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Favela, favelas: interrogando mitos, dogmas e representações

RESENHAS

Favela, favelas: interrogando mitos, dogmas e representações

Vera da Silva Telles

Licia do Prado VALLADARES. A invenção da favela: do mito de origem à favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005. 204 páginas.

Sabemos que no campo das ciências humanas a crítica às categorias de análise, bem como suas redefinições, é algo que se faz em compasso com a interpretação das mudanças operantes no mundo social e ao modo como se formula as novas exigências interpretativas em diálogo com as questões políticas colocadas, com suas promessas, desencantos ou hesitações. Em particular no que diz respeito à sociologia urbana – e os estudos urbanos de uma maneira geral –, as categorias de análise modificam-se ou sofrem deslocamentos conforme se alteram as estruturas da cidade, as políticas urbanas, o problema social e suas expressões políticas. É justamente isso que sugere a exigência de um trabalho critico e reflexivo em torno das categorias de análise, buscando os nexos que articulam as referências entre a pesquisa acadêmica e suas matrizes intelectuais (mutantes conforme os momentos e as modas), as políticas urbanas e seus operadores políticos, os atores sociais e as redes sociotécnicas em que se inscrevem, as configurações do conflito social e suas ressonâncias políticas. Como sugere Yves Grafmeyer ao discutir os usos da noção de segregação urbana no campo da sociologia, as categorias de análise operam como reveladores eficazes das modalidades pelas quais a história interna das ciências sociais se articula com a demanda pública e também com os temas, as obsessões, os mitos e as ficções que mobilizam o debate público, e também a cena midiática.

Essas são questões que se abrem a um fecundo campo de investigação ainda pouco usual no ambiente intelectual brasileiro. É nesse ponto que se situa a notável contribuição de Licia Valladares com A invenção da favela. Seu foco de atenção é o Rio de Janeiro, e sob a sua mira crítica estão as formas pelas quais a favela se constituiu como problema social e como problema sociológico, campo de problematização em que convergem, nas diversas conjunturas sócio-históricas, atores sociais em seus ancoramentos socioinstitucionais, modalidades de intervenção urbana, figurações mutantes da cidade e seus problemas, imaginários e projetos em disputa. A autora trata de estabelecer os nexos entre os movimentos da história e os movimentos das categorias tal como se deram no Rio de Janeiro e se coagularam na formação do conhecimento erudito no ambiente intelectual e acadêmico carioca. Mas o interesse desse trabalho vai além de circunstâncias locais e não concerne apenas aos pesquisadores do tema. São questões de atualidade e suas próprias inquietações que a movem nesse empreendimento.

Como a autora comenta na introdução, os anos de 1990 testemunharam um renovado interesse pelo tema; as pesquisas sobre favelas multiplicaram-se e um número crescente de alunos de pós-graduação passou a se interessar pelo assunto, instituições governamentais e não-governamentais ganharam igualmente peso na demanda de pesquisas e o Programa Favela-Bairro lançado pela prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 acentuou ainda mais a produção desses estudos. No seu conjunto, é uma produção intelectual que constrói a representação da favela como "território da violência, como lugar de todas as ilegalidades, como bolsão da pobreza e da exclusão social", fazendo circular as imagens da fratura social e de uma "cidade partida" (p. 20). É sob esse crivo que os temas correntes nesses anos da violência urbana e da segregação socioespacial parecem convergir em uma associação quase exclusiva entre favela e pobreza, fazendo dessa associação a própria especificidade e definição da favela, e também uma suposta especificidade carioca.

Um conjunto de pressuposições marcam a produção recente, afirma a autora, supostos e pressupostos não discutidos, que estruturam consensos irrefletidos, que pautam a agenda e conformam um campo de pesquisa que deixa escapar, sob uma figuração homogeneizadora da favela, uma notável diversidade social e espacial em seu universo, bem como o dinamismo social e econômico que vem marcando essas realidades. Anunciada na introdução, a questão será trabalhada no último capítulo ("A favela das ciências sociais"), em que discute os "dogmas" compartilhados pela maior parte dos pesquisadores: a especificidade da favela construída por uma suposta alquimia que lhe seria exclusiva entre irregularidade da ocupação do espaço urbano e ilegalidades várias, pobreza e privações múltiplas, violência e tráfico de drogas, mas também manifestações culturais que lhe dariam a marca de identidade, do samba em outros tempos ao funk atual; a favela como território urbano dos pobres, "cidade dentro da cidade", enclave e território da partição, símbolo da segregação socioespacial; a unidade da favela, vista sob uma categoria única em que pese as evidências de uma realidade plural e multifacetada. São dogmas que terminam por produzir algo como um desconhecimento sobre a realidade múltipla das favelas, mas também da pobreza urbana e da própria cidade. É isso o que Licia deixa entrever ao comentar as implicações metodológicas desse modo de construção dos objetos de pesquisa (pp. 151-152). Mas na sua mira crítica está, sobretudo, uma outra questão. Para a autora, esses dogmas reatualizam estereótipos de longa data associados às imagens da favela, o que a leva a se perguntar pelas razões e modalidades de sua produção e persistência ao longo dos anos.

Assim, ao que parece, as representações e as imagens de favela, correntes nos debates atuais, não conseguiram se desvencilhar do seu "mito de origem" – essa é, a rigor, a hipótese da autora –, amplamente tributárias desse momento fundador, situado no final do século XIX quando os combatentes de Canudos ocupam o Morro da Previdência, logo depois chamado Morro da Favella. Compõem-se imagens inquietantes de um sertão instalado no centro da cidade, transposição da dualidade sertão-litoral cunhada por Euclides da Cunha nos termos da dualidade favela-cidade. Imagens que iriam plasmar um arquétipo de favela: um mundo diferente que emergia na paisagem carioca, cidadela da miséria, universo exótico e apartado da cidade, avesso da ordem urbana e social estabelecida. Como afirma a autora, "estava descoberta a favela [ ] e lançadas as bases necessárias para sua transformação em problema (p. 36).

No primeiro capítulo, Licia trata de perseguir as várias modulações dessa construção da favela como foco de inquietação e como problema que mobilizou, em um primeiro momento, atores e personagens presentes na Primeira República em meio aos princípios higienistas que então vigoravam e aos esboços de um urbanismo nascente. Em um segundo momento, anos de 1930, a favela constitui-se em um campo de intervenção pública: outros interesses, outra lógica política, outras mediações institucionais e outros personagens em ação que convergem para o reconhecimento das favelas como dado de uma realidade a ser levado em conta no jogo populista da época. Campo de intervenção pública, realidade a ser administrada, a favela ganharia, a partir dos anos de 1940 – esse o terceiro momento – uma outra objetivação sob a exigência prática de estudos sistemáticos sobre essa realidade ainda pouco conhecida. As primeiras pesquisas e levantamentos estatísticos datam dessa época e, em 1950, sob o comando de Alberto Passos Guimarães na direção do IBGE, a favela é incorporada no recenseamento geral: tratamento estatístico acompanhado por uma cuidadosa discussão metodológica sobre a própria categoria "favela" agora objetivada como categoria estatística. Esse é o momento em que o uso da palavra favela generalizou-se, passando progressivamente de uma categoria local a uma categoria nacional (p. 71).

No segundo capítulo, a autora segue os fios cruzados que construiriam a favela como campo de pesquisa, pavimentando o terreno das ciências sociais. Situado nos debates e embates próprios dos anos de 1950, entra em cena Dom Hélder Câmara, então bispo auxiliar do Rio de Janeiro, com sua Cruzada São Sebastião (1955), buscando uma "solução racional, humana e cristã ao problema das favelas no Rio de Janeiro" (p. 77). Propondo a sua urbanização sob novas formas de intervenção, a Cruzada São Sebastião fez circular os princípios de desenvolvimento comunitário, com evidentes ressonâncias na noção de comunidade que passou a circular nos anos seguintes (e ainda hoje) e que, na época, iria igualmente se constituir em ponto de convergência com o Padre Joseph Lebret: personagem então presente, conhecido e reconhecido no cenário brasileiro, fundador do movimento Économie et Humanisme, formador de toda uma geração de planejadores urbanos paulistas a partir das atividades da Sagmacs, escritório de planejamento criado primeiro em São Paulo (1947) e, depois, em outras cidades. Padre Lebret, junto com José Artur Rios, foi o responsável pelo relatório "Aspectos humanos da favela carioca" (1960), resultado de uma pesquisa financiada pelo jornal O Estado de São Paulo e que teve uma notável repercussão político-midiática, tendo exercido "uma considerável influência sobre pesquisadores, sociólogos, arquitetos e geógrafos que, a partir da segunda metade dos anos 1960 e durante os anos 1970, lançaram-se à pesquisa de campo nas favelas" (p. 75). Inovando nos seus procedimentos e orientações de pesquisa, esse estudo, avalia a autora, rompia com os dogmas que então vigoravam sobre a favela, oferecendo um vivo panorama de sua heterogeneidade e diversidade interna. No campo propriamente acadêmico, os caminhos das ciências sociais seriam igualmente marcados pela presença de Anthony Leeds, antropólogo norte-americano, que fez das favelas cariocas o seu campo de estudo para estudar a pobreza urbana. Ao longo dos anos de 1960, com seus seminários de pesquisa, teve um papel importante na história da pesquisa sobre favelas no Rio de Janeiro; formou jovens pesquisadores, introduziu os procedimentos da pesquisa de campo e marcou, ao final da década, sua presença na formação da antropologia urbana no contexto da universidade carioca.

No conjunto, esses anos de formação da pesquisa sobre a favela aparecem, sob a avaliação de Licia, como momentos fecundos de uma discussão ampliada e renovada sobre o tema, rompendo dogmas, inovando nos procedimentos de pesquisa, produzindo informações relevantes. No entanto, muito disso se perdeu nos anos seguintes. É o que Licia nos sugere ao descrever, em seu terceiro capítulo, o momento de institucionalização da pesquisa acadêmica. A partir dos anos de 1970, a produção científica ganha novos patamares e o tema da favela consolida-se como campo de investigação e objeto de conhecimento. Porém, há uma espécie de esquecimento do legado da produção anterior, e os dogmas não apenas persistem, como também se consolidam e se generalizam no âmbito da pesquisa acadêmica. Isso justamente é o que suscita a interrogação sobre as modalidades de construção da favela como objeto de estudo. É nesse ponto que se situam duas questões importantes – e polêmicas – lançadas pela autora no último capítulo e nas conclusões finais.

De um lado, os nexos que articulam a pesquisa acadêmica e as flutuações das políticas urbanas e programas sociais voltados às favelas, as mediações de agências governamentais e não-governamentais na demanda e financiamento de pesquisas e os modos de tematização da pobreza e da violência urbana em um intricado e ambivalente jogo de atores sociais e políticos atuantes no cenário urbano. De outro lado, se os dogmas persistem, não basta tão simplesmente fazer a contraprova em base nas evidências empíricas de pesquisas recentes. Trata-se de rever e repensar os parâmetros a partir dos quais pesquisar e descrever as novas realidades urbanas que vêm se configurando nos anos recentes. Trata-se da exigência hoje, assim sugere Licia, de se operar sob um outro jogo de perspectivas que permita dissolver a dualidade pressuposta "favela-cidade", para colocar em evidência – e sob o foco de uma nova e necessária problematização – questões emergentes pertinentes à vida urbana, cifradas na diversidade interna às favelas, mas não exclusivas a elas e que ainda precisam ganhar novos critérios de inteligibilidade. Nessa pulsação polêmica do livro de Licia Valladares encontra-se todo o seu interesse e importância, lançando ao debate questões que prometem pautar uma mais do que necessária discussão sobre os parâmetros críticos e descritivos da pesquisa social. Discussão oportuna, mais do que bem vinda.

VERA DA SILVA TELLES é professora do Departamento de Sociologia da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2006
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