As estatísticas demográficas constituíram um instrumento decisivo para a construção dos Estados modernos e para o processo de colonização do novo mundo. O processo de criação de um quadro normativo e um aparato burocrático capaz de produzir, coletar e interpretar dados numéricos deu origem à classificação quantitativa e qualitativa dos povos do ultramar. As categorias estatísticas e circuitos de produção dos dados revelam a intensidade com a qual o Estado penetrou seus territórios durante a tentativa de construir uma nova ordem. Além disso, foram compiladas as informações disponíveis sobre os caminhos desses territórios e suas populações.
A existência de um corpus significativo de estatísticas populacionais para o Brasil, ordenada pela coroa portuguesa desde meados do século XVIII, permite aos pesquisadores coletar, processar e analisar os dados estatísticos sobre a população solicitados pela coroa (os chamados mapas estatísticos da população) e, ao mesmo tempo, gerar indicadores e séries demográficas para a maioria das capitanias brasileiras.
Apesar de estudos pioneiros publicados nas décadas de 1960 e 1970, a maioria elaborada por Dauril Alden, Maria Luiza Marcílio e Iraci del Nero da Costa, as estatísticas populacionais, que podem remontar aos anos 1720, permaneceram praticamente ignoradas pela historiografia produzida no período subsequente.
O dossiê que vem a público teve como objetivo reunir pesquisas sobre a demografia histórica brasileira, baseadas na exploração dessas fontes. O período privilegiado (1750-1822) está relacionado com a abundância de dados estatísticos sobre as populações. De fato, sob a influência da aritmética política durante o reinado de D. José I (1750-1777), houve a convergência dos esforços da administração central e das autoridades locais para a produção de estatísticas globais, em acordo com as ordens régias. Portanto, era fundamental realizar comparações nesse intervalo temporal no território sob o domínio luso na América. A partir de 1822, com a independência do Brasil, uma nova etapa se iniciou na produção dessas estatísticas, requerendo, assim, abordagens diferenciadas.
Por outro lado, é importante destacar que a preocupação com o conhecimento e a elaboração de contagens mais apuradas das populações se consolidaram ao longo do século XVIII, nos diversos Estados europeus e, sobretudo, os países ibéricos, que dominavam vastos territórios no além-mar. Na década de 1770, as coroas de Portugal e Espanha iniciaram um ambicioso projeto de coleta sistemática de numeramentos da população para os seus domínios ultramarinos. Sucessivas tentativas de implementação de “censos” para os domínios da América portuguesa, dos Açores e de Angola já haviam sido realizadas na década de 1760. Porém, seriam os avisos régios de 1773 (Brasil) e 1776 (restante das possessões portuguesas) a inaugurar aquilo a que se tem designado como o período “proto-estatístico”.
De acordo com um modelo predefinido pela coroa – em grande medida transversal a todas as possessões lusas –, cada governador deveria formular, numa base anual, o “mapa estatístico” correspondente à sua jurisdição. Para além da estrutura etária e do número de nascimentos e óbitos, as diversas administrações locais entenderam classificar as populações com base na cor da pele e sua condição jurídica. Este enorme corpus de estatísticas abrange praticamente todos os domínios portugueses desde o Brasil a Macau e soma cerca de dois milhares de tabelas estatísticas. Por obedecerem a uma estrutura tendencialmente comum, esses mapas estatísticos viabilizam a dimensão comparativa dos diversos territórios, o que enriquece substancialmente a análise demográfica.
A confecção dos mapas representou um enorme esforço burocrático das autoridades centrais e administrações locais para realizar numeramentos extensivos a grandes unidades territoriais, como o caso das capitanias brasileiras. Apesar do carácter “civil” destas listas – porque ordenadas pela coroa –, Igreja e Exército viriam a desempenhar um papel de relevo na coleta dos dados. Apesar das lacunas inerentes a este tipo de informação – ao nível da cobertura territorial, de alguns segmentos populacionais e da própria classificação dos “habitantes” –, tais fontes não podem, de modo algum, ser ignoradas. Elas fornecem ordens de grandeza insubstituíveis ao nível das tendências de crescimento da população, sua composição social, étnica e jurídica, bem como tendências de fecundidade e mortalidade.
Com base nestas fontes e em outras listas de população produzidas no período, a Rebep pretendeu estimular retratos demográficos de espaços amplos, ou seja, uma perspectiva demográfica “macro”. É que, para além dos incontornáveis estudos de Maria Luiza Marcílio, Dauril Alden, Iraci del Nero da Costa e de muitos outros investigadores que se debruçaram sobre estas fontes, ainda tardamos em obter uma “visão de conjunto” extensiva às diversas regiões do Brasil no período colonial tardio.
A Rebep presenteia o público com este dossiê temático que inclui nove artigos inéditos, duas notas de pesquisa e uma resenha. Os estudiosos da demografia histórica, da história da população e demais pesquisadores têm em mãos um conjunto rico de textos que revelam o avanço dos estudos neste ano em que a Demografia Histórica brasileira completa 50 anos, campo que foi inaugurado com a tese de Maria Luiza Marcílio sobre a cidade de São Paulo, e apresentada na França em 1967. De lá para cá, as investigações nesse campo têm se consolidado por meio de uma produção ampla e variada, constituída de teses, dissertações, artigos e livros, e, sobretudo nos últimos anos, a partir de esforço coletivo de pesquisadores e estudiosos que integram o Grupo de Trabalho População e História da Abep e o Grupo de Pesquisa CNPq “Demografia & História” coordenado por Sergio Odilon Nadalin (UFPR).
Os contatos internacionais mantidos pelos pesquisadores da Demografia Histórica brasileira têm aberto vias de diálogo ricas e promissoras, em particular com investigadores da Universidade Nova de Lisboa e do CHAM – Centro de Humanidades, da mesma universidade. O projeto Counting Colonial Populations (http://colonialpopulations.fcsh.unl.pt/), desenvolvido nestas instituições, constitui um dos estímulos para a proposição deste dossiê sobre a demografia colonial.
Tomando por base o rico corpus documental de estatística demográfica existente para o império colonial português e a sua possibilidade de comparação, os organizadores do dossiê desafiaram os pesquisadores a explorarem de maneira mais sistemática o conjunto de fontes em busca de resultados que permitissem a divulgação de novos dados sobre as capitanias brasileiras, no período de 1750 a 1822. O mote central seria reunir um conjunto de artigos que, a partir de uma estrutura similar, não apenas desse conta da discussão historiográfica, mas também descrevesse as fontes utilizadas, seu contexto de produção, a qualidade dos dados arrolados e, sobretudo, as questões metodológicas colocadas aos investigadores para a sua efetiva exploração, considerando os diferentes critérios utilizados para a elaboração daquelas estatísticas. Com base nestes mapas, esperava-se que os artigos produzissem indicadores variados, como taxas de crescimento anual, composição populacional (em termos de condição jurídica e racial), estruturas etárias, razões de sexo, assim como taxas brutas de natalidade e de mortalidade. Como se vê, o desafio não era menor, ainda mais levando em conta a expectativa de se cobrir as distintas regiões da colônia, sobretudo aqueles territórios em que o conhecimento produzido no campo da Demografia História é mais escasso.
Além disso, os autores foram estimulados a apresentar uma discussão metodológica mais aprofundada, a partir dos métodos da Demografia Histórica e de outros procedimentos, de forma a gerar uma discussão mais fecunda das estatísticas elaboradas pela coroa portuguesa para melhor conhecer as populações que viviam nos territórios sob seu domínio na América.
O resultado final reunido neste dossiê excede as expectativas dos organizadores. Em primeiro lugar, no que diz respeito à abrangência territorial. O conjunto dos artigos fornece, de forma geral, uma contribuição fundamental ao lançar luz sobre áreas que têm recebido um interesse pela Demografia Histórica. Se até muito recentemente o Sudeste brasileiro recebia a quase exclusiva atenção dos estudiosos, neste dossiê são reunidos trabalhos que abordam as regiões Norte, Nordeste e extremo Sul, acompanhados de investigações que analisam regiões mais conhecidas, mas com contribuições que trazem novas perspectivas.
De norte a sul o território está presente, e esta divisão territorial ordenou as contribuições que compõem o dossiê. Para a região Norte, o artigo de André Augusto da Fonseca, relativo ao Grão-Pará, apresenta um estudo sobre a evolução demográfica dos índios aldeados e da população livre, no período posterior à introdução do Diretório dos Índios, apontando que o crescimento consistente daquelas populações não estava vinculado apenas ao aporte de novos contingentes, como a historiografia vinha apontando. Por isso, esta contribuição mostra novas facetas sobre o crescimento da população na região, com base nos mapas de população do Grão-Pará, apesar das frequentes epidemias que afetaram os habitantes daquele território.
Por sua vez, a região Nordeste está representada em três estudos, um sobre o Maranhão e dois sobre o Rio Grande do Norte. Sobre o Maranhão, Antônia da Silva Mota e Maísa Faleiros da Cunha analisam a questão da africanização, trazendo elementos para avaliar o boom demográfico da população escrava de origem africana, por meio do uso combinado dos mapas de população, de inventários post mortem e de registros paroquiais de batismo. O cruzamento dessas fontes permitiu analisar o perfil por sexo, faixa etária e condição jurídica das populações do Maranhão, região que começa a ser explorada mais intensamente a partir dos métodos e técnicas de Demografia Histórica. Os artigos que contemplam o Rio Grande do Norte enriquecem a contribuição relativa à região Nordeste e, mais do que isso, revelam o dinamismo do grupo de pesquisadores integrados à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que têm colaborado para o avanço da Demografia Histórica nesta área. Assim, o artigo de Dayane Júlia C. Dias e Carmen Margarida Oliveira Alveal, sobre a demografia da capitania, é um exemplo do profícuo diálogo entre a Demografia e a História, trazendo contribuições importantes para o conhecimento das características sociodemográficas da população norte-riograndense. Sua principal fonte de informação assenta nos mapas de população produzidos para a capitania entre os finais do século XVIII e início do XIX. O estudo seguinte ainda diz respeito ao atual estado Rio Grande do Norte e, neste caso, Luciana Conceição de Lima, Dayane Júlia C. Dias e Luana Junqueira Dias Myrrha abordam o desafiador tema da mortalidade, seara ainda pouco frequentada pelos estudiosos da Demografia Histórica brasileira. Com base no uso dos mapas de população do início do século XIX e dos dados dos recenseamentos gerais da população de 1872 e 1890, as autoras apresentam indicadores de mortalidade construídos a partir do método de Growth Balance.
O Sudeste, principal região trabalhada pelos historiadores-demógrafos brasileiros nestes últimos 50 anos, recebe três importantes estudos: um referente a Minas Gerais e dois que contemplam São Paulo. Contando Minas por meio dos números, Roberta Giannubilo Stumpf dá uma contribuição relevante para a Demografia Histórica mineira, a partir dos mapas de população, analisando as mudanças vivenciadas por aquelas populações entre o último quartel do século XVIII e as duas primeiras décadas do século XIX. A capitania de São Paulo, umas das áreas mais estudadas na perspectiva da Demografia Histórica, foi mais uma vez revisitada. Carlos de Almeida Prado Bacellar privilegiou, nesta oportunidade, a questão do processo de povoamento do espaço paulista na segunda metade do século XVIII, analisando o perfil dos indivíduos que se instalaram nas vilas recém-criadas, por meio da ação do governo de Morgado de Mateus. Sua política de povoamento procurava, a partir de um novo modelo de organização, povoar espaços que tinham relevância estratégica para a coroa portuguesa, revelando inclusive a importância das populações indígenas entre os povoadores das vilas que foram criadas. Já o artigo de Paulo Eduardo Teixeira elege como objeto de análise a vila de Campinas, entre 1774 e 1822. Utilizando os mapas gerais de habitantes e as listas nominativas de habitantes, o autor elabora um estudo sobre o intenso ritmo de crescimento da população daquela vila, que se caracterizou como uma região composta por grandes propriedades escravistas.
Finalmente, a região Sul encontra-se representada por dois artigos. Mais uma vez é importante destacar que apenas recentemente o extremo sul tem recebido uma atenção mais consistente dos estudiosos da demografia histórica brasileira. Os artigos apresentados são um indicador valioso do avanço dos estudos nesse campo. A contribuição de Luciano Costa Gomes, sobre a população de Santa Catarina, apostou na exploração de mais de uma dezena de mapas de população, existentes para o período entre 1787 e 1836, procurando colocar em evidência as características e também as transformações pelas quais aquela população passou ao longo de cinco décadas. Os resultados revelam diferentes tendências da população, sobretudo em relação ao seu ritmo de crescimento, além de apontarem o contínuo predomínio do contingente de mulheres entre livres e libertos, bem como a elevada presença de homens no segmento populacional dos cativos. A contribuição de Dario Scott sobre o Rio Grande do Sul, que na época colonial era conhecido como Rio Grande de São Pedro, extremo sul do território sob o domínio luso na América, suporta-se no conjunto de mapas de população produzido para 1780 e 1810. O autor realizou análises a partir da distribuição por sexo, condição jurídica, idade e cor/etnia, que revelaram as características gerais da população daquela capitania. Além disso, e considerando os limites e as potencialidades dos mapas de população, ele estabeleceu alguns indicadores demográficos para o período referente à passagem do século XVIII para o XIX. Entre os resultados, destacam-se o predomínio da população branca, o desequilíbrio na razão de sexos, especialmente para a população escrava, e a variação do peso da distribuição da população pelo território, mostrando a ocupação em direção às áreas de fronteira.
As duas notas de pesquisa incorporadas ao dossiê dão conta de projetos de larga escala em curso. Paulo Teodoro de Matos centra-se nos avanços do projeto “População e império. A demografia e os usos da estatística no império português, 1776-1875”. Este projeto internacional pretende oferecer aos estudiosos e à sociedade civil em geral o primeiro estudo demográfico abrangente do império português no largo período de um século. Por sua vez, Sergio Odilon Nadalin e Dario Scott apresentam o projeto integrado “Além do Centro-Sul: por uma história da população colonial nos extremos dos domínios portugueses na América”, que dá subsídios para a discussão dos regimes demográficos da população brasileira no passado, desenvolvido pelos pesquisadores que integram o Grupo de Pesquisa CNPq “Demografia & História”, coordenado por Sergio Odilon Nadalin (UFPR). Ambos são projetos que investem em redes colaborativas, estratégia que tem viabilizado investigações de maior fôlego no campo da Demografia Histórica.
Encerrando o dossiê, a resenha dupla “Pelos caminhos passados e futuros da Demografia Histórica”, de Ana Silvia Volpi Scott, apresenta aos leitores dois livros publicados em 2016 que, no contexto de comemoração dos 50 anos da Demografia Histórica, produziram um olhar crítico sobre a trajetória desse campo neste período de meio século, bem como procuram refletir sobre os desafios e caminhos possíveis que aguardam os pesquisadores nos anos vindouros.
Por fim, resta agradecer à Rebep pela oportunidade de publicar este dossiê, que dá uma contribuição importante à Demografia Histórica brasileira, e desejar uma boa leitura!
Ana Silvia Volpi Scott e Paulo Teodoro de Matos
Editores convidados do dossiê
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Set 2017