O artigo de Grangeiro et al. 1 traz para o debate uma discussão qualificada, atual e oportuna sobre os desafios da prevenção do HIV entre jovens e sobre o que entendemos por sexo seguro, após quatro décadas de epidemia. É um debate particularmente importante pelo surgimento, nos últimos dez anos, de novas tecnologias preventivas e de uma profunda transformação sociocultural nas formas de interações afetivas, sexuais e de uso de substâncias por jovens entre 15 e 24 anos.
Corroborando esse cenário, estudos e dados epidemiológicos confirmam o crescimento da taxa de detecção de casos de aids nessa faixa etária (entre 2010 e 2021, a taxa de detecção de casos de aids notificados entre pessoas entre 15 e 24 anos variou de 11,5 a 13,3 2), a tendência do menor uso de preservativos 3 e, ainda, o baixo número de jovens e adolescentes entre os usuários de profilaxia pré-exposição ao HIV (PrEP) no Sistema Único de Saúde (SUS) 4.
No campo da prevenção do HIV, os autores revisitam historicamente as pautas e a atuação política dos movimentos sociais LGBTQIAPN+ e dissertam sobre importantes transformações ocorridas nos espaços de sociabilidade e, mais amplamente, na cultura sexual das juventudes, a exemplo das interações nas redes sociais virtuais e o uso do chemsex.
O artigo também traz uma provocação central para a política e para os programas de prevenção: a ideia de que a simples oferta de uma “cesta universal de métodos preventivos” e que “igualar os métodos dentro de uma cesta básica” tem mostrado suas limitações na adoção de práticas mais seguras e efetivas entre jovens e adolescentes mais vulneráveis ao HIV. Com isso, os autores propõem que a reorganização da oferta em prevenção passe, “necessariamente, a uma hierarquização de prioridades na oferta dos métodos preventivos”, de forma focalizada, sendo a PrEP o método prioritário.
De fato, a diversidade de métodos eficazes para prevenção do HIV cresceu enormemente nos últimos dez anos, questionando o monopólio dos preservativos e trazendo à cena importantes inovações tecnológicas, desde os autotestes às profilaxias. Pode-se dizer, inclusive, que nunca houve tantos métodos preventivos disponíveis na história da epidemia de aids no Brasil - e globalmente.
Cabe indagar se a questão que se impõe hoje para a prevenção do HIV é a carência de hierarquização dos métodos “da cesta” e se essa proposta de hierarquização nos levaria a uma maior efetividade do uso da PrEP entre jovens e sua consequente redução de novos casos.
O reposicionamento das novas tecnologias de prevenção ao HIV e as transformações das interações sexuais, na última década, nos ensinaram que não devemos sobrevalorizar um método de prevenção, como foi feito em relação ao preservativo nos últimos 40 anos. Hoje, diante de tantas opções, o foco não deve ser elegermos um método de prevenção, e sim priorizarmos a inovação de propostas programáticas que oportunizem seu acesso.
Também não se trata de acreditar na máxima de que a liberdade de escolha dos jovens vai nos levar ao controle da epidemia. Ao contrário, no âmbito da política pública em saúde, deve-se reconhecer os limites e as potencialidades de todos os métodos preventivos disponíveis e considerar a complexidade de enfrentar os desafios programáticos da prevenção ao HIV.
Nesse sentido, a atual política de prevenção do HIV deve, sim, priorizar segmentos populacionais em situação de maior vulnerabilidade, na perspectiva de ampliar o acesso e subverter a tradicional lógica assistencial em saúde, centrada unicamente nos estabelecimentos e profissionais de saúde.
Após a conquista do “salto tecnológico”, precisamos de um “salto programático” na abordagem e difusão da informação e nos modelos de oferta de prevenção, de maneira simples, oportuna e equitativa, que dialogue com as necessidades dos usuários e seus condicionantes etários, culturais, sociais e econômicos.
Dessa forma, poder apresentar e oferecer métodos de prevenção na primeira oportunidade, seja por meio de teleatendimento, numa unidade de saúde, em farmácias, em ações extramuros, nas comunidades, nas escolas ou em equipamentos culturais, pode ser mais inclusivo do que hierarquizar métodos para ampliar o acesso.
A hierarquização de métodos de prevenção também não garante que sejam respeitadas as necessidades e dimensões socioculturais de jovens; ao contrário, pode ser estabelecida unicamente na perspectiva do poder público, seja pela eficácia, economicidade ou pela praticidade, o que não é, necessariamente, a perspectiva do usuário.
Além do lócus, os atores envolvidos na ampliação do acesso à prevenção do HIV também não podem ficar restritos aos prescritores da área da saúde. Muito já aprendemos com as ações de prevenção entre pares 5 e seguimos no enorme desafio de “desmedicalizar” e “desinstitucionalizar” as estratégias de prevenção biomédicas, a cada novo produto que surge. Neste momento da epidemia e das inovações tecnológicas, é menos sobre a ferramenta, e mais sobre os usos que conseguimos fazer dela.
Outro aspecto fundamental levantado pelo artigo passa por promovermos mensagens e abordagens que se refiram às novas tecnologias de prevenção, como meios para se ter uma vida sexual com mais prazer, plena de desejos, sem medo e julgamentos morais.
Profissionais de saúde têm se deparado, cotidianamente em seus atendimentos, com adolescentes recém-infectados pelo HIV, nos primeiros anos de suas vivências sexuais, paradoxalmente cercados por uma infodemia 6 e por tantas tecnologias de prevenção disponíveis. É imperativo que jovens e adolescentes tenham direito ao acesso à informação e aos insumos de prevenção para se protegerem 7, da forma mais simples e próxima de suas atividades cotidianas, livres de julgamentos morais sobre o método ou sobre suas práticas sexuais.
Se o número de dispensações de PrEP ainda é ínfimo entre adolescentes de 15 a 18 anos - desde a inclusão desse público como elegível à profilaxia, há pouco mais de 11 meses 8 - e, em parte, esse fato possa ser explicado pela resistência de profissionais de saúde ao método 9, essa é uma informação relevante que deve ser enfrentada para construção de uma política mais efetiva, que inclua prioridades estratégicas, não necessariamente hierarquizadas.
Tal como reitera o artigo de Grangeiro et al. 1, as ações de enfrentamento das dimensões sociais da epidemia de HIV, quando aliadas às estratégias de prevenção, têm se mostrado mais efetivas na redução de novos casos. Não avançaremos na oferta das estratégias de prevenção, seja ela igualitária ou hierarquizada, se continuarmos restritos ao campo da saúde e dissociados de uma profunda mobilização social e resposta intersetorial.
Retribuindo a boa provocação que o artigo nos suscita, perguntamo-nos se não seria o caso de pensarmos uma hierarquização que incentive a prevenção do HIV, prioritariamente promovida entre pares, com o devido suporte dos serviços de saúde quando preciso, mas sem ser necessariamente vista como uma ação inerente aos estabelecimentos e profissionais de saúde; e, por exemplo, que a PrEP pudesse ser iniciada por pares.
Temos o enorme desafio, enquanto agentes públicos, de propor uma política que oportunize o acesso de jovens e adolescentes às estratégias de prevenção de forma inovadora e com equidade; e, enquanto sociedade, de gerar mudanças estruturais que contribuam para uma representação social da aids com menos estigma, baseada nos direitos humanos e com o protagonismo das pessoas mais afetadas.
Referências
- 1 Grangeiro A, Ferraz D, Magno L, Zucchi EM, Couto MT, Dourado I. HIV epidemic, prevention technologies, and the new generations: trends and opportunities for epidemic response. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00144223.
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2 Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico HIV/Aids 2022; (número especial). https://www.gov.br/aids/pt-br/central-de-conteudo/boletins-epidemiologicos/2022/hiv-aids/boletim_hiv_aids_-2022_internet_31-01-23.pdf/view
» https://www.gov.br/aids/pt-br/central-de-conteudo/boletins-epidemiologicos/2022/hiv-aids/boletim_hiv_aids_-2022_internet_31-01-23.pdf/view - 3 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2019.
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4 Ministério da Saúde. Painel de monitoramento da profilaxia pré-exposição (PrEP). https://www.gov.br/aids/pt-br/assuntos/prevencao-combinada/prep-profilaxia-pre-exposicao/painel-prep (accessed on 31/Aug/2023).
» https://www.gov.br/aids/pt-br/assuntos/prevencao-combinada/prep-profilaxia-pre-exposicao/painel-prep -
5 Ministério da Saúde. Metodologia de educação entre pares. Adolescentes e jovens para a educação entre pares. Saúde e prevenção nas escolas. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/metodologias.pdf (accessed on 31/Aug/2023).
» https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/metodologias.pdf -
6 Organização Pan-Americana da Saúde. Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a COVID-19. Kit de ferramentas de transformação digital. https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52054/Factsheet-Infodemic_por.pdf (accessed on 31Aug/2023).
» https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52054/Factsheet-Infodemic_por.pdf -
7 Ministério da Saúde. Nota técnica nº 498/2022 - CGAHV/.DCCI/SVS/MS. Acesso à profilaxia pré-exposição de risco à infecção pelo HIV para adolescentes a partir de 15 anos, com peso corporal igual ou maior a 35kg, que apresentem potencial risco para infecção por via sexual pelo HIV. https://www.gov.br/aids/pt-br/centrais-de-conteudo/notas-tecnicas/2022/sei_ms-0029675943-nota-tecnica-prep-15.pdf/view (accessed on 31Aug/2023).
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8 Ministério da Saúde. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pré-exposição (PrEP) de risco à infecção pelo HIV (PCDT PrEP). https://www.gov.br/aids/pt-br/centrais-de-conteudo/pcdts/2017/hiv-aids/pcdt-prep-versao-eletronica-22_09_2022.pdf/view (accessed on 31/Aug/2023).
» https://www.gov.br/aids/pt-br/centrais-de-conteudo/pcdts/2017/hiv-aids/pcdt-prep-versao-eletronica-22_09_2022.pdf/view - 9 Lamônica JS, Magno L, Santos JEJS, Dourado I, Santos AM, Pereira M. Unwillingness to prescribe PrEP by health care professionals of specialized HIV/AIDS services in Northeastern Brazil. Cad Saúde Pública 2023; 39 Suppl 1:e00121322.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
31 Ago 2023 -
Aceito
06 Set 2023