Vinte velinhas para a Rede Globo
Gabriel Priolli
Jornalista
No momento em que se completam os vinte anos de atividades da Rede Globo de Televisão, toda a imprensa, e a própria Globo, se dedicam a relembrar a sua história. A criação de um modelo brasileiro de televisão, com plenas condições de competir no mercado internacional é uma conquista sua e irreversível.
Mas nesta história, que deve ser recuperada, há alguns pontos controvertidos. Um irreverente artigo de Gabriel Priolli Netto nos fala deles.
É claro que você já sabe que a Rede Globo de Televisão faz 20 anos, neste 1985. Imagine se ela deixaria de avisar todo mundo, perdendo a chance de fazer um enorme auê com essa data tão redonda. Nunca: a Globo é profissional até para fazer aniversário. Por isso, você pode relaxar no poltronão e ligar o tubo. Vem aí uma colossal demonstração de força da principal empresa de comunicação do país: filmes especiais, shows especiais, eventos especiais, tudo especial. É o luxo em espécie para que a gente a esqueça a falta de dinheiro.
A idéia geral é mostrar à praça quem é quem na TV brasileira, nessa tempestade econômica. Quem comanda, dá as regras e expande o mercado, inclusive para o Exterior, ou quem apenas luta para se manter à tona. A Globo vai queimar dinheiro e o Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, vice-presidente de operações) vai afiar os chicotes nas costas da turma, exigindo o máximo de qualidade. Para nós, maravilha: vai rolar do bom e do melhor.
É claro que, nessas horas, vamos esquecer a cobertura patronal das greves, a segunda bomba que "sumiu" do Puma no Riocentro, o computador pedessista das eleições de 1982, a adesão de última hora à campanha das diretas-já! Vamos mais é mergulhar no torpor das horas televisivas e fazer na festa da Globo a mesma figuração que fazemos há 20 anos. Ela se exibe, nós deliramos. Ela mente, nos indignamos. Nós a olhamos, ela olha por nós. Às vezes queremos matá-la, mas geralmente vamos com ela para a cama.
Ah, essa gata de 20 anos! Rica, bonita, toda platinada e certinha. Uma garota moderna, chegada em consumo, moda, todo tipo de embalo de ocasião. Mas que cabeça conservadora... Nem podia ser diferente: o problema é de berço. A Globo é filha de americano, um supercapitalista internacional chamado Grupo Time-Life, que contraiu matrimônio com brasileira, as Organizações Globo do Rio de Janeiro. Isso foi em 1962 e a união resultou num grande escândalo, já que a lei impedia que estrangeiros desposassem empresas de comunicação nacionais.
Mas a história toda começou antes. Em 30 de dezembro de 1957, o presidente Juscelino Kubitschek concedeu ao jornalista Roberto Marinho, dono do matutino O Globo, o direito de exploração comercial do Canal 4 do Rio de Janeiro. Como era freqüente naqueles tempos, a concessão ficou no papel, cozinhando em fogo brando, à espera de perspectivas econômicas que viabilizassem a entrada da TV no ar.
Brasil: um mercado estratégico
Foi o que aconteceu em 1962. O Time-Life, assim como outros grupos americanos de comunicações, estava em plena fase de expansão internacional e vinha abrindo estações de TV pela América Latina.
Assim como fizera na Venezuela e na Argentina, queria entrar no Brasil, um mercado potencialmente enorme e estratégico para a política de esferas de influência. A porta que encontrou foi a de Roberto Marinho, depois de bater em O Estado de S. Paulo e nos Diários Associados.
O problema é que a Constituição brasileira, no seu artigo 160, impedia que empresas estrangeiras formassem sociedades com empresas nacionais no setor de comunicações, justamente para evitar a desnacionalização e a implantação de padrões culturais, como se diz hoje, "estranhos à boa índole de nossa gente". Quer dizer: para a Globo nascer, papai e mamãe tiveram de prevaricar, fazendo a coisa nas sombras. Através de uma série de expedientes, formaram a sociedade e foram lutar pelo reconhecimento legal.
Houve muita gritaria contra. O líder da oposição ao acordo foi o ex-governador Carlos Lacerda, que mesmo sendo amigo dos americanos, não se conformou com o jeito como as coisas foram feitas. "Não se trata", dizia ele à revista O Cruzeiro em 1966, "de uma nação os Estados Unidos tomar conta de outra o Brasil. Mas sim de um grupo americano, através de outro grupo brasileiro, controlar a economia nacional. Para isso, precisam de dois instrumentos: a influência no governo e o controle da opinião pública".
O primeiro a Globo e o Time-Life já tinham, o segundo iriam obter logo depois. Mesmo com uma violenta campanha que lhe foi movida pelo senador João Calmon (ligado ao grupo dos Diários Associados, concorrente de O Globo), e apesar de condenada por unanimidade na CPI da Infiltração do Capital Estrangeiro na Imprensa Brasileira, em setembro de 1966, a Globo ganhou a parada. Defendida pelo advogado Luís Gonzaga do Nascimento e Silva, que depois seria ministro da ditadura, conseguiu do presidente Castello Branco autorização para os contratos. Costa e Silva, posteriormente, ratificou a decisão.
Aprendendo com os americanos
Em 26 de abril de 1965, a Globo entrou no ar. Nos três anos que se passaram, desde a assinatura dos contratos, o Time-Life injetou na empresa não menos que US$ 5 milhões e todo um know how técnico, administrativo e comercial, incomparável com o das demais emissoras brasileiras da época. "No primeiro ano, trabalhamos nos moldes das coisas que havíamos aprendido com os americanos", diria em 1976 Herbert Fiúza, diretor da Central Globo de Engenharia, ao repórter Hamilton Almeida Filho. "A Globo era inspirada numa estação de Indianápolis (EUA), a WFBM. E o engenheiro de lá foi quem montou tudo, a gente não sabia de nada."
O resultado disso foi uma aceleradíssima modernização capitalista da empresa televisiva no Brasil. Até o advento da Globo, a televisão brasileira era pouco mais que uma exibidora de programas, já que a produção era totalmente dependente dos interesses e verbas dos anunciantes. Eram estes que decidiam o que iria para o ar, que contratavam elencos, que realizavam a produção. A TV era pouco mais que uma extensão de seus negócios publicitários. Mas, ao longo de seus primeiros anos, a menina Globo foi impondo, lenta e inexoravelmente, um outro padrão.
Segundo Luís Eduardo Potsch de Carvalho e Silva, autor de uma tese sobre o assunto, com a Globo, "a programação passa a ser definida em função do telespectador em primeiro lugar, como meio de ser posteriormente comercializada com os anunciantes". E não é só. "A comercialização muda o próprio conceito de produto: não é mais o programa em si que é vendido caso dos patrocínios tradicionais (...) ; ao contrário, passa-se a deixar claro que é o tempo comercial que está sendo comercializado. Na verdade, o que vende é a própria audiência (possibilidade de contato com o telespectador)."
Em 1969, com quatro anos, a Globo salda seus compromissos com o Time-Life e vira essa coisa tão nossa, tão brasileirinha. Aí ela já estava em condições de impor ao mercado brasileiro de TV o padrão de "rede nacional", a network da concepção americana, com produção centralizada e distribuição dos programas para todo o país. Entre 1969 e 1971, a Globo o consolida o domínio da audiência, que ainda hoje, quando já são quatro as redes nacionais de TV, lhe dá entre 50 e 70% dos telespectadores, com fatia correspondente no bolo publicitário das verbas para TV.
Claro que, para dar o "salto nacional", a Globo precisou de ajuda e não só do Time-Life. Um padrinho forte, que a ajudou sempre, foi o regime instaurado em 1964 (com amplo apoio de Roberto Marinho, aliás). Para realizar seu objetivo de "integração nacional" do país aos interesses do capital internacional e, ao mesmo tempo, para formar uma base de sustentação ideológica dessa política. O regime precisava de um porta-voz que chegasse a todo o território e vendesse as maravilhas do mundo ocidental, cristão e capitalista moderno. Esse porta-voz foi a Globo. Como o próprio Roberto Marinho admitiu, em entrevista à Veja em 1976, "procuramos fazer com que ela (Globo) seja, de fato, um poderoso instrumento de consolidação da unidade nacional". Naqueles termos, obviamente.
Uma adolescente comportada
Nessa época, o regime investiu maciçamente em eletrificação e em telecomunicações, criando uma estrutura física que viabilizou as redes nacionais de TV, via EMBRATEL. Entre elas, a Globo. Deu facilidades fiscais e aduaneiras para a importação de equipamentos, aplicou dinheiro como anunciante. Em contrapartida, exigiu fidelidade ideológica e apoio político, que a Globo nunca lhe negou. A menina de ouro foi adolescendo comportadamente, incapaz de uma rebeldia ou de um ato transgressivo de maior significado. Afinal, a concessão dos canais de televisão pelo governo é precária. É preciso garanti-la sempre.
Enfim o padrão de qualidade
Ao longo dos anos 70, quando vivemos aqui os anos de fogo da repressão, a Globo fez seu papel de voz oficiosa do regime. A partir de 1972, quando passou a contar também com o recurso da cor, para retocar a imagem horrenda de um país exposto à superexploração antinacional, a menina impôs nacionalmente seu asséptico e pasteurizado "padrão de qualidade". Ele correspondia perfeitamente à imagem que se queria criar de um país sob "milagre econômico", que florescia à taxa anual de 10% de crescimento, mas que concentrava dramaticamente a renda.
Para a Globo, era como se o crescimento econômico fosse realmente conquista do povo brasileiro, como um todo. Elogiando o regime, o que fazia explicitamente nos tele-jornais e deixava implícito no conjunto da programação, a Globo manteve quase invariavelmente uma postura não crítica, embriagada talvez com o seu próprio e inegável sucesso. Mesmo nas vezes em que foi censurada, quando o regime se excedeu em obscurantismo e burrice, não chegou a redefinir o seu "pacto de sangue". Mostrou alguma cara feia, mas engoliu o sapo e depois fez as pazes com a corte.
Não é por outra razão, portanto, que paralelamente ao seu enorme sucesso empresarial, a Globo tenha sempre convivido com uma impertinente, obstinada e crescente oposição. A Globo é hoje considerada a quarta rede de TV do mundo, em poder econômico e extensão física, perdendo apenas para as três grandes americanas (ABC, NBC e CBS). Isso poderia até ser motivo de orgulho para o chauvinismo verde-amarelo, mas a rede nunca conseguiu eliminar a desconfiança. E não faltaram episódios para demonstrar qual é o alinhamento básico da empresa Globo.
Os operários do ABC ainda se lembram das distorções que os tele-jornais da Globo fizeram sobre as notícias das greves, a partir de 1978. Eu mesmo, como repórter da TV Cultura, na época, testemunhei alguns episódios, em que os grevistas queriam virar peruas de reportagem da Globo, com a equipe dentro. Era um sufoco convencer a turba de que os jornalistas não ditavam a linha editorial da emissora, embora muitos deles fossem involuntariamente coniventes com ela.
É verdade, também, que aquele alinhamento incondicional com o discurso, a linguagem do regime, mudou significativamente com a abertura política do governo João Figueiredo. A oxigenação das liberdades públicas, que a liberalização permitiu, evidentemente estimulou mudanças ideológicas. Já não dava mais pé ficar naquela atitude de "Brasil pra frente, ame-o ou deixe-o". Assim, a já adolescente Globo desloca-se, progressiva e discretamente, para uma posição de "independência" do regime, mantendo-se entretanto fiel, nos momentos cruciais. Quer dizer: ela já se permite criticar o governo no varejo e dar trela à oposição, mas mantém o velho alinhamento no atacado.
Os exemplos, todos nós conhecemos muito bem, mesmo reconhecendo que, em alguns casos, o "engano" foi posteriormente admitido. Quando explode o Puma no Riocentro, a reportagem da Globo mostra o porta-malas do carro e ali se vê nitidamente uma outra bomba, que teria sido supostamente colocada com a que explodiu. Todo o Brasil vê a imagem no "Jornal Nacional", mas, na edição do dia seguinte, morre o assunto e some o vídeo-teipe. "Não houve segunda bomba", contam para nós.
A pantera abafa no jet-set
Depois, temos a malufada em cima da vitória de Leonel Brizola no Rio, em 1982, e a olímpica indiferença aos primeiros comicios-gigantes da campanha das diretas, seguida de uma suspeita guinada de 180 graus. Isso, apenas entre os grandes fatos, porque no cotidiano das omissões e falseamentos, já comemos milhares de gatos por lebres.
Pois é essa Rede Globo, menina linda e difícil, que chega agora aos 20 anos. Sem dúvida, é um belo partido. Empresa líder do setor de comunicações, com uma rede nacional de 48 emissoras (5 próprias e 43 afiliadas) e centenas de retransmissores, ela é vista diariamente em 3611 dos 3 991 municípios brasileiros, e também já encantou estrangeiros de 91 países, dos Estados Unidos à China, de Cuba à França. Uma legítima pantera brasileira, abafando no jet set internacional, depois de conquistar os corações da província.
Mas agora começam os anos da maturidade e as condições de seu reinado serão bem diferentes. O mercado de televisão transforma-se rapidamente, sob o impacto de duas novas redes nacionais (SBT e Manchete), da virtual explosão das produtoras independentes e da expansão progressiva do vídeo doméstico. Isso sem contar as perspectivas que se abrirão com o satélite brasileiro, a ser lançado este ano, e a possível implantação da TV por Assinatura (TVA), canais de UHF, num futuro próximo. Se quiser manter sua hegemonia no setor, ainda tranqüila, a Globo terá de mostrar-se competente em várias frentes novas de atividade.
No plano político, começa um novo período presidencial e, pela primeira vez, a Globo não vai saudá-lo na condição de preferida do governo. Não tanto porque Brasília a esteja traindo com outra, mas simplesmente porque, em período de transição, a melhor tática é flertar com todas. Além do mais, o que o público da Globo menos quer, hoje em dia, é vê-la puxando o saco do governo, seja ele qual for.
O telespectador prefere mesmo é que sua favorita dos últimos 20 anos seja cada vez mais atraente, mais espontânea e que, em caso de dúvida, fale a verdade. É só o que ele pede por sua fidelidade diária, para acender feliz a velinha dos 40.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Mar 1985