Open-access O poder ideológico: Bobbio e os intelectuais

Ideological power: Bobbio and the intellectuals

Resumos

O artigo apresenta a reflexão de Norberto Bobbio sobre os intelectuais. Argumenta que a sua formulação do exercício do poder ideológico como atributo desses atores sociais segue quatro premissas associadas. A primeira diz respeito às conseqüências sociais dos diferentes legados do passado e da diversidade das estruturas sociais sobre a atuação possível dos intelectuais em cada sociedade. A segunda às relações entre cultura e política como eixo da análise dos intelectuais. A terceira à possibilidade de se forjar tipologias de intelectuais operativas da análise. E por último a questão da responsabilidade dos intelectuais - central na reflexão do autor. Após mostrar cada uma dessas premissas, procura-se recuperar a contribuição teórica de Bobbio para a análise dos intelectuais na sociedade brasileira.

Norberto Bobbio; Intelectuais; Poder Ideológico; Modernidade


The article presents the reflection of Norberto Bobbio on intellectuals. Bobbio's formulation of the exercise of the ideological power as an attribute of these social actors follows four associated premises. The first refers to the social consequences of the different legacies of the past and the diversity of the social structures on the possible performance of the intellectuals. The second refers to the relationships between culture and politics as the axis of the analysis of the intellectuals. The third points to the possibility of constructing typologies of intellectuals. Finally, the question of the responsibility of the intellectuals, one of Bobbio's central concerns. After presenting these premises, the article extends the theoretical contribution of Bobbio to the analysis of the intellectuals in the Brazilian society.

Norberto Bobbio; Intellectuals; Ideological Power; Modernity


O poder ideológico: Bobbio e os intelectuais

Ideological power: Bobbio and the intellectuals

André Botelho

Doutor em Ciências Sociais (Unicamp) pesquisador, como bolsista Pro-Doc (Capes), do Instituto de Filosofia e Ciências Socias da UFRJ

RESUMO

O artigo apresenta a reflexão de Norberto Bobbio sobre os intelectuais. Argumenta que a sua formulação do exercício do poder ideológico como atributo desses atores sociais segue quatro premissas associadas. A primeira diz respeito às conseqüências sociais dos diferentes legados do passado e da diversidade das estruturas sociais sobre a atuação possível dos intelectuais em cada sociedade. A segunda às relações entre cultura e política como eixo da análise dos intelectuais. A terceira à possibilidade de se forjar tipologias de intelectuais operativas da análise. E por último a questão da responsabilidade dos intelectuais – central na reflexão do autor. Após mostrar cada uma dessas premissas, procura-se recuperar a contribuição teórica de Bobbio para a análise dos intelectuais na sociedade brasileira.

Palavras-chave: Norberto Bobbio; Intelectuais; Poder Ideológico; Modernidade.

ABSTRACT

The article presents the reflection of Norberto Bobbio on intellectuals. Bobbio's formulation of the exercise of the ideological power as an attribute of these social actors follows four associated premises. The first refers to the social consequences of the different legacies of the past and the diversity of the social structures on the possible performance of the intellectuals. The second refers to the relationships between culture and politics as the axis of the analysis of the intellectuals. The third points to the possibility of constructing typologies of intellectuals. Finally, the question of the responsibility of the intellectuals, one of Bobbio's central concerns. After presenting these premises, the article extends the theoretical contribution of Bobbio to the analysis of the intellectuals in the Brazilian society.

Keywords: Norberto Bobbio; Intellectuals; Ideological Power; Modernity.

O destino de toda visão utópica está vinculado ao destino dos intelectuais, pois se em algum momento a utopia pode sentir-se em casa, é entre os pensadores independentes [...] Na medida em que estes já não existem, a visão utópica esmorece. (Russell Jacoby, "Os intelectuais: da utopia à miopia", 1999)

O recente desaparecimento do notável jurista e filósofo político italiano Norberto Bobbio (1909-2003) nos coloca, como observou Walquíria Leão Rêgo, diante do "velho problema debatido por séculos: é possível separar a pena da espada? No mundo em que vivemos ainda existe lugar para este tipo de homem de cultura que transpõe os muros da academia para falar aos seus concidadãos? Seu desaparecimento nos convida a repensar essas velhas questões e, mais ainda, a refletir sobre qual vida intelectual vale a pena ser vivida" (Rêgo, 2004, s.p.).1 Em sua atuação pública como intelectual, Norberto Bobbio encarnou com tal radicalidade suas próprias idéias sobre intelectuais que se pode falar dele como "verdadeiro tribuno republicano" cujas "intervenções contribuíam para aproximar as pessoas através do debate, ajudavam a refinar a sensibilidade política coletiva e introduziam densidade intelectual à esfera pública" na Itália (Rêgo, 2004, s.p.).

Não por acaso, os intelectuais constituem tema central da reflexão viva e das históricas batalhas de idéias travadas por Bobbio. E nelas, fez da dimensão ética o núcleo da problemática. Por isso, como reconhecia, o peculiar debate "entre intelectuais a respeito dos intelectuais, isto é, a respeito de si próprios, não têm trégua" (Bobbio, 1997, p. 7) e parece mesmo longe de qualquer consenso. Resumindo o argumento, tratam-se de posições divergentes sobre o problema se os intelectuais têm uma função específica e qual é ela, e sobre as várias atitudes que eles podem ou devem assumir na sociedade (Bastos; Rêgo, 1999). Mas também, dos vários modos pelos quais, ao longo da história, foram propostas soluções para o problema das relações entre razão e vontade, idéias e ações, compreensão e transformação do mundo, teoria e práxis. E também neste ponto, adverte Bobbio, o problema é perene, pois "se o homem de cultura participa da luta política com tanta intensidade que acaba por se colocar a serviço desta ou daquela ideologia, diz-se que ele trai sua missão de clérigo [...] Mas se, de outra parte, o homem de cultura põe-se acima do combate [al di sopra della mischia] para não trair e se 'desinteressar das paixões da cidade', diz-se que faz obra estéril, inútil, professoral" (Bobbio, 1997, pp. 21-2, grifo autor).

Se há um aspecto que possa ser considerado o mais próximo de um consenso no debate sobre intelectuais, este diz respeito ao fato de que as batalhas de idéias por eles travadas concorreram para o declínio do domínio exercido exclusivamente através de meios coercitivos tradicionais e, nesse passo, para dar forma ao mundo moderno. Justamente nesse movimento, em que se forjam como "grupo social diferenciado", os intelectuais emergem como "um concomitante da modernização" (Bendix, 1996, p. 386). E como notou um crítico (paradoxalmente) adversário dos intelectuais:

Pela primeira vez na história humana – e com uma arrogância e uma audácia crescentes –, os homens se diziam capazes de diagnosticar os males da sociedade e curá-los com sua inteligência auto-suficiente; mais: diziam ser capazes de traçar um plano pelo qual não apenas a estrutura social, mas os hábitos básicos do ser humano podiam ser transformados para melhor. Ao contrário de seus antecessores sacerdotais, eles não eram servos nem intérpretes dos deuses; eram seus substitutos. O herói deles era Prometeu, que roubou o fogo celestial e o trouxe para a Terra. (Johnson, 1990, p. 11)

Para Norberto Bobbio é justamente o exercício do que chama de "poder ideológico" nas sociedades que caracteriza os intelectuais. Existe nas sociedades, argumenta, "ao lado do poder econômico e do poder político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens materiais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder econômico, mas sobre as mentes pela produção e transmissão de idéias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra" (Bobbio, 1997, p. 11).

Nos numerosos e diferentes trabalhos dedicados por Bobbio ao tema, em geral produzidos para intervenção em debates intelectuais e políticos imediatos, a problemática do exercício do poder ideológico pelos intelectuais assume contornos mais precisos. O objetivo das presentes notas é somente explicitar, em linhas muito gerais, a delimitação desta problemática formulada por Bobbio.2 Daí a opção, no plano da narrativa, pelas transcrições literais e, em alguns casos, relativamente longas de excertos dos textos do próprio Bobbio. Recorrendo a três trabalhos emblemáticos do conjunto da sua reflexão, argumento que a delimitação do exercício do poder ideológico pelos intelectuais segue quatro premissas teóricas associadas, mas que podem ser consideradas separadamente para efeitos analíticos.

A primeira delas diz respeito às conseqüências decorrentes tanto dos diferentes legados sociais do passado quanto da diversidade das estruturas sociais para a compreensão das atuações possíveis dos intelectuais em cada sociedade, expressa na sua afirmação de que toda "sociedade tem os intelectuais que lhe convêm" (Bobbio, 1999, p. 157). A segunda premissa refere-se às relações entre cultura e política como eixo temático da análise dos intelectuais. A terceira refere-se à possibilidade e à validade de se forjar tipologias de intelectuais operativas da análise. E por último a questão central da reflexão de Bobbio sobre os intelectuais: a responsabilidade desses atores sociais.

INTELECTUAIS E SOCIEDADE

A relação entre o protagonismo dos intelectuais e as condições sociais próprias de cada sociedade aparece com a força das sínteses no texto "Intelectuais e vida política na Itália", originalmente publicado em Nuovi Argomenti, n. 7, marzo-aprile, 1954, e posteriormente, mais precisamente em 1955, reunido em Politica e cultura (Bastos; Rêgo, 1999). Nele, fazendo o balanço das relações entre intelectuais e vida política na Itália, Norberto Bobbio "estranhava" o grande número de revistas "militantes" que circulavam pelo país e chamava a atenção para a "influência invisível a olho nu" por elas exercida a tal ponto tanto sobre a "opinião pública" quanto sobre a "política ordinária" que se poderia mesmo falar em "partidos de revistas". (Bobbio, 1999, p. 150-1) O problema, contudo, aponta Bobbio, é que como

a política, em um estado democrático, se faz com os partidos e não com as revistas (eventualmente, com as 'revistas de partido'), e os intelectuais fazem revistas e não partidos [...] eles não atingem a realidade política ou pelo menos de maneira muito mais exígua do que deixaria supor aquela exuberância de escritos, ora fortes, ora pungentes, aquela ebulição de idéias, aquela lucidez de análise, aquela sucessão de manifestos, proclamas e protestos que impressiona o observador imparcial das coisas do nosso país. (Bobbio, 1999, p. 151)

De modo que, na "pior das hipóteses, essa elite intelectual alheia aos partidos forma a opinião dos intelectuais que – nas competições democráticas, em que os resultados políticos dependem dos milhões que votam e não de cem que escrevem e de mil que lêem – permanece sem um peso decisivo e talvez não sirva para nada" (Bobbio, 1999, p. 151).

Não era exatamente essa, contudo, em seu juízo, a situação da Itália. Argumentando que é sinal "de mau funcionamento do organismo social que os intelectuais constituam ou pensem formar uma classe à parte, separada das classes sociais ou econômicas, e se atribuam portanto uma tarefa singular e extraordinária" (Bobbio, 1999, p. 151), Bobbio compara o protagonismo dos intelectuais em "sociedades funcionais", como a inglesa, e "não-funcionais", como a italiana, a espanhola e a alemã e conclui que no primeiro caso, no das "sociedades funcionais", "o problema sequer se põe" (Bobbio, 1999, p. 151). Para ilustrar a situação, recorre à pesquisa de opinião promovida por Occidente sobre a relação entre intelectuais e classe política nos vários países europeus, destacando que "o articulista inglês não deu nenhuma importância ao fato de que existam, na Inglaterra, intelectuais que acreditam constituir um grupo na sociedade: são considerados extravagantes, esnobes ou vadios e ninguém os confundiria com os intelectuais sérios, cuja atividade como professores, críticos, literários e artistas não constitui razão suficiente para dar-lhes uma qualificação política excepcional" (Bobbio, 1999, p. 151-2).

Já na segunda situação, a das "sociedades não-funcionais", argumenta Bobbio, "as várias partes, em vez de ordenar-se para um fim, desarticulam-se; em vez de harmonizar-se, chocam-se umas contra as outras; decompõem-se e se recompõem de várias maneiras (Bobbio, 1999, p. 152). É deste "jogo de composição e descomposição", sugere o autor, que "nasce, sobressaindo-se como um corpo novo, benéfico ou intruso que seja, a classe dos homens de cultura, com características próprias, com pretensões a guias ou formadores de consciência, educadores políticos ou mesmo protagonistas da história" (Bobbio, 1999, p. 152).

Caracterizadas por um "estado de contínua formação", são dois os "momentos típicos" nos quais, nas "sociedades não-funcionais", as "minorias intelectuais" assumem uma "tarefa política": "O primeiro momento é a preparação ideológica do processo de transformação" - cujo exemplo são os philosophes do Settecento em relação à Revolução Francesa, ou a intelligentsia russa em relação à Revolução de 1917 (Bobbio, 1999, p. 153-4). O segundo momento é o do "processo revolucionário em ação", no qual os "intelectuais passam de promotores de idéias a guias da renovação em curso" – cujo exemplo é a atuação das minorias intelectuais na Resistência (Bobbio, 1999, p. 155). O primeiro desses momentos típicos, como observa Elide Rugai Bastos, possui um "sentido ético e pedagógico; antes um sentido de exemplo moral do que de ação diretamente política" (Bastos, 2003, p. 171). Ao passo que o segundo, o "momento do processo revolucionário em ato", corresponde à passagem "da etapa da consciência moral à ação, caminho fundado na crença de que o pensamento não seguido de ação é estéril" (Bastos, 2003, p. 171).

CULTURA E POLÍTICA

Como se vê, já na delimitação dos condicionantes sociais do protagonismo possível dos intelectuais, são as relações entre cultura e política que ganham o primeiro plano do interesse do autor. No que diz respeito a essas relações, Norberto Bobbio afirma que elas constituem apenas uma das formas possíveis de se colocar o problema dos intelectuais, derivando delas exatamente as diferentes possibilidades de definição do próprio intelectual. A proposição está formulada em "Intelectuais e poder", discurso proferido na abertura do seminário "Os partidos e a cultura na Itália", promovido pela seção cultural do Partido Socialista Italiano e pelo Club Turati, realizado em 28-29 de outubro de 1977, e posteriormente publicado em Mondoperario, revista mensal daquele partido (Bobbio, 1997, p. 18).

Assumindo que a intenção do seu discurso não diz respeito nem à sociologia nem à história dos intelectuais em termos estritos – as duas perspectivas analíticas mais freqüentes sobre o tema –, Bobbio propõe uma delimitação "ética" para seu discurso, já que seu objetivo é claramente normativo: "Nosso problema não é o de saber se os intelectuais são rebeldes ou conformistas, livres ou servis, independentes ou dependentes, mas de trocarmos algumas idéias sobre o que os intelectuais que se reconhecem em uma determinada parte política fariam ou deveriam fazer" (Bobbio, 1997, pp. 69-70). Todavia, adverte o autor, não se trata de uma operação retórica conveniente para que possa exercer sua "opinião" livre de constrangimentos teóricos e metodológicos:

Bem entendido: ninguém pensa em fazer um discurso programático sem conhecer a realidade dos fatos. Seria um programa insensato. Mas este conhecimento deve ser mesmo um conhecimento e não uma coleção de juízos sumários, quase sempre fundados sobre falsas generalizações do tipo 'os intelectuais são...', 'os intelectuais dizem ...', as falsas generalizações são armas polêmicas, não são instrumentos de conhecimento, pois são os efeitos dos juízos de valor introduzidos de contrabando. (Bobbio, 1997, p. 70)

Trata-se, então, de assimilar o "poder ideológico", ou a "força não-política", isto é, a "força moral" dos intelectuais à lógica particular da política? Não exatamente. Pois, como sugere Bobbio, cultura e política correspondem a esferas de pensamento e de ação interdependentes mas autônomas que coexistem de formas variadas em todas as sociedades. É nesse sentido que discute a proposição de uma autonomia relativa da cultura com respeito à política:

Falando de autonomia relativa da cultura, pretendo dizer que a cultura (no sentido mais amplo, isto é, no sentido da esfera em que se formam as ideologias e se produzem os conhecimentos) não pode nem deve ser reduzida integralmente à esfera do político. A redução de todas as esferas em que se desenrola a vida do homem em sociedade à política, ou seja, a politicização integral do homem, o desaparecimento de qualquer diferença entre o político e – como se diz hoje – o pessoal, é a quintessência do totalitarismo. Não se trata de rejeitar a política (é aquilo que chamei de não-indiferença), mas se trata de não exaltá-la a ponto de cantar: 'Certa ou errada é sempre a minha pátria' ou, o que dá no mesmo, 'Certo ou errado é sempre o meu partido' (ou, pior ainda, a minha seita). Não vejo nenhuma diferença entre dizer 'Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado' e dizer 'Tudo no partido, nada fora do partido, nada contra o partido.' (Bobbio, 1997, p. 80)

Advertindo que, pessoalmente, já esteja "saturado" da expressão "política e cultura", o autor afirma que "na grande torta da teoria dos intelectuais", a sua fatia é a "da política dos intelectuais, ou a dos intelectuais na política, aquela que é provada e depois comida e digerida sob o nome de 'política e cultura'" (Bobbio, 1997, p. 70). Embora enfatize que no âmbito da teoria dos intelectuais, a relação entre cultura e política represente senão uma parte, um tema específico, aponta para os motivos que, a seu ver, acabam por fazer com que seja freqüentemente tomada e confundida com o todo: "Observando-se bem, ele nada mais é do que um aspecto do tema mais vasto da relação entre teoria e práxis ou, nos termos do materialismo histórico, entre estrutura e superestrutura, ou mais geral e em forma mais genérica, entre o mundo das idéias e o mundo das ações" (Bobbio, 1997, p. 70). Porque é um aspecto de um tema muito mais vasto, observa, "também é, além de imenso, bastante difícil. Tenho a impressão de que nem todos aqueles que falam do problema dos intelectuais e da sua função na sociedade se dão bem conta dessa dificuldade" (Bobbio, 1997, p. 70).

Como no caso da primeira premissa teórica condicionante do exercício do poder ideológico, isto é, a relativa às conseqüências tanto dos diferentes legados sociais do passado quanto da diversidade das estruturas sociais, também no caso das relações entre cultura e política as relações são historicamente cambiantes. Quer dizer, também as relações entre o poder ideológico e os demais poderes, econômico e político, por exemplo, são cambiantes de sociedade a sociedade, de época a época, de conjuntura a conjuntura e de intelectual a intelectual. A própria natureza dessas relações é mutável: "ora de contraposição, ora de aliança" (Bobbio, 1997, p. 11). O imprescindível é, segundo Bobbio, reconhecer que assim "como o meio do poder político é sempre em última instância a posse de armas e o meio de poder econômico é a acumulação de bens materiais, o principal meio do poder ideológico é a palavra, ou melhor, a expressão de idéias por meio da palavra, e com a palavra, agora e sempre mais, a imagem" (Bobbio, 1997, p. 12).

IDEÓLOGOS E EXPERTOS

As relações entre poder ideológico e poder político são ilustrativas das ambigüidades inerentes às recorrentes tentativas de definição a priori do intelectual. Nesse sentido, tampouco as tipologias seriam sempre esclarecedoras, embora possam ser úteis, argumenta Bobbio ainda em "Intelectuais e poder". É nele que, partindo da tese da autonomia relativa da cultura com respeito à política nos termos acima expostos, Bobbio delimita os sujeitos do seu discurso: os intelectuais que desempenham os papéis de "criadores ou transmissores de idéias ou conhecimentos politicamente relevantes" (Bobbio, 1997, p. 72). Forja essa tipologia convencido de que as acepções tradicionais do intelectual não seriam operativas na análise das relações entre cultura e política: nem a definição ampla na qual o intelectual é contraposto a todo aquele que executa qualquer forma de trabalho manual, nem a definição restrita, que compreende apenas os "grandes intelectuais" ou maîtres penseurs. Nesse sentido, lembrando que todas as definições são convencionais, propõe uma definição "nova" e "intermediária" às tradicionais: "em um debate que tenha por tema fundamental a relação entre política e cultura, os tipos relevantes de intelectuais são sobretudo dois: que denomino, para que possamos nos entender, ideólogos e expertos" (Bobbio, 1997, p. 71-2).

Mesmo que possa existir "um certo parentesco" entre o "ideólogo" e o "intelectual tradicional" e entre o "experto" e o "intelectual orgânico", "e mesmo que freqüentemente o ideólogo seja um humanista e o experto seja um técnico", Bobbio adverte que a sua distinção não corresponde à proposta por Antonio Gramsci entre intelectuais "orgânicos" e "tradicionais" (Gramsci, 2000), pois o critério que toma por base para propô-la não seria nem a "dependência ou a independência com respeito às classes sociais em luta pelo predomínio", nem a "diversa formação ou competência" em termos de culturas humanista e técnica (Bobbio, 1977, p. 72). Nesse sentido, Bobbio propõe como critério de distinção entre seus tipos, aquele que, a seu ver, constituiria o único critério válido em um debate que tenha por objeto a tarefa política do intelectual: "a diversa tarefa que desempenham como criadores ou transmissores de idéias ou conhecimentos politicamente relevantes, é a diversa função que eles são chamados a desempenhar no contexto político" (Bobbio, 1997, p. 72).

Trata-se, entretanto, de uma distinção que remete aos "tipos ideais" weberianos, mais precisamente, a distinção entre ideólogos e expertos pretende repor a distinção weberiana entre "ações racionais segundo o valor" e "ações racionais segundo o fim" (Bobbio, 1997, p. 73). Nesse sentido, entendendo por "ideólogos", aqueles "que fornecem princípios-guia", e por "expertos", aqueles que "fornecem conhecimentos-meio" (Bobbio, 1997, p. 73), argumenta Bobbio:

Os ideólogos são aqueles que elaboram os princípios com base nos quais uma ação é justificada e, portanto, aceita – em sentido forte, a ação é "legitimada" –, pelo fato de estar conforme os valores acolhidos como guia da ação; os expertos são aqueles que, indicando os conhecimentos mais adequados para o alcance de um determinado fim, fazem com que a ação que a ele se conforma possa ser chamada de racional segundo o objetivo [...] quem, levando em conta todas as informações que os expertos podem oferecer, escolhe esse meio e não um outro realiza uma ação racional com respeito ao objetivo. (Bobbio, 1997, p. 73-4)

Nesse ponto, percebe-se que o protagonismo possível dos intelectuais está condicionado não apenas pelas suas respectivas sociedades, e pelas relações cambiantes que nelas se estabelecem entre as esferas da política e da cultura nas diferentes conjunturas históricas de que também é feita a vida das sociedades, como também pelas tarefas específicas a que eles são chamados a desempenhar nesse processo. São essas tarefas que a distinção típico-ideal de Bobbio entre intelectuais "ideólogos" e "expertos" quer significar. Entre outras possibilidades teóricas, a distinção permite decompor o processo de criação e transmissão de idéias, o que justifica a recuperação de intelectuais e produções culturais geralmente negligenciados a plano secundário de análise, mas que, dessa perspectiva, acabam por desempenhar papéis sociais os mais relevantes como transmissores de idéias na formação do que poder-se-ia designar de cultura política.3

E ao qualificar os intelectuais em função do sentido político assumido pelas suas idéias no processo histórico-social, a distinção de Bobbio permite também problematizar a perspectiva segundo a qual as idéias de um autor decorrem necessária e imediatamente da sua condição social e/ou inscrição institucional. Mesmo porque, poder-se-ia argumentar, a equação entre idéias e práticas institucionais não é exata, isto é, não constituem – adaptando aqui os argumentos de Bendix sobre mudança social para meus propósitos – variáveis sistêmicas interligadas e prontamente generalizáveis independentes da "seqüência histórica" das sociedades (Bendix, 1996, p. 351). Nesse sentido, e ainda de modo congruente às sugestões de Bobbio, é possível dizer que tanto o "trabalho do intelectual, independentemente das suas convicções, ou intenções explícitas, entra na história das lutas sociais, arranjos do poder" (Ianni, 1989, p. 77), quanto as ações políticas não são, empiricamente consideradas, "sempre genuinamente motivadas pelos princípios usados para racionalizá-las" (Skinner, 1999, p. 85).

ENGAJAMENTO E RESPONSABILIDADE

Com isso chegamos ao núcleo das preocupações de Norberto Bobbio a respeito do exercício do poder ideológico: a questão da responsabilidade dos intelectuais. É ela, poder-se-ia argumentar, o verdadeiro motivo, como aquilo que põe em movimento, da sua reflexão sobre a problemática. E como tal, encontra-se presente e dispersa pelo conjunto da sua obra. Também neste caso, no entanto, é possível destacar um texto emblemático onde a formulação da questão da responsabilidade dos intelectuais ganha o primeiro plano da reflexão e exposição: "Da presença da cultura e da responsabilidade dos intelectuais". Trata-se, mais uma vez, de discurso, desta feita proferido na XIV Assembléia Geral da Sociedade Européia de Cultura, realizada em Siena entre 20 e 23 de outubro de 1978 e publicado em Studi Senesi e Comprendre. Revue de la politique de la culture, respectivamente, em 1978 e 1980 (Bobbio, 1997, p. 19).

Nele, Norberto Bobbio parte mais uma vez da constatação de que a "melhor prova da presença da cultura na sociedade contemporânea é o debate, muitas vezes áspero, sempre vivo e atualíssimo, sobre a tarefa e a responsabilidade dos intelectuais" (Bobbio, 1997, p. 91). Constata também a radical alteração das dimensões da problemática das relações entre os intelectuais e a política, problemática sempre renovada toda "vez que a cena política é atravessada por uma ação que sai fora dos esquemas habituais" (Bobbio, 1997, p. 92), em função da multiplicação dos meios de comunicação, e dos públicos por eles atingidos, de que os intelectuais dispõem na sociedade contemporânea "para exercer o poder que lhes é próprio – o poder ideológico" (Bobbio, 1997, p. 95). Sugere o autor:

Os meios com os quais os intelectuais podem tornar conhecidas e fazer valer as suas próprias idéias (se as têm ou mesmo se não as têm) são enormes. Nenhuma comparação possível entre o tempo em que Sócrates se entretinha com os amigos, os discípulos ou os alunos, em um diálogo íntimo, e o nosso tempo, no qual um artigo publicado em qualquer jornal pode ser lido imediatamente por milhares de pessoas ou uma aparição na televisão pode ser vista por milhões. Nosso auditório dilatou-se desmesuradamente. De limitado a uma região, a um território, a uma cidade, tornou-se nacional [...] De nacional, torna-se, em alguns casos, quase internacional, graças à rapidez das traduções e à rapidez das comunicações. (Bobbio, 1997, p. 93-4)

Assim, embora a questão seja perene, constituindo tema central da filosofia política, Bobbio considera que o crescimento dos meios de exercício e dos públicos atingidos pelo poder ideológico nas sociedades contemporâneas exige o aumento da responsabilidade daqueles que o exercem, quer dizer, dos intelectuais. Afinal, como adverte, não apenas o poder político, mas também o poder ideológico, contêm potencialmente o que chama de "vulto demoníaco", cujos "efeitos perversos" podem manifestar-se livremente caso o poder ideológico, como nas demais formas de poder, não "estiver controlado e limitado" (Bobbio, 1997, p. 96). No texto em foco, Bobbio argumenta serem dois os aspectos fundamentais do problema da relação entre poder e responsabilidade: o primeiro diz respeito ao "conceito de responsabilidade como dever de calcular, antes de agir, as conseqüências das próprias ações" (Bobbio, 1997, p. 96). Recorrendo mais uma vez a Max Weber e a sua distinção entre "ética da convicção" e "ética da responsabilidade", Bobbio argumenta que não há uma resposta unívoca à pergunta se "o intelectual age com base na ética da pura intenção ou com base na ética da responsabilidade" (Bobbio, 1997, p. 97).

Reivindica então a validade da sua própria distinção típico-ideal entre intelectuais ideólogos – "aqueles que fornecem princípios-guia (precisamente as ideologias) aos detentores do poder político atual ou potencial" – e expertos – "aqueles que fornecem conhecimentos técnicos" (Bobbio, 1997, p. 97) –, para especificar o problema da responsabilidade dos intelectuais. Sugere nesse sentido que cada tipo de intelectual obedece – ou deve obedecer – a uma ética diversa: "os ideólogos à ética da convicção, os expertos à ética da responsabilidade" (Bobbio, 1997, p. 97). Remetendo o leitor ao seu texto "Intelectuais e poder", já anteriormente exposto, sugere Bobbio:

Dizia então: "O dever dos primeiros [ideólogos] é o de serem fiéis a certos princípios, custe o que custar; o dever dos segundos é o de propor meios adequados ao fim e, portanto, de levar em conta as conseqüências que podem derivar dos meios propostos". Com isso não está dito que os primeiros não tenham também eles a sua responsabilidade; mas é uma responsabilidade diversa. É uma responsabilidade com respeito à pureza dos princípios, não às conseqüências que podem derivar dos princípios. (Bobbio, 1997, p. 97)

Por isso, não apenas do ponto de vista ético, mas também analítico, seria mais apropriado falar em "responsabilidade" do que em "engajamento" dos intelectuais. Considerando o tema do engajamento como um "falso problema", Bobbio argumenta que mais do que o engajamento em si, o que conta é a "causa pela qual alguém se engaja" (Bobbio, 1997, p. 100). Para o autor, "importa não que o homem de cultura se engaje ou não se engaje, mas por que coisa ele se engaja ou não se engaja e de que modo ele se engaja, assumindo todas as responsabilidades da sua escolha e das conseqüências que dela derivam" (Bobbio, 1997, p. 100).4 Para ilustrar o argumento, lembra do grande debate que teve lugar na Europa após a Segunda Guerra Mundial sobre o engajamento dos intelectuais. Observa que "terminado o período de desonra, em que o homem de cultura oscilara entre a subordinação e a evasão, abria-se uma nova era de profundas transformações sociais na qual o homem de cultura deveria escolher o seu lado" (Bobbio, 1997, p. 99). Mas pergunta Bobbio: "qual lado? A teoria do engajamento jamais conseguiu dar uma resposta precisa a essa pergunta" (Bobbio, 1997, p. 99). E argumenta:

Não a deu porque não podia dá-la. Engajar-se quer dizer pura e simplesmente tomar partido. Mas todos os partidos são igualmente bons? Sempre me perturbou a constatação de que os defensores do homem de cultura engajado não exaltavam o engajamento como tal (uma postura desse gênero teria sido uma bobagem), mas o engajamento mais por um lado do que por outro, engajamento este que, desde que fosse em favor do lado que considerava justo, também poderia ser um engajamento total. Mas o engajamento total por um partido é compatível com a tarefa, repito a palavra que me importa com a responsabilidade do homem de cultura? Na realidade, não estava em jogo uma contraposição entre engajamento e não-engajamento, mas uma contraposição entre engajamento e engajamento. Mas nessa contraposição a teoria perdia toda a validade e acabava por destruir aquilo que queria construir, isto é, a figura do novo intelectual não-subordinado. O engajamento total era, diga-se o que se disser, uma nova forma de subordinação, um outro modo de abdicar da própria tarefa. (Bobbio, 1997, p. 99)

Associado, mas diferente deste primeiro aspecto do problema da responsabilidade, isto é, o relativo à "consciência das conseqüências da própria ação", o segundo aspecto apontado por Bobbio diz respeito ao fato de que "devemos nos preocupar com as conseqüências das nossas ações porque devemos responder a alguém. A quem?" (Bobbio, 1997, p. 103). Contrastando responsabilidade à irresponsabilidade dos detentores do poder, Bobbio observa que se a segunda constitui traço característico de um "governo autocrático", a primeira constitui, "ao menos teoricamente", um princípio imperativo da democracia: afinal, na democracia "ninguém é – ou deveria ser – irresponsável. Nesse sentido, falar de responsabilidade dos intelectuais significa que também eles, como todos os demais, devem responder a alguém" (Bobbio, 1997, p. 103). Trata-se, como o Autor enfatiza, da "responsabilidade política dos intelectuais, ou, se preferirem, da responsabilidade do intelectual com respeito à esfera da política em que vive ou da qual é, querendo ou não, uma parte" (Bobbio, 1997, p. 103).

Assim, se o exercício do poder ideológico caracteriza a especificidade dos intelectuais nas sociedades e, como visto, está em vários sentidos suscetível a condicionantes de ordens diversas, todos eles, inclusive, sujeitos às mais variadas possibilidades de combinação, o tema da responsabilidade dos intelectuais adverte sobre o lugar necessário não apenas do indivíduo mas propriamente das escolhas com sentido político nesse processo.

O enfrentamento do problema da responsabilidade dos intelectuais enquanto detentores do "poder ideológico" remete Norberto Bobbio mais uma vez para a problemática mais ampla das relações entre cultura e política, já tratadas anteriormente. Em "Da presença da cultura e da responsabilidade dos intelectuais", contudo, recuperando o próprio ideal da Sociedade Européia de Cultura, a cujos membros o texto fora originalmente apresentado como conferência em 1984, Norberto Bobbio sintetiza a problemática naquilo que chama de "fórmula da política da cultura" (Bobbio, 1997, p. 103, grifo autor). Por ela, esclarece, dever-se-ia entender principalmente duas coisas: em primeiro lugar que "a cultura não deve ser apolítica", mas em segundo que a "sua política não é a política tout court, aquela que nós chamamos habitualmente de política ordinária"; trata-se, assim, noutras palavras, de uma "política própria da cultura, que não coincide, não deve coincidir, com a política dos políticos" (Bobbio, 1997, p. 103, grifo autor).

O que Bobbio designa de "política da cultura" refere-se, então, precisamente a um modo específico de entender a política e de delimitar as esferas da política e da cultura e, portanto, de entender também o próprio papel social dos intelectuais. Em suas palavras, a idéia de "política da cultura" refere-se justamente à "dimensão política da cultura como tal, independente do diverso modo pelo qual o intelectual estabelece uma relação com o poder político" (Bobbio, 1997, p. 105). Isto é, quando "falo de uma dimensão política da cultura pretendo falar de uma política diversa da política dos políticos [...] de uma ação que, porém, entra em uma concepção ampla da política, entendida como atividade dedicada à formação e à transformação da vida dos homens" (Bobbio, 1997, p. 105).

Reconhecer que política e cultura constituem esferas sociais distintas e, portanto, configuram problemáticas também distintas, não implica todavia, para Bobbio, como já foi visto anteriormente, em concebê-las e tratá-las como esferas totalmente autônomas entre si. Ao contrário, sugerir uma "autonomia relativa da cultura" não significa, enfatiza Bobbio, "de modo algum que cultura e política não se encontrem; quer dizer que se encontram e quase se identificam em alguns momentos particularmente dramáticos da história, como são os períodos revolucionários, mas seguem cada uma a sua própria estrada – e é bom que assim seja – em momentos de lenta, longa e incerta transição" (Bobbio, 1997, p. 105-6, grifo autor).

Se do ponto de vista teórico essa pode ser considerada uma das principais contribuições de Norberto Bobbio para o tratamento da problemática envolvida no tema dos intelectuais, é forçoso reconhecer que o argumento relativo à "política da cultura" funda-se, em Bobbio, na convicção da simbiose entre os destinos dos intelectuais e da utopia. Convicção expressa na afirmação de que, afinal, não existe apenas "a política dos políticos", pois se assim o fosse não haveria lugar para "os grandes debates de idéias, para o momento da utopia (aqui entendida no sentido mais lato de reflexão sobre os problemas da convivência não imediatamente práticos, embora praticáveis), que todavia contribui para mudar o mundo (e não só para compreendê-lo e interpretá-lo), ainda que em tempos mais longos, em prazos que escapam a quem vive no e para o cotidiano" (Bobbio, 1997, p. 105-). A utopia está assim, na reflexão de Norberto Bobbio, diretamente vinculada aos intelectuais e sua atuação no espaço público das sociedades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode, então, parecer suspeito retomar as provocativas sugestões sobre o exercício do poder ideológico de Bobbio num contexto que, como o contemporâneo, parece marcado (para alguns) pela dramática pulverização não mais apenas de certezas tradicionais, mas dos próprios valores e práticas sociais associados à constelação política da sociedade moderna (Beck, 1999). Suspeito, de um lado, porque o presente parece marcado pelo declínio público dos intelectuais face aos "institucionalizados" da universidade – "especialistas rigorosos" ou não, no sentido weberiano da expressão (Weber, 1982, p. 10).5 De outro, porque como os "padrões universais são cada vez mais contestados como instrumentos de um Ocidente imperialista" (Jacoby, 2001, p. 151), os intelectuais já não parecem mais poder "intervir em questões públicas em nome de algo universal; as únicas possibilidades são 'locais' e 'defensivas'" (Jacoby, 2001, p. 155). Processo em meio ao qual, inclusive, ao contrário do que ocorria no passado recente quando "eram marginais que queriam se integrar", os intelectuais aparecem hoje como "integrados que se fingem de marginais – uma alegação que só pode ser sustentada transformando a marginalidade numa pose" (Jacoby, 2001, p. 153). E como esse contexto de pulverização se tem feito acompanhar da especialização e fragmentação do próprio conhecimento sobre o social, a retomada da discussão sobre intelectuais tem aparecido na melhor das hipóteses como "capricho de intelectuais à moda antiga", ou "sobrevivência ilegítima de hegelianos ou marxistas clandestinos que apostam seu poder simbólico na reconstrução de alguma totalidade determinada", como observou recentemente uma crítica (Sarlo, 2000, p. 177).

Seja como for, retomar as sugestões de Norberto Bobbio sobre o exercício do poder ideológico na sociedade moderna aqui rudimentarmente esboçadas assume pertinência particularmente relevante para pensar o caso brasileiro. Há alguns motivos para isso. Destaco dois deles. Em primeiro lugar, porque, se toda "sociedade tem os intelectuais que lhe convêm" (Bobbio, 1999, p. 157), o tema do exercício do poder ideológico se impõe não apenas em si mesmo, mas como elemento necessário para a apreensão e compreensão das relações e processos sociais e políticos mais amplos nos quais os intelectuais se inserem. Ainda mais numa sociedade como a brasileira, onde "palpita a vocação dirigente que a circunstância infeliz do 'atraso' histórico cedo ou tarde desperta nos intelectuais" (Arantes, 1992, p. 161), a pesquisa do protagonismo social desses atores é condição para a compreensão da formação e da estrutura da sociedade (Brandão, 2001; Bastos, 2002; Botelho, 2002).

Em segundo lugar, porque se estamos passando por um generalizado "declínio" público dos intelectuais, o sentido assumido por esse processo na sociedade brasileira contemporânea parece explicitar seu caráter contraditório e até mesmo perverso, já que na medida em que a democratização avançava nas últimas décadas, as alianças estabelecidas entre setores da intelectualidade com o chamado mundo subalterno pareciam se afrouxar, concorrendo para tornar mais estreita e indiscriminada a esfera pública e a participação democrática ainda mais reduzida (Viana, 1997; Lahuerta, 2001; Nogueira, 2001). Ainda neste caso, entretanto, as disputas acerca das "relações entre os intelectuais e o povo" são aqui, como em todas as partes, "disputas entre intelectuais" (Altaminaro, 1999, p. 314).

Assim, e sobretudo se confrontadas comparativamente à outras perspectivas teóricas e experiências históricas, as sugestões de Norberto Bobbio podem mostrar-se fecundas para pensar o exercício do poder ideológico numa sociedade que, como a brasileira, marcada por um processo de formação antidemocrático recorrentemente atualizado por escolhas políticas igualmente antidemocráticas (Reis, 1998), não apenas suscitou e delegou muito às suas minorias ativas e problemáticas como também circunscreveu-lhes as veleidades e/ou possibilidades efetivas de atuação social. Lembrando que a sobrevivência das estruturas e atitudes sociais às condições específicas que as criaram é mais comum do que em geral o contraste hostil e a caracterização disjuntiva entre tradição e modernidade têm permitido perceber (Bendix, 1996), a avaliação da especificidade desse legado histórico do protagonismo dos intelectuais brasileiros continua sendo condição para a compreensão tanto das potencialidades do presente, quanto das perspectivas de futuro da sociedade. Nesse sentido, quem sabe se, como queria o próprio Norberto Bobbio, suas idéias também não possam nos auxiliar no enfrentamento de um desafio fundamental envolvido no debate sobre intelectuais: "o de dar sua própria contribuição ao advento de uma sociedade na qual a distinção entre intelectuais e não-intelectuais não tenha mais razão de ser. Esse é o problema" (Bobbio, 1997, p. 108, grifo do autor).

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  • 1
    Prossegue Leão Rêgo: "Podemos discordar de Norberto Bobbio, filosófica e politicamente, às vezes irritarmo-nos com certa tibieza de sua crítica ao sistema capitalista, mas – justiça seja feita - jamais o autor se furtou a entrar em combate pelas suas idéias e polemizar sobre qualquer assunto que dizia respeito a seu país. Assim sendo, as demandas e solicitações vinham de todo o espectro político da Itália e encontravam nele uma disposição imensa para o diálogo. Suas preocupações teóricas e políticas em relação às questões centrais da democracia, da liberdade, da igualdade, da república e aos perigos de sua degenerescência introduziram os elementos-chave de sua tensão intelectual e política. Apesar de seus escritos serem extremamente racionais e analíticos, Bobbio parecia ser um intelectual que vivia com os nervos esticados ao máximo" (Rêgo, 2004, s.p.).
  • 2
    Deixo de lado, nesta oportunidade, questões relevantes para a compreensão do objeto destas notas mais expositivas que interpretativas, tais como, por exemplo, as influências e diálogos de Norberto Bobbio, no contexto intelectual italiano, com autores como Benedetto Croce e Antonio Gramsci, ou com Max Weber, Hans kelsen e Carl Schmitt no contexto europeu mais amplo (Romano, 2004); as relações estabelecidas, no plano político, entre liberalismo, social-ismo e democracia (Pereira, 2004); ou ainda os desafios contextuais próprios da sociedade italiana como, por exemplo, os embates entre os Partidos Socialista e Comunista Italianos par-ticularmente nos anos 1940-50 (tendo o autor integrado os quadros do primeiro); e aqueles constitutivos do século XX, como o fascismo, a Segunda Guerra Mundial e a chamada Guerra Fria (Bastos; Rêgo, 1999). Tampouco faço o confronto do objeto com outras interpretações, tarefa necessária para o aprofundamento da sua compreensão, dada inclusive a recepção da obra de Bobbio no Brasil, tema que já começa a ser explorado (Cardim, 2001).
  • 3
    Em trabalho anterior empreguei essa distinção típico-ideal proposta por Norberto Bobbio para qualificar o
    sentido político assumido pelas idéias e pela atuação do modernista carioca Ronald de Carvalho no processo de construção do Estado-nação no Brasil nas décadas de 1920-30. Argumentei, nesse sentido, que como "intelectual experto" esse autor atuou na "rotinização" de um conjunto de valores anti-liberais, tarefa que revelou-se decisiva nos processos ideológicos que durante a Primeira República liberal e oligárquica sedimentaram, no Brasil, uma ideologia autoritária de Estado consagrada na Revolução de 1930 e consolidada no chamado Estado Novo (Botelho, 2002a).
  • 4
    Embora Bobbio não mencione Jean-Paul Sartre neste texto, vale lembrar que o filósofo francês constitui referência central para o tema do
    engagement na Europa do pós-Segunda Guerra. Mais do que tema, o
    engagement é lançado como causa por Sartre na apresentação do primeiro número da revista
    Les Temps Modernes, de outubro de 1945. Como observam Bastos e Rêgo sobre o "manifesto" de Sartre: "O texto repousa sobre a questão da responsabilidade moral do intelectual. Nessa direção, é elaborado o sentido do
    engajamento: servir à literatura e servir à coletividade. Certamente pode-se conferir uma conotação ampla ao termo 'literatura', abrangendo todo o trabalho intelectual. Sartre convoca o escritor a um profundo compromisso com sua época: 'Queremos que ele abrace com força a sua época; ela é sua chance única: ela foi feita para ele e ele é feito para ela'" (Bastos; Rêgo, 1999, p. 31-2). Sobre Sartre ver Winock, 2000, p. 507-782.
  • 5
    A referência a Max Weber não quer aqui significar a contraposição entre as "vocações" para a ciência e para a política como se fossem mutuamente excludentes, já que, ao contrário de interpretações correntes, pode-se dizer que na teoria weberiana a "ciência e a política são tratadas não isoladamente uma da outra, e sim uma em relação à outra"; pois ao "sondar as limitações inerentes à ciência, Weber discute ao mesmo tempo as suas relações com a política; e, ao mostrar os limites da ação política, ele relaciona a política com a ciência" (Schluchter, 2000, p. 62).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Out 2004
    • Data do Fascículo
      2004
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