos. A etiologia e os fatores genéticos e ambientais causais dessas malformações anorretais ainda permanecem mal compreendidos ou desconhecidos (Van Der Putte, 1986; Simon et al., 2010).
A condição pode ser facilmente identificada devido à presença de sinais clínicos característicos, normalmente evidenciados ao nascimento. Os animais acometidos não apresentam abertura do esfíncter anal. Além disso, nota-se distensão abdominal progressiva, tenesmo e proeminência da região anal/perineal (Tyagi e Singh, 1993, citados por Singh, 2003). O animal também pode apresentar ausência da cauda (perosomus acaudato) (Radostitis et al., 2002).
O tratamento mais indicado é a correção cirúrgica. O sucesso terapêutico depende do grau de desenvolvimento retal. Considerando a singularidade dessa afecção na espécie ovina e o baixo sucesso terapêutico reportado diante dos casos associados à atresia anal com fístula retovaginal, objetivou-se descrever os aspectos relacionados à correção cirúrgica dessa afecção em uma borrega.
CASUÍSTICA
Uma borrega, sem raça definida, de 25 dias de vida, pesando 7,2kg, deu entrada no Hospital Veterinário com histórico de atresia anal, presença de fezes na vulva e distensão abdominal moderada. Após anamnese, procedeu-se ao exame físico da paciente. As frequências cardíaca e respiratória iniciais estavam, respectivamente, 56 batimentos por minuto (bpm) e 48 movimentos por minuto (mpm). As membranas mucosas aparentes apresentavam-se róseas. À inspeção, observou-se ausência do orifício anal e, à defecação, notou-se tenesmo e eliminação de fezes pastosas pela vulva (Fig. 1). Como exames complementares, foram solicitados hemograma e avaliação radiográfica simples.
Projeção radiográfica laterolateral do abdômen da borrega evidenciando retenção fecal com distensão do cólon descendente e ampola retal.
Os parâmetros hematológicos (eritrócitos 6,4 x 106/µL; hemoglobina 7,4 x 10³g/dL e hematócrito 18,9%) encontravam-se abaixo dos valores normais para a espécie (eritrócitos 9,0 - 15 x 106/µL, hemoglobina 9,0 - 15 x 10³/µL e hematócrito 27 - 45%) (Radostitis et al., 2002), o que indica presença de anemia normocítica normocrômica. Ao exame radiográfico, notou-se segmento de cólon descendente e ampola retal distendidos por conteúdo heterogêneo de maior radiopacidade (retenção fecal), com acúmulo de conteúdo gasoso. Além disso, observou-se a presença de tecidos moles medindo 0,72cm de espessura a partir da porção terminal da ampola retal até o limite de tecidos cutâneos (Fig. 2).
Findada a avaliação radiográfica, a paciente foi submetida à intervenção cirúrgica para fins de correção da fístula retovaginal e abertura do ânus. Inicialmente procedeu-se à indução anestésica do animal, com posterior posicionamento na mesa operatória, seguida de preparo do campo cirúrgico. Para tal, como agente pré-anestésico, foi utilizado midazolam (0,5mg/kg intravenoso). A indução e a manutenção anestésica foram obtidas com administração de propofol (3mg/kg intravenoso).
Ato contínuo, foi efetuada anestesia epidural cranial, em região lombossacra, com associação dos anestésicos locais lidocaína e bupivacaína, juntamente com sulfato de morfina (0,1mg/kg via epidural).
Ao término da indução anestésica, o animal foi posicionado à mesa cirúrgica em decúbito esternal, mantendo as patas traseiras esticadas para trás. Na sequência, realizou-se tricotomia do campo operatório e antissepsia com escovação com gluconato de clorexidina 2%, seguido por enxague copioso com álcool etílico hidratado 70%. Após colocação dos panos de campo, foi efetuada incisão de pele na região perineal em formato de cruz. A incisão vertical limitou-se dorsalmente e ventralmente à base da cauda e à comissura dorsal da vulva, respectivamente. Após dissecção cuidadosa do tecido conjuntivo, isolou-se o trajeto da fístula retovaginal (Fig. 3). Nesse momento, foram realizadas duas ligaduras com fio absorvível monofilamentar 0-USP e secção do trajeto fistuloso. Logo após, os cotos foram invertidos para o interior da parede ventral do reto e dorsal da vagina, e essas foram suturadas com mesmo fio absorvível monofilamentar em padrão invaginante (Cushing).
Exposição do trajeto fistuloso (seta) durante correção cirúrgica de fístula retovaginal em borrega. (C) base da cauda.
Aspecto do neóstio retal no pós-operatório imediato, após correção de fístula retovaginal em borrega. (V) vulva.
Posteriormente, procedeu-se à divulsão meticulosa do tecido subcutâneo ao redor do saco de fundo cego do reto para melhor identificação e isolamento dessa estrutura, localizada mais dorsalmente em relação ao trajeto fistuloso. Ato contínuo, realizou-se a sutura da camada seromuscular do reto no tecido subcutâneo, com o mesmo fio absorvível monofilamentar utilizado anteriormente, em padrão simples separado. Precedendo a transecção da porção distal do saco de fundo cego, os vértices das incisões da pele foram seccionados, formando uma abertura circular de pele. Continuamente, as camadas mucosa e submucosa retal foram fixadas à pele com fio monofilamentar inabsorvível 1-USP, em padrão simples separado, constituindo-se, dessa forma, o neóstio retal (Fig. 4).
Foi iniciada terapia antimicrobiana e analgésica no pós-operatório imediato, à base de sulfametoxazol 40mg + trimetoprima 8mg [25mg/kg, por via oral, a cada 12 horas (q12h), por cinco dias consecutivos] e oxitetraciclina (20mg/kg, q48h, via intramuscular, totalizando três aplicações) e administração de cloridrato de tramadol (4,0mg/kg, via intramuscular, q24h), respectivamente.
Nas primeiras semanas do pós-operatório, a paciente apresentou dificuldades à defecação. Em razão disso, foi instituída a realização de enema, q12h, por oito dias. Por mais 14 dias, com o auxílio de uma sonda gástrica número 14, foi realizada a infusão retal de solução fisiológica aquecida, q24h, para umedecer as fezes. Os pontos foram retirados 12 dias após o procedimento. Decorridos 26 dias do procedimento cirúrgico, o animal conseguiu defecar normalmente. Três meses após a realização do procedimento cirúrgico corretivo, ele foi reavaliado e não foram observadas quaisquer complicações.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
A atresia anal é uma anormalidade congênita relativamente comum em bezerros, cordeiros e crianças (Singh et al., 1989, citados por Singh 2003). A condição pode ser facilmente identificada devido à apresentação clínica característica. Contudo, a associação de fístula entre o trato urogenital e o reto é relativamente incomum em ovinos e ainda dificulta a identificação da afecção devido à presença de fezes na vulva, diferentemente de quando só ocorre a atresia anal (Singh et al., 2003). A prevalência da atresia anal associada à fístula retovaginal em ovinos não é totalmente determinada. Entretanto, aparentemente, sua ocorrência é mais frequente em bezerros, quando comparada aos ovinos (Gangwar et al., 2014). De acordo com os referidos autores, no período de janeiro de 2005 a janeiro de 2013, de um total de 112 casos de malformações congênitas em ruminantes, nove apresentaram atresia anal associada à fístula retovaginal. Desses, sete foram em bovinos e dois em bubalinos. Não houve relatos na espécie ovina, corroborando Singh et al. (2003), os quais caracterizam a afecção como infrequente na espécie.
Os sinais clínicos e o exame físico são suficientes para estabelecer o diagnóstico (Shakoor et al., 2012), contudo as imagens radiográficas são consideradas de grande importância para a determinação da posição da fístula e a diferenciação da afecção em um dos quatro tipos existentes (Rahal et al., 2007). Segundo Rahal et al. (2007), a atresia anal do tipo II é a mais comumente associada com a presença de fístula retovaginal em cães. Ainda não está definido qual dos quatro tipos está usualmente associado à fístula retovaginal nas outras espécies. No caso reportado, por meio da avaliação radiográfica, pôde-se classificar a atresia em questão como sendo do tipo III, em associação com a fístula.
Os casos de atresia anal, com desenvolvimento retal normal, tratados cirurgicamente, apresentam sucesso terapêutico da ordem de 100% desde que a abertura anal não seja danificada (Kumar et al., 2010). Já nos casos em que existe a associação da fístula retovaginal, o procedimento cirúrgico deve ser realizado o mais rápido possível para evitar deterioração da condição física, megacólon irreversível, ou ainda, infecção ascendente do trato urinário (Rahal et al., 2007). No caso reportado, o tratamento cirúrgico foi efetivo e o animal se recuperou sem intercorrências.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Oct 2017
Histórico
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Recebido
01 Dez 2016 -
Aceito
03 Fev 2017