O artigo de Costa e Silva et al. levanta um tema oportuno e uma proposta interessante, num momento em que o Brasil adotou um caminho ultra liberal e de certa forma anacrônico por coincidir com a virada protecionista de Donald Trump na maior potência mundial. A opção brasileira, a partir de agosto de 2016, vem reduzindo de forma brutal os recursos para pesquisa e ensino e pregando um maior papel para o mercado nestes campos. O artigo trata dos riscos inerentes às parcerias público-privadas (PPPs) em projetos de saúde pública, inclusive científicos e tecnológicos, que decorrem dos conflitos de interesses com as corporações privadas. O recurso às PPPs tem sido colocado como uma verdadeira panaceia nestes tempos neoliberais, seja para os serviços de saúde de saúde, seja para o desenvolvimento científico e tecnológico.
Procurarei debater os seguintes aspectos, que me parecem importantes sobre o tema: (1) a natureza das relações entre o público e o privado em geral; (2) a noção de risco; (3) as características das corporações; e (4) os diferentes papéis das corporações e do Estado em relação ao desenvolvimento científico e tecnológico. Todos eles situam-se em terreno movediço, carregado de ideologias, muitas vezes irredutíveis, o que recomenda cautela. Em relação às relações entre o público e o privado, vale a pena lembrar o que Polanyi 11. Polanyi K. The great transformation: the political and economic origins of our time. Boston: Beacon Press; 1998. chamou de duplo movimento: o conflito entre dois princípios opostos na sociedade capitalista: o liberalismo econômico versus a autoproteção da sociedade. Os interesses das corporações podem ser associados ao primeiro princípio e os da saúde pública ao segundo. Nesse sentido, o que tende a prevalecer?, a colaboração ou a competição?
Embora o artigo não conceitue risco, propõe uma hierarquia dos riscos decorrentes das PPPs: “possíveis; possíveis com ressalvas; e impossíveis”. Lógica semelhante às das escalas epidemiológicas que procuram medir os “fatores de risco” de ocorrência de eventos adversos. Risco é noção importante para vários campos do conhecimento, como para as ciências ambientais, a economia, entre outros. No campo da economia, enquanto a ideologia de mercado enaltece uma suposta propensão dos empreendedores para assumirem riscos, a qual seria o verdadeiro motor do desenvolvimento, a literatura destaca a existência de “aversão ao risco” por parte dos investidores, que tendem a escolher a opção de menor risco diante de dois caminhos alternativos com possibilidades de ganho semelhantes 22. Morris CE. O Crash de 2008: dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito. São Paulo: Aracati; 2009.. Nas finanças, a ‘aversão ao risco’ levou à existência de agências poderosas como a Fitch Ratings, Moody’s e Standard & Poors, que classificam riscos com relação a produtos, agentes financeiros e até países, estes hierarquizados em relação à capacidade de pagamento das dívidas públicas. É conveniente lembrar que na crise de 2008/2009, tais agências falharam de forma gritante. Classificavam muito bem o banco Lehman Brothers, por exemplo, até o momento em que este quebrou em 15 de setembro de 2008, arrastando consigo todo o mercado financeiro de Wall Street, Europa e Japão 33. Sinn H-W. Casino capitalism: how the financial crisis came about and what needs to be done now. Oxford: Oxford University Press; 2012..
Quanto ao terceiro aspecto, a natureza das corporações, é preciso dizer que estas foram fruto de um processo de construção social que lhes deu identidade como “pessoas jurídicas”, semelhantes às “pessoas físicas”. Nessa construção foi fundamental a separação entre os investidores, ou acionistas, e os administradores profissionais. Os primeiros passaram a gozar da “responsabilidade limitada” (limited liability), só sendo responsáveis pelo dinheiro que investem, não podendo ser penalizados pelos eventuais mal feitos das corporações. Tal ideia foi incorporada nos códigos comerciais de todos os países capitalistas, junto com o “princípio do melhor interesse da companhia”, segundo o qual a primeira e principal obrigação dos administradores, acima de qualquer outra, é perseguir o lucro em benefício dos acionistas 44. Bakan J. A corporação, a busca patológica por lucro e poder. São Paulo: Novo Conceito Editora; 2008.. Tais características das corporações estarão presentes nas PPPs em todos os casos, e levam a questionar se alguma dessas parcerias possa ser classificada como ‘possível’, tal como propõem Costa e Silva et al.
Quanto ao quarto aspecto do debate que levanto, é fundamental considerar que há uma sofisticada construção ideológica sobre o papel do “empreendedor capitalista”, e por consequência das corporações, como o principal vetor da inovação, de autoria de Joseph Schumpeter 55. Schumpeter J. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura; 1961.. A visão schumpeteriana atribuiu ao setor privado um quase mítico papel de liderança no desenvolvimento científico e tecnológico, que constitui a principal justificativa para as patentes e para a ênfase dos grandes laboratórios farmacêuticos nos medicamentos órfãos para doenças raras, em contraste com o seu desinteresse pelas doenças negligenciadas, dois exemplos óbvios de conflito com a saúde pública. Tal visão omite e deturpa o papel que os Estados têm tido na inovação, na ciência e na tecnologia e é incapaz de mostrar, por exemplo, como se deu, ou pode se dar, a inovação em sociedades não capitalistas.
Os achados de Mazzucato 66. Mazzucato M. O Estado empreendedor: o mito do setor público vs. setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin; 2014. com base em pesquisa abrangente sobre o tema, encomendada pelo Estado britânico, contradizem frontalmente a construção schumpeteriana, pilar da ideologia de mercado sobre a inovação. Seus resultados revelam que os Estados têm sido o principal vetor das pesquisas científicas em todos os principais campos do conhecimento. Uma razão importante para isso é que a “aversão ao risco” por parte dos investidores privados os afasta do financiamento da pesquisa básica, que envolve, em geral, uma grande dose de “incerteza knightian”’ - um risco que “não se pode medir”, que não pode ser calculado - por conta dos longos prazos envolvidos e da necessidade de se investir em projetos que, por vezes, não comprovam suas hipóteses ou têm desenvolvimento aleatório e incerto. Por essas razões, tem sido o Estado o principal responsável pelo financiamento e pela execução da pesquisa básica - por meio de uma ampla rede de instituições públicas de pesquisa. As empresas se concentram nas pesquisas aplicadas com base nas pesquisas básicas que tiveram resultados positivos. Essas pesquisas envolvem menores riscos e maior chance de obtenção de lucros.
Os aspectos discutidos não contradizem a ideia central do artigo sobre a necessidade de um sistema de classificação de riscos para as PPPs, mas colocam um pouco mais de ceticismo em relação às suas eventuais vantagens e sugerem uma certa dose de cautela em relação à escala sugerida. Para concluir, levanto a questão da própria natureza das PPPs: ora, se prevalece nas sociedades de mercado o conflito - e não a cooperação - entre os princípios do liberalismo econômico e os da autodefesa da sociedade, o próprio termo “parceria” não é um tanto elusivo, carregado de conotações ideológicas que podem induzir a erros de avaliação? Nunca é demais lembrar o trágico erro das prestigiadas agências de classificação de risco na crise financeira de 2008/2009, quando pensamos em sistemas de medição de riscos.
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1Polanyi K. The great transformation: the political and economic origins of our time. Boston: Beacon Press; 1998.
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2Morris CE. O Crash de 2008: dinheiro fácil, apostas arriscadas e o colapso global do crédito. São Paulo: Aracati; 2009.
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3Sinn H-W. Casino capitalism: how the financial crisis came about and what needs to be done now. Oxford: Oxford University Press; 2012.
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4Bakan J. A corporação, a busca patológica por lucro e poder. São Paulo: Novo Conceito Editora; 2008.
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5Schumpeter J. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura; 1961.
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6Mazzucato M. O Estado empreendedor: o mito do setor público vs. setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin; 2014.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2017