Resumos
Apesar de o kadiwéu apresentar as mesmas características tipológicas das línguas analisadas por Baker (1995), este trabalho mostra que o parâmetro da polissíntese proposto por Baker, de acordo com o qual as línguas polissintéticas seriam línguas de argumentos pronominais, não se sustenta para esta língua. Este artigo oferece, então, uma análise alternativa à teoria dos argumentos pronominais para o kadiwéu sustentando que sintagmas nominais são argumentos verbais nesta língua polissintética, como em qualquer outra língua melhor conhecida. Nesta perspectiva, uma das característica principais das línguas polissintéticas, a suposta violação da Condição C (e.g. <>i quer que João i ame Maria, <>i quebrou a faca do João i), deriva de movimento sintático decorrente da natureza do sistema-v do kadiwéu. Este texto, assim, questiona a existência de um parâmetro da polissíntese e desenvolve um insight de Fukui & Speas (1996) que prevê que a sintaxe de uma dada língua decorre das categorias funcionais presentes no léxico desta língua.
parâmetro da polissíntese; não-configuracionalidade; argumentos pronominais; ergatividade
Although kadiwéu presents the same typological facts as the languages analyzed by Baker (1995), this work shows that Baker's polysynthesis parameter , according to which polysynthetic languages are pronominal argument languages, cannot be applied to this language. This paper offers, then, an alternative analysis to the pronominal argument theory for kadiwéu by arguing that nominal phrases are the verbal arguments in this polysynthetic language, like in any other better known language. On this view, one of the main properties of the polysynthetic languages, the so-called Condition C violation (e.g. <>i wants John i to love Mary, <> i broke John i's knife), follows from syntactic movement due to the nature of the Kadiwéu v-system. That is, this paper questions the existence of a polysynthesis parameter and develops Fukui & Speas (1996) insight that the syntax of a given language follows from the functional categories present in this language's lexicon.
polysynthesis parameter; non-configurationality; pronominal arguments; ergativity
A VIOLAÇÃO DA CONDIÇÃO EM KADIWÉU* * Agradeço à FAPESP pela realização deste trabalho sob a bolsa de pós-doutoramento (processo 98/01831-1). Este trabalho somente foi possível devido a genialidade de meu informante Hilário Silva, a quem agradeço de coração. Agradeço também a toda a comunidade kadiwéu por ter me recebido e aceitado com tanto carinho. Gostaria também de agradecer a algumas pessoas, cujos comentários me levaram a uma revisão de minha análise no decorrer de vários anos de reflexão e coleta de novos dados: Sally Thomanson, Eloise Jelinek, Ken Hale, Wayne O'Neil, Noam Chomsky, Peter Gordon, Luciana Storto, João Costa, Charlotte Galves, Helena Britto, Jairo Nunes, Norbert Hornstein e os revisores anônimos da revista DELTA..
(Condition C Violation in Kadiwéu)
Filomena SANDALO
(Unicamp)
ABSTRACT: Although kadiwéu presents the same typological facts as the languages analyzed by Baker (1995), this work shows that Baker's polysynthesis parameter , according to which polysynthetic languages are pronominal argument languages, cannot be applied to this language. This paper offers, then, an alternative analysis to the pronominal argument theory for kadiwéu by arguing that nominal phrases are the verbal arguments in this polysynthetic language, like in any other better known language. On this view, one of the main properties of the polysynthetic languages, the so-called Condition C violation (e.g. <>i wants John i to love Mary, <> i broke John i's knife), follows from syntactic movement due to the nature of the Kadiwéu v-system. That is, this paper questions the existence of a polysynthesis parameter and develops Fukui & Speas (1996) insight that the syntax of a given language follows from the functional categories present in this language's lexicon.
KEY-WORDS: polysynthesis parameter, non-configurationality, pronominal arguments, ergativity
RESUMO: Apesar de o kadiwéu apresentar as mesmas características tipológicas das línguas analisadas por Baker (1995), este trabalho mostra que o parâmetro da polissíntese proposto por Baker, de acordo com o qual as línguas polissintéticas seriam línguas de argumentos pronominais, não se sustenta para esta língua. Este artigo oferece, então, uma análise alternativa à teoria dos argumentos pronominais para o kadiwéu sustentando que sintagmas nominais são argumentos verbais nesta língua polissintética, como em qualquer outra língua melhor conhecida. Nesta perspectiva, uma das característica principais das línguas polissintéticas, a suposta violação da Condição C (e.g. <>i quer que Joãoi ame Maria, <>i quebrou a faca do Joãoi), deriva de movimento sintático decorrente da natureza do sistema-v do kadiwéu. Este texto, assim, questiona a existência de um parâmetro da polissíntese e desenvolve um insight de Fukui & Speas (1996) que prevê que a sintaxe de uma dada língua decorre das categorias funcionais presentes no léxico desta língua.
PALAVRAS-CHAVE: parâmetro da polissíntese, não-configuracionalidade, argumentos pronominais, ergatividade
1. Introdução
De acordo com a teoria de Princípios e Parâmetros, a diversidade lingüística é derivada através da possibilidade de classificar as línguas de acordo com parâmetros binários. Um exemplo que tem se tornado clássico como um exemplo de parâmetro no sentido acima é o chamado "parâmetro da polissíntese" (Baker 1995). De acordo com esta perspectiva, as línguas do mundo seriam divididas entre aquelas línguas cujos argumentos verbais são exclusivamente pronominais e línguas cujos argumentos são nominais. De acordo com Baker (1995), todas as línguas polissintéticas são do primeiro tipo e, portanto, o rótulo "parâmetro da polissíntese". Este texto, partindo de dados da língua kadiwéu, analisa certas estruturas típicas de línguas polissintéticas, a saber, estruturas que aparentam violar a Condição C da Teoria da Ligação, e desloca o fenômeno do âmbito de uma análise paramétrica à la Baker (1995). Este trabalho argumenta que os fatos do kadiwéu podem ser analisados de maneira muito mais coerente se configuracionalidade e movimento são invocados, questionando, portanto, a validade do parâmetro da polissíntese.1 1 O kadiwéu é uma língua da família Guaikurú falada por uma média de 1000 índios distribuídos sobre uma área de 60.000 hectares no Mato Grosso do Sul. Os kadiwéus são os únicos descentendes dos índios mbayás, os quais dominaram no século dezoito uma grande área do Chaco brasileiro e paraguaio (Sanchez Labrador 1760). As línguas da família Guaikurú permanecem apenas parcialmente descritas. Um rascunho de uma gramática e dicionário datados de 1760 por Sanchez Labrador (publicados em Susnik 1971) é o único material disponível sobre o mbayá. Sanchez Labrador coletou seus dados nas proximidades de Assunção, Paraguai, portanto seus dados representam um dialeto que possivelemnte já diferia do ascendente imediato do kadiwéu. A documentação do kadiwéu propriamente dito também ainda não está completa. Aspectos fragmentários da língua kadiwéu foram discutidos por Griffiths & Griffiths (1976), Braggio (1981), Griffiths (1973), (1987) e (1991). Uma primeira gramática e dicionário da língua foram publicados em Sandalo (1995) e uma versão reduzida e revisada desta mesma gramática foi republicada em Sandalo (1997).
Uma olhada superficial na sintaxe das línguas naturais nos mostra que há línguas que seguem uma ordem fixa de constituintes (inglês, por exemplo) e línguas que seguem uma ordem bastante variável de palavras (japonês e walpiri, por exemplo). Hale (1983) reuniu sob o rótulo de não-configuracionais as línguas do segundo tipo. A possibilidade de existir línguas verdadeiramente não-configuracionais (isto é, onde uma configuração sintática inexiste), entretanto, questiona a premissa básica do gerativismo de que relações sintáticas são definidas estruturalmente. Assim, as línguas com uma ordem variável de constituintes passaram a receber uma atenção especial dos gerativistas na década de oitenta.
As línguas que receberam o rótulo de não-configuracionais podem ser sub-divididas em dois blocos principais: aquelas com morfologia muito rica (polissintéticas) e aquelas cuja morfologia é pobre. Desde Saito (1985), as línguas do segundo bloco (de morfologia pobre) deixaram de ser vistas como não-configuracionais. A aparente ordem livre de constituintes destas línguas tem sido demonstrada ser derivada de movimentos sintáticos em uma estrutura frasal fixa presente na estrutura subjacente. Este tipo de abordagem justifica-se pelo fato de estas línguas nunca violarem nenhum princípio da Teoria da Ligação (Chomsky 1981), evidenciando uma estrutura configuracional. Algumas línguas polissintéticas, entretanto, apresentam estruturas que aparentam violar a Condição C da teoria da Ligação, a qual proíbe coindexação de uma expressão R com um elemento nominal que a c-comande, e este fato impediu a mesma argumentação para estas línguas, que continuaram a ser vistas como não-configuracionais.
As línguas polissintéticas permitem apagamento de qualquer sintagma nominal e a Condição C parece ser violada quando um sintagma nominal argumento externo é apagado em várias destas línguas. Nesta situação, o argumento externo nulo pode ser coindexado com um sintagma nominal em posições c-comandadas por este argumento externo:2 2 Este texto adota o alfabeto IPA para a transcrição do kadiwéu, com as seguintes exceções: G representa uma fricativa uvular, c representa uma africada alveo-palatal surda e j representa uma africada alveo-palatal sonora. As seguintes abreviações foram usadas para os dados do kadiwéu: 1,2,3 = primeira, segunda e terceira pessoa respectivamente, NOM= caso nominativo, ACC = caso acusativo, ERG = caso ergativo, tran = transitivisador, POSS = possessivo, pl = plural, sg = singular, OBL = obliquo, DEM = demonstrativo, rel = relacional, inten = intensivo, compl = aspecto completivo, masc = masculino, atel = atélico, QU = partícula interrogativa, COMP = complementizador, class = classificador, m.dim = diminutivo masculino, alnbl = nome alienável, dir = direcional, OBJ IND/OI = argumento interno indireto, intras = intransitivisador. O símolo de interrogação "?" indica que a glossa de um dado morfema continua desconhecida na descrição do kadiwéu.
Com o questionamento da Hipótese Lexicalista de Chomsky (1970) (Anderson 1982, entre outros), segundo a qual a sintaxe seria cega para a morfologia, surge a primeira tentativa de abordar as línguas polissintéticas dentro do gerativismo. Jelinek (1984) explica as propriedades das línguas não-configuracionais/polissintéticas propondo que as línguas escolhem os elementos que podem funcionar como argumentos verbais. De acordo com Jelinek, clíticos e afixos pronominais são os argumentos verbais nas línguas polissintéticas; sintagmas nominais são adjuntos, e portanto eles podem assumir qualquer ordem (sendo recursivos) ou ser omitidos. Esta proposta é bastante controversa, entretanto. A existência de morfologia flexional funcionando como argumentos continua questionando a premissa gerativista de que relações sintáticas são estabelecidas estruturalmente. Uma análise alternativa é dizer que os morfemas verbais não substituem os argumentos convencionais, mas que não-configuracionalidade não é nada mais que um caso obrigatório de pro-drop. Baker (1995), por exemplo, argumenta que sintagmas nominais são adjuntos em Mohawk, mas ele nega que a flexão verbal possa funcionar como argumentos. De acordo com Baker, os argumentos verbais são a categoria vazia pro que ocupa as projeções verbais. Restabelece-se, assim, uma configuração sintática, mas uma língua como Mohawk continua sendo vista como uma língua não-configuracional porque os sintagmas nominais são tidos como adjuntos, não participando, portanto, de nenhuma configuração sintática específica. A hipótese de que sintagmas nomimais são adjuntos e argumentos são pronomes (sejam eles clíticos e afixos ou pronomes vazios) ficou sendo chamada teoria dos argumentos pronominais.
Na seção 2 apresento, através de uma visão geral da sintaxe do kadiwéu, as principais características atribuídas às línguas polissintéticas. Na seção 3 apresento fatos que evidenciam que, embora o kadiwéu apresente as propriedades que levaram autores a classificar línguas da mesma tipologia como línguas de argumentos pronominais, a teoria dos argumentos pronominais não é sustentável para o kadiwéu, tanto na versão de Baker como na de Jelinek. A seção 4 apresenta uma análise da sintaxe do kadiwéu demostrando que há evidência suficiente para analisarmos esta língua como configuracional. A seção 5 apresenta uma análise alternativa para os fatos relacionados à aparente violação da Condição C e a seção 6 apresenta algumas conclusões deste trabalho.
2. Características gerais das línguas polissintéticas
Muitas das línguas indígenas brasileiras têm uma ordem variável de constituintes (o próprio português europeu têm uma ordem de constituintes muito mais variável do que muitas línguas européias, ver Costa 1998), mas nem todas as línguas de ordem variável podem ser classificadas como línguas não-configuracionais. As línguas chamadas de não-configuracionais por Hale (1983), além de apresentarem uma ordem bastante variável de constituintes, são caracterizadas por apresentarem sintagmas nominais descontínuos, sintagmas nominais recursivos e por um intenso apagamento de sintagmas nominais. O kadiwéu apresenta todas estas características.
As sentenças matrizes do kadiwéu envolvendo um argumento externo e um argumento interno de terceira pessoa podem aparecer em qualquer das seguintes ordens: OVS, VOS, SOV, OSV, SVO, e VSO, como pode ser observado abaixo:3 3 É importante, entretanto, ressaltar que, apesar de todas estas ordens serem igualmente gramaticais, diferentes contextos pragmáticos implicam em diferentes ordens. Por exemplo, a ordem que conseguimos em resposta a uma pergunta do tipo ' o que aconteceu?', onde toda a sentença traz informação nova é VSO, enquanto que a ordem que conseguimos quando o argumento externo (S) é tópico (i.e., informação antiga) é SVO. Além disso, a ordem sintática do kadiwéu se relaciona com a morfologia verbal de maneira não trivial, como será mostrado e discutido na seção 4.
Fala espontânea ilustrando ordem, entretanto, não é fácil de se conseguir porque os sintagmas nominais estão usualmente ausentes. Como pode ser observado em (10) e (11), qualquer verbo flexionado corresponde a uma frase completa do português.
A freqüência e os ambientes de uso de argumentos nulos podem ser observados através do fragmento de texto abaixo:
Constituintes descontínuos são bastante comuns nas chamadas línguas não-configuracionais, por exemplo o walpiri (Hale 1983). Expressões nominais descontínuas são também encontradas em kadiwéu, embora não sejam tão produtivas quanto em walpiri. Observe em (13) que o elemento QU é separado de seu sintagma nominal pelo complementizador me. Em (14), não apenas o elemento QU está separado do sintagma nominal, mas os componentes do sintagma nominal possessivo [liwoqodi apaqacodi NP] foram divididos pelo verbo. Os exemplos em (15) e (16) mostram que o mesmo fenômeno ocorre com argumento externos.4 4 Note que também no Mohawk expressões descontínuas não são tão freqüentes como em walpiri e outras línguas da Austrália (Baker 1995).
Os sintagmas nominais do kadiwéu podem também aparecer recursivamente, outra característica das chamadas línguas não-configuracionais. Há vários exemplos deste fenômeno vindo de textos ou de sentenças controladas:
Como mencionado acima, as características acima já foram notadas em línguas de morfologia pobre e em línguas polissintéticas. A condição sine qua non para caracterizar uma língua como polissintética é sua complexidade morfológica. Segundo Sapir (1921) ¨uma língua polissintética, como seu nome implica, é mais que ordinariamente sintética. A elaboração de uma palavra é extrema. Conceitos que nós nunca sonharíamos em tratar de uma maneira subordinada são simbolizados por afixos derivacionais ou mudanças "simbólicas" no elemento radical, enquanto noções mais abstratas, incluindo relações sintáticas, podem também ser transmitidas pela palavra." (Sapir 1921:128)5 5 Segundo o texto original: "A polysynthetic language, as its name implies, is more than ordinarily synthetic. The elaboration of the word is extreme. Concepts which we should never dream of treating in a subordinate fashion are symbolized by derivational affixes or "symbolic" changes in the radical element, while the more abstract notions, including the syntactic relations, may also be conveyed by the word." . A figura 1 introduz a estrutura verbal do kadiwéu, com 12 posições flexionais, cuja complexidade é típica de uma língua polissintética.
Além das características apontadas por Hale (1983), as línguas polissintéticas, segundo Baker (1995), são também caracterizadas por ausência de anáforas lexicais, ausência de quantificadores, ausência de questões múltiplas do tipo QU, estruturas que aparentam violar a Condição C e incorporação.
De fato, o kadiwéu não conta com anáforas lexicais. No kadiwéu reflexivos e recíprocos são expressos através da morfologia verbal:
Embora anáforas lexicais são inexistentes em línguas polissintéticas, pronomes enfáticos ocorrem. O kadiwéu conta pronomes enfáticos que, como qualquer outro nome nesta língua, podem ser recursivos:
Como as línguas estudadas por Baker, somente um sintagma nominal pode ser questionado de cada vez no kadiwéu:
E, como as línguas analisadas por Baker, o kadiwéu não conta com quantificadores. Nesta língua, noções expressas por quantificadores em uma língua como o português são expressas através da morfologia afixada a pronomes demonstrativos. Isto é, ao contrário dos quantificadores, estes elementos são referenciais. A Figura 2 apresenta os demontrativos do kadiwéu, os quais são comuns em todas as línguas guaikurú (Ceria & Sandalo 1995), seguida de exemplos.
Baker (1995) afirma ainda que as línguas polissintéticas são caracterizadas por presença de incorporação nominal. Apenas recentemente passei a observar no kadiwéu construções que podem ser analisadas como resultantes de incorporação nominal. Compare a mudança de concordância entre (28) e (29), onde (28) apresenta concordância ergativa evidenciando uma raiz verbal transitiva6 6 Seguindo Bittner & Hale (1996), assumo que o Caso absolutivo e o caso nominativo são o mesmo e, portanto, recebem o rótulo nominativo (NOM). Em kadiwéu verbos inergativos e verbos transitivos podem ser marcados por concordância ergativa. Ver Hale & Keyser (1993) e Bittner & Hale (1996) para argumentos em favor de analisar verbos inergativos como transitivos lexicalmente. Ver a seção 4 para uma discussão detalhada sobre concordância em kadiwéu. e (29), que contém a mesma raiz verbal acompanhada de um nome incorporado, apresenta concordância intransitiva (ver exemplo (30) para atestar que agin é uma raiz nominal produtiva na língua). O padrão alterado da concordância sugere que estamos realmente diante de um processo de incorporação sintática, uma vez que incorporação sintática implica em intransitivização (Baker 1988).
A incorporação de nomes no kadiwéu não parece ser muito freqüente, entretanto. Este fato pode estar relacionado com o fato de o kadiwéu apresentar incorporação obrigatória de adposições. Note nos exemplos em (10) e (11) que as adposições estão inseridas na estrutura morfológica do verbo. Estruturas que contêm uma adposição incorporada não contêm nomes incorporados. Baker & Hale (1990) argumentam que a incorporação de nomes é obrigatoriamente banida em estruturas que contêm uma adposição incorporada porque a adposição incorporada serviria como uma barreira entre o nome incorporado e seu vestígio, violando a condição da Minimalidade Relativizada (Rizzi 1990).
Finalmente, Baker nota que as línguas polissintéticas são caracterizadas por apresentar estruturas, como em (1) (3), que parecem violar a Condição C da Teoria da Ligação. Estas estruturas serão discutidas detalhadamente na próxima seção.
3. A teoria dos argumentos pronominais e a violação da Condição C em kadiwéu
A Condição C, a qual proibe a coindexação de uma expressão R com um elemento pronominal que a c-comande, é considerada para a teoria chomskyana como parte do componente inviolável da gramática. Uma situação problemática para a inviolabilidade dos princípios da teoria gerativa é apresentada por línguas que parecem violar a Condição C. As línguas polissintéticas são caracterizadas por um apagamento intensivo de sintagmas nominais, deixando estruturas nas quais um argumento externo nulo pode ser coindexado com uma categoria vazia que o c-comande, como em (1) repetido aqui como (31):
Para dar conta desta situação problemática para o quadro gerativo, Baker propõe que as línguas polissintéticas têm uma estrutura sintática substancialmente distinta de qualquer outra tipologia lingüística, e assume com Jelinek (1984) que sintagmas nominais são gerados na base como adjuntos nestas línguas. Temos um macroparâmetro onde línguas polissintéticas são aquelas onde sintagmas nominais são sempre gerados como adjuntos (uma categoria vazia é gerada nas posições argumentais), enquanto as línguas de outras tipologias têm sintagmas nominais gerados em posições argumentais:
Nesta interpretação, uma estrutura do tipo <>i quebrou a faca do Saki, onde <> corresponde a um argumento externo nulo pro, é possível porque pro não c-comanda o sintagma a faca do Sak, o qual é um adjunto. Assim, a Condição C não é verdadeiramente violada e os princípios da Teoria da Ligação permanecem como universais lingüísticos.
A proposta de Baker, entretanto, faz previsões equivocadas a respeito das posições onde uma categoria vazia pode ser coindexada com um sintagma nominal em aparente violação da Condição C em kadiwéu. Baker prevê que a coindexação de uma categoria vazia na oração principal com um substantivo em uma cláusula complemento é impossível, uma vez que um pro na principal pode c-comandar qualquer elemento do complemento:
Seria possível questionar se a oração encaixada em (34) é realmente uma oração complemento. Se esta oração for adjunta, a análise de Baker ainda poderia ser mantida para o kadiwéu, uma vez que a coindexação de uma argumento na oração matriz com com um sintagma nominal em uma oração adjungida ao IP não violaria a Condição C (cf. I saw heri before Maryi died). Entretanto, a análise da oração encaixada acima como uma oração complemento é corroborada pelo fato de permitir extração. O exemplo em (36) mostra que orações encaixadas introduzidas pelo complementizador me permitem extração. O exemplo (37) mostra que extrações de dentro de uma oração adjunto é impossível no kadiwéu, como em qualquer outra língua.8 8 Note que a coindexação do argumento externo da principal e o argumento externo da encaixada com João em ( 36 ) é possível.
A sentença (38) corrobora uma análise de movimento tipo QU porque este exemplo mostra que kadiwéu segue a mesma restrição sobre movimento de línguas mais conhecidas. Assim, a sentença (38) mostra que a extração de longa distância de um elemento QU é impossível se a posição COMP intermediária estiver preenchida. Especificamente, o exemplo (38) mostra que um elemento não pode ser extraído passando por uma oração relativa. Compare (38) com (39); o exemplo em (39) forma um par mínimo com (38), cuja única diferença é o fato de a oração relativa ter sido excluída em (39). Note que o movimento de longa distância volta a ser possível em (39).
Em outras palavras, os fatos do kadiwéu demonstram que não estamos diante de uma oração adjunta. O fato de o kadiwéu permitir a coindexação entre uma categoria vazia na matriz e um sintagma nominal em uma oração complemento não pode ser explicado pela teoria de Baker (1995).
Uma outra análise possível para os dados do kadiwéu, sugerida por um revisor anônimo, e que asseguraria o parâmetro da polissíntese, seria postular que esta língua não conta com verdadeira subordinação, mas com estruturas contendo verbos complexos, como por exemplo verbos seriais. Se estivermos diante de estruturas monoclausais contendo verbos complexos, a hipótese de Baker ainda poderia ser mantida, uma vez que, sem subordinação, poderíamos garantir uma estrutura onde todos os sintagmas nominais estivessem adjungidos ao IP. No entanto, a possibilidade de as estruturas estudadas permitirem argumento externos distintos, como em ( 40 ), evidencia que não estamos diante de verbos seriais. Sabe-se o argumento externo, bem como o argumento interno, são obrigatoriamente compartilhado em estruturas com verbos seriais (Baker 1989).
Outra diferença importante entre uma estrutura de subordinação e uma estrutura de serialização verbal concerne a negação. As estruturas que interessam a este texto permitem a negação da oração matrix ou da oração subordinada, enquanto que apenas o primeiro verbo admite ser modificado por uma partícula de negação em estruturas contendo verbo seriais, e isto implica na negaçao da estrutura como um todo, como em qualquer estrutura monoclausal (Sebba 1987).9 9 O kadiwéu tem dois tipos de partículas negativas: aG e daGa. O primeiro é usado em orações principais e o segundo em subordinadas.
Finalmente, as estruturas analisadas aqui admitem temporalização distinta, como qualquer estrutura biclausal:
Em contraste, as ações expressas por verbos seriais são simultâneas, isto é, elas expressam um único evento, e todos os verbos serializados devem ser interpretados como tendo o mesmo tempo e/ou aspecto (Sebba 1987).
Há ainda uma derradeira possibilidade para assegurar uma análise de não-configuracionalidade para os sintagmas nominais do kadiwéu que foi assumida em Sandalo (1995) e que deve ser refutada. Sandalo (1995) tomou a possibilidade de coindexação de um argumento externo vazio da oração matriz com um argumento externo da oração complemento como evidência em favor de Jelinek (1984). De acordo com Jelinek, os argumentos verbais são afixos verbais em línguas polissintética. Se os argumentos verbais nas línguas polissintéticas são verdadeiramente morfemas flexionais, a gramaticalidade da sentença ( 34 ) poderia ser explicada porque, uma vez que os argumentos estão dentro de V°, eles não poderiam c-comandar elementos na oração complemento e não haveria violação da Condição C:10 10 Alguém poderia argumentar que a oração encaixada poderia estar adjungida ao IP. Neste caso, tanto Jelinek como Baker poderiam prever a gramaticalidade das sentenças em discussão. Parece, assim, necessário lembrar neste momento que os exemplos (36), (37) e (39) apresentam evidência de que estamos diante de orações complementos nos casos que parecem envolver a violação da Condição C em Kadiwéu. Lembre que o exemplos (36) e (39) mostram que as encaixadas em discussão admitem extração, enquanto o exemplo (37) demonstra que orações adjungidas ao IP não admitem extração em Kadiwéu, como em qualquer outra língua. Isto é, nossos dados mostram que não é possível acreditar em uma análise que postule que estamos diante de orações adjungidas ao IP quando nos deparamos com encaixadas iniciadas pelo complementizador me, ou seja, em encaixadas que envolvem os aparentes casos de violação da Condição C.
Apesar de a estrutura proposta por Jelinek ser capaz de prever os dados em discussão, há previsões equivocadas que a teoria dos argumentos pronominais faz que nos levam a rejeitar esta hipótese como um todo. Segundo a teoria dos argumentos pronominais (na versão de Baker ou de Jelinek), todos os sintagmas nominais são gerados como adjuntos. Se todos os sintagmas nominais fossem igualmente adjuntos, nenhum tipo de assimetria entre argumento externos e argumento internos deveria ser atestada em Kadiwéu porque todos os sintagmas nominais teriam o mesmo estatuto sintático. Há dados, entretanto, que atestam assimetria entre sujeitos e objetos em Kadiwéu, a saber, argumentos externos não podem sofrer extração de longa distância (Sandalo 1997):11 11 Note que a sentença em (39)(46) é gramatical se Ana for interpretado como um vocativo, ao invés do argumento externo da encaixada.
Note que os argumento internos não são sujeitos a este tipo de restrição, isto é, eles podem sofrer extração de longa distância. A assimetria atestada mostra que qualquer proposta que assuma que sintagmas nominais são sempre adjuntos em toda e qualquer língua polissintética deve estar equivocada. Isto é, a teoria dos argumentos pronominais/parâmetro da polissíntese é insuficiente porque não podemos explicar o comportamento sintático de todas as línguas polissintéticas com base nesta proposta. A próxima seção argumenta em favor de uma estrutura totalmente configuracional para o kadiwéu e a seção 5 argumenta em favor de uma análise que derive as estruturas discutidas através de movimento sintático.
4. Morfologia verbal e evidência para configuracionalidade
A concordância com o argumento externo e o argumento interno estão em distribuição complementar em kadiwéu. Note em (47 ) que o verbo concorda com o argumento interno apenas, mas no exemplo ( 48 ) o mesmo verbo concorda com o argumento externo exclusivamente. O que determina se o verbo transitivo concorda com o argumento externo ou o argumento interno é a presença/ausência do prefixo d:-. O verbo transitivo é marcado por concordância com o argumento externo normalmente. Mas se o verbo transitivo for marcado pelo prefixo d:-, rotulado de relacional seguindo a literatura indigenista brasileira, o verbo passa a ser marcado obrigatoriamente por concordância com o argumento interno.
Verbos intransitivos (exceto o verbo inergativo12 11 Note que a sentença em (39)(46) é gramatical se Ana for interpretado como um vocativo, ao invés do argumento externo da encaixada. ), isto é, inacusativos, reflexivos, antipassivos e verbos que contêm um nome incorporado, são marcados por um terceiro conjunto de afixos. Inspirada pelo modelo de Bittner & Hale (1996), rotulo a concordância com o argumento interno de acusativa, com o argumento externo agente de ergativa e a concordância com o argumento externo intransitivo de nominativa.A Figura 2 apresenta os três conjuntos de marcadores de concordância verbal do kadiwéu seguida de exemplos.13 13 Como o verbo transitivo é obrigatoriamente marcado por d: se o argumento interno for primeira ou segunda pessoa, o resultado é um sistema cindido onde o verbo transitivo é marcado para concordância acusativa se o argumento interno for primeira ou segunda pessoa e para concordância ergativa se argumento interno for terceira pessoa, criando uma cisão de pessoa. É comum uma cisão de pessoa na línguas que apresentam ergatividade cindida (Nash 1997).
Note que o argumento rotulado de nominativo pode ser marcado por um enclítico opcional. Assim, note em (52) abaixo que no padrão de concordância acusativa, é o argumento externo que é marcado pelo enclítico te, enquanto no padrão de concordância ergativa, o argumento interno é marcado por este mesmo clítico:
Hale (comunicação pessoal) observou que o sistema de concordância do kadiwéu pode indicar uma semelhança entre o sistema de Caso desta língua e o sistema de Caso das línguas austronesianas, as quais já foram classificadas erroneamente como não configuracionais no passado (ver Guilfoyle, Hung & Travis 1992 para discussão). O malagasy, segundo a análise de Bittner & Hale (1996), que reinterpretam minimamente a análise de Guilfoyle, Hung & Travis (1992), apresenta um sistema acusativo quando o prefixo an está presente. Mas quando este morfema não está presente, a língua apresenta um sistema ergativo, rotulado por Bittner & Hale (1996) de ergatividade sintática, onde o argumento interno é alçado para o especificador do sintagma flexional (IP) e recebe o Caso nominativo, posição preenchida pelo argumento externo em seu padrão acusativo. As estruturas sintáticas abaixo são de Guilfoyle, Hung & Travis (1992) e os exemplos de Bittner & Hale (1996):15 15 Bittner & Hale (1996) argumentam que a posição do especificador de TP/IP é uma posição A-barra, portanto o movimento do argumento interno para esta posição não representa uma violação de minimalidade (Minimalidade Relativizada e/ou Elo Mínimo).
Bittner & Hale (1996) propõem que a propriedade de uma estrutura atribuir Caso acusativo vem de uma categoria funcional contida no sintagma verbal, que pode se realizar abertamente como um morfema em algumas línguas, como é o caso do malagasy an-. Segundo eles, estruturas ergativas são caracterizadas por não contarem com esta categoria, e portanto, não terem a possibilidade de atribuir Caso acusativo. O malagasy difere de línguas puramente ergativas porque, enquanto as línguas puramente ergativas nunca contam com esta categoria funcional licenciadora de Caso acusativo, uma língua como o malagasy tem a opção de contar ou não com ela gerando um sistema de Caso cindido.
Nash (1995, 1997) adota a proposta de Bittner & Hale de que uma categoria funcional é responsável pelo Caso acusativo e transporta esta proposta para o quadro Minimalista. Chomsky (1995) postula que as únicas categorias funcionais autorizadas dentro de um programa minimalista são aquelas que possuem traços interpretáveis, isto é, T (especificações de finitude), C (especificações de força ilocucionária) e D (especificações de referencialidade). Além de T, C e D, Chomsky assume a existência de uma quarta categoria funcional, v. Segundo Chomsky, as categorias T e v são diretamente relacionadas com a atribuição de Caso estrutural: nominativo e acusativo respectivamente. Assim, Nash propõe que a categoria funcional de Bittner & Hale é o v de Chomsky (1995). Para Nash (1997:138), "as línguas ergativas são definidas como sistemas "inacusativos", onde a propriedade que as distingue das línguas acusativas seria a incapacidade do verbo de atribuir o caso acusativo ao objeto".16 16 Tradução adaptada do seguinte trecho original: "les langue ergatives sont souvent définies comme des systèms 'inaccusatifs", où la propriété pertinente les distinguant des langues accusatives serait l'incapacité du verbe d'assigner le cas accusatif à l'object." Assim, nesta proposta, estruturas acusativas contam com a categoria v, enquanto estruturas ergativas não contam:17 17 Há uma diferença importante, entretanto, entre a proposta minimalista e a proposta de Bittner & Hale. Para Chomsky (1995), apenas os verbos transitivos podem ser caracterizados pela presença da categoria funcional v. Bittner & Hale defendem que verbos inacusativos e transitivos podem ser caracterizados por contarem com uma categoria funcional capaz de licenciar Caso acusativo. Assim o fazem porque há línguas onde verbos inacusativos atribuem Caso acusativo para seu único argumento. Segundo a análise de Bittner & Hale, nas línguas onde o alçamento para a posição do especificador do sintagma flexional é obrigatória, o único argumento do verbo inacusativo recebe Caso nominativo, mas nas línguas que admitem um expletivo nulo na posição de especificador do sintagma nominal, o argumento do verbo inacusativo recebe Caso acusativo. Para sustentar esta análise, Bittner & Hale defendem que v, representados por eles como D°, não atribui papel temático, como assumido por Chomsky, sendo responsável por Caso exclusivamente. Para Bittner & Hale, o que Hale & Keyser (1993) rotulam de v e o que Bittner & Hale rotulam de D° são elementos distintos. Esta discussão está além do escopo deste trabalho e assumo apenas com os autores que acusatividade está relacionada a uma categoria funcional.
Nas estruturas acusativas, o argumento interno checa os traços-phi de v (Caso acusativo) e o argumento externo checa os traços-phi de T (Caso nominativo). Nas estruturas ergativas, não há nada dentro do sintagma verbal que possa checar os traços do argumento interno. Assim, o argumento interno sai do sintagma verbal e checa seus traços com T, isto é, o argumento interno checa nominativo. Nesta situação, o argumento externo deixa de ser licenciado estruturalmente, segundo Nash. O argumento externo é licenciado tematicamente, recebendo papel temático diretamente do verbo. Nas palavras de Nash (1997: 140):
"J'ai exposé une théorie de l'érgativité qui assigne un statut différent aux cas ergatif et absolutif: le premier est un cas purement morphologique, assigné aux agents thématiquement légitimés par des verbes transitifs, le second, un cas structural assigné aux objects et aux sujects des verbes intransitifs par la catégorie Temps." Les deux cas ayant des sources grammaticales différentes, on conclura que l'ássignation de l'érgatif s'opère au niveau postsyntaxique le Niveau Morphologique [voir Halle et Marantz (1993)], alors que l'ássignation de l'ábsolutif s'éffectue au niveau syntaxique."
Nas línguas acusativas, isto é, quando a projeção de v está presente, o papel temático atribuído ao argumento externo é recebido em SPEC, vP.Reestruturando para o quadro minimalista as propostas de Guilfoyle, Hung & Travis (1992) e de Bittner & Hale (1996) para o malagasy, temos o seguinte quadro:18 18 Os autores não consideram a proposta de Kayne (1994) de que especificadores estão à esquerda universalmente e que uma ordem linear onde o sintagma no especificador do sintagma flexional está à direita é derivada através do movimento à esquerda, para posições superiores ao especificador do sintagma flexional, do material que permanece dentro do VP. Como observar quais movimentos resultam na ordem superficial do malagasy não faz parte do escopo deste trabalho, mantenho com os autores que analisaram o malagasy o especificador do sintagma flexional à direita.
É imporante questionar se o padrão não usual de concordância do kadiwéu realmente acena para um sistema de caso cindido, como no malagasy, ou se estamos diante de um fenômeno superficial, isto é, uma idiossincrasia da morfologia verbal do kadiwéu. Há várias propriedades da sintaxe do kadiwéu que indicam que estamos, de fato, diante de um sistema cindido.
Assim, é possível atestar no kadiwéu que certas propriedades atribuídas ao argumento externo no padrão de concordância acusativa são verificadas em relação ao argumento interno quando a concordância é ergativa, sugerindo que o argumento interno verdadeiramente se encontra no especificador do sintagma flexional (TP). Por exemplo, quando coordenamos orações em uma língua como o português, que apresenta um padrão acusativo, um argumento nulo é sempre interpretado como o argumento externo da coordenada. O exemplo (58) mostra que o argumento nulo de ir deve ser interpretado como o argumento externo de ver. Isto é, temos um processo onde o argumento externo é envolvido sempre.
Quando um verbo no kadiwéu apresenta concordância acusativa, o mesmo padrão pode ser observado. No entanto, o mesmo não é verdadeiro se o padrão de concordância for ergativo. O argumento manipulado passa a ser um argumento interno:
Podemos entender o fenômeno se assumirmos que o processo envolve coindexação dos argumentos nominativos (i.e., dos argumentos que se encontram no especificador de TP). Em uma estrutura acusativa, argumento externos são nominativos. Em uma estrutura ergativa, os argumento internos de transitivas e o argumento externo de intransitivas são nominativos.
O exemplo (61) apresenta uma ocasião onde o argumento interno de 'ver' pode ser coindexado com o argumento externo de 'dar'. Note que o verbo ajigo 'dar' foi antipassivizado. Um verbo antipassivizado deixa de contar com um argumento interno direto e, nesta situação, o argumento externo é alçado para o especificador do sintagma flexional checando o Caso nominativo. Isto é, os exemplos em (60) e (61) formam um par mínimo e confirmam a hipótese de que os argumentos coindexados são sempre aqueles que recebem o Caso nominativo.
O fenômeno discutido é atestável em todas as línguas chamadas de ergativas sintáticas (Bittner & Hale, 1986), isto é, línguas nas quais o argumento interno ocupa a posição do especificador de TP. Os exemplos abaixo são do dyrbal (Hale, comunicação pessoal):
Em (62) o argumento nulo de banakanyu 'voltar' é interpretado como o argumento interno de buran 'ver'. Para que o argumento nulo seja interpretado como o argumento externo, antipasivização é necessária:
Outra propriedade atestada em línguas ergativas sintáticas e também atestada no kadiwéu em sua versão ergativa refere-se a restrições sobre topicalização e/ou focalização. Bittner & Hale (1996) observam que apenas o argumento interno ou o argumento externo da intransitiva podem ser topicalizado em dyrbal. Um argumento externo transitivo não pode ser topicalizado sem o uso de antipassivização. Novamente, o kadiwéu ergativo tem um comportamento similar a uma língua ergativa sintática como o dyrbal. Podemos focalizar um argumento interno contido em uma relativa, mas se quisermos fazer o mesmo com um argumento externo de um verbo lexicalmente transitivo contido em uma oração relativa, é necessário antipassivizar este verbo:
Este padrão não se verifica quando a concordância se faz com o argumento interno (acusativa). Como em qualquer língua acusativa, tanto o argumento externo ou o argumento interno pode ser focalizado sem o uso de qualquer mecanismo de intransitivização:
Finalmente, a ordem de constituintes, como discutido abaixo, oferece forte evidência para a proposta de que o argumento interno ocupa a posição do especificador de TP nas estruturas com concordância ergativa do kadiwéu.
Embora seja verdade que a mesma frase possa ser enunciada em seis possíveis ordens sintáticas, como demonstrado em (4) a (9), a ordem sintática do kadiwéu se relaciona com a morfologia verbal, indicando que o padrão de concordância do kadiwéu, realmente, acena para sua estrutura sintática. A ordem sintática é variável apenas quando o padrão de concordância é ergativa. Quando a concordância é acusativa a ordem sintática é obrigatoriamente OVS. Também em intransitivas, que apresenta concordância nominativa, o argumento externo ocupa a posição final se não houver topicalização. O exemplo (69) apresenta um verbo reflexivizado, onde o único argumento de dinicitedike 'balançar-se' necessita ocupar a posição pós-verbal.
Embora vários autores prefiram rotular o argumento ergativo de A (ao invés de S), uma vez que o argumento ergativo de uma língua sintaticamente ergativa não ocupa a posição do especificador de TP, continuarei rotulando como S o argumento agentivo, seja ele nominativo ou ergativo, para pôr em evidência a mudança de ordem que ocorre com a mudança morfológica. Quando o relacional não está presente (padrão ergativo), a ordem é muito variável, como discutido na seção 2. Mas em resposta para uma pergunta como 'o que aconteceu?', onde a sentença como um todo é foco, temos a ordem VSO exclusivamente. Tem sido largamente assumido que a ordem não marcada de uma dada língua ocorre exatamente como resposta a este tipo de pergunta (Costa 1998). Assim, temos um cenário onde a concordância acusativa implica na ordem OVS, a concordância nominativa implica na ordem VS e a concordância ergativa implica em VSO em sua versão não marcada. Isto é, o argumento interno passa a ocupar a posição final da sentença quando o padrão de concordância é ergativo, posição reservada ao argumento externo em outras construções. Se a posição linear final é a posição do especificador do sintagma flexional, esta posição é ocupada pelo argumento interno (O) quando o d: não está presente, isto é, no padrão ergativo.
Os fatos acima sugerem que estamos diante de uma estrutura sintática verdadeiramente cindida, contudo ambas verdadeiramente configuracionais. Abaixo apresento uma proposta para derivar as ordens sintática não marcadas do kadiwéu readaptando as propostas de Bittner & Hale (1996) e Nash (1997) para uma versão mais recente do minimalismo.
Em Chosmky (1999/2000), a categoria v é sub-dividida em duas unidades: v e v*. Chomsky (2000) propõe que sintagmas verbais que atribuem o Caso acusativo são caracterizados por contarem com uma categoria funcional completa (v*), enquanto estruturas que apresentam alçamento do argumento interno para fora do VP (como estruturas passivas e inacusativas) contam com um verbo leve defectivo (v). Isto é, na nova versão do minimalismo, todas as estruturas contam com uma categoria funcional núcleo do sintagma verbal. A diferença se localiza no fato de algumas estruturas contarem com uma categoria defectiva, incapaz de projetar especificadores, enquanto outras estruturas contam com categorias funcionais completas. Retomo a proposta de Nash assumindo que uma estrutura ergativa não deixa de contar com uma categoria funcional núcleo do VP, como proposto por Nash (1997) com suporte nas primeiras versões do minimalismo, mas assumindo que estruturas ergativas contam com v, isto é, um verbo leve defectivo. Como pode ser verificado abaixo, a proposta de que uma categoria funcional sempre está presente pode derivar as distintas ordens sintáticas não marcadas do kadiwéu. As ordens discutidas são derivadas a partir do deslocamento do v*P/vP:19 19 Alguém poderia questionar o porquê de uma língua poder fazer uso de dois tipos de sistemas -v. Uma explicação encontra-se em Jelinek (1993). Jelinek (1993) foi a primeira a observar que as línguas polissintéticas tendem a apresentar um padrão de Caso cindido. Segundo a autora, o padrão de Caso cindido tende a ocorrer nestas línguas porque elas não contam com determinantes. Jelinek desenvolve a proposta de Diesing (1992) que defende que nomes definidos são alçados para fora do VP na forma lógica em línguas que contam com determinantes. Jelinek propõe que os nomes definidos são alçados para fora do VP na sintaxe aberta em línguas que não contam com determinantes. Os argumentos de primeira e segunda pessoa são intrinsicamente definidos, mas os argumentos de terceira pessoa não. Jelinek propõe que um sistema de Caso cindido, mais especificamente a ergatividade sintática, ocorre nestas línguas para garantir que o argumento de terceira pessoa definido saia do VP na sintaxe. De fato, como mencionamos anteriormente (nota de rodapé 13), o sistema sintaticamente ergativo do kadiwéu ocorre apenas quando o objeto é uma terceira e todos os exemplos coletados até o momento apresentam uma terceira pessoa definida.
Nesta proposta, o kadiwéu conta com deslocamento à direita (Kayne 1994). Isto é, o sintagma verbal como um todo (v*P) se adjunge ao TP, gerando a ordem linear OVS. Neste padrão, o objeto é alçado para o especificador de v*P e o sujeito é alçado para o especificador de TP. Também no padrão ergativo o kadiwéu conta com deslocamento à direita, nesta proposta, dado que o argumento nominativo ocorre na posição final também nesta situação. Assumo que uma categoria funcional defectiva não pode projetar nenhum tipo de especificador, mantendo com Bittner & Hale (1996) e Nash (1997) que o argumento externo de uma estrutura ergativa é gerado e permanece dentro do VP. Nesta estrutura, o argumento interno é alçado para o especificador de TP, onde recebe Caso nominativo. A ordem VSO é gerada:20 20 Na proposta acima o verbo não se move para T. A base desta proposta é o fato de o verbo nunca ser marcado por morfemas de aspecto, tempo e modo. Aspecto tempo e modo são marcados no complementizador em subordinadas e como morfemas livres em posição inicial em orações matrizes. A hipótese de trabalho a ser discutida em trabalhos futuros é de que I é alçado para C, mas o verbo permanece in situ. Segue abaixo um par de exemplos mostrando que tempo/aspecto é marcado em C:
Note que a proposta de que o kadiwéu conta com deslocamento à direita à la Kayne encontra suporte independente da ordem sintática. Suporte para esta proposta vem de lacunas envolvendo o alçamento de sintagmas nominais para CP, como topicalização. Apenas o argumento externo pode ser topicalizado no kadiwéu ergativo, como pode ser observado em (72) e (73). Vimos que o argumento externo é licenciado in situ no kadiwéu ergativo, mas quando há topicalização o argumento externo ocorre antes do complementizador, o que indica movimento para o especificador de CP.21 21 Em orações matrizes o complementizador não é foneticamente visível. Assim, uma topicalização somente pode ser notada sintaticamente pelo fato de o argumento externo passar a ocupar a posição inicial no kadiwéu ergativo. Assim, em (72), João está topicalizado, bem como o sujeito da subordinada. O fato de apenas o argumento externo poder ser topicalizado pode ser explicado pela proposta de que o kadiwéu conta com deslocamento à la Kayne. Para o argumento interno ser alçado para o CP no kadiwéu ergativo, ele necessitaria cruzar o argumento externo que foi deslocado juntamente com o vP, violando a Condição do Elo Mínimo (Chomsky 1993). A Condição do Elo Mínimo estabelece que argumentos não podem se cruzar ao serem alçados se não estiverem dentro de um mesmo domínio mínimo.22 22 Note que o kadiwéu emprega dois processos sintaticamente distintos para focalizar (foco contrastivo) e para topicalizar informação antiga. Como vimos anteriormente (exemplos (64) e (65)), o argumento externo sofre restrições ao ser focalizado no sistema ergativo. No caso de topicalização, é o argumento externo que deve ser alçado.
O inverso ocorre no kadiwéu acusatitivo. Isto é, apenas o argumento interno pode ser topicalizado. Novamente o fenômeno pode ser explicado pelo deslocamento à la Kayne. No kadiwéu acusativo é o argumento interno que se encontra mais próximo ao CP. Para o argumento externo ser topicalizado, ele precisaria cruzar o argumento interno, deslocado com o v*P, violando a Condição do Elo Mínimo.23 23 O mesmo tipo de comportamento seria esperado para interrogativas do tipo QU. O kadiwéu, entretanto, não conta com movimento QU de argumentos. Apenas QU-adjuntos se movem para o especificador do CP. A interrogação de argumentos se faz com o elemento QU em situ ou através da incorporação de uma elemento interrogativo a uma predicado existencial com a formação de uma estrutura cleft:
A próxima seção retorna à questão da violação da Condição C do kadiwéu, apresentando uma visão do fenômeno onde configuracionalidade, ergatividade e movimento sintático são invocados como explicação.
5. A Violação da Condição C revisitada
Uma análise cuidadosa das estruturas biclausais que envolvem a violação da Condição C revelam restrições de localidade, e é largamente assumido que restrições de localidade indicam movimento sintático. O fenômeno de localidade pode ser observado no fato de a violação da Condição C ser sensível a ilhas. Como pode ser notado em (74), não é possível estabelecer coeferêcia entre uma categoria vazia e um sintagma nominal localizado dentro de uma oração relativa.
O fenômeno de localidade também pode ser observado no fato de somente ser possível violar a Condição C quando o argumento externo nulo c-comandar localmente o sintagma nominal, como pode ser notado no par mínimo em (75) e (76), onde a coeferência torna impossível se houver um argumento externo entre os nominais coindexados:
Os efeitos de localidade envolvendo a coindexação do argumento externo da matriz e o argumento externo subordinado indicam que o kadiwéu envolve hiper-alçamento (não visível) do argumento externo da subordinada para a matriz.
Segundo Chomsky (1998, 1999/2000), a categoria v* e o T finito possuem um conjunto de traços-phi completos, podendo checar estes traços com os traços de um dado DP, licenciando-o (i.e. checando Caso). Um elemento que tem seus traços-phi checados deixa de estar ativo para a computação, isto é, deixa de poder ser movido. Mas um elemento que não tem seu conjunto de traços-phi checados continua ativo para a computação e pode, portanto, ser movido. Segundo a proposta desenvolvida aqui, uma estrutura ergativa não conta com v*, isto é uma categoria funcional capaz de checar Caso. Nesta situação, o argumento interno é licenciado através do alçamento para o especificador de TP onde recebe o Caso nominativo. O argumento externo de uma estrutura ergativa não é licenciado através de checagem de traços (Nash 1995/1997). Ora, se o argumento externo não checa traços de Caso, ele permanece ativo para o sistema computacional, podendo continuar a ser movido.
Segundo o programa minimalista, não basta para um elemento estar ativo para a computação para poder ser alçado. Um elemento pode ser movido se ele estiver livre para a computação e se houver um motivo para o movimento, isto é, se houverem traços formais a ser checados (Condição de Último Recurso, Chomsky 1993). Hornstein (1999) apresenta uma série de argumentos para se abandonar o Critério Teta e assumir que papéis temáticos sejam traços formais. Os fatos do kadiwéu são compatíveis com a proposta de Hornstein, pois podemos justificar o hiper-alçamento do sujeito por uma necessidade de checagem de papéis temáticos na oração matriz. Entende-se, assim, o porquê de argumentos externos serem passíveis de hiper-alçamento no kadiwéu: (i) O argumento externo da subordinada não teve seu traço de Caso checado e, portanto, ainda pode estar ativo para a computação não havendo violação de Cobiça (Chomsky 1993), e (ii) não há violação da Condição de Último Recurso, uma vez que há traços para serem checados na matriz.
Resta entender o porquê de este movimento não ser visível. Uma resposta que pode ser considerada é a de Hornstein (comunicação pessoal). Hornstein, assumindo uma teoria de movimento por cópia, sugere que se apaga em uma cadeia de movimento aquele elemento que não conta com Caso. Como o argumento externo nunca é licenciado através de checagem de Caso, mas tematicamente, em uma língua ergativa, é igualmente possível apagar a cópia na matrix ou o elemento gerado na subordinada. De fato, estruturas onde se apaga o elemento da subordinada são igualmente possíveis no kadiwéu:
Resta agora entender a "violação" da Condição C em estruturas monoclausais, como em ( 2 ). Se o argumento interno é mesmo alçado para o especificador do sintagma flexional em estruturas ergativas, como proposto na seção anterior, há um nível onde o argumento interno está mais alto na estrutura sintática que o argumento externo:
Na estrutura sintática acima, a categoria vazia não c-comanda o sintagma nominal, ao contrário disso, ela é c-comandada pelo sintagma nominal. E uma interpretação onde a Condição C aparenta ser violada, como aquela em ( 2 ), deixa de ser surpreendente.
6. Considerações Finais
Fukui & Speas (1986) explicam as chamadas propriedades não-configuracionais do japonês propondo uma variação paramétrica de acordo com a qual categorias funcionais podem estar ou não presentes. Para os autores certas propriedades sintáticas do japonês, chamadas anteriormente de "não-configuracionais", são decorrentes de esta língua não contar com categorias funcionais. Fukui & Speas, entretanto, admitem que o japonês conta com I, mas esta eles afirmam que esta categoria é defectiva no fato de ela não poder projetar. Ora, embora defectiva, o japonês conta, então, com uma categoria funcional. Além disso, sabemos que o japonês conta com o verbo leve suru (Grimshaw & Mester 1988). A proposta de Fukui & Speas não parece, à primeira vista, estar correta. É possível, entretanto, redefinir a proposta de Fukui & Speas dizendo que categorias funcionais podem projetar (ser completas) ou não (defectivas). Segundo esta redefinição, não se trata de dizer que há uma variação paramétrica entre possuir ou não categorias funcionais, mas há uma variação entre possuir ou não categorias funcionais completas. Chomsky (1999/2000) admite, de fato, que categorias funcionais podem ser completas ou defectivas. Este texto afirma que a violação da Condição C no kadiwéu é decorrente do fato de v poder ser defectivo nesta língua. A proposta aqui desenvolvida, portanto, está de acordo com o insight de Fukui & Speas de que algumas das propriedades associadas tradicionalmente à não-configuracionalidade, aqui a violação da Condição C, são decorrentes das propriedades das categorias funcionais presentes na língua.
Recebido em setembro de 2000
Aprovado em novembro de 2001
Como mencionado anteriormente, um sujeito (argumento externo) tópico ocorre em posição inicial (ordem SVO quando o padrão é ergativo). Note nos exemplos acima que um argumento externo tópico ocorre antes de COMP em subordinadas, sugerindo que a posição ocupada por um sujeito tópico é a posição do especificador do sintagma do complementizador. A hipótese que parece melhor acomodar estes fatos é de que o marcador de tempo, aspecto e modo sempre ocorre em C em kadiwéu e o sujeito tópico é na verdade um sujeito topicalizado que sempre ocupa a posição do especificador de C. Ver discussão adicional sobre topicalização abaixo, sobre os exemplos ( 72 ) e ( 73 ).
É importante notar, entretanto, que pelo menos algumas línguas austronesianas também não contam com movimento QU de complementos. E, como vimos na seção 4, a julgar pelo malagasy, pelo menos algumas destas línguas têm uma estrutura sintática similar ao kadiwéu.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Out 2002 -
Data do Fascículo
2002
Histórico
-
Recebido
Set 2000 -
Aceito
Nov 2001