RESENHAS
O legado intelectual de Celso Furtado: uma abordagem multidisciplinar e uma reflexão teórico-econômica sobre a teoria do subdesenvolvimento
Vera Alves Cepêda
Carlos MALLORQUIN. Celso Furtado: um retrato intelectual. Rio de Janeiro/São Paulo, Contraponto/Xamã, 2005. 366 páginas.
Inúmeros intelectuais brasileiros reportam a importância da obra de Celso Furtado na sua própria formação. Mais do que a Furtado, estes autores com certeza estão se referindo à grande onda de pensamento sobre o tema do subdesenvolvimento e do impacto que esta exerceu sobre as gerações nos anos de 1960 e 1970, em grande parte devido à relevância que o tema assumiu para se pensar o futuro da sociedade brasileira e da esmagadora maioria das nações do mundo no pós-guerra. Curiosamente a teoria do desenvolvimento problemático e tardio das economias definidas como subdesenvolvidas foi capaz de sintetizar, de maneira ímpar e inigualável, uma série de crises que finalizavam um momento da economia e das relações políticas mundiais e que foram caracterizadas, na primeira metade do século XX, pelas críticas às teorias e aos axiomas do liberalismo econômico. Por extensão lógica, esta recusa acabou por produzir uma mudança de leitura sobre as relações mundiais de divisão do trabalho, as causas do progresso econômico e do arranjo desejável entre sociedade, mercado e Estado e sobre a própria avaliação da evolução do processo histórico. Pelo conjunto e alcance geral dos temas ancorados na nova arquitetura intelectiva da teoria do subdesenvolvimento percebe-se que ela ultrapassou em muito os limites da teoria econômica, ramificando-se por entre a política, a história e pelo tema da mudança social. Não é à toa que foi capaz de, em seu tempo, canalizar e orientar a reflexão de um amplo leque de intelectuais, bem como, distante mais de meio século de sua produção original, continuar a justificar-se como material de análise e reflexão.
Celso Furtado: um retrato intelectual é um profícuo exemplo dos aspectos relevantes legados pela teoria do subdesenvolvimento, tomando como tema de análise a vasta produção intelectual de Furtado e sua correlação com o pensamento cepalino. Do trabalho de Mallorquin gostaria de destacar dois aspectos que me despertaram especial atenção: o primeiro é o tratamento e o enfoque adotados pelo autor, procurando estabelecer os laços entre o pensamento furtadiano e seu tempo histórico; o segundo é a análise densa e profunda das características intrínsecas à própria teoria proposta por Furtado. A articulação entre esses dois aspectos (dimensão tempo e dimensão estrutura lógico-conceitual) permite uma visão geral da obra e do papel que ela representa para os dilemas teóricos e políticos do período em que foi engendrada, ao mesmo tempo em que analisa a capacidade de sustentar-se na qualidade de uma particular tese explicativa. É a combinação entre esses dois "métodos" que organiza a multiplicidade dos aspectos trabalhados e também determina o próprio ritmo da análise apresentada.
O livro de Mallorquin é raro pela extensão proposta. O autor não se contenta com o tratamento de uma obra ou fase particular do pensamento furtadiano; ao contrário, faz um esforço de abarcar o conjunto da reflexão de Furtado em toda a sua vasta produção, partindo dos textos originais da década de 1950 até suas últimas contribuições sobre o cenário da globalização. Este recorte extensivo demonstra um enorme esforço e diligência, responsáveis por transformar o resultado final do trabalho em um texto obrigatório para aqueles que se debruçam sobre Furtado ou sobre a teoria do subdesenvolvimento. Chamo a atenção para o fato de que Mallorquin foi capaz de produzir um estudo que abrangeu mais de meio século de produção teórica, sobre uma obra intelectual complexa, acrescido do esforço de contextualização e responsividade ao ambiente histórico circundante. A massa de reflexões que Mallorquin aponta e coordena em sua análise produz um poderoso retrato dos dilemas teóricos e políticos fundamentais para a ocidentalização e o boom da industrialização posterior aos anos de 1950, e que passavam pela influência da matriz keynesiana, pela defesa do ferramental do planejamento e pela descoberta da pobreza dos países periféricos. Assim, no livro opera-se um diálogo multideterminado: ao dissecar a produção de Furtado, sob o impacto dos novos ares intelectuais que perfaziam o horizonte da economia política no período circundante ao final da Segunda Guerra Mundial (da crítica marxista à revolução keynesiana e ao fordismo; da função estratégica e civilizadora do planejamento em Mannheim e Myrdal; da leitura inovadora do problema do desenvolvimento econômico e de suas etapas em Nurske e depois Rostow; das revolucionárias concepções sobre o lugar dos países de herança mercantil exportadora nas teses de Roberto Simonsen, Prebisch e dos demais cepalinos), descortina toda a mudança que se produz mundialmente nessa área e que implica numa outra leitura sobre o telos e o motor do modelo de civilização industrial, utilizando como locus a recepção e o tratamento particularmente dado por um dos maiores expoentes do estruturalismo latino-americano.
Mallorquin reconhece a importância da obra de Furtado sem ceder ao seu endeusamento. O pensamento furtadiano é analisado sob a perspectiva de diálogo com o tema da formação econômica do Brasil, relacionando-o com o complexo teórico aberto por Prebisch e depois avançado pela produção dos cepalinos. Neste aspecto, o autor, ao procurar as influências e os anteparos que balizaram as teses de Furtado, acaba por fazer um balanço que versa sobre a originalidade e também os pontos fortes e fracos de sua obra fato que não desmerece o talento e a contribuição furtadiana, nem infere uma antecedência ou primazia de outros autores e correntes, mas que problematiza o alcance e a fundamentação do estruturalismo na versão de Celso Furtado.
O desvelamento das interfaces encontradas por Mallorquin na obra de Furtado destaca um ponto importante, a saber, a capacidade de explicação a partir de uma abordagem sociológica e histórica (daí a ênfase inicial aos aspectos mais próximos ao ambiente temático da economia política e, mais radicalmente, de uma teoria da mudança social como corolário da teoria econômica em seus postulados gerais ou aplicada ao caso brasileiro). Outro desdobramento é uma certa arqueologia conceitual que, ao tratar a geração e a evolução das idéias furtadianas, passa por uma sensibilidade que resgata os próprios movimentos de constituição e cinzelamento dos argumentos no interior da perspectiva analítica e na obra de Furtado fato louvável na medida em que respeita o andamento e os impasses que foram construindo um discurso completo (tese) a partir da definição de um léxico, de uma gramática e da adoção de um estilo teórico , o que, em síntese, é base de construção de todo o edifício lapidar das teorias. Louvável, também, por permitir a compreensão dinâmica pela qual passam, se constituem e se transformam os complexos teóricos ao sabor de uma evolução de princípios e balizas conceituais e do contato destas com a realidade.
Um último destaque sobre a obra de Mallorquin é uma breve descrição dos focos temáticos que o leitor encontrará no livro e que podem ser reunidos em três grupos. No primeiro (capítulos 1, 2 e 3), o autor analisa o ambiente intelectual, geopolítico, econômico e da ciência econômica (mundial e nacional) que Celso Furtado encontra ao iniciar sua formação e sua trajetória no mundo acadêmico e do qual, com certeza, herda paradigmas ao mesmo tempo em que rompe com outros (este cenário também monta a agenda dos temas e das questões que servirão de base para toda a reflexão furtadiana). O segundo grupo temático, reunindo quarto, quinto, sexto e sétimo capítulos, abarca uma investigação profunda da estrutura teórica da tese do subdesenvolvimento (e na sua outra face, uma tese sobre o desenvolvimento econômico), partindo da leitura mais intrínseca e árdua do jargão econômico stricto sensu até sua relação com as questões sociais e políticas. Neste momento, destaca-se o impacto político do pensamento furtadiano, e Mallorquin aponta a ação de Furtado diante de espaços e instituições públicas, bem como o papel assumido por suas teorias em face da intelligentsia e do debate intelectual e político sobre o dilema do progresso das nações caudatárias do progresso industrial. O último tema e capítulo do livro, denominado "O retorno do ex-profeta", baliza as contribuições contemporâneas de Furtado para o cenário da economia global e da finalização da industrialização com novos temas e novos dilemas. Segundo a perspectiva apresentada por Mallorquin, logo na introdução, este movimento analítico está amarrado e condicionado por quatro temas-chave, a partir dos quais a obra de Furtado é analisada: "história da idéias", "o intelectual e o político", "o estruturalismo de Furtado" e "perspectivas do estruturalismo". O resultado é retomar e reavaliar a contribuição da produção de um intelectual que foi capaz de romper as fronteiras estreitas de uma análise econômica meramente descritiva (retomando também o vigor e a capacidade diretiva da economia política contemporânea), de importância inegável para o período nodal da industrialização e da construção dos projetos de modernidade para o Brasil e nações em situação correlata, apropriando-se dos elementos ainda vitais sem ceder ao anacronismo e ao apelo demagógico de um endeusamento fácil.
Vera Alves Cepêda é doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Abr 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2006