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Tradução e corpo

Translation and the body

Resumos

O presente artigo articula uma relação possível entre tradução e corpo a partir de uma perspectiva pragmática e não-sublimada da significação, tal como sugerida por Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas. A partir da consideração de formulações teóricas no realismo encarnado e em campos afins sobre o papel do corpo na cognição e da análise crítica do conceito de somática da tradução, formulado por Douglas Robinson (1991), o trabalho aponta para o caráter situado e social do corpo do tradutor.

tradução; corpo; Wittgenstein; significado


The present paper brings about a possible articulation between translation and body from a non-sublimated, pragmatic perspective on meaning, as suggested by Wittgenstein in his Philosophical Investigations. By considering theoretical elaborations within embodied realism and elsewhere on the role of the body in cognitive processes, together with a critique of the concept of translation somatics, as proposed by Douglas Robinson (1991), the paper highlights the situated and social character of the translator's body.

translation; body; Wittgenstein; meaning


ARTIGOS ARTICLES

Tradução e corpo** Este artigo surgiu de longo e frutífero diálogo com Maria Paula Frota, a quem sou imensamente grato. Gostaria de agradecer também a leitura de Helena Martins e Lenita Esteves, que contribuíram para o aprimoramento das idéias aqui presentes. Os dois pareceres anônimos de DELTA, com seus comentários e sugestões de reformulação, foram especialmente valiosos. Mesmo com o trabalho refeito diante desses outros olhares, as falhas que tiverem persistido são de minha responsabilidade. O trabalho faz parte de pesquisa de doutorado financiada pela Fapesp (proc. 05/59907-9) e pela Capes (BEX 1466/07-0), sob a orientação dos professores Kanavillil Rajagopalan (Unicamp) e Charles Briggs (UC Berkeley).

Translation and the body

Daniel do Nascimento e Silva

Universidade Estadual de Campinas. University of California, Berkeley

RESUMO

O presente artigo articula uma relação possível entre tradução e corpo a partir de uma perspectiva pragmática e não-sublimada da significação, tal como sugerida por Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas. A partir da consideração de formulações teóricas no realismo encarnado e em campos afins sobre o papel do corpo na cognição e da análise crítica do conceito de somática da tradução, formulado por Douglas Robinson (1991), o trabalho aponta para o caráter situado e social do corpo do tradutor.

Palavras-chave: tradução; corpo; Wittgenstein; significado.

ABSTRACT

The present paper brings about a possible articulation between translation and body from a non-sublimated, pragmatic perspective on meaning, as suggested by Wittgenstein in his Philosophical Investigations. By considering theoretical elaborations within embodied realism and elsewhere on the role of the body in cognitive processes, together with a critique of the concept of translation somatics, as proposed by Douglas Robinson (1991), the paper highlights the situated and social character of the translator's body.

Key-words: translation; body; Wittgenstein; meaning.

Introdução

Em O último voo do flamingo, romance de Mia Couto, o tradutor de Tizangara, narrador e personagem da história, faz um depoimento inicial ao leitor. Eis um excerto de seu depoimento:

Fui eu que transcrevi, em português visível, as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue, como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciado tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos. Coloquei tudo no papel por mando de minha consciência. Fui acusado de mentir, falsear as provas de assassinato. Me condenaram. Que eu tenha mentido, isso não aceito. Mas o que se passou só pode ser contado por palavras que ainda não nasceram. Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima. (Couto 2005:9).

Tal como na resposta dada por São Jerônimo à acusação de ser um "falsário", por não ter traduzido "corretamente" para o latim a carta enviada pelo bispo Epifânio de Chipre ao bispo de Jerusalém – resposta na qual Jerônimo procede a uma verdadeira teorização sobre a tradução –, temos, neste depoimento, um tradutor que é condenado pelo que escreveu e que responde "por palavras que ainda não nasceram", ao ímpeto de sua memória. E essa "necessidade" é apaziguada justamente no ato de escrever, momento em que ele irá se livrar das lembranças, "como o assassino se livra do corpo da vítima".

O tradutor de Tizangara, nesse relato, é enfático ao defender que sua experiência não está desvinculada de seu corpo. A lembrança das vozes que ouvira está em seu sangue; tais lembranças surgem não de uma memória desencarnada, mas do fundo do seu corpo; o seu relato acontecerá por meio de palavras que ainda não nasceram. O corpo aí é um espaço marcado, escrito pelas sucedências a que assistiu e pelas vozes que escutou, e de onde agora surgem as falas que vai transcrever.

Acredito que Mia Couto, ao formular nesses termos a idéia que o tradutor tem de memória e corpo – aquela, "por mando de sua consciência", motiva um relato que o condenou; este também instiga uma narrativa que, "por ordem de sua vontade [desejo]", "surge do fundo do corpo" e possivelmente o "livrará" de tais lembranças –, toca numa questão crucial no pensamento sobre a linguagem. Refiro-me ao papel do corpo em nossa capacidade de conhecer. Na verdade, o romance de Mia Couto suscita outras tantas questões para as teorias da linguagem e, mais especificamente, para as teorias da tradução. Por exemplo, quem narra a história é um tradutor (aquele cujos gestos, via de regra, são tidos como invisíveis no texto de chegada); esse tradutor é instituído tradutor menos pelo seu conhecimento de línguas do que pela necessidade do Estado de possuir um tradutor oficial; há uma personagem que afirma não falar uma língua, mas sotaques etc.

Essas questões, e em especial a questão de uma escrita e de uma memória que vêm do corpo e não de uma mente desencarnada, são certamente uma instanciação de um problema já apontado por Claudia Lemos, a saber, de que a literatura desvela os pontos em que as teorias lingüísticas falham11. Cf. fala no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, em março de 2007, por ocasião da comemoração dos 30 anos do IEL. . Talvez seja essa uma das razões do distanciamento entre os estudos filosóficos ou científicos sobre a linguagem e os estudos estéticos do texto literário. É bom lembrar que a tradição dos estudos da linguagem tem em Platão um de seus principais pilares, e foi justamente esse filósofo quem decretou a expulsão dos poetas da República, considerados perigosos por falarem das coisas não como elas são, mas em termos de comparações, figurações, metáforas. Eis o gesto de exclusão da metáfora, logo no início da formulação da visão representacionista da linguagem – o que, diga-se de passagem, está no cerne dessa visão desde Agostinho e Descartes, até os nossos dias, com Chomsky.

De forma a problematizar a questão inicialmente delineada no texto de Mia Couto, contrastemos o depoimento ficcional do tradutor de Tizangara com três outros depoimentos não-ficcionais, em que tradutoras falam sobre o ato de traduzir:

É praticamente impossível para o tradutor despir-se de toda a sua experiência passada e conhecimento acumulado ao fazer uma tradução. (França 2003:108) Para concluir brevemente, cada tradução que me é encomendada (e que eu tenha condições de fazer) é, antes de tudo, uma alegria. Perdoem-me o subjetivismo declarado, mas minha tábua de salvação na vida é traduzir. (Gonçalves 2003:114) Traduzir poetas, pintores, artistas plásticos, historiadores e críticos de arte é adentrar alamedas em diferentes horas do dia, sob raios de luz de incidências diferentes, esperar o pôr-do-sol e admirar novas cores, mas não se esquecer de que o raiar do dia poderá alterar todos os matizes. (Alfarano 2003:35)

Pode-se perceber uma forte correlação entre os modos como Lúcia Helena França, Maria Stela Gonçalves e Regina Alfarano significam a tradução e o dizer do tradutor de Tizangara. Tanto na ficção como na nãoficção, o corpo parece exercer um papel nada inocente no modo como a tradução funciona: é impossível despir-se da experiência ao traduzir, traduzir é uma tábua de salvação, traduzir textos artísticos é perceber cores e luzes.

A partir de uma possibilidade entrevista nos depoimentos desses tradutores – isto é, de que o corpo importa na tradução –, interessa-me, no presente artigo, formular uma noção de tradução que, distanciando-se da tradição logocêntrica que enxerga a tradução como o produto de uma mente desencarnada, considere o corpo como marca e lócus inelutáveis. Investigar a relação entre tradução e corpo requer que se indague a forma como o corpo tem sido visto (ou elidido) na forma e significação da linguagem – e, também, na tradução como atividade de linguagem. Demarcar uma posição quanto à relação entre corpo e tradução demanda também que se indague o que é corpo.

O presente artigo se organiza, então, em quatro seções, de forma a articular esse desdobramento de questões em torno da relação entre corpo e tradução. Na primeira seção, procedo a um rápido exame de posições no campo dos estudos da linguagem que discutem o papel do corpo na significação. Na seção seguinte, apresento uma posição no campo dos estudos da tradução que fala do papel do corpo no ato de traduzir, especificamente a formulação de Douglas Robinson em torno da somática da tradução. Em seguida, submeto a proposta de Robinson a uma leitura crítica, a partir do pensamento do filósofo Ludwig Wittgenstein, célebre crítico da tradição representacionista nos estudos da linguagem. Finalmente, delineio uma relação possível entre tradução e corpo e analiso, simultaneamente, enunciados (ou, nos termos de Wittgenstein, jogos de linguagem) sobre o que é traduzir.

1. Corpo e linguagem

Como afirma Douglas Robinson, as ciências ocidentais da linguagem e do comportamento humano (dentre elas, certamente, os estudos da tradução) são, tradicionalmente, "um empreendimento imaterial [...]. Tudo está na cabeça – cognitiva, racional, lógica, analítica – ou no funcionamento de centenas de milhares de dispositivos de liga/desliga" (Robinson 1991:ix).

Esse empreendimento imaterial, ou desencarnado, certamente remonta a alguns gestos fundadores no campo da filosofia, dentre eles o conhecido gesto cartesiano de separação entre mente e corpo que ainda exerce forte influência na teorização sobre a forma e o sentido da linguagem. O projeto fundacionalista do gerativismo é, certamente, um dos maiores expoentes desse pensamento no campo dos estudos da linguagem. A questão para o gerativismo é que a linguagem, faculdade mental (nos termos cartesianos, i.e., faculdade de uma mente sem corpo), é desencadeada, e não necessariamente adquirida. Temos, segundo esse paradigma, um módulo para a linguagem, dada a nossa herança biológica. O fato de termos o corpo que temos e vivermos nas circunstâncias em que vivemos não é necessariamente um aspecto relevante para a consideração da questão o que falar quer dizer? Esse fato é, no máximo, um epifenômeno, algo que entraria, em último caso, como uma das variáveis na instanciação dos princípios universais que a espécie humana carrega em seu aparato mental. A mente do sujeito cartesiano – cuja epítome, nos estudos da linguagem, é a mente do falante chomskyano – é, nesse sentido, representacional, computacional, ahistórica e desencarnada.

No entanto, em vários domínios de investigação dentro dos estudos da linguagem a consideração de questões como a ancoragem do significado nas atividades interativas (cf.: Morato 2004), a interferência recíproca entre gesticular e falar e sua adaptabilidade a ambientes variáveis (cf.: Magro 1999), o papel do corpo na natureza e na emergência do significado (cf.: Grady 1997; Lima 1999; Mondada 2002), a feição eminentemente performativa da linguagem (cf.: Rajagopalan 2000; Ottoni 1998), entre tantas outras, têm demonstrado que o projeto fundacional de uma lingüística cartesiana tende a falhar se o que estamos considerando são aspectos como interação e emergência, em vez de imanência.

É diante desse paradigma que apresento aqui duas orientações no campo dos estudos da linguagem sobre o corpo e seu papel em nossa capacidade de conhecer. De um lado, verificam-se posições no campo dos estudos da linguagem que postulam uma cognição corpórea (entendida aqui no senti-do de que nossa capacidade de conhecer está intimamente ligada ao funcionamento do corpo) nos termos da natureza mesma dessa cognição. Autores que se tornaram emblemáticos no interior dessa formulação são certamente Lakoff & Johnson (1980 e 1999), em sintonia com um conjunto de outros autores que integram atualmente o quadro do realismo encarnado [embodied realism]. De outro, há vertentes que teorizam a cognição corpórea em termos da emergência de nossa capacidade de conhecer no interior das cenas interativas ou dos gestos da fala. Poder-se-ia mencionar como pertencendo a esse quadro autores como Lorenza Mondada e Michael Studdert-Kennedy. É importante ressaltar que não se trata aqui de postular divisões estanques entre uma forma e outra de pensar a cognição, uma vez que há forte convergência entre esses autores no que se refere ao papel do corpo na cognição.

Vejamos brevemente a proposta do realismo encarnado, nos termos de uma de suas hipóteses, a metáfora conceitual. Para esse paradigma, nossa cognição é dependente do corpo que temos e do modo como ele funciona no mundo físico e cultural. Por exemplo, experienciamos com uma certa recorrência que coisas eretas são viáveis (leia-se, perduram) – árvores eretas certamente são mais viáveis do que árvores caídas; quando estamos de pé nosso estado de viabilidade é mais seguro do que quando estamos deitados, doentes etc. Esse padrão de experiência é a base do mapeamento conceitual entre o estado ereto, uma experiência física direta, e a noção de funcionalidade, viabilidade, uma experiência, por assim dizer, interpretativa, menos delineada em termos físicos. De acordo com Grady (1997), se dizemos que um regime político caiu, ou que o império americano ainda está de pé, é porque temos em nossa cognição um mapeamento, ou melhor, uma metáfora conceitual (vista aqui não como figura de linguagem, mas como figura de pensamento) que correlaciona essas experiências recorrentes e co-ocorrentes, estado ereto e viabilidade. Isto é, nos termos desse modo de pensar a cognição, temos a metáfora VIABILIDADE É ESTADO ERETO em nossos sistemas conceituais.

No que diz respeito à emergência da cognição, no campo da fonologia, por exemplo, a noção de gesto articulatório tem provocado uma forte mudança na forma como se encara a produção do som. Tradicionalmente, as descrições física e fonológica do som têm sido feitas de modo estanque, como se se tratassem de domínios diferentes. Dizem Studdert-Kennedy e Goldstein (2003):

A descrição fonológica vê a fala como sendo composta por um número de unidades discretas (particuladas), permutáveis, independentes do contexto, ao passo que a descrição física postula uma variação contínua e dependente do contexto em um grande número de variáveis articulatórias, acústicas, auditivas ou neurais. A descoberta dessa incompatibilidade (pelo desenvolvimento de técnicas de análise física da fala em meados do século XX) levou os teóricos a remover as unidades fonológicas do domínio da observação física direta ao levantarem a hipótese de que elas correspondem a eventos mentais (cognitivos), e não eventos físicos. (p. 241)22. A tradução das citações dos textos não publicados em português é de minha autoria. As citações da obra Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, embora publicada em português, também foram traduzidas por mim.

Essa visão clássica está de acordo com a divisão cartesiana entre corpo e mente. Haveria, de um lado, as unidades fonológicas, exclusivamente mentais, e, de outro, as regras de implementação, empregadas de forma a traduzir essas representações discretas em interpretações físicas (Studdert-Kennedy & Goldstein 2003). A nova visão se opõe a essa justamente na consideração de que a ação do corpo está presente mesmo nas unidades mais básicas da produção da fala. Segundo os autores, as unidades da estrutura fonológica são unidades de ação articulatória, ou gestos: "a fonologia articulatória equaciona as unidades mais básicas de informação fonológica com as unidades da ação do trato vocal" (Studdert-Kennedy & Goldstein 2003:242). Ou seja, o gesto articulatório é o movimento do corpo em si, participante da ação da fala, e não mero tradutor de uma unidade mental.

Formulações como essas (de que o corpo está presente em nossa capacidade de conhecer), na verdade, podem ser identificadas em reflexões bem mais antigas. Uma das grandes descobertas de Freud, na virada do século XIX para o XX, é justamente a de que as palavras podem machucar, paralisar. Analisando o caso da sra. Caecilie, uma de suas pacientes histéricas, Freud (1893) procura descobrir a causa das nevralgias faciais que acompanhavam seus acessos de histeria. Ao evocar o evento traumático, a paciente refere-se a uma sensação de ansiedade provocada pelo marido. Diz o autor: "[d]escreveu uma conversa que tivera com ele e uma observação dele que ela sentira como um áspero insulto. De repente, levou a mão à face, soltou um grande grito de dor e exclamou: 'Foi como uma bofetada no rosto'.

Com isso, cessaram tanto a dor como o ataque." (Freud 1893, ênfases acrescidas)33. As citações do texto de Freud (1893), que trata do mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, são feitas a partir de uma edição eletrônica (cf. Referências bibliográficas). Portanto, tais citações não são acompanhadas de número de página. .

Freud questiona, então, como é que uma sensação de bofetada no rosto vem a assumir os contornos de uma nevralgia no trigêmeo. Segundo o autor, o histérico – ao tomar expressões como "bofetada no rosto" e "punhalada no coração" ao pé da letra quando do relato de uma experiência traumática – "não está tomando liberdades com as palavras, mas simplesmente revivendo mais uma vez as sensações a que a expressão verbal deve sua justificativa". Nos termos de Freud, o uso de uma expressão como "engolir alguma coisa", para falar de um insulto ao qual não se pôde reagir, "originou-se na verdade das sensações inervatórias que surgem na faringe quando deixamos de falar e nos impedimos de reagir ao insulto" (Freud 1893).

A motivação corpórea de expressões metafóricas como essa tem sido investigada por abordagens experimentais no campo da Lingüística (cf., por exemplo, Gibbs, Lima & Françozo 2004), corroborando a formulação de Freud. Mas é interessante observar que Freud levanta ainda a hipótese de que a histeria, com suas inervações inusitadamente fortes, recupera "o significado original das palavras". Ou seja, a sensação física da dor do insulto acompanha, no relato histérico, o insulto em si. Segundo ele,

talvez seja errado dizer que a histeria cria essas sensações através da simbolização. É possível que ela não tome em absoluto o uso da língua como seu modelo, mas que tanto a histeria quanto o uso da língua extraiam seu material de uma fonte comum. (Freud 1893, ênfase acrescida)

De fato, a concepção de metáfora no realismo encarnado, a noção de gesto articulatório no campo da fonologia, a motivação corpórea das palavras no campo da psicanálise são formulações que põem em xeque a aposta de Descartes numa res cogitans, a mente, de natureza imaterial, imutável e indivisível, independente da res extensa, o corpo, fugaz e divisível. Essa mente de natureza imaterial, na visão cartesiana, seria o guia do sujeito em sua capacidade racional de decidir. No entanto, a descoberta da ancoragem de nossas práticas simbólicas nas atividades do corpo abre outras possibilidades para pensar a significação.

Essa tendência filosófica de tomar a substância pensante e imaterial como a base dos conceitos alinha-se com uma tendência extremamente forte no campo da filosofia, e que Wittgenstein critica em suas Investigações Filosóficas44. Doravante, IF. . Entre as seções 32 e 38 dessa obra, Wittgenstein discute as definições ostensivas (aquelas que se dão ao apontar para um objeto) e atém sua crítica ao modo como a nomeação de um objeto tem sido concebida pela tradição. Através do recurso à noção de jogo de linguagem – atividade cultural humana situada e regida por regras –, o filósofo aponta que a compreensão de uma expressão – inclusive uma expressão ostensiva

– não é um processo oculto "que acompanha a formulação ou a escuta da definição" (IF, §34). Para Wittgenstein, a compreensão de um objeto nomeado é uma condição permanente [abiding condition]: algo que faz parte do fato de vivermos situados em práticas culturais, com passado e futuro. A tendência a espiritualizar a idéia da compreensão – recorrendo-se, por exemplo, ao cogito, a categorias transcendentais, a processos internos e ocultos

- acontece quando se perde de vista o fato de que usamos a linguagem socialmente. Ou, como diz o próprio Wittgenstein, "os problemas filosóficos surgem quando a linguagem sai de férias" (IF, §38).

Essa espiritualização faz parte do que Wittgenstein chama de sublimação dos conceitos. Entenda-se sublimação no sentido químico, em que uma substância passa de um estado sólido para o gasoso. Isso, ao que parece, é o que aconteceu na tradição cartesiana dos estudos da linguagem, em que a nossa capacidade de conhecer é sublimada da solidez do corpo para o estado etéreo das idéias. Diz Wittgenstein:

E fazemos aqui o que fazemos em mil outros casos similares: já que não podemos especificar nem mesmo uma ação corpórea a que chamamos apontar para a forma (em oposição, por exemplo, à cor), dizemos que uma atividade espiritual [mental, intelectual] corresponde a essas palavras. Onde nossa linguagem sugere um corpo e não há nenhum: lá, nos apraz dizer, está um espírito. (IF, §36)

Essa tendência à sublimação dos conceitos, como veremos a seguir, tem acompanhado o pensamento sobre a tradução. Certamente as formulações discutidas nesta seção apontam para caminhos alternativos que vêm sendo trilhados. Partirei, agora, para um debate do corpo na tradução. Caminhemos.

2. Douglas Robinson e o corpo na teorização sobre a tradução

Em seu The translator's turn, Douglas Robinson (1991) aponta que, tradicionalmente, a tradução tem sido concebida como o produto desencarnado de uma mente lógica e racional. O autor cita, por exemplo, "The second system of translation", texto de Eugene A. Nida e Charles R. Taber, escrito em 1969, em que os autores, seguindo a tradição chomskyana, postulam que o ato de traduzir envolve três estágios: análise, transferência e reestruturação. A análise consiste na operação mental em que se percebem as relações gramaticais e semânticas da língua – sistema abstrato, nessa visão. A transferência, por seu turno, é o processo de transferência da mensagem analisada da língua de partida para a língua de chegada. A reestruturação, ou síntese, é um tipo de atividade mental em que a mensagem é adequada pelo receptor ao código de chegada, de forma a se tornar aceitável.

Robinson aponta que a insistência ocidental em desconsiderar o corpo (intuição, emoção, sinais somáticos) nos estudos da linguagem "tem provocado um efeito debilitador em nossa compreensão do que acontece quando falamos" (1991:xiii). Transpondo-se essa visão para o campo da tradução, diz o autor, um dos sintomas desse menosprezo do corpo é a forma como se vê a dicotomia tradutor/teórico da tradução: "caricaturando um pouco, pode-se dizer que, hostil em relação à prática, o teórico da tradução não se acha capaz de sentir; hostil em relação à teoria, o tradutor não se considera capaz de pensar" (p.xiii).

A tradução é vista por Robinson como uma atividade produzida por corpos dialógicos, o que marca seu distanciamento da visão logocêntrica – por ele associada, principalmente, a Platão, Paulo e Agostinho – e sua aproximação de filosofias, por assim dizer, pragmáticas – associadas, por exemplo, a Bakhtin e Wittgenstein. O autor defende que a tradução tem uma somática; não se trata do produto de uma mente racional, mas do trabalho somático submetido à ideologia (de onde o autor deriva o termo "ideossomática da tradução") e à subjetividade (daí o termo "idiossomática da tradução"). Ou seja, a ideossomática pressupõe que os corpos "absorvem" e "sentem" as normas, de forma que a lei, o certo, o equivalente passam pelo corpo e não por uma instância para além dele. Há, também, nos termos de Robinson, um trabalho do sujeito com o seu próprio corpo ao significar. Em outras palavras, na esfera idiossomática, o sujeito que significa "sente" a palavra, de uma forma singular. O autor oferece, dentre tantos outros, o exemplo da poeta Diane derHovanessian, descendente de armênios, mas leiga no idioma armênio. A poeta traduzia um poema de um autor armênio juntamente com um colaborador proficiente no idioma. Debateu-se por horas com uma palavra, cuja tradução oferecida por ela, mesmo rejeitada por seu parceiro, parecia-lhe certa, porque ela sentia assim. Aconteceu de a tradutora encontrar-se com o autor quando este visitava os Estados Unidos. Ela pediu uma opinião sobre a palavra em questão. O autor não só concordou com a precisão da palavra, como também apontou que ela havia utilizado uma palavra que capturava de forma mais acurada o que ele quisera exprimir.

Robinson procede a um exaustivo trabalho de delineamento da somática da tradução, uma instância da própria inscrição do universo simbólico em nossos corpos. Tome-se, por exemplo, o aprendizado do "não" pela criança:

Os pais gritam "Não!" e na imaginação corpórea da criança o som [nãw] – ainda desprovido de conteúdo cognitivo – é complexamente mergulhado tanto nos tons, gestos e expressões dos pais de raiva ou frieza ou choque ou medo (ou quaisquer outros) quanto nos próprios sentimentos internos da criança de retraimento ou estremecimento provocados por eles. (Robinson 1991:11-12)

A criança passa então a usar a palavra "não", ao se aproximar do objeto proibido, imitando com seu corpo, e assim significando, o que para ela é uma proibição. Trata-se da introjeção da lei: "o que os pais passaram para suas crianças", diz Robinson, "não é uma linguagem privada, nem uma série de respostas somáticas acidentais, casuais, puramente situacionais ou reativas, mas normas coletivas: ideologia somaticamente inscrita" (Robinson 1991:12).

Esse aprendizado acompanhará a criança, como uma inscrição corpórea, por sua vida afora. Robinson afirma que o desenvolvimento da consciência, inteligência e pensamento analítico surge, em parte, como uma resposta ideossomática – uma proteção mesma – à sensação de vulnerabilidade ocasionada pela coerção emotiva de palavras que, na infância, nos paralisaram. Mas isso, certamente, não é garantia de defesa à vulnerabilidade. Em certas situações o "não" poderá remeter-nos ao medo irracional que, quando crianças, sentimos quando da censura ou raiva de nossos pais.

3. Visão crítica da proposta de Robinson

Cabe, neste ponto, proceder a uma leitura crítica das formulações de Douglas Robinson, tendo em vista que a idéia do presente trabalho é problematizar a relação entre corpo e tradução. Certamente, a proposta de uma somática da tradução por Robinson marca um franco avanço frente à tradição representacionista no campo dos estudos da linguagem e da tradução. Eis que a tradução passa a ser vista como uma atividade de lingua-gem de corpos dialógicos, e não mais de mentes incorpóreas.

No entanto, há que se discutir a noção de uma idiossomática da tradução, tal como proposta pelo autor. Robinson formula tal noção em paralelo à de ideossomática, esta cobrindo o campo de uma somática ideologicamente constituída, enquanto a primeira designaria uma somática individual, esfera das idiossincrasias de um tradutor em dado momento. Ora, se levada às últimas conseqüências, a idéia de idiossomática pode desembocar em relativismo. Grosso modo, um relativista defende que a existência do conceito, da coisa ou do que quer que seja depende de quem interpreta, de suas histórias e experiências que, de tão individuais, chegam a ser inacessíveis ao outro, dada a sua singularidade radical. Acompanhemos a seguinte argumentação de Robinson: inicialmente ele defende que, na aprendizagem de uma língua estrangeira, quanto mais o aprendiz conseguir sentir o que os falantes nativos sentem ao dizerem uma palavra, mais próximo estará de uma fala mais convencional. Articulando à questão da tradução, Robinson postula então que o bom tradutor é aquele que se auto-projeta no corpo do falante nativo. Diz o autor:

Aprende-se, em parte, a falar bem uma língua quando se observa o que os corpos dos falantes nativos fazem ao usar a língua: como movem suas bocas, como gesticulam e mudam o peso do gesto, como tropeçam nas palavras, onde e como pausam, como usam a entonação para ênfase – ou seja, como atuam na fala. Mas mesmo isso não será suficiente se se tratar de algo mecânico, se você simplesmente observar os corpos dos falantes nativos e imitá-los. Você tem de fazer mais do que observar; você tem de intuir, sentir o que os seus corpos estão fazendo por dentro, sentir como eles sentem quando falam. É perfeitamente possível perguntar: "Como você se sente quando diz Ich kenne ihn? Qual a diferença entre o que você sente quando diz isso e quando diz Ich weiss ihn?" [...]

Obviamente, um dos requisitos de um bom tradutor também tem algo a ver com essa auto-projeção identificatória e imaginativa no corpo de um falante nativo. Se você não sente o corpo do texto de partida, terá pouca chance de criar um texto de chegada fisicamente tangível ou emocionalmente vivo. O texto de chegada que você redigiu vai soar como mensagem criada pelo computador: sem vida, sem sentimento. (Robinson 1991:16-17)

O "bom" uso da língua estrangeira é equacionado por Robinson, no excerto acima, com o que ele chama de "auto-projeção": os falantes nativos têm sensações que, embora inacessíveis ao outro, podem ser intuídas se você "sentir o que os corpos [dos nativos] estão fazendo por dentro, sentir como eles sentem quando falam". O bom tradutor também procederia a essa "auto-projeção identificatória e imaginativa", "sent[indo] o corpo do texto de partida".

Embora se afaste dos pilares da tradição do pensamento ocidental – subsumidos em sua crítica ao "significado transcendental" [p.ex., p.4]) – ao formular a idéia de que a sensação que se tem ao enunciar uma palavra – e, no caso do aprendiz, ao aprender a usá-la – é a base do significado dessa palavra, Robinson cai justamente na armadilha posta pelos autores de quem ele pretende se distanciar. Refiro-me à idéia de que significar é representar. No caso da proposta de Robinson, a noção de representação comparece na medida em que existem sensações que são o núcleo da significação na língua de partida. E o tradutor teria de acessar tais sensações para traduzir bem.

Podemos encontrar no pensamento de Wittgenstein uma tenaz crítica à noção de que a linguagem representa conceitos. Helena Martins aponta que, de um ponto de vista wittgensteiniano, "a linguagem não mais pode ser tomada como um sistema abstrato que se funda na realidade, na mente ou na cultura" (Martins 2005:316). Em Wittgenstein, a questão passa do fundamento para o uso. Continua a autora: "não se pode dizer que a lingua-gem representa sistemas de conceitos – pois tais sistemas não existem em lugar algum, senão nas nossas próprias práticas humanas, práticas lingüísticas e culturais" (Martins 2005:316). Ou seja, se seguirmos a visão wittgensteiniana, é uma falácia afirmar que o bom aprendiz é aquele que, ao observar o nativo, consegue "sentir o que o corpo do outro está fazendo por dentro". O uso da linguagem, segundo Wittgenstein, se dá nas atividades sociais regradas – os jogos de linguagem – e não segundo representações internas. O fato de um falante nativo demonstrar uma dada sensação ao enunciar uma expressão não significa que tal sensação seja o núcleo da significação. Diz Wittgenstein:

As palavras "bem", "oh", "talvez"... podem todas ser a expressão de uma sensação. Mas eu não digo que essa sensação seja o significado da palavra. Eu posso substituir as sensações por entonação e gestos. Eu posso também tratar a palavra (e.g. "oh") como um gesto. (Philosophical Grammar, §30)

A atitude de observar o funcionamento dos usos, em vez de supor fundamentos metafísicos, é uma marca da abordagem "radicalmente pragmática e não imanentista de Wittgenstein" (Martins 2005:317). No excerto acima, o filósofo nos convida a substituir o que seria a base de uma interjeição como "oh" – isto é, uma sensação de espanto – por uma entonação ou gesto. Trata-se, a meu ver, de um exercício em que substituímos o invisível (a sensação) pelo visível (a entonação ou o gesto). E a visão não imanenstista de Wittgenstein aposta justamente que atividades como "querer dizer" e "compreender" não são "um processo que acompanha a formulação ou a escuta da definição" (IF, §34), mas uma condição permanente. O uso da linguagem, nessa visão, é uma prática cultural situada, e não o espelhamento de processos interiores.

Por que a sensação física precisa ser o fundamento da palavra? Ou, problematizando a argumentação de Robinson, por que para falar espontaneamente uma língua estrangeira preciso ter a mesma sensação do nativo ao usar sua língua? Creio que Wittgenstein, ao propor que podemos "tratar a palavra (p.ex, "oh") como um gesto", estabelece uma relação entre corpo e linguagem que, como veremos a seguir, pode se constituir numa importante chave para a compreensão da relação corpo-tradução.

4. Corpo e tradução

Creio que problematizar a relação entre corpo e tradução é firmar uma posição sobre o que se entende por traduzir – e, como estamos tratando de uma relação entre duas instâncias, diria que, no ato de problematizar tal relação, parte-se também de uma posição sobre o que seja corpo. Ben Van Wyke, em seu artigo "Tradução, corpos nus e trocas de roupas", diz que "[o] discurso sobre tradução se encontra saturado de metáforas que são usadas na tentativa de se explicar o que é e como funciona o processo tradutório" (2005:147). Se considerarmos a proposta do realismo encarnado (tal como resenhada no presente trabalho) de que a metáfora tem uma relação estreita com o corpo, verificamos então que a tradução é definida, basicamente, a partir de uma noção de corpo. Assim, fala-se, por exemplo, em "visibilidade do tradutor", "fidelidade ao original", "transposição de significados".

O texto de Van Wyke é bastante significativo por discutir uma metáfora amplamente empregada para definir o ato de traduzir, a metáfora da roupa, "que imagina o significado textual como um corpo vestido com palavras. Uma determinada língua se torna, assim, a vestimenta que envolve o corpo essencial que protege" (Van Wyke 2005:147). Essa metáfora alinha-se com a visão platônica de que existe uma essência que é bem ou mal representada dependendo da palavra que se empregue: "temos que distinguir entre as roupas que corretamente nos remetem à nossa essência verdadeira e imutável e aquelas que nos apontam para uma falsa" (Van Wyke 2005:147).

O autor contrapõe essa visão com outra metáfora, que chamarei de metáfora da máscara. Van Wyke cita o poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos, que trata justamente de uma máscara que toma o lugar do rosto:

O dominó que vesti era errado

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me

Quando quis tirar a máscara Estava pregada à cara

(Pessoa, 1974, apud Van Wyke, 2005:154).

Subjaz a essa visão a idéia de que não há significados essenciais no texto a serem desvelados. Ou seja, não se pode aceder a uma nudez total do texto original, para assim vesti-lo adequadamente no texto traduzido. Há, segundo o autor, uma tarefa ética a ser desempenhada pelo tradutor: quem traduz interpreta, lida com "roupas textuais que não podem ser nunca removidas" (p.159), porque o trabalho do tradutor-intérprete é da ordem da construção – e não do desvelamento – de significados.

Chama atenção particularmente um excerto de sua conclusão. Diz Van Wyke:

Quando se conscientizam de que seu ofício de juntar fragmentos de textos para costurá-los ao original que traduzem é, na verdade, também uma construção do corpo que supostamente estaria sob a roupa lingüística que necessariamente confeccionam, os tradutores podem assumir de forma mais efetiva seu papel de criadores e de agentes do conhecimento e de sua disseminação. (p.160)

Van Wyke toca no ponto nevrálgico da presente discussão. O corpo que se apresenta como marca do processo tradutório não é um corpo essencial, mas um corpo que, embora tenha uma biologia específica, é significado, cotidianamente, nas práticas simbólicas de que participamos. Como diz o autor, os tradutores, em seu ofício, constroem um corpo.

Certamente, não estou aqui propondo um argumento relativista, segundo o qual o tradutor instaura, empiricamente, o corpo no ato de traduzir. O argumento aqui tem inspiração wittgensteiniana: é certo que o corpo empírico, sensório-motor, existe; no entanto, a relação que estabeleço com esse corpo demanda, necessariamente, a tomada de uma perspectiva sócio-cultural.

Numa direção igualmente anti-essencialista como a filosofia de Wittgenstein, as discussões contemporâneas sobre gênero – uma marca inelutável dos corpos –, no campo da Antropologia, dos Estudos Culturais e da própria Lingüística, têm demonstrado que o gênero não se assenta na anatomia ou no sexo "natural", mas nas performances do corpo (Butler 2003 e 1993). "Não se nasce mulher, torna-se mulher", eis a conhecida formulação de Simone de Beauvoir. Nasce um bebê e o médico diz "é uma menina". Nos termos de Butler (2003), esse enunciado não constata, mas performativiza uma feminilidade que, através da repetição de práticas simbólicas, é instituída no corpo nascente.

Nesse sentido, podemos afirmar que a relação entre corpo e tradução é inelutável desde que se entenda a tradução como um conceito não-sublimado, contrariamente à tendência de sublimação filosófica criticada por Wittgenstein. O tradutor lida com expressões textuais (materiais) e, a partir delas, estabelece um trabalho de interpretação; igualmente, ele significa o corpo que participa desse trabalho de interpretação. Um corpo que, mesmo calcado na anatomia, requer que se participe de práticas sociais para ser cognoscível. Vejamos, por exemplo, o depoimento de Paulo Henriques Britto a respeito da possibilidade de o computador traduzir como humanos:

Bom, é claro que no futuro poderá haver computadores tão sofisticados que possam fazer tradução literária; mas nesse caso serão computadores que, para todos os fins práticos, deverão ser considerados seres humanos – seres capazes de emitir juízos estéticos, ter reações emocionais, etc. Só haverá tradução literária feita por computadores quando os computadores se tornarem simulacros razoáveis de seres humanos – computadores que se emocionam, que sintam amor e ódio, que tenham predileções e antipatias. Isso parece uma coisa ainda muito distante. (Britto 2003:97, ênfase acrescida)

Britto, discutindo a possibilidade de uma máquina substituir um tradutor, significa o corpo a partir de uma perspectiva. Nos termos do pensamento wittgensteiniano, Britto participa de um jogo de linguagem específico, segundo o qual, para estabelecer a identidade entre um computador e um ser humano, é preciso que se imitem características dos corpos humanos. E tais características do corpo são, evidentemente, construtos culturais: emissão de juízos estéticos, capacidade de se emocionar, de sentir amor e ódio, ter predileções e antipatias.

Podemos aventar a hipótese de que o corpo que significa a tradução é um corpo social. Não há fundamentos universais nesse corpo que sejam espelhados no ato de traduzir. Há um corpo que importa para a tradução, e esse corpo é aquele que o tradutor, a partir de suas práticas, experiências, predileções – de suas atividades sociais regradas, enfim – aprendeu a significar. Assim, o tradutor pode rejeitar uma noção de corpo que traduz como aquele que reencarna o corpo do autor: "É muito comum ler entrevistas de tradutores literários que afirmam coisas como: 'Quando eu traduzo fulano, eu me torno uma espécie de pai-de-santo que recebe o espírito desse au-tor'" (Britto 2003:92); a tradutora pode, na tradução técnica, aderir ao "'estilo cirúrgico' – a excisão no lugar e no tamanho exato" (Alfarano 2003:36); o tradutor ou a tradutora pode também desenvolver uma "'competência de transferência', que é, de fato, o ato tradutório'" (França 2003:106). Nessas três elaborações, verificam-se diferentes concepções do que seja traduzir, baseadas em diferentes visões do corpo: a tradução como incorporação (mística) de significados; a tradução como uma atividade cirúrgica, a tradução como transferência de sentidos.

O modo como o corpo é significado nesses depoimentos – e também em outros excertos trazidos neste trabalho – revela uma polissemia em torno da noção mesma de corpo. Em algumas elaborações, o corpo comparece como "matéria/recipiente que ocupa lugar no espaço", por exemplo na idéia de "competência de transferência" (França 2003:106) ou de incorporação mística de significados (Britto 2003:92). Noutras, trata-se de um corpo sensório-motor, capaz de sentir e se mover no espaço: "[fala-se bem uma língua quando se observa como os nativos] movem suas bocas, (...) gesticulam e mudam o peso do gesto, (...) sentem como falam" (Robinson 1991:16-17). Há menções a um corpo pulsional, constituído pelo desejo e pela emoção: "computadores [como tradutores humanos] que se emocionam, que sintam amor e ódio, que tenham predileções e antipatias" (Britto 2003:97). O corpo também comparece como superfície (textual) a ser desvelada/trabalhada: "[tradutores, ao] juntar fragmentos de textos para costurá-los ao original que traduzem [também constroem] o corpo que supostamente estaria sob a roupa lingüística que necessariamente confeccionam" (Van Wyke 2005:160); "estilo cirúrgico – a excisão no lugar e no tamanho exato" (Alfarano 2003:36). Tal polissemia, vale ressaltar, revela a multiplicidade de práticas culturais (e corpóreas) situadas de que os tradutores participam e, conseqüentemente, a perspectiva particular em que esses tradutores significam o corpo. Usando os termos wittgensteinianos, trata-se de diferentes jogos de linguagem segundo os quais corpo e tradução se articulam.

Evidentemente, tais jogos de linguagem, em cujo tabuleiro corpo e tradução participam de diferentes lances, oferecem implicações éticas e teóricas relevantes para o modo que se concebe a tradução. Por exemplo, quando o corpo é significado como o recipiente dos significados que são transferidos de um falante a outro (ou de uma língua a outra), tem-se a instanciação de um fenômeno que Michael Reddy (1993 [1979]) observou em relação às estruturas morfológicas e semânticas usadas no inglês para se falar sobre a comunicação e que o autor chama de "metáfora do canal" [conduit metaphor]. Segundo o estudo pioneiro de Reddy, que viria mais tarde se tornar um dos pilares do realismo encarnado, cerca de 70% do aparato metalingüístico da língua inglesa é licenciado por essa metáfora, segundo a qual a comunicação humana é a transferência física de pensamentos e ações. Reddy é bastante enfático quanto ao risco que essa metáfora, inscrita na própria língua, oferece para a compreensão do que seja a comunicação. Tal metáfora mascara o trabalho que os falantes desempenham na atividade de significar e compreender, criando a ilusão de que a comunicação é uma tarefa de transmissão de sentidos. Se pensarmos nas implicações éticas que a idéia de "incorporação de significados" (tal como um pai de santo) ou da "competência de transferência" apresentam, podemos perceber que certos modos de significar o corpo, embora convencionais, podem constituir verdadeiras armadilhas. Reddy defende que "linguagem e visões sobre a realidade andam de mãos dadas" (p.180), e nesse sentido Paulo Henriques Britto é bastante veemente ao alertar sobre a armadilha que é pensar na tradução como transferência. Eis o excerto maior de seu depoimento:

O tradutor que tem alguma reflexão teórica relacionada a seu trabalho dificilmente cairá numa série de armadilhas em que caem muitos tradutores, até eminentes. (...) [Uma dessas armadilhas] é a idéia de que existe apenas uma única tradução correta para um determinado texto (...). É comum ler entrevistas de tradutores literários que afirmam coisas como: "Quando eu traduzo fulano, eu me torno uma espécie de pai-desanto que recebe o espírito desse autor". (Britto 2003:91-92, itálicos acrescidos)

O alerta quanto à armadilha de pensar a relação corpo-tradução segundo um certo viés em detrimento de outro(s) indica, ademais, que corpo e tradução, para além de manterem uma relação de ordem simbólico-cultural, guardam profundas imbricações éticas.

5. Considerações finais

A proposta aqui delineada afasta-se da visão tradicional e sublimada de que a tradução é o produto desencarnado de uma mente lógica e racional. Essa visão tradicional, aliás, encerra a dicotomia mente/corpo, tão cara à filosofia cartesiana. De acordo com os estudos sobre a cognição encarnada, anteriormente resenhados, a idéia de uma mente independente do corpo é insustentável.

A tradução é, neste trabalho, vista como atividade de corpos que significam. Ou, como diria Robinson, a tradução tem uma somática, realizada por corpos dialógicos. E esses corpos, vale ressaltar, não são tomados em sua empiria sensório-motora, mas em sua dimensão pública e simbólica. A consideração mesma dessa dimensão torna problemático o caráter idiossomático da tradução apontado por Douglas Robinson. Primeiramente, porque a noção de idiossomática da tradução pressupõe uma visão representacionista – ou seja, o que é sentido internamente é espelhado na exterioridade do texto traduzido. Além disso, pressupor um componente idiossomático – isto é, inelutavelmente individual – falha por apostar na posse individual do corpo, desvinculada de práticas sociais. É bastante significativa a seguinte formulação de Judith Butler, para quem nossos corpos não são apenas nossos:

O corpo implica mortalidade, vulnerabilidade, agência: a pele e a carne nos expõem ao olhar do outro, mas também ao toque e à violência, e corpos nos submetem também ao risco de nos tornarmos a agência e o instrumento desse toque e dessa violência. Embora lutemos por direitos sobre nossos corpos, os corpos mesmos pelos quais lutamos não são exatamente apenas nossos. O corpo tem, invariavelmente, uma dimensão pública. Constituído como um fenômeno social na esfera pública, meu corpo é e não é meu. Submetido desde o começo ao mundo dos outros, ele carrega a sua marca, é formado na prova severa da vida social; apenas depois, com alguma incerteza, eu reivindico o meu corpo como meu, se, de fato, um dia eu o fizer. (Butler 2004:26)

Com um corpo que é e não é seu – porque esse corpo é formado socialmente –, o tradutor empreende sua atividade em meio a escolhas de diversas ordens, dentre elas escolhas norteadas pela significação do corpo. Não há nada de essencial nesse corpo. Há, no entanto, uma condição permanente: a inelutabilidade de um corpo a ser continuamente significado.

Recebido em novembro de 2007

Aprovado em abril de 2008

E-mail: dnsfortal@yahoo.com.br

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  • *
    Este artigo surgiu de longo e frutífero diálogo com Maria Paula Frota, a quem sou imensamente grato. Gostaria de agradecer também a leitura de Helena Martins e Lenita Esteves, que contribuíram para o aprimoramento das idéias aqui presentes. Os dois pareceres anônimos de DELTA, com seus comentários e sugestões de reformulação, foram especialmente valiosos. Mesmo com o trabalho refeito diante desses outros olhares, as falhas que tiverem persistido são de minha responsabilidade. O trabalho faz parte de pesquisa de doutorado financiada pela Fapesp (proc. 05/59907-9) e pela Capes (BEX 1466/07-0), sob a orientação dos professores Kanavillil Rajagopalan (Unicamp) e Charles Briggs (UC Berkeley).
  • 1
    . Cf. fala no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, em março de 2007, por ocasião da comemoração dos 30 anos do IEL.
  • 2
    . A tradução das citações dos textos não publicados em português é de minha autoria. As citações da obra Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, embora publicada em português, também foram traduzidas por mim.
  • 3
    . As citações do texto de Freud (1893), que trata do mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, são feitas a partir de uma edição eletrônica (cf. Referências bibliográficas). Portanto, tais citações não são acompanhadas de número de página.
  • 4
    . Doravante, IF.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2008
    • Recebido
      Nov 2007
    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
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