Open-access Por uma linguística aplicada antirracista: problematizações acerca de discursos silenciadores e de (re)existência da negritude

For an anti-racist applied linguistics: problematizations about silenced discourses and the (re)existence of blackness

RESUMO

A chegada da pandemia de COVID-19 nos trouxe desafios tanto nos âmbitos individual, quanto no coletivo. Diante deste cenário, encontramos dados que nos alertam para a (falta de) atenção dada às populações menos amparadas pelas políticas públicas, como a população negra. Nos atentamos às desigualdades já existentes antes do período de crise sanitária, e que urgem serem consideradas nas pesquisas de diferentes áreas do conhecimento, entre elas a Linguística Aplicada. Diante do exposto, o objetivo de nosso estudo é analisar interações discursivas entre usuários do Facebook, ao terem visto uma imagem de divulgação de um debate online (live) acerca da representação negra em livros didáticos, postada pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME/RJ). Os resultados mostram tanto os discursos silenciadores da iniciativa que visou a promoção do debate racial na esfera educacional, bem como os discursos de valorização desta prática. Dessa forma, reforçamos que as pesquisas em Linguística Aplicada, que possuem a linguagem como papel central nas interações entre os sujeitos, devem problematizar os usos da linguagem que minimizam iniciativas de promoção da justiça social.

Palavras-chave: Linguística Aplicada; antirracismo; práticas discursivas

ABSTRACT

The arrival of the COVID-19 pandemic brought us challenges both individually and collectively. Hence, we found some data that have made us aware of the (lack of) attention given to the population that are less supported by public policies, such as the black people. We pay attention to the inequalities that had already existed before this period of health crisis, as they need, urgently, to be researched in different areas of knowledge, including Applied Linguistics. Taking all of that into consideration, this research aims at analyzing discursive interactions between Facebook users, after seeing an image that promoted an online debate about black representation in textbooks, posted by the Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME/RJ). The results showed us two types of speeches: one that silenced the initiative that aimed at promoting a racial debate in the field of education, and the other one that valued this practice. To sum up, we reinforce that research which have language as a central role in the interactions among people must problematize the uses of language that minimize initiatives aimed at promoting social justice.

Keywords: Applied Linguistics; Anti-racism; discourse practices

1. Introdução

O Brasil se direciona hoje para a marca de quase 600 mil vidas perdidas, por conta da pandemia de COVID-191. Ao mesmo tempo, vem sendo governado por políticas que pouca relevância dão à ciência, no sentido de não valorizarem medidas fundamentais ao combate do vírus Sars-Cov-2 como a vacinação, o isolamento social e, em especial, ações a médio e longo prazo para minimizar as desigualdades sociais que ficaram ainda mais evidentes nesse triste período. Acrescidos a esses agravantes, destacamos o fato de vivenciarmos um governo que emite informações contraditórias a respeito de medidas que poderiam amenizar as consequências da pandemia2.

Diante deste cenário, reiteramos o aumento do sofrimento de grupos minoritários, os quais Santos (2020) considera como sendo pertencentes ao sul da quarentena, nesse período de emergência sanitária: o momento de pandemia se tornou uma acentuação das injustiças sociais vivenciadas por negros, mulheres, imigrantes, moradores de periferias, entre outros. Em outras palavras, a pandemia atingiu o sul da quarentena de forma mais drástica, visto que tais grupos tiveram as suas vulnerabilidades escancaradas aos nossos olhos.

Os complexos problemas educacionais, evidenciados pelo período pandêmico, impulsionaram a necessidade de novas dinâmicas de ensino e aprendizagem como o ensino remoto emergencial, em que o universo da sala de aula é transportado para os meios digitais. Ou seja, “em rede em que o professor ministra as aulas - ao vivo (síncrono) ou em modo gravação (assíncrono), em que os alunos acompanham de diferentes espaços geográficos” (Lima et al., 2021). Além disso, evidenciamos a adoção do ensino híbrido, modalidade pedagógica que combina atividades presenciais e atividades realizadas por meio das tecnologias de informação e comunicação (TDICs), “em que não existe uma forma única de aprender e na qual a aprendizagem é um processo contínuo, que ocorre de diferentes formas, em diferentes espaços (Bacich et al., 2015 p. 52).

Dessa maneira, foi necessário que a educação se reinventasse a fim de proteger a vida, nos levando, assim, a diferentes perspectivas e questionamentos sobre como a educação é e pode vir a ser realizada ao lançar mão de conhecimento e práticas crítico-colaborativas que explorem os recursos digitais como maneira de preparar a sociedade para uma virada social transformadora. Dentre as inúmeras desigualdades sociais encontradas em nosso país, podemos citar as que atingem os grupos étnico-raciais, entre elas, as próprias práticas discursivas - discursos recorrentes que reforçam o racismo e não colaboram para uma reflexão aprofundada sobre os efeitos da linguagem na perpetuação de práticas racistas - mote de nosso artigo.

Esses discursos que cristalizam práticas racistas, geralmente produzidos por indivíduos que estatisticamente detém as melhores condições e mais recursos para se protegerem diante da pandemia, advém de um país tomado, historicamente, por desigualdades sociais. Por consequência, indivíduos mais privilegiados socioeconomicamente parecem ter mais dificuldades em reconhecer as suas próprias práticas discursivas que podem, mesmo sem se aperceberem, reproduzir microagressões raciais ((Pierce, 1974; Solozano; Yoso, 2000; Ferreira, 2021)3. Entre os que mais sofrem em função das desigualdades sociais, está a população negra. Ou seja, pessoas que ao longo do tempo têm tido menos acesso a serviços básicos que todo/a cidadão/ã deveria ter como saúde, educação, moradia e informação e, assim, com menos chances de enfrentar as nefastas consequências da maior crise sanitária que vivemos na humanidade neste século. Segundo Santos et al. (2020),

Dados do IBGE (2019b) apontam que a população negra representa parcela significativa de comunidades tradicionais, quilombolas, ribeirinhas, de pescadores artesanais, dos que vivem em situação de rua, das pessoas privadas de liberdade, das que vivem na extrema pobreza e em domicílios que não respondem aos padrões de habitabilidade, que não contam com abastecimento de água e/ ou esgotamento sanitário como nas favelas, daqueles que apresentam menores rendimentos ou sobrevivem da informalidade; dos que dependem do lixo de natureza reciclável ou não; das empregadas domésticas; cuidadoras de idosos, dos idosos negros, dos que estão em situação de insegurança alimentar; que têm dificuldades de acesso a serviços e equipamentos de saúde, assistência social e educação (IBGE, 2019b) (pp. 227-228).

O atual cenário de desigualdades sociais no Brasil, apesar de evidenciado pela pandemia, vem se repetindo ao longo da história e nos leva a refletir, neste artigo, sobre a presença de discursos silenciadores que acabam por reforçar estigmas prejudiciais ao debate étnico-racial. Em outras palavras, discursos que acabam por minimizar a importância da promoção de debates e problematizações acerca dessas temáticas na educação.

Como linguistas aplicados, nossa responsabilidade em trazer à tona a análise desses contextos discursivos passa a ser ainda maior. Nesse sentido, precisamos chamar a atenção para o uso acrítico, muitas vezes, da linguagem, em que seus usuários não se apercebem acerca de seus discursos estigmatizados, reproduzindo práticas discursivas discriminatórias, que por sua vez dificultam a promoção de ações para a transformação social. Uma transformação social que deve, sob nossa ótica, entre outros fatores, focar no empoderamento e na emancipação de grupos étnico-raciais historicamente oprimidos. Para isso, trazemos a análise de um contexto discursivo situado na rede social Facebook, organizada pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro4 durante a pandemia do coronavírus. Portanto, o objetivo de nosso estudo é mostrar como se dão as relações discursivas entre usuários da rede social Facebook que, ao terem visto um cartaz postado pela Secretaria Municipal do Rio de Janeiro (SME/RJ), divulgando um debate acerca da representação negra em livros didáticos, emitem seus comentários e opiniões sobre o tema e aquilo que interpretaram a partir de suas leituras do material. Nossos dados mostram uma reprodução de discursos embasados em valores que reduzem a urgência de iniciativas não só governamentais, mas da própria sociedade como um todo, que criem políticas voltadas para oportunidades mais equânimes para diferentes grupos étnico-raciais.

Com este intuito, organizamos o artigo em uma primeira seção que discorre sobre importância dos papéis da linguagem e da Linguística Aplicada (doravante LA) como área de estudos que cria inteligibilidade sobre as práticas sociais em que a linguagem possui papel central (Moita Lopes, 2006). Em seguida, apresentamos questões relativas a reflexões étnico-raciais e a sua relação com a Linguística Aplicada, seguida de uma seção descrevendo a metodologia do estudo e analisando os dados. E, finalmente, trazemos nossas considerações finais, retomando o objetivo principal da pesquisa e dando alguns encaminhamentos.

2. O papel da Linguística Aplicada na transformação social

Partindo do pressuposto de que agimos no e com o mundo mediados por artefatos culturais (Vygotsky, 1978), e considerando que a linguagem é a mais importante delas, é significativo levar em consideração que a sociedade sofre constantes alterações e que, por consequência, a linguagem acompanha essas mudanças. Observando, então, a dinamicidade da sociedade e, por consequência, de suas práticas discursivas, é fundamental que a área de LA passe também por permanente reformulação epistemológica (Moita Lopes, 2006).

Se estamos sempre em mudança como sociedade, nossas pesquisas também devem acompanhar e contemplar as mudanças culturais, políticas e sócio-históricas. Como pesquisadores vinculados à LA e comprometidos com a valorização das diferentes vozes em nossas pesquisas, acreditamos ser válida a problematização de discursos que vão na contramão de iniciativas hegemônicas, que busquem trazer à baila práticas antirracistas de investigação, bem como a identificação das ideologias presentes na manutenção de hierarquias sociais.

No que diz respeito, mais especificamente, a questões étnico-raciais, as consequências herdadas da época da escravidão se materializaram na naturalização de tais hierarquias que evidenciam a necessidade de uma verdadeira abolição, uma vez que a (re)existência histórica da população negra foi sempre acompanhada de lutas. Desde a fuga para os quilombos, o direito ao voto e a educação, a busca por um trabalho digno e assalariado, até o direito à organização políticas de resistência e ao próprio reconhecimento como ser humano, as conquistas da negritude brasileira nunca foram pacificamente cedidas pela classe dominante branca e abastada. Ou seja, a abolição da escravatura, apesar de autenticar a liberdade que muito se lutou para conquistar, não resultou em condições igualitárias entre os grupos étnico-raciais no Brasil.

Para entendermos de que maneira as consequências da escravidão da raça negra no Brasil ainda se realizam no campo da linguagem, considerarmos que a principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido. A partir de uma perspectiva bakhtiniana, concordamos com Faraco (2009), ao apontar que “cada enunciado é uma resposta, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um desacordo, é um elo da corrente ininterrupta da comunicação sociocultural” (Faraco, 2009, pp. 58-59). Dessa forma, compreendemos que as interações interpessoais não são isoladas dos acontecimentos do mundo. Somos, o tempo todo, estimulados e influenciados por forças exteriores (outras vozes, por exemplo) e, com isso, estudiosos em LA encontram uma diversa e prolífica gama de dados que podem ser examinados e problematizados.

Faz-se necessário ainda apontar nosso entendimento que a linguagem é (re)construída nas práticas sociais (Moita Lopes, 2006) e de que as pessoas se desenvolvem como seres sócio historicamente situados, ao (re)construírem suas identidades e suas relações interpessoais por meio dessas práticas. Dessa maneira, podemos e devemos agir no mundo, de maneira a transformá-lo, de forma que a justiça social seja o meio e o fim dessas relações.

Por transformação social, trazemos à tona as ideias de Desjardins (2015), ao nos chamar atenção para a ideia da Educação como panaceia catalisadora de transformação social é demasiadamente otimista. Baseada nos estudos de Bourdieu (1986), essa linha de pensamento não considera como os diferentes segmentos de capital são distribuídos de forma desigual na sociedade. DesJardins (2015) afirma ainda que essa crença dá pouca ênfase não só ao efeito de condicionamento das relações de poder, como também às “forças reprodutivas associadas à educação, nomeadamente aquelas que procuram preservar ou mesmo aumentar os interesses dominantes” (Desjardins, 2015, p. 240).

Neste sentido, o autor ainda esclarece que a educação como um todo, tanto se constitui de elementos transformativos, como reprodutivos. Vai depender de que “forças” imperam no contexto, seja ele social, político ou econômico para que a escola possa ou não vir a ser um espaço para transformação social. Mas se de fato buscamos, então, contribuir para a transformação social, partindo dos pressupostos da LA, faz-se necessário estabelecer quais mudanças gostaríamos de construir na sociedade, a partir da inteligibilidade dos usos da linguagem que sempre deve se dar de forma contextualizada. Nosso objetivo, dessa maneira, é reconhecer e problematizar iniquidades sistêmicas que surgem e são reconhecidas em uma comunicação discursiva já que concordamos com Voloshinov ([1929] 2017), ao apontar que “[a] comunicação discursiva nunca poderá ser compreendida nem explicada fora dessa ligação com a situação concreta” (Voloshinov, [1929] 2017, p. 220).

Sendo seres socio-historicamente situados, somos um universo de valores e os externamos através da relação do eu com o outro, materializados na linguagem, segundo Voloshinov, ([1929] 2017). De acordo com o autor, a “estrutura do enunciado é a estrutura social” (Voloshinov, [1929] 2017, p. 217), o que nos conduz a entender que não estamos desvinculados das diferentes estruturas sociais existentes (familiar, política, econômica, entre outros) em nossos posicionamentos no mundo. Portanto, é válido que os pesquisadores preocupados em criar inteligibilidade acerca da materialização da linguagem busquem investigar a intersecção entre o individual e o social na refração e reflexão em diferentes situações sociopolítico-ideológicas (Rojo, 2009).

Ao pensarmos em uma LA que contribua para a transformação social, necessitamos defender que essa mudança precisa reconhecer e valorizar a defesa dos direitos humanos e buscar a promoção da justiça social. Nas palavras de Stetsenko (2017, p. 26), “o trabalho que visa a justiça social só pode ser feito em combinação com o reconhecimento das desigualdades sistêmicas, diferenças de poder e a disseminação persistente na sociedade”.

A LA como problematizadora dos discursos nos embates políticos - entendendo-os como não sendo neutros, materializados na linguagem - cuja práxis transgride as fronteiras disciplinares (Pennycook, 2007), contribui para a criação de inteligibilidade sobre os sujeitos que agem com e no mundo. De acordo com Fabricio (2006), a LA como espaço de desaprendizagem deve analisar as relações em flutuação: “a tendência de muitos estudos contemporâneos em LA é focalizar a linguagem como prática social e observá-la em uso, imbricada em ampla amalgamação de fatores contextuais” (Fabricio, 2006 p. 48).

Concebendo a linguagem como meio de dominação e força social, entendemos como o discurso possui uma representação central na vida contemporânea. No sentido de nos auxiliar a compreender a complexidade das questões sociais que nos confrontam no cotidiano, concordamos com Moita Lopes que “para construir conhecimento que seja responsivo à vida social, é necessário que se compreenda a LA não como disciplina, mas como área de estudos” (Moita Lopes, 2006, p. 97). Além disso, o autor assevera que para que a LA seja responsiva à vida social é preciso encará-la como uma área de estudos indisciplinar, pois “uma única disciplina ou área de investigação não pode dar conta de um mundo fluido e globalizado para alguns, localizado para outros, e contingente, complexo e contraditório para todos” (Moita Lopes, 2006, p. 99). A fim de buscar um diálogo com diferentes áreas como ferramenta para elucidação dos aspectos da vida social, nos posicionamos, dessa maneira, nas fronteiras onde diferentes áreas de conhecimento convergem.

A problematização da vida social por meio de práticas historicamente situadas, em que a linguagem possui papel de destaque, é objetivo primordial da LA. Dessa forma, as discursividades que atravessam a linguagem representam os sujeitos e estão atreladas a fatores históricos, sociais, culturais, econômicos e geográficos. A linguagem institui discursivamente jogos de verdades (Foucault, 2004), em que as relações de poder são definidoras. Linguagem é poder. Ou seja, todo ato de linguagem é um ato de poder, mesmo antes de ser simplesmente uma forma de comunicação:

Só podemos contribuir se considerarmos as visões de significado, inclusive aqueles relativos à pesquisa, como lugares de poder e conflito, que refletem os preconceitos, valores, projetos políticos e interesse daqueles que se comprometem com a construção do significado e do conhecimento. Não há lugar fora da ideologia e não há conhecimento desinteressado (Moita Lopes, 2006 p. 102)

Isto posto, entendemos que a investigação da construção da linguagem em contextos situados se enriquece com as contribuições do Círculo de Bakhtin (Bakhtin [1979] 2003; Voloshinov [1929] 2017, entre outros). Concordamos com Faria e Silva (2013), no que concerne às contribuições dos referidos estudiosos do discurso, os quais buscam destacar que:

o sentido dos enunciados concretos constrói-se na relação entre materialidade sígnica e forças históricas e ideológicas, ou seja, entre o texto que se percebe pelos sentidos e as forças constitutivas das atividades humanas envolvidas nas interações dos interlocutores desses textos (p. 64).

No que diz respeito às interações discursivas, nos remetemos, também a Vygotsky (1896-1934), que por meio de sua Teoria Sócio-histórico-cultural (Vygotsky, 1978) sobre o desenvolvimento humano, propõe que a aprendizagem se dá na interação com outros e com o meio no qual se está inserido. Para que essa interação aconteça, o ser humano criou e ainda cria artefatos materiais e simbólicos que servem como mediadores desta interação. Segundo Swain et al. (2015), essa foi exatamente a maior contribuição de Vygotsky - a de que a mediação é condição essencial para o desenvolvimento. Entre os artefatos simbólicos criados pelo ser humano está a própria linguagem que se constitui como o mais importante deles, já que é por meio dela que aprendemos a própria linguagem, bem como quaisquer outras aprendizagens que façam parte de nosso desenvolvimento.

A contribuição de Vygotsky, no que diz respeito à mediação, passa a ser de especial relevância para nós educadores linguísticos, na medida em que ela se dá na interação com nossos pares - professores, aprendizes e todos aqueles que fazem parte da comunidade escolar. Interações essas que acontecem não somente ao longo da formação dos indivíduos como cidadãos e cidadãs que devem estar conscientes que fazem parte de um coletivo maior - mas também que são nessas interações entre pares que os sujeitos se situam socio-historicamente. Assim, nosso papel como educadores linguísticos passa a ser ainda maior na promoção de interações que estimulem a reflexão crítica, o respeito à diversidade e, mais importante que tudo, o engajamento na transformação social, conforme aqui já discutido.

Entre as transformações sociais necessárias em nossa sociedade, está o fato de que urge o fomento de discussões a respeito de questões étnico-raciais, em especial, em tempos de (pós-) pandemia, em que precisamos inserir em nossa pauta educacional caminhos para uma educação antirracista que preconize direitos para todos, em que raças e etnias historicamente negligenciadas encontrem espaço para as suas vozes e para que se sintam, assim, devidamente representadas, celebradas e respeitadas.

3. As Reflexões Étnico-Raciais em LA: Urgências em Tempos de (Pós-)Pandemia

Sabe-se que a pandemia atingiu a população mundial de maneira devastadora, entretanto, destacamos que os reflexos foram sentidos de modos diferentes em determinadas partes da sociedade. Os chamados “Sul da quarentena”, para Santos (2020), envolve grupos já marginalizados/vulnerabilizados na sociedade, cuja situação se agravou com essa emergência sanitária global. Para o autor, esse “Sul”, que não se refere a um espaço geográfico, mas a um espaço-tempo político, social e cultural, “[é] a metáfora do sofrimento injusto causado pela exploração capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual” (Santos, 2020, p. 5).

Isto posto, afirmamos a necessidade de se pensar em pesquisas que pautem o sul da quarentena, seja em áreas da saúde, seja em educação ou na Linguística Aplicada. O Brasil é um país cuja população majoritária é composta por negros (retintos e pardos), além de ser a parcela da sociedade mais vulnerável e com 77,6% de chances de morrerem em decorrência do novo Corona vírus, em comparação com pessoas brancas (Santos, 2020). Assim, concordamos com Santos et al. (2020), ao entendermos que essa urgência é decorrente da baixa qualidade de informações que indiquem a relação de fatores que contribuem para a mortalidade de pessoas negras na pandemia, o que ratifica o racismo estrutural presente na sociedade.

O racismo estrutural é definido pela viabilidade da reprodução sistêmica de práticas racistas e, por isso, é resultado da própria estrutura da sociedade (Almeida, 2020), ou seja: “do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural” (Bonilla-Silva, 2006).

Entender que o racismo é um processo estrutural é entender que ele é também um processo histórico. Assim, a dinâmica estrutural do racismo opera de maneiras diferentes na formação social. É importante destacarmos que o racismo sendo estruturante e estrutural não está apenas no imaginário, já que a estrutura é parte integrante do inconsciente. O racismo tem a capacidade de transcender o mundo institucional, uma vez que é intrínseco à sociedade e, deste modo, configura-se como apropriado para manter, reproduzir e recriar sistemas de opressão, desigualdades e privilégios, atuando de maneira exemplar na manutenção do status quo.

De maneiras bastante semelhantes, o racismo - devido a sua natureza estruturante e histórica - e a pandemia se fazem sentir de maneira mais complexa por todos os indivíduos lidos como os Outros, não contemplados pela concepção de ser humano em vigor na sociedade. Portanto, nos perguntamos se, como linguistas aplicados, nossas pesquisas podem contribuir para a superação do sofrimento humano. Reforçamos ainda a urgência de uma difusão e profusão mais equitativa do conhecimento científico, isto é, de a academia proporcionar espaços para vozes - já existentes -poderem ecoar: mulheres, negros, indígenas, LGBTQIAP+5, entre outros, em busca de trazer à tona as suas respectivas vivências, em prol da luta pela justiça social.

Tendo exposto algumas problematizações a respeito do sul da quarentena, em que as desigualdades parecem ter ficado mais evidentes e, a consequente urgência, como linguistas aplicados, atentarmos para discursos que silenciam a necessidade de se promover debates acerca de questões étnico-raciais, passamos a descrever brevemente a metodologia empregada neste estudo, juntamente com a análise e discussão de dados.

4. “A importância de um livro está no seu conteúdo, aquilo que ele vai agregar. Se é negro ou branco tanto faz” - Análise de Discursos Silenciadores e de (Re)existência acerca de Questões Étnico-Raciais

Tendo em vista que somos seres situados sócio historicamente e que nossos enunciados nunca se caracterizam como neutros, mas, sim, como atos responsivos ou, em outras palavras, como tomadas de posição em determinados contextos (Voloshinov, [1929] 2017), enxergamos as redes sociais como um complexo ambiente de comunicação, em que a instantânea propagação de discursos se revela como uma importante possibilidade de construção de significados sobre o que significa ser humano.

As redes sociais, dessa forma, são pertencentes ao que o geógrafo negro brasileiro Milton Santos denominou de “um mundo no qual nada de importante se faz sem discurso” (Santos, 2000, p. 74). O objetivo de nosso estudo é mostrar como se dão as relações discursivas entre membros de uma comunidade na rede social Facebook que, ao terem visto um cartaz postado pela Secretaria Municipal do Rio de Janeiro, divulgando um debate acerca da representação negra em livros didáticos. Mais especificamente, procuramos, portanto, problematizar as relações discursivas entre usuários do Facebook a respeito de uma postagem de divulgação de uma live sobre a representação negra nos livros didáticos, promovida pela SME/RJ. Analisamos, pois, comentários que emitem opiniões sobre o tema e a interpretação que fazem do cartaz do evento divulgado.

Nosso interesse em investigar a linguagem materializada em comentários no Facebook se atém à influência que as práticas discursivas exercem na formação identitária e social, bem como ao caráter dialógico da língua (Voloshinov, [1929] 2017).

Analisamos, dessa maneira, enunciados concretos presentes em comentários em uma postagem da Página Oficial da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro6, no Facebook (@smecariocarj), realizado no dia primeiro de julho de 2021, ao anunciar uma live, organizada pelo Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais, da primeira Coordenadoria Regional de Educação (1ª CRE), a respeito da representação negra nos livros didáticos. A referida live contou com a participação da Daiane Ciriaco, geógrafa (USP) e mestranda em Antropologia Social (UFRJ), cuja mediação foi feita por Andréa Motta e Isis Natureza, conforme cartaz compartilhado na respectiva publicação (Figura 1).

Em nossas análises das trocas discursivas nos comentários da referida postagem atentamos, sobretudo, para dois aspectos dialógicos que situam a problematização proposta neste estudo: i) a (re)construção, o embate e negociação dialógica de significados realizados em um espaço-tempo de interação linguística em uma rede social; ii) a problematização de discursos silenciadores do sofrimento de grupos minoritários nas redes sociais, com vistas a apontar a necessidade do comprometimento dos estudos em Linguística Aplicada com a (Re)Existência da Negritude e o antirracismo - entendidos como necessários e pungentes.

Acreditamos, dessa forma, que no contexto pandêmico global no qual nos situamos, os direitos humanos, a luta contra a desigualdade e contra o racismo são importantes para a transformação social, e que a Linguística Aplicada tem muito a contribuir para a criação de inteligibilidade quando é pautada em uma prática pedagógica reflexiva, cuja episteme está em constante construção (Miller, 2013).

Conforme apontado anteriormente, analisamos alguns comentários presentes na postagem do Facebook presente na Figura 1:

Figura 1
Cartaz de divulgação da live.

Juntamente com o cartaz exposto na Figura 1, a postagem no Facebook pela SME/RJ foi acompanhada de um texto descritivo da referida live, indicando que o evento seria aberto para toda a população e com transmissão pelo Canal do Youtube “1ª CRE Compartilhando Saberes”.

No momento da nossa pesquisa, no dia 5 de julho de 2021, identificamos que a postagem contava com 114 curtidas, 23 reações de “amei”, 2 reações de “haha” e 1 reação indicativa de raiva. Ademais, identificamos 37 comentários e 24 compartilhamentos. Dos 37 comentários publicados na postagem, analisaremos 10 (feitos por 6 usuários diferentes), considerando que 4 são direcionados à Página Oficial da SME/RJ7, já os demais são respostas aos interlocutores presentes nos pontos levantados por esses 4 usuários da página. Importante salientar, então, que todos os comentários postados diretamente para a página do Facebook foram feitos antes da live, entre 8 e 11 horas da manhã, no mesmo dia do evento, que aconteceria no dia primeiro de julho de 2021, às 14h. Assim, todos os comentários feitos por estes usuários eram com base na sua própria interpretação do que trazia o texto no cartaz em si, postado pela SME/RJ.

O primeiro comentário a ser analisado, presente na Figura 2, foi postado por Ana*, a qual elogiou a equipe pela iniciativa da live. Entendemos, com base em Voloshinov ([1929] 2017), que nenhum enunciado concreto se materializa sem interlocutores. Ao passo que identificamos a Ana* em diálogo com a equipe organizadora da live, também identificamos que o comentário da Beatriz* estabelece uma relação dialógica tanto com a Ana*, quanto com a equipe, ao proferir que a temática do “letramento racial” seria “NECESSÁRIO!” (Figura 2), reforçado com letras maiúsculas e seguido por exclamação. Ana* também invoca a proporcionalidade da população negra frente aos não-negros. Os dados do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2016 mostram que 54% da população brasileira é negra. O enunciado de Ana* é confirmado pela Beatriz*, que entende que a discussão sobre representação negra nos livros didáticos é uma temática “muito pertinente” (Figura 2).

Figura 2
Comentários da Ana* e da Beatriz*, na postagem da página da SME/RJ.

Ao apontar que «a conversa vai colaborar com o letramento racial», identificamos que a Ana* reconhece a importância da área dos estudos do Letramento Racial, que é entendido por Skerrett como uma «compreensão poderosa e complexa da forma como raça influencia as experiências sociais, econômicas, políticas e educacionais dos indivíduos e dos grupos» (Skerrett, 2011, p. 314). Para Ana*, o Letramento Racial é «necessário para que todos sejam valorizados numa pátria caracterizada pela diversidade étnico-racial», o que nos indica que a valorização e reconhecimento da humanidade da população negra deve passar, impreterivelmente, pela «reflexão sobre o lugar do negro na sociedade, evidenciando a desconstrução de práticas naturalizadas, como a preponderância do pensamento eurocêntrico» (Santos, 2020).

Ainda na mesma postagem do Facebook, identificamos um comentário, exposto na Figura 3, por um interlocutor formado em História:

Figura 3
Comentário do Gilson* na postagem da página da SME/RJ.

Gilson* (Figura 3), por sua vez, opina favoravelmente ao anúncio do evento. Seu discurso pode estar alinhado ao que aponta Teixeira (2009), em uma análise da representação do negro brasileiro no livro didático de português e de história:

As imagens do negro no Brasil aparecem preferencialmente em dois momentos cruciais: Como mão de obra escrava, no Período Colonial, Primeiro e Segundo Reinados; e no momento da abolição da escravatura. Os autores dos livros didáticos de história apresentam o Quilombo dos Palmares, como simples rebeldia dos escravos contra o cativeiro, omitindo uma alternativa de organização política, social, econômica e cultural (Teixeira, 2009 p. 29)

Ainda relacionado ao comentário do Gilson*, lembramos que o ano de 2003 foi marcado pela implementação da Lei nº 10.639/03 que tornava obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas brasileiras. Porém, devemos nos questionar como a inserção adequada ou não de temas relacionados à história e cultura afro-brasileira e africana no ensino pode levar à manutenção ou à mudança das relações sócio raciais. Isso pode indicar o motivo pelo qual Gilson* pontua que, como professor de História, sente que a população de indivíduos marginalizados é sub-representada nos livros didáticos.

Um comentário que destacamos na nossa análise refere-se à importância do livro didático, ao seu conteúdo e ao que ele vai agregar no ensino e na aprendizagem, conforme defendido por Sandra* (Figura 4). Entendemos a preocupação da interlocutora acerca de tais questões, porém, embora saibamos que a autoria da obra não seja o foco da publicação da SME/RJ, na divulgação da live, buscamos transformar a afirmação da Sandra* em uma problematização, sobre a participação de professores na elaboração de livros didáticos, a seguir: se é negro ou branco, quem escreve [os livros didáticos], tanto faz?

É importante considerar aqui nosso local de fala, como pesquisadores vinculados à Linguística Aplicada. Uma área que se caracteriza como indisciplinar, ou antidisciplinar, ou transgressiva (Moita Lopes, 2006; Pennycook, 2007), isto é, um campo do conhecimento que se reinventa, que busca criar inteligibilidade acerca da linguagem situada e que considera as mudanças sócio-históricas ocorridas na sociedade, cujos sujeitos estão inseridos. Desta forma, seus modos de produzir conhecimento e como os atores sociais estão ecoando as suas vozes no processo de elaboração de livros didáticos, tema da live proposta, passa a ser importante nessa discussão.

Gilson*, além de apontar que “apesar dos avanços nos últimos anos, ainda vemos as populações e indivíduos negros, indígenas, trabalhadores e minorias sociais em geral sub-representados (ou mal abordados) em disciplinas como a (...) História” (Figura 3), evidenciando a problemática da representação em livros didáticos, nos provoca ao mencionar que, ao seu ver, há um distanciamento entre teoria e prática. Essa provocação é importante para compreendermos que a teoria não precede a prática. Uma vez que assumimos a visão da LA voltada para “as práticas sociais” (Moita Lopes, 2006, p. 23), “transgressiva e crítica” (Pennycook, 2007 p. 82), nos questionamos de que maneiras a teoria serve para manter a prática ao alcance dos professores com vistas a mediar e analisar criticamente uma práxis (reflexão e ação) sócio-histórico e culturalmente localizada.

Nesse sentido, relembramos a contribuição de Vygotsky, quando enfatiza, como condição essencial nas interações entre seres humanos, a questão da mediação. Neste caso, no contexto analisado, usuários do Facebook com diferentes concepções acerca de questões étnico-raciais interagem sobre o tema da tentativa de convencerem o outro de que sua premissa está correta. Por um lado, temos Gilson* que apresenta um discurso que valoriza a importância de se fomentar “pesquisas e debates [sobre questões étnico-raciais] que cheguem cada vez mais às salas de aulas” (Figura 3). Por outro, apresentamos, a seguir, Sandra* que apresenta um discurso divergente do até então defendido. Assim, observa-se a mediação feita pelos diferentes usuários, com o objetivo de sustentarem a sua argumentação. Vejamos o excerto a seguir:

Figura 4
Comentários da Sandra*, do Gilson* e do Davi*, na postagem da página da SME/RJ.

O comentário de Sandra* “Se é negro ou branco quem escreve tanto faz” (Figura 4), apesar de evidenciar o desconhecimento dos resultados do racismo como processo histórico e estrutural, nos propõe a problematizar a falta de dados sobre autoria negra em livros didáticos. Essa problematização nos aproxima de uma LA que oferece reflexões sobre a crise política, social, ética e econômica que o país vem vivendo desde a sua colonização e que amplia as desigualdades nos mais diversos âmbitos, especialmente, “(n)os corpos de negros/as, LGBTs, mulheres, imigrantes, trabalhadores/as, pobres e/ou outras minorias que não coadunam com práticas conservadores que se querem hegemônicas” (Szundy et al., 2019, p.16).

A crise sanitária evidenciou, ainda mais, as consequências das desigualdades sociais, tema propício a ser discutido na LA, não só no período pandêmico, em que práticas, como as aqui apresentadas foram mudadas (interações que eram presenciais, passaram a ser feitas de modo remoto), mas também nas pós-pandêmicas, em que se prevê que algumas dessas práticas permanecerão. Desta forma, a LA pode contribuir no sentido de trazer reflexões sobre o papel da linguagem nas interações discursivas que tanto podem transformar paradigmas até então cristalizados, como podem também silenciar a discussão.

Percebemos o comentário de Sandra* alinhado ao discurso da meritocracia8, e isto nos chama a atenção uma vez que demonstra um possível desconhecimento da existência do racismo estrutural, além de ser problemático por desconsiderar as vozes negras em autorias acadêmicas. De acordo com Almeida (2019), o racismo é - além de um processo político e econômico - um processo histórico, ou seja, os discursos racistas têm também suas particularidades, referentes aos diferentes contextos sociais por onde circulam. No caso do Brasil, um dos elementos centrais na construção do discurso racial é a negação dessa discriminação. Como aponta Munanga (2015), o racismo brasileiro tem suas peculiaridades, entre as quais o silêncio, o não dito, que confunde todos os brasileiros e brasileiras, vítimas e não vítimas do racismo.

Na Figura 4 podemos, ainda, identificar uma tentativa de construção dialógica por parte do Gilson*, ao responder a Sandra* e chamá-la para prestar mais atenção ao título da postagem. Acreditamos que essa tentativa pode ter sido frustrada, pois identificamos, que Cleber* avalia o comentário da Sandra* - ao desviar do tema proposto na postagem do Facebook - como sendo “infeliz” (Gilson*, Figura 4). De acordo com Voloshinov ([1929] 2017), as relações dialógicas também podem ser marcadas por “espaços de tensão de enunciados” (Voloshinov, ([1929] 2017) p. 69), o que identificamos também através do comentário do Davi*, ao responder à Sandra*, alegando que ela “[p]erdeu a oportunidade de ficar calada” (Davi, Figura 4). Não identificamos, até o momento da análise, uma resposta da Sandra* aos dois.

Além disso, nos chama a atenção alguns comentários como os do Cleber* (Figura 5), em que consta sua opinião sobre a elaboração de livros didáticos. Identificamos uma preferência, por parte deste interlocutor, de que os materiais sejam formulados por professores e acreditamos ser fundamental que as vozes desses sujeitos estejam presentes na elaboração das obras. Entretanto, o questionamento de Cleber, ao indagar se os professores seriam classificados pela cor, causa uma divergência entre os interactantes. Em nosso entendimento, a publicação de divulgação do evento, que promoveria a discussão a respeito da representação negra nos livros didáticos, não teve como propósito a separação dos professores por cor, portanto, não entendemos que o referido questionamento tenha contribuído com o debate acerca da valorização da representação negra nos livros didáticos.

Figura 5
Comentários do Cleber*, Gilson* e Davi*, na postagem da página da SME/RJ.

O interlocutor Gilson*, identificado como sendo formado em História, segundo o seu comentário na Figura 3, explica para Cleber* o verdadeiro intuito da live que trata da promoção do debate sobre a representação negra em livros didáticos e não, como Cleber interpreta, sobre a necessidade de se ter mais escritores de livros didáticos negros: “Preste atenção. Pelo título dá pra perceber que o tema se refere principalmente a conteúdo, mais que autoria.” (Figura 5).

Pensar em uma LA que vise problematizar a linguagem e, dessa maneira, entender como o uso da linguagem reflete e impacta na sociedade, nos motiva a investigar os estudos da linguagem por outras perspectivas, que não a do sujeito hegemônico. Esse giro analítico levou Kleiman (2013, p. 40) a advogar por “trazer outras vozes latino-americanas, a fim de “sulear” (orientar para o Sul) o debate e questionar a hegemonia ocidental do Norte, ainda imperante na definição dos nossos problemas de pesquisa”.

É imprescindível que as Vozes do Sul ecoem em diferentes produções intelectuais e não apenas em livros didáticos, de forma que esses sujeitos sejam protagonistas e, em consonância com as palavras do Gilson*, que reforça que estes não sejam vistos apenas como “objeto de estudo de terceiros” (Figura 5), mas sim, tenham papéis relevantes no processo de confecção das obras didáticas. Apesar da ainda escassa literatura que fomente a discussão sobre questões raciais, bem como da falta de autores que pesquisem sobre a temática em LA, faz-se mister que a área se oriente para as Vozes do Sul, aumentando e, assim, a representatividade de grupos minoritários na academia e na sociedade como um todo.

Após Davi* dizer que o comentário de *Cleber era “infeliz e superficial” (Figura 5), Cleber* rebate respondendo que o título está “bem claro” e que “só mimizentos que não vê” (Figura 5). Voloshinov já nos dizia que “todo enunciado é antes de tudo uma orientação avaliativa. Por isso, em um enunciado vivo, cada elemento não só significa, mas também avalia” (Voloshinov, (1929] 2017), p. 236). Identificamos, no comentário do Cleber*, que aqueles que não concordam com o seu posicionamento - de que existe uma divisão entre os professores por raça ou crença na divulgação da live - são “mimizentos”9, ou seja, seriam aqueles que reclamam demais.

Entendemos que os enunciados de Cleber* podem indicar um reforço da invisibilidade da presença de autores negros (professores) na confecção de livros didáticos, uma vez que tal crítica foi destacada por ele, mesmo este não sendo o foco da proposta da live. Ademais, percebemos um equívoco em sua interpretação e a falta de argumentos acerca da importância de núcleos de debates sobre raça em espaços educacionais, que, ao contrário do que prega Cleber*, esses espaços devem ser entendidos como inclusivos, formadores e voltados para todas as raças e etnias. Na SME/RJ, a Gerência de Relações Étnico-Raciais (GERER) tem como objetivos

pensar e articular ações de caráter transversal e intersetorial, respaldadas pelas legislações vigentes que orientam o trabalho de implementação da Educação para as Relações Étnico-Raciais, constituindo-se como um órgão de natureza consultiva, mediadora e de planejamento estratégico, que deve atuar de forma circular, movendo-se a partir dos eixos Currículo, Formação e Projetos. A Gerência integra o escopo organizacional de trabalho da Coordenadoria de Educação Integral na Subsecretaria de Ensino da Secretaria Municipal de Educação (Site Oficial da Prefeitura do Rio de Janeiro)10.

Dessa forma, tanto o conteúdo publicado no Instagram da SME/RJ, quanto a descrição da organizadora da live, a GERER, não se alinham com a fala do Cleber*, quando este aponta que “esse núcleo já é uma divisão” (Figura 5). Promover o debate sobre relações étnico-raciais em livros didáticos não é divisão ou separação, mas é um passo importante para que se problematize a (falta de) representação negra nesses materiais.

Ademais, concordamos com Ribeiro (2019), ao enxergarmos que iniciativas como essas (lives, núcleos de pesquisas, entre outros), são instrumentos relevantes na consolidação da promoção da diversidade sociocultural e representação, em especial, espaços ligados à educação, como é o caso aqui apresentado. Segundo a autora, “quem possui o privilégio social, possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é branco” (Ribeiro, 2019, p. 24).

Portanto, cabe a nós, pesquisadores em LA, problematizarmos e trazermos à luz discursos excludentes e reprodutores do status quo. Os comentários analisados neste artigo foram publicados de maneira espontânea pelos interlocutores, o que representa a linguagem viva e construída nas relações entre os sujeitos, em eventos únicos e que materializa ideologias pessoais.

5. Considerações Finais

O objetivo deste artigo foi, então, o de analisar interações discursivas entre usuários do Facebook, em que procuramos evidenciar como algumas práticas discursivas acabam por reproduzir percepções que minimizam a iniciativa, promovida pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME/RJ), de propiciar o debate (live) no que tange a questões étnico-raciais nos livros didáticos. Iniciamos nossa argumentação fazendo uma relação entre os devastadores efeitos da pandemia - e sua consequente crise sanitária - e um aumento da desigualdade, ainda mais significativo, entre grupos pertencentes a diferentes minorias sociais e econômicas, em especial, a população negra.

Destacamos, em especial, negros, cuja história é marcada por opressão e falta de oportunidades para ascensão social e, por efeitos da crise econômica causada pela pandemia, -um grupo minoritário ainda com menos chances de superar essa lacuna. Na sequência, arguimos a importância da LA e, no seu espectro, dos educadores linguísticos atentarem para análise de discursos situados, que ao invés de caminharem na direção de uma educação libertadora, acabam por perpetuar discursos dominantes e hegemônicos, que só interessam a classes e grupos historicamente privilegiados.

Finalmente trouxemos alguns excertos de falas de usuários de uma página de Facebook organizada pela SME-RJ, cuja intenção era promover uma live sobre a representação dos negros nos livros didáticos. Em um embate ideológico, usuários parecem se contradizer ao argumentarem que não se trata de uma questão de discriminação, mas de que o critério para se escrever um livro didático não deveria ser a etnia ou raça, mas a “competência” para a referida tarefa. Ora, o que constatamos em primeiro lugar é uma leitura inadequada do propósito do cartaz, ou seja, de promover o debate acerca da falta de representação negra nos materiais didáticos, segundo o olhar de uma mestranda em antropologia, mediada por mais duas pessoas da área da educação. Em segundo lugar, verificamos uma tendência, que parece ser quase que atávica por parte dos usuários, de fazerem uso desse tipo de argumento. Práticas discursivas, cujos participantes parecem apenas reagir, sem maiores reflexões, ao visualizarem um texto/imagem que incita a uma discussão, em última instância, a respeito do racismo, mas como se já possuíssem uma opinião formada a priori. Uma opinião com base em discursos anteriormente ouvidos e repetidos, sem abertura para um diálogo e possibilidade de mudança de paradigmas. Em outras palavras, como se dissessem, “se é sobre racismo, eu já tenho minha opinião, não importa o argumento”.

Finalmente, ressaltamos que, apesar de trazermos aqui alguns discursos que parecem ir na contramão de uma educação antirracista, por outro, reconhecemos os avanços, ainda que lentos, que temos tido no país. Por exemplo, não podemos deixar de mencionar que 50,3% das vagas das universidades públicas são hoje ocupadas por negros graças à lei de cotas11. Lembramos, ainda, que segundo pesquisa realizada na UERJ, em 201212, ao completar uma década de implementação do seu sistema de cotas, dados indicam que 43% dos cotistas (6.995 negros, 8.673 da rede pública e 267 deficientes, indígenas ou filhos de policiais, bombeiros e inspetores de segurança mortos ou incapacitados em serviço), equivalente a 6.869 estudantes, de um total de 15.935 ingressantes, conseguiram concluir seu curso de graduação. Já em relação ao número de não-cotistas, de um total de 31.605 ingressantes, somente 7.028, equivalente a 22% dos estudantes, chegaram a terminar seu curso. Desta forma, o estudo assinala que o percentual de conclusão entre os cotistas é bem maior do que entre não-cotistas. Esses indícios nos levam a crer que o investimento em políticas públicas que facilitem o acesso de grupos minoritários à educação traz resultados, a médio e longo prazo, em termos de alternativas para a redução das desigualdades sociais.

Compreendemos, assim, que a LA, como uma indisciplina, deve valorizar, cada vez mais, pesquisas que tragam à luz o debate antirracista, em uma forma de buscar problematizar enunciados que silenciem ou minimizem essa questão. Para isso, não podemos deixar de buscar o diálogo com áreas vizinhas do conhecimento, como a Antropologia, a Psicologia, a Sociologia, a Filosofia e a Educação, cujos preceitos têm muito a contribuir com as nossas análises de linguagens em contextos situados. Dentre esses conhecimentos, trazemos à tona, a contribuição de Vygotsky sobre a importância da mediação para o desenvolvimento humano. Mediações pelas quais tanto afetamos as pessoas que nos cercam, como por elas nos afetamos. Desta forma, essas mediações, intrínsecas às relações humanas podem tanto servir para silenciar iniciativas para combater as desigualdades sociais, como, ao contrário, favorecer a transformação social.

Trazemos, ainda, a lume a voz de Voloshinov ([1929] 2017) quando argumenta que todo enunciado é, na verdade, um eco da estrutura social. Ou seja, os discursos produzidos pelos usuários do Facebook analisados, neste estudo, tanto alavancam discussões necessárias para que haja uma real mudança de status quo, como produzem, também, comentários que dificultam movimentos nesse sentido.

Pleiteamos aqui por uma LA que tenha como mote também, a transformação social. Segundo Moita Lopes (2006) “todo conhecimento vem de algum lugar. Politizar o ato de pesquisar e pensar alternativas para a vida social são parte intrínseca dos novos modos de teorizar e fazer LA” (p. 22). Outrossim, a LA necessita da teorização que considera a centralidade das “questões sociopolíticas e da linguagem na constituição da vida social e pessoal” (Moita Lopes, 2006, p. 22). As trilhas em busca de transformação social são tortuosas e árduas, mas nem por isso devemos deixar de persegui-las com a humildade de que pouco sabemos, mas que estando dispostos a ouvir e dialogar, renovando as esperanças para uma sociedade com mais oportunidades para todos. Não podemos idealizar a escola como espaço único para transformação social, conforme Desjardins (2015) argumenta, mas, com certeza, podemos iniciar por ela.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2021
  • Aceito
    18 Set 2021
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