Open-access Resenha: trabalho em transição, saúde em risco

Book review: work in transition, health in risk

Resenha: trabalho em transição, saúde em risco

Book review: work in transition, health in risk

Thiago Lopes Carneiro1; Jullyana Lemes di Carvalho

Universidade de Brasília

As transformações ocorridas no mundo do trabalho no final do século XX e início do XXI têm apresentado reflexos freqüentemente negativos sobre a saúde dos trabalhadores. A transição de que trata o título do livro é efeito de valores sociais excludentes, que reduzem o papel do trabalhador, estendendo aos ''recursos humanos'' o mesmo modo de gerenciamento dirigido a recursos financeiros, matéria prima, infra-estrutura e outros fatores do processo produtivo. A conseqüência constatada é a deterioração do bem-estar das pessoas, com prejuízos à saúde que se convertem em empecilhos para o alcance dos objetivos da própria organização.

A Psicologia Social e Organizacional, diante destas constatações, voltou-se para o estudo da díade trabalho-saúde. Ainda há, entretanto, muitas publicações que concebem estes construtos de forma separada, sem abordar a influência que o trabalho exerce sobre a saúde do indivíduo ou, por outro lado, psicologizando o bem-estar no trabalho como sendo derivado exclusivamente de variáveis individuais. Em contrapartida, os estudos abordados neste livro descrevem a interface entre trabalho e bem-estar do homem, ressaltando as múltiplas repercussões que a atividade laboral exerce na sua saúde dos indivíduos e concebendo o trabalho como um construto multifacetado, inserido num contexto social, econômico e cultural.

O conteúdo da coletânea perpassa três eixos: a articulação dos processos de determinação da relação trabalho-saúde; a exposição do caráter multifacial da relação trabalho-saúde; e a apresentação de indicadores empíricos que fundamentam os argumentos dos autores. O livro traz elementos para demonstrar que o cenário de mudanças no trabalho não se restringe à esfera intra-organizacional e, logo, às perspectivas de proporcionar condições salubres ao trabalhador são ofuscadas por diversas ''tendências de mercado'' que encontram justificativas, não raramente insustentáveis, no contexto sócio-econômico atual. Com isto, abre-se espaço para a reflexão quanto à retirada da identidade do trabalhador sobre o trabalho, e também para a crítica ao ''poder inexorável'' atribuído à globalização. Ao passo que a ideologia neoliberal divulga a competitividade, a empregabilidade e a regulação pelo mercado como única trilha possível das relações de trabalho, exacerbam-se contradições do modo de produção capitalista, como a proporção direta entre desemprego e desenvolvimento tecnológico, e a manutenção da reserva de mão-de-obra. Em um movimento ''bola-de-neve'', agravam-se as condições prejudiciais à saúde no trabalho, visto que interesses de acúmulo de capital não compactuam com os investimentos em ações preventivas.

O livro é dividido em três partes. A primeira, que aborda as manifestações físicas e psíquicas do adoecimento no trabalho, compõe-se de estudos sobre sofrimento psíquico, burnout e Dort. Danos à saúde física e psíquica ocorrem, conforme os autores, em função da permanência do trabalhador em um contexto desencadeador de reações aversivas, onde seus recursos de enfrentamento não se mostram eficazes. Ressalta-se a multiplicidade de fatores etiológicos do adoecimento no trabalho, englobando variáveis psicossociais, estresse e carga física de trabalho. Deste modo, os três capítulos dessa parte do livro evitam o reducionismo de argumentar a existência de uma causalidade linear para as doenças ocupacionais. Verifica-se a influência do contexto que envolve a dinâmica indivíduo-trabalho-organização sobre as manifestações físicas e psíquicas de sofrimento.

A segunda parte agrupa estudos que têm em comum, fundamentalmente, a articulação entre a escassez de emprego (mais concretamente, em situações de desemprego ou de instabilidade) e os processos saúde-doença do trabalhador. Diversos aspectos do cenário econômico fazem-se sentir direta ou indiretamente sobre o trabalhador, que elabora significados para suas condições de vida e de trabalho, tendo impacto sobre suas reações psíquicas. Estes capítulos contribuem para a compreensão dos significados subjetivos sobre as condições de vida e de trabalho frente às perspectivas existentes no mercado e à possibilidade ou vivência do desemprego. Salientam a diversidade interindividual das reações psíquicas a estas situações e a necessidade de ampliar a abrangência dos estudos sobre o tema.

Na terceira parte, os autores apresentam pesquisas empíricas sobre os efeitos do contexto de trabalho sobre o bem-estar psicológico de trabalhadores que exercem diferentes atividades. Um traço comum entre eles é a abordagem das representações cognitivas dos trabalhadores sobre as dificuldades que enfrentam e a explícita relação com o estresse. No conjunto, são exploradas diferentes dimensões do desconforto psicológico: os indicadores críticos do ambiente de trabalho que favorecem a ocorrência de vivências de sofrimento, o enfrentamento do estresse pelo trabalhador, e a importância da condição de ''estar empregado'' para o bem-estar do indivíduo.

Os capítulos colaboram para ampliar a compreensão sobre as formas de adoecimento no trabalho, enfatizando o contexto histórico que o norteia, a evolução conceitual, a definição e as variáveis envolvidas na etiologia de cada uma. Por intermédio das pesquisas empíricas, comprovam a ampla relação entre estes fenômenos, como a moderação ou mediação do estresse ocupacional nos distúrbios osteomusculares, a presença de burnout e de vivências de sofrimento em contexto de precariedade, dentre outros. Ressaltam, por fim, a necessidade de mais estudos sobre estas temáticas visando compreender sistematicamente suas ocorrências e desenvolver meios eficazes de prevenção e de intervenção.

A utilização de indicadores de saúde diferenciados e diversificadas abordagens teóricas e metodológicas, combinando métodos quantitativos e qualitativos, enriqueceu a apreensão da relação trabalho-saúde. A diversidade de métodos e de abordagens teóricas reunidos no livro são reflexo da complexidade da realidade atual do mundo do trabalho. Não obstante, os organizadores salientam a necessidade de o leitor se precaver contra o risco do ecletismo e da pulverização teórica, assumindo uma postura crítica quanto às visões pluralistas, que favoreça o avanço científico sobre esta temática.

Um eixo transversal dos capítulos do livro é a perspectiva de promover a saúde integral do indivíduo no trabalho; mas isto se torna um desafio perante um cenário sócio-econômico que privilegia a produtividade a todo o custo, retirando dos trabalhadores a possibilidade de reconhecer sua identidade no contexto de produção. Assemelhando-se aos recursos materiais, os ''recursos humanos'' ou ''fatores humanos'' são geralmente administrados, ''adquiridos'' e ''dispensados'' como qualquer outro elemento da cadeia produtiva. Em vista disto, ''promover a saúde'' se converte, freqüentemente, em ''humanizar o trabalho''. Neste sentido, o fato de o trabalho estar em transição não é per se um elemento de risco à saúde, mas o risco se estabelece em função do destino da transição. Caminhar para um modo de produção alienante fatalmente contribui para a disseminação de doenças laborais, mas reverter esta tendência e efetivamente resgatar a autonomia do homem sobre a construção de sua realidade psicossocial criaria um cenário favorável à saúde.

Os autores têm em comum a proposta de não reduzir o estudo dos fenômenos à identificação de relações lineares entre variáveis, mas compreender a dinâmica do processo sócio-histórico onde o indivíduo está inserido. Os argumentos utilizados são profundamente fundamentados no contexto atual, o que enaltece sua contribuição para balizar transformações concretas no sentido de ''humanizar o trabalho'', além de promover a discussão acadêmica. Desta forma, assim como os objetos dos estudos estão em constante processo de perecimento e renovação – característica essencial dos fenômenos sociais –, as conclusões das pesquisas apresentadas no livro estão permanentemente sendo revistas e reconstruídas. Isto sustenta a coerência das teorias em virtude do confronto com o momento histórico da sociedade, mantendo-as atualizadas e potencialmente transformadoras.

Os capítulos do livro sustentam a não-psicologização da saúde física ou psíquica, sendo esta compreendida como um processo dinâmico, influenciada continuamente pelo contexto social e pelo ambiente de trabalho. Sugere-se, então, que o bem-estar dos trabalhadores poderia ser proporcionado com modificações na gestão organizacional, abrindo mais espaço para autonomia, reconhecimento e valorização pessoal, com o uso de estratégias positivas para enfrentar o sofrimento decorrente da situação laboral ou da perda de trabalho. Neste último caso, o profissional das ciências do trabalho poderia estimular o desenvolvimento de estratégias voltadas para o resgate da auto-estima e do sentido do trabalho.

A leitura do livro, tendo em vista sua linguagem clara e concisa, é acessível aos pesquisadores da área, professores universitários, estudantes de graduação e pós-graduação como também às pessoas interessadas na inter-relação entre trabalho e saúde. Deste modo, permite maior conscientização popular e acadêmica sobre esta temática, realçando o significado do trabalho na vida do homem, como espaço de realização pessoal e de formação de identidade, e o risco à saúde física e psíquica do trabalhador advindo da não-concretização destas vivências positivas.

Referências

Mendes, A. M., Borges, L. O. & Ferreira, M. C. (Orgs.) (2002). Trabalho em transição, saúde em risco. Brasília: Editora UnB.

Recebido em 12.06.2003

Primeira decisão editorial em 12.06.2003

Versão final em 29.08.2003

Aceito em 29.08.2003

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Out 2003
    • Data do Fascículo
      2003
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