RESENHAS
José Machado Pais. Lufa-lufa quotidiana: ensaios sobre cidade, cultura e vida urbana. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2010. 227 páginas.
Em Lufa-lufa quotidiana, o sociólogo português José Machado Pais coleta pequenos fragmentos da vida cotidiana, como pacotes de açúcar, adesivos de carro, anúncios publicitários, trechos de cartas de leitores de revistas, e, dirigindo a eles um olhar investigativo, leva o leitor a perceber o que está por trás daquilo que se exibe ao olhar. Trata-se de ampliar a visão do leitor, no sentido de ver a cidade contemporânea por meio de uma espécie de "quiromancia sociológica", que propõe conhecer a cidade como a palma da mão, incluindo a revelação de seu passado oculto embrulhado no porvir que se revela pelo presente.
O livro é composto de seis capítulos interligados, embora com alguma independência. Um dos objetivos é "questionar a relação conflituosa que temos com o tempo na chamada lufa-lufa quotidiana" (p. 11). "Lufa-lufa", hoje em desuso, é uma expressão onomatopeica representando a interjeição de afobamento, os "ufas" da vida, a pressa que caracteriza o cotidiano na modernidade. Além do sentido temporal, o autor considera a discussão espacial preponderante. Diante da multiplicidade da vida citadina, o tempo, em sua dimensão contrastante, permite ver melhor a realidade cotidiana. Embora existam muitas formas, inclusive simultâneas de perceber o tempo, há uma noção dominante em cada sociedade. O tempo sagrado dá lugar ao tempo quantitativo transformado em mercadoria, expressado pelo senso comum na máxima: "Tempo é dinheiro". O tempo apressado tem uma dimensão espacial, na medida em que os espaços passam a ser planejados e vivenciados para maior economia de tempo, o que faz da cidade a representante maior desse corre-corre.
Para o autor, a "vida urbana converteu-se numa corrida contra o tempo. Os obstáculos da vida não por acaso ganharam o nome de contratempos" (p. 77). Para escrever sobre esse tempo vivido na cidade contemporânea, José Machado Pais selecionou estudos de caso partindo da deambulação sociológica - metodologia defendida pelo autor em outros livros, notadamente em Vida cotidiana: enigmas e revelações (2003) -, considerando o cotidiano a alavanca metodológica do conhecimento e investindo em uma percepção dinâmica, que enxerga as relações entre objetividade e subjetividade, presente, passado e futuro. Em suas palavras, trata-se de "ver a sociedade a nível dos indivíduos mas vendo também como ela se reflete na vida deles" (p. 16).
O capitulo 1, "Dolências e indolências da vida urbana", principia com a constatação das diferentes leituras possíveis da cidade, citando autores como Simmel, Baudelaire e Lefevbre. Sua tese fundamenta-se com base em duas observações: a passagem do "paradigma da lentidão" para o "paradigma do encontrão" e as novas modulações sensitivas caracterizadas por um excessivo "dar nas vistas" e um evasivo "não dar ouvidos".
O "paradigma da lentidão" foi construído com base em suportes filosóficos, como Mossner, Wittgenstein, Ítalo Calvino, mas, a pressa instaurada na modernidade, transformou tal paradigma, segundo o autor, em uma "topada", um encontrão. Para ele, "Encontrão é muito mais e muito menos do que encontro" (p. 28). A etimologia do termo remete ao encontro, do latim incontro, que contém a ideia de descoberta e de choque. Assim, o "encontrão retrata este sentido de ir contra ou em contra" (p. 28).
A constatação dessa mudança de paradigma que levou a um apressuramento da vida cotidiana é expressa pelo autor em exemplos corriqueiros e vulgares, como as dificuldades no trânsito. A pressa dos motoristas provoca caos que, por vezes, impede o próprio transitar. Nessa situação, valoriza-se o futuro em detrimento do tempo que passa, apesar do impulso ao imediatismo, citado pelo próprio autor. Esse sacrifício do presente (perdido em filas de trânsito) tem como outra face a alienação do indivíduo. O tempo e a espera, bem como o medo de nunca alcançar, entram na contabilidade emocional de quem vivencia a cidade moderna, frequentemente, em desespero (cf. p. 32).
Outra mudança paradigmática constatada por José Machado Pais refere-se à supremacia da visão entre todos os sentidos, ao contrário Michel Maffesoli (1999), para quem o sentido do tato prepondera na contemporaneidade. Para Machado Pais, "nos relacionamentos sociais o lema é cada vez mais 'das nas vistas' e 'não dar ouvidos'" (p. 33) mesmo diante do barulho e do desrespeito significativo diante dos avisos de silêncio. Para ele, "a proeminência do olhar acompanhou a instituição do paradigma do encontrão" (p. 35) e vivemos de modo a nos fazer de surdos em várias situações.
A dificuldade de comunicação faz com que as mediações sociológicas apresentem-se como um enorme desafio à sociologia da interação, pois frequentemente não sabemos nem mesmo a localização do nosso interlocutor. Tal questão tem suscitado interesse entre os cientistas sociais que indagam sobre como novos objetos sociais estão sendo construídos; é preciso criar uma contrapartida teórica que dê conta das novas interações sociais advindas de novas tecnologias da comunicação e da informação, além das tecnologias aplicadas ao corpo humano. Tamanha simbiose com a máquina e tamanha experiência virtual certamente modificaram nossa noção de humanidade, como David Le Breton discute em Adeus ao corpo (2003).
Para Machado Pais, um sociólogo do cotidiano deve estar atento a essas transformações, ser uma espécie de decifrador. Assim, é necessário observar como a cidade se mostra, e, mais do que isso, como as imagens de que ela se reveste estão repletas de sentidos. Sua proposta é dupla: pensar a cidade pelas imagens que ela nos apresenta para entender e questionar os olhares que a produzem. Com essa perspectiva, Machado Pais focaliza, por exemplo, a surdez característica da comunicação no contexto do trânsito, a qual se dá prioritariamente por xingamento gestual e adesivos decorativos nos carros. Estes liberam desejo de fuga em relação à realidade do atropelo e representam desejos de interação, raramente correspondidos. Por meio de exemplos variados, o autor constrói uma tipologia dos adesivos, como aqueles de galanteio ("procura-se namorada"), desafios à rotina ("anime o meu dia, façamos uma corrida") e declarações de ociosidade ("não me apresse"). Essas atitudes de valorização de si mesmo, de agressividade e de gabarolice perante a sexualidade expressam a neurose coletiva.
Riscos e medos objetivos, como assalto, morte, doença, mesclam-se a medos subjetivos, que dizem respeito à identidade pessoal já bastante fragilizada, segundo Machado Pais, em razão da perda de significados de referência (cf. p. 58).
O autor constata a criação de espaços condicionados que se tornam verdadeiras "cidades" no interior da metrópole, corroendo aos poucos a identificação histórica com a cidade. Esse processo de perda de existência qualitativa fortalece o sentido quantitativo da experiência - tudo vira número -, sendo que os momentos de personalização não chegam a configurar uma noção de coletividade.
Com essa perspectiva e usando exemplos do cotidiano, o autor chega à complexidade da cidade por meio de imagens fragmentadas, buscando aprofundar aquilo que parece insignificante. Lufa-lufa quotidiana recupera a ideia apresentada em escritos anteriores do autor, qual seja, a aproximação da sociologia do cotidiano com a antropologia visual.
Existe uma relação afetiva construída entre os habitantes e a cidade, e é esse sentido que Machado Pais ressalta, uma vez que ali não é apenas um lugar para viver, mas também para sonhar (cf. p. 80). Nesse aspecto, as políticas culturais têm espaço para intervenção, sendo o seu desafio ligar a dimensão de polis, associada à ordem política, e a dimensão de urbs, ligada ao pulsar.
Ainda nesse âmbito, o autor denuncia o complexo sistema de siglas presente no setor público, que esconde significados e empodera os que dominam essa linguagem: o "sigalês". O sistema das siglas seria uma metáfora do mundo que representam e do modo como o representam. Machado Pais propõe, então, a desalienação da cidade, com uma ressignificação para os indivíduos e a reconstrução das identidades desenraizadas, deixado claro que não se trata de imobilizar o passado, mas recria-lo, uma vez que "o passado muda à medida que o tempo passa por ele" (p. 93).
Se, no primeiro capítulo, o autor apresenta o "paradigma do encontrão" e a supremacia do visual compondo uma sociedade apressada e alienante com vários dilemas de ordem objetiva e subjetiva, no segundo, volta a falar dos dilemas da sociedade contemporânea a ponto de denominá-la "uma sociedade dilemática", gerada pela tensão entre tipos de reflexividade. Diferentemente do que é sugerido por alguns teóricos da modernidade reflexiva, Machado Pais não acredita que "a um estádio de reflexividade impositiva (orientada pelo passado) se siga outro, inevitavelmente, de reflexividade transformadora (orientada pelo futuro)" (p. 97). Haveria sim uma situação de predominância e não linearidade. Em inúmeras situações, os cálculos de incertezas e riscos colocam o individuo em estado de tensão. Mesmo que as escolhas sejam circunstanciais, dimensões sociais por vezes ignoradas permeiam a experiência cotidiana. A modernidade não deve ser entendida como um empolamento de opções, mas está na origem de crescentes diferenciações entre quem pode ou não aceder às identidades projetadas. O autor propõe um olhar relativizado acerca da liberdade subjetiva, que não é apenas insubmissão às convenções; a subjetivação e a socialização não são coisas opostas, e a individualização pode gerar falsa consciência de libertação.
Considerando que realização pessoal e transformação social não são excludentes, Machado Pais mostra como se comportam os movimentos sociais contemporâneos diante da repressão à individualidade e dá o exemplo de jovens que constroem uma identidade ao investir no corpo:
Recorrentemente, a rua é por jovens reivindicada como um palco de cultura participativa. Vejamos o caso dos jovens skaters. Para eles, a rua é cenário de um compromisso com a cidade. De uma experiência sensorial da cidade feita através da escuta dos rolamentos, da visualização dos movimentos, do olfatar dos odores, da vibração corporal dos deslizamentos (p. 129).
A rua é reivindicada como espaço de criatividade e emancipação, o que remete a uma cidadania que valoriza a individualidades e a marginalidade, chamada pelo autor de "cidadania participada". Como os jovens são considerados dependentes, a discussão a esse respeito é importante, uma vez que não se pode aceitar a ideia de cidadania que prescinda de uma noção de autonomia. E é justamente isso o que os jovens reivindicam. Não é por acaso que se constata a ineficácia de intervenções políticas dirigidas à juventude, que desconhecem o contexto de sua aplicação. Seria necessário, pois, a realização de prognósticos mais competentes.
Por fim, Machado Pais corrobora seu argumento com exemplos de experiências que ajudam a refletir modos de valorizar culturas populares. Como o próprio título sugere, refletir sobre a cidade significa o entendimento das noções reinantes de tempo e espaço que condicionam a experiência dos habitantes, favorecendo a alienação ou a redescoberta de uma identidade.
Quando se analisa o cotidiano das cidades vislumbra-se não só o mundo dos constrangimentos reais, mas também o mundo imaginário. Além disso, abre-se espaço para a discussão do mundo cifrado das políticas públicas e das possibilidades de uma "cidadania participada".
Apesar de crítico das políticas públicas, do patrimonialismo, da espetacularização dos patrimônios e da especulação imobiliária que segmenta a cidade e nebula a consciência histórica de seus habitantes, Lufa-lufa quotidiana não é um livro pessimista. Para Machado Pais, as "políticas culturais, se forem bem desenhadas, podem contribuir para o desenvolvimento de uma cidadania de base cultural" (pp. 90-91).
O desafio lançado aos leitores, e aos agentes culturais, é passar da burocracia do controle para uma política de desenvolvimento cultural. O conceito de cidadania é crucial nesse sentido, mas deve ser aplicado às especificidades da contemporaneidade, ou seja, uma cidadania que, garantindo valores universais e igualitários, permita a expressão da pluralidade de identidades reivindicadas.
Bibliografia
JULIANA ABONIZIO é doutora em Sociologia, professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação ECCO - Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: <j_abonizio@yahoo.com.br>.
- LE BRETON, David. (2003), Adeus ao corpo São Paulo, Papirus.
- MAFFESOLI, Michel. (1999), No fundo das aparências Rio de Janeiro, Vozes.
- PAIS, José Machado. (2003), Vida Cotidiana: enigmas e revelações São Paulo, Cortez.
Por uma quiromancia da vida urbana
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Maio 2011 -
Data do Fascículo
Fev 2011