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Apresentação

SISTEMA GLOBAL E DEMOCRACIA

Apresentação

A interconexão e a interdependência entre Estados, desde que o comércio e a guerra, há quatro séculos, começaram a moldar o mundo europeu moderno, não são fenômenos novos. Mas os estudiosos das relações internacionais detectam uma mudança que ocorre desde o segundo pós-guerra. Se não se trata de algo antes desconhecido, as relações e a dependência mútua entre Estados, e também entre forças não-estatais operando em escada mundial, intensificaram-se dramaticamente. É essa qualidade nova, e seus resultados na política doméstica dos países e no sistema internacional, que importa avaliar. Lua Nova traz, a seguir, duas contribuições ao debate — de Yoshizaku Sakamoto e David Held - que procuraram sobretudo pensar o impacto dessa qualidade nova sobre algumas das categorias tradicionais do pensamento político e, especialmente no caso de Held, sobre a teoria (ou teorias) da democracia.

Em primeiro lugar está, é claro, a noção de soberania. A emergência de um sistema econômico global que escapa ao controle de qualquer Estado individual (mesmo dos mais poderosos); a expansão de redes de comunicação sobre as quais os Estados só têm um controle limitado; o enorme crescimento de organizações internacionais; e a interdependência no que se refere a questões de segurança, tudo isso teria tornado obsoleta a idéia de Estado soberano - e talvez mesmo de um sistema internacional constituído por Estados soberanos.

A questão é polêmica. Sakamoto parece não só admitir a obsolescência da noção de soberania para o mundo contemporâneo como também indaga, recuando no tempo, se teria havido algo assim como uma época dos "Estados-nações" mesmo na história da Europa moderna. A posição de Held a esse respeito é menos incisiva. Para ele não é a soberania em si mesma que se tornou obsoleta e sim uma determinada concepção de soberania: aquela que, desde Jean Bodin, a percebe como uma forma indivisível, ilimitada, exclusiva e perpétua de poder público.

A outra questão que os dois artigos enfrentam é a da relação entre a crescente interdependência global e a democracia. Tanto Sakamoto como Held pensam a globalização — para usar o termo que foi colocado em circulação — como uma mudança qualitativa que implica simultaneamente riscos enormes e uma inédita potencialidade de emergência de formas mais racionais e solidárias de convivência humana. Sakamoto vê um confronto fundamental perpassando todas as sociedades do planeta que envolve as "forças do desenvolvimento (econômico e tecnológico) desigual" e as forças políticas favoráveis à democratização. As primeiras levam nítida vantagem e buscam colocar sob seu controle os recursos finitos do planeta; as segundas, enquanto isso, ainda se expandem localmente, beneficiando-se do prestígio mundial das idéias democráticas. Como exprimiu de forma semelhante Norbert Lechner em artigo publicado em número anterior de Lua Nova ("A modernidade e a modernização são compatíveis?", Lua Nova nº 21), a modernidade (ou seja, as "forças favoráveis à democratização") sofre de um déficit institucional para enfrentar a dinâmica de modernização (ou seja, as "forças do desenvolvimento desigual").

Para David Held, a interdependência global coloca sérios desafios para as teorias da democracia. Tanto em suas versões "participacionistas" como na versão liberal-conservadora do "elitismo competitivo", a teoria democrática sempre teve por referência um demos nacional e processos decisórios cuja jurisdição limitava-se ao território do Estado-nação. No entanto, o aprofundamento da globalização retira do alcance de qualquer demos geograficamente delimitado inúmeras decisões tomadas por organizações transnacionais de todo tipo. Como estabelecer formas de accountability democrática sobre essas decisões e sobre essas organizações? O artigo de Held é uma tentativa, inicial ainda mas nem por isso pouco interessante, de suprir essa deficiência teórica.

Álvaro de Vita

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1991
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