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CLASSE SOCIAL E ALIMENTAÇÃO: PADRÕES DE CONSUMO ALIMENTAR NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

SOCIAL CLASSES AND FOOD: PATTERNS OF FOOD CONSUMPTION IN BRAZIL TODAY

CLASSE SOCIALE ET ALIMENTATION: MODÈLES DE CONSOMMATION ALIMENTAIRE AU BRÉSIL CONTEMPORAIN

Resumos

Este trabalho tem como objeto a estratificação social do consumo alimentar. Nele, pretende-se investigar a possível homologia entre as práticas no campo da alimentação, de um lado, e as posições relativas dos agentes no espaço social, de outro. Nesse sentido, a investigação aqui proposta se insere num conjunto de estudos inspirados pela sociologia das classes de Pierre Bourdieu, cujo tema é a dimensão simbólica das relações de classe. Secundariamente, busca-se avançar o entendimento dos mecanismos de reprodução social, sobretudo o papel dos estilos de vida na produção e reprodução de desigualdades e hierarquias simbólicas.

Classe social; Estilo de vida; Consumo alimentar; Desigualdade; Brasil


The social stratification of food consumption is the main empirical object of this paper. It aims to investigate the possible homology between the practices in the field of food consumption, on the one hand, and the relative positions in social space occupied by social agents, on the other hand. Therefore, such an investigation may be included in a set of studies influenced by Pierre Bourdieu’s sociology of class, which the matizes the symbolic dimensional of class relations. Secondarily, this paper attempts to further our understanding of the mechanisms of social reproduction, especially regarding the role of lifestyles in the production and reproduction of inequalities and symbolic hierarchies.

Social class; Lifestyle; Food consumption; Inequality; Brazil


Ce travail pour objet la stratification sociale de la consommation alimentaire. Il prétend, d’une part, étudier l’éventuelle homologie entre les pratiques dans le domaine de l’alimentation et, d’autre part, les positions relatives des agents dans l’espace social. C’est ainsi que la recherche que nous proposons s’insère dans une série d’études inspirées par la sociologie des classes de Pierre Bourdieu, dont le thème est la dimension symbolique des relations de classe. De façon secondaire, nous cherchons à faire avancer la compréhension des mécanismes de la reproduction sociale, en particulier le rôle des modes de vie dans la production et la reproduction des inégalités et des hiérarchies symboliques.

Classe sociale; Style de vie; Consommation alimentaire; Inégalité; Brésil


Introdução

Este trabalho tem como objeto a estratificação social do consumo alimentar . Nele, pretende-se investigar a possível homologia entre as práticas no campo da alimentação, de um lado, e as posições relativas dos agentes no espaço social, de outro. Nesse sentido, a investigação aqui proposta se insere num conjunto de estudos inspirados pela sociologia das classes de Pierre Bourdieu, cujo tema é a dimensão simbólica das relações de classe. Secundariamente, busca-se avançar o entendimento dos mecanismos de reprodução social, sobretudo o papel dos estilos de vida na produção e reprodução de desigualdades e hierarquias simbólicas.

A relação entre práticas alimentares e classe social foi construída como um objeto de investigação nas ciências sociais há algumas décadas. A importância desse objeto decorre de as práticas alimentares estarem profundamente relacionadas, no que se refere ao consumo e preparação, com práticas em outros domínios da vida social (por exemplo, relação com o corpo, divisão do trabalho entre os sexos, usos do chamado “tempo livre”), além de serem profundamente reveladoras dos gostos que comandam a apropriação de diferentes bens e objetos ( Warde, 1997WARDE, Alan. (1997), Consumption, food and taste. Londres/Thousand Oaks (CA), Sage. ).

A investigação sociológica da estratificação social das práticas alimentares se insere num conjunto mais amplo de estudos sobre as mudanças mais ou menos recentes nos padrões de consumo e nos modos como diversos fatores estruturais moldam o comportamento de indivíduos e grupos sociais. Seguindo indicações da literatura sobre esse tema, é possível agrupar as diversas abordagens que tentaram dar conta das mudanças na estruturação social do consumo alimentar em duas perspectivas opostas. De um lado, conforme argumenta Warde, encontram-se abordagens tão diversas quanto aquela que sublinha a intensificação dos processos de individualização e desregulação no domínio da alimentação ( Fischler, 1995FISCHLER, C. ([1990]1995) El (h)omnívoro: elgusto, lacocina e elcuerpo . Barcelona, Anagrama. ; Poulain, 2004POULAIN, J. P. (2004) Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social da alimentação . Florianópolis, Editora da UFSC. ) ou aquela que salienta a crescente homogeneização dos padrões alimentares ( Ritzer, 1993RITZER, G. (1993) The McDonaldization of society . Thousand Oaks (CA), Pine Forge. ). Apesar de suas particularidades, tais abordagens apontariam o enfraquecimento de fatores estruturais de diferenciação social na conformação dos comportamentos sociais. Mais do que isso, “todas concordariam que a diminuição com respeito à dimensão de classe social foi a mais marcante e a mais significativa do ponto de vista sociológico” ( Warde, 1997WARDE, Alan. (1997), Consumption, food and taste. Londres/Thousand Oaks (CA), Sage. , p. 39). De outro lado, encontram-se os estudos que sustentam que “a diferenciação estrutural em geral, a diferenciação de classe em particular, provavelmente persistirá no campo da alimentação” ( Bourdieu, 2008BOURDIEU, P. ([1979] 2008), A distinção: crítica social do gosto . Porto Alegre/São Paulo, Zouk/Edusp. ; Warde, 1997WARDE, Alan. (1997), Consumption, food and taste. Londres/Thousand Oaks (CA), Sage. ).

Nesses debates em que se configuram as principais forças que tensionam o campo de estudos das ciências sociais sobre as práticas alimentares – e que opõem os diferentes estudos e autores conforme o grau proposto de estabilidade ou desestruturação das práticas e segundo o peso conferido a fatores estruturais em sua conformação – Claude Fischler e Pierre Bourdieu aparecem como referências centrais.

O primeiro é assim considerado por ter proposto uma abordagem que busca conectar a supostamente crescente individualização e desestruturação das práticas alimentares a um conjunto mais amplo de questões associado à transformação da relação entre indivíduo e sociedade na modernidade tardia ou alta modernidade. Fischler foi o autor que incorporou esses debates mais amplos no estudo das mudanças dos padrões de consumo alimentar ( Méndez, 2006MENDÉZ, Cecilia D. (2006) “The sociology of food in Spain: European influences in social analysis on eating habits”. ComparativeSociology , 5 (4): 353-380. ). Para ele, escolher é o principal problema enfrentado pelo consumidor moderno: “a questão crucial é cada vez mais saber o que comer e em que proporção: definitivamente, escolher ” ([1990] 1995, p. 176; tradução do autor).

Em um contexto marcado pela ampliação da oferta de alimentos disponíveis e pelo enfraquecimento dos padrões normativos que regulavam as práticas alimentares – “situação de flutuação anômica, de ‘esvaziamento’ dos princípios socialmente aceitáveis” ( Idem , p. 185) –, “o consumidor moderno deve realizar escolhas: a alimentação se tornou objeto de decisões cotidianas e tais decisões recaíram na esfera do indivíduo” ( Idem , p. 205). Tais escolhas não apenas são mais difíceis, pelo fato de haver uma “cacofonia de critérios propostos, muitas vezes contraditórios e dissonantes”, mas também são fontes de profunda ansiedade, em função de as tendências alimentares modernas serem caracterizadas como “‘gastro-anômicas’, no sentido de que [as] regras estão se flexibilizando ou desagregando-se, aplicam-se com menos rigor, toleram maior liberdade individual [...]” (p. 206). São inegáveis os ecos da tradição durkheimiana nos argumentos de Fischler: “na ausência de regras consistentes e confiáveis, os indivíduos se comportam de modo imprevisível, não regulado, idiossincrático” ( Warde, 1997WARDE, Alan. (1997), Consumption, food and taste. Londres/Thousand Oaks (CA), Sage. , p. 31). Se tais argumentos estiverem corretos, então a desestruturação do consumo alimentar tenderia a produzir uma maior diversificação do consumo alimentar resultante da individualização dos critérios que regulam a relação com a comida.

A perspectiva de Fischler influenciou um conjunto de pesquisas recentes sobre mudanças na relação dos indivíduos com a comida ( Méndez, 2006MENDÉZ, Cecilia D. (2006) “The sociology of food in Spain: European influences in social analysis on eating habits”. ComparativeSociology , 5 (4): 353-380. ). No Brasil, destaco uma investigação conduzida por Lígia Santos (2008)SANTOS, Ligia (2008), O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais alimentares cotidianas a partir da cidade de Salvador – Bahia . Salvador, Edufba. sobre as práticas em relação à alimentação e ao corpo junto a um conjunto de indivíduos residentes na cidade de Salvador. Segundo a autora, as práticas alimentares teriam se tornado mais reflexivas com a proliferação dos discursos sobre a alimentação, que chamam a atenção para os riscos e benefícios na ingestão de diferentes tipos de alimentos e nas diferentes maneiras de prepará-los, e com o acesso crescente aos produtos alimentares, como um efeito da ampliação das tecnologias de produção e das estratégias publicitárias. Como diz a autora, “pensar antes de comer, o que comer e as consequências de consumir determinado alimento esteve fortemente presente nos discursos dos integrantes do universo empírico” ( Idem , p. 232) A “reflexão alimentar” estaria ligada, ainda, a uma cultura que a autora denomina de “gastro-anômica”, seguindo o conceito proposto por Fischler ([1990] 1995)FISCHLER, C. ([1990]1995) El (h)omnívoro: elgusto, lacocina e elcuerpo . Barcelona, Anagrama. , caracterizada pela “abundância alimentar, pela redução do controle social através dos processos de fragilização do peso das instituições sobre a vida humana, e a multiplicação dos discursos sobre a alimentação” ( Idem , p. 233) Por isso, ainda que a autora admita que as preferências em matéria de alimentação sejam em parte condicionadas pelas propriedades dos agentes em função de seus pertencimentos sociais (por exemplo, gênero, classe social etc.), ela tende a sublinhar a afirmação segundo a qual “cada indivíduo é que deve estabelecer os seus próprios critérios selecionados dos discursos cacofônicos sobre a alimentação e os alimentos” ( Idem , p. 38)

Diferentemente, nos estudos de Pierre Bourdieu, as práticas alimentares (assim com as práticas que ocorrem em outros campos da vida social ou subespaços simbólicos, como o do mobiliário, vestuário etc.) são estruturadas pelas classes sociais – entendidas como posições relativas ocupadas no espaço social – por intermédio do habitus. Ainda que a perspectiva do autor não aborde diretamente a questão das mudanças histórico-sociais nos padrões alimentares, para ele, ainda que possam ser observadas mudanças relevantes em termos da quantidade, da qualidade ou dos itens consumidos, isso não significa que o peso dos princípios primários de diferenciação social – relacionados com as classes sociais – teria necessariamente diminuído na estruturação das práticas sociais.

Bourdieu conduziu uma extensa pesquisa sobre gosto, estilos de vida e pertencimentos de classe na França ao longo das décadas de 1960 e 1970, que resultou na publicação de um conjunto de artigos e principalmente do livro A distinção: uma crítica social do gosto ( Bourdieu, [1979] 2008BOURDIEU, P. ([1979] 2008), A distinção: crítica social do gosto . Porto Alegre/São Paulo, Zouk/Edusp. ; Coulangeon e Duval, 2015COULANGEON, P. & DUVAL, J. (2015), The Routledge companion to Bourdieu’s Distinction . Londres/Nova York, Routledge. ).

Nele, Bourdieu argumentava existirem homologias entre o espaço social (ou o espaço das classes sociais, construído conforme as dimensões do volume e composição dos capitais possuídos pelos agentes, especialmente o econômico e o cultural, apreendidas sincrônica e diacronicamente ) e o espaço dos estilos de vida , definidos como conjuntos sistemáticos de preferências que expressam uma mesma intenção expressiva conforme a lógica própria a cada um dos campos em que se organiza a vida social (alimentação, política, vestuário etc.). Tais homologias são mediadas pelo habitus , entendido como sistema de esquemas de percepção, apreciação e ação resultantes da incorporação pelos agentes dos condicionamentos sociais associadas a diferentes condições objetivas de existência. Conforme argumenta Bourdieu, nas classes populares – operários da indústria e trabalhadores agrícolas, localizados nas posições relativas inferiores do espaço social, caracterizadas pela fragilização em termos da dotação de capital econômico e cultural – “a alimentação é reivindicada em sua verdade de substância nutritiva por sustentar o corpo e fornecer energia.” Produto dos condicionamentos associados a condições de existência fortemente marcadas pela proximidade à necessidade material, tal orientação privilegia o consumo de “alimentos pesados, gordurosos e fortes, cujo paradigma é [na sociedade francesa por ele investigada] a carne de porco, gordurosa e salgada [...]” ( Bourdieu, 2008BOURDIEU, P. ([1979] 2008), A distinção: crítica social do gosto . Porto Alegre/São Paulo, Zouk/Edusp. , p. 189). No plano simbólico, o gosto por alimentos nutritivos e baratos diferenciava-se do gosto por alimentos igualmente nutritivos, porém caros (por exemplo, patê de fígado), predominante entre donos da indústria e comerciantes (fração de classe da burguesia relativamente rica em capital econômico), e do gosto pelo refinado, leve e saudável dos profissionais e quadros superiores (fração marcada por uma composição mais equilibrada em termos da posse de capital econômico e capital cultural), movidos por uma ética da sobriedade, orientada para a produção de um corpo conforme as normas legítimas de apresentação de si. Por fim, os professores e intelectuais, pertencentes à fração dominante rica em capital cultural, tendiam a valorizar a busca da originalidade, favorecendo o “exotismo” ou o “populismo culinário” (por exemplo, pratos da culinária local ou rural) ( Idem , pp. 174-190).

Valendo-se da perspectiva bourdieusiana, Atkinson e Deeming (2015)ATKINSON, W. & DEEMING, C. (2015), “Class and cuisine in contemporary Britain: the social space, the space of food and their homology”. The Sociological Review , 63 (4): 876-896. investigam as possíveis homologias entre o campo das classes sociais e o campo das práticas alimentares no Reino Unido. Utilizando diferentes bases de dados recentes (especialmente informações sobre gastos domiciliares com diferentes tipos de alimentos), o estudo evidencia uma oposição entre uma estrutura de gastos que privilegia a aquisição de alimentos “pesados” (pães, carnes processadas e de porco, leite integral etc.) e outra em que têm maior importância os gastos com alimentos “leves”, como peixes, frutas e vegetais. A probabilidade de ocupar um ou outro desses polos, o “pesado-gorduroso” ou o “leve-magro”, está diretamente associada ao pertencimento de classe e, com isso, à distância relativa à necessidade material: na medida em que se sobe na hierarquia social, ou seja, entre as frações profissionais, executivas/gerenciais ou culturalmente dominantes (por exemplo, intelectuais e professores), mais elevados são os gastos com os alimentos “leves” ou “magros”, estrutura de gastos que se opõe àquela observada entre trabalhadores manuais ou não manuais menos qualificados (por exemplo, vendedores) ( Idem , pp. 884-886). Para os autores, tais evidências apontam para a persistência de processos de distinção e de dominação ligados à alimentação: “orientando-se para o controle e a restrição, as disposições dos (culturalmente) dominantes levam seus portadores [...] a definir as disposições dos dominados [...] em termos de falta de controle, falta de restrição, falta de previsão ou, em outras palavras, em termos de excesso [...]”, neutralizando as condições objetivas de produção de diferentes orientações em relação à escolha alimentar ( Idem , p. 894, tradução do autor). 1 1 Para uma crítica a esse estudo, ver Flemmen e Hjellbrekke (2016) . Para a réplica, ver Atkinson (2016) . Uma pesquisa recente realizada na Dinamarca chega a resultados similares (Flemmen, Hjelbrekke e Jarnes, 2018).

No Brasil, um estudo recente baseado em entrevistas com membros da elite paulistana e na análise de manuais de etiqueta apresenta evidências convergentes com relação aos estudos descritos anteriormente ( Pulici, 2014PULICI, C. (2014), “A alimentação solene e parcimoniosa: práticas gastronômicas como fonte de distinção das elites brasileiras”. Revista Ecopós , 17 (3): 1-15. ). Conforme argumenta a autora, “o princípio de formação das preferências alimentares ainda reside parcialmente nas estratégias de distinção produzidas nas relações de classe” ( Idem , p. 13). Tais estratégias de distinção repousam na construção de uma oposição, no plano simbólico, entre o “ascetismo eletivo burguês”, que concede valor especial à forma de servir o alimento e à estetização da cozinha , além de valorizar a alimentação parcimoniosa , de um lado, e o “laxismo ou indulgência popular”, com sua indiferença às formas e falta de controle no consumo alimentar, de outro. Para a autora, são os agentes dotados de maiores volumes de capital econômico e cultural que estão em condições de incorporar, em seus estilos de vida, as normas que se impõem como legítimas no campo da alimentação – que privilegiam o controle e a restrição, além da atenção às formas e às formalidades – e de fazerem das práticas alimentares emblemas distintivos , afirmando “sua distância com relação às rotinas alimentares ordinárias através da estetização de suas práticas gastronômicas e da moderação de seu apetite alimentar” ( Idem , p. 13).

Problema de pesquisa e hipótese

A literatura sobre o tema em apreço nos oferece diferentes possibilidades teóricas de explicação da estratificação social do consumo alimentar . A discussão anterior nos coloca diante de ao menos duas perspectivas principais para a investigação desse objeto, a hipótese das homologias e a individualização do consumo .

A chamada hipótese das homologias, cuja vertente mais influente se encontra nos estudos de Pierre Bourdieu, afirma que, “para se revelar a lógica do consumo, é necessário estabelecer, não uma conexão direta entre uma dada prática e uma categoria de classe particular [...], mas as correspondências estruturais entre dois conjuntos de relações , o espaço dos estilos de vida e o espaço das posições sociais ocupadas pelos diferentes grupos” ( Wacquant, 2005WACQUANT, L. (2005), “Symbolic power in the rule of ‘state nobility’”, in L. Wacquant (org.), Pierre Bourdieu and democratic politics: the mystery of Ministry , Malden (MA), Polity. , p. 155, apudLizardo e Skiles, 2016LIZARDO, O. & SKILES, S. (2016), “After omnivorousness: is Bourdieu still relevant”, in L. Hanquinet e M. Savage (orgs.), Routledge handbook of the sociology of art and culture , Londres/Nova York, Routledge. ). Tais “correspondências estruturais” decorreriam da transponibilidade do habitus , o que significa que as práticas engendradas pelo habitus tenderiam a expressar, conforme as lógicas específicas aos diferentes campos sociais, os mesmos esquemas subjacentes de percepção e classificação. Concretamente, esse argumento sugere que as escolhas mais legítimas ou vulgares em matéria de alimentação, provavelmente encontrariam correspondência com outras escolhas igualmente legítimas ou vulgares em outros campos sociais (por exemplo, esporte e cuidados de si) e todas elas seriam tão mais prováveis quanto mais alta ou baixa a posição do agente no espaço social. 2 2 Como tentei mostrar em outro texto (2018), a “hipótese das homologias” e o argumento acerca do onivorismo cultural não são propriamente explicações alternativas ao consumo cultural (e, provavelmente, ao consumo alimentar). De fato, a chamada “abertura à diversidade”, princípio subjacente ao onivorismo cultural, não é muito distante da “capacidade tolerante”, descrita por Bourdieu, que privilegia a transposição da disposição estética para domínios e bens “vulgares” ou, pelo menos, para longe das práticas simbolicamente consagradas, capacidade essa distribuída de modo socialmente desigual. Por isso, não a insiro aqui como uma terceira perspectiva para se investigar o consumo. Além disso, como veremos adiante, a ausência de informações sobre preferências (que incluem também as aversões) por tipos de restaurante e determinados pratos nos impediria, de qualquer maneira, de operacionalizar adequadamente o referido princípio.

Diferentemente, há um conjunto de estudos que sublinham a crescente individualização do consumo no contexto das mudanças associadas à “alta modernidade” ou “modernidade tardia” ( Beck, 1992BECK, U. (1992), Risk society . Londres, Sage. ; Giddens, [1999] 2002GIDDENS, A. ([1999] 2002), Modernidade e identidade . Rio de Janeiro, Jorge Zahar. ). Contextos tradicionais da ação (como classe social e família) teriam um peso cada vez menor na conformação dos estilos de vida e das escolhas de consumo. Em um contexto marcado pela elevação das condições gerais de vida, pela intensificação dos fluxos de mobilidade geográfica e pela crescente disponibilidade de formas alternativas de identidade, entre outros fatores, preocupações de status e identidades de classe dariam lugar crescentemente a um novo “regime” de construção do eu, baseado na reflexividade. Com a ampliação das oportunidades de escolha (e também dos riscos associados a isso), os indivíduos seriam crescentemente responsáveis pela construção de trajetórias de vida em termos de uma “biografia do eu”. Nas palavras de Giddens (2002GIDDENS, A. ([1999] 2002), Modernidade e identidade . Rio de Janeiro, Jorge Zahar. , p. 79), “nas condições da alta modernidade, não só seguimos estilos de vida, mas num importante sentido somos obrigados a fazê-lo – não temos escolha senão escolher”. Não apenas seria mais difícil observar qualquer relação significativa entre padrões de consumo alimentar (se é que podemos delineá-los claramente) e a estrutura de desigualdades sociais, como também o consumo seria cada vez menos um domínio em que as desigualdades sociais de vários tipos seriam produzidas e reproduzidas e cada vez mais um domínio de construção das chamadas “narrativas particulares da autoidentidade”.

A meu ver, a hipótese das homologias permite apreender mais adequadamente os processos empíricos conectando posições sociais e práticas alimentares .

Dados e métodos

Os dados utilizados neste estudo fazem parte da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). A POF tem como objetivo principal mensurar os gastos familiares e individuais com um conjunto de produtos e serviços (alimentação, vestuário, produtos de higiene pessoal, educação, saúde etc.), os rendimentos e também parte do patrimônio familiar (por exemplo, posse de automóveis, computadores, eletrodomésticos etc.). A POF disponibiliza também informações sobre as dimensões subjetiva e objetiva das condições de vida de domicílios e famílias. Os dados da POF mais recente, utilizada neste estudo, foram coletados entre maio de 2008 e maio de 2009 a partir de uma amostra de 55.970 domicílios (190.159 indivíduos), representativa da população brasileira de todas as regiões do país (nos setores urbano e rural). Os dados que aqui nos interessam fazem parte predominantemente do registro de consumo alimentar, coletados a partir de uma subamostra composta por 13.569 domicílios e 34.003 indivíduos. Tal registro fornece informações sobre o consumo de alimentos e bebidas por indivíduos de diferentes unidades de consumo durante dois dias, além de informações sobre a forma de preparo e a fonte do alimento (se dentro ou fora do domicílio), o horário em que foi consumido e a quantidade consumida. 3 3 O domicílio constitui a unidade amostral da pesquisa. Conforme a definição empregada pelo IBGE, domicílio “é a moradia estruturalmente separada e independente, constituída por um ou mais cômodos, sendo que as condições de separação e independência devem ser satisfeitas.” A unidade de consumo ou família é a unidade básica de investigação, compreendendo “um único morador ou conjunto de moradores que compartilham da mesma fonte de alimentação, isto é, utilizam um mesmo estoque de alimentos e/ou realizam um conjunto de despesas alimentares comuns” (IBGE, 2011, p. 18). Foram considerados os registros de consumo alimentar do chefe da unidade de consumo e, quando existentes, os do/a) cônjuge e dos filhos, descartando informações sobre o consumo alimentar de outros parentes, de empregados domésticos e seus parentes no domicílio. A base de dados assim construída possui 12.509 chefes, 8.692 cônjuges e 10.117 filhos. Quando aplicado o fator de expansão 4 4 “Cada domicílio pertencente à subamostra da POF representa um determinado número de domicílios particulares permanentes da população (universo) de onde a amostra original foi selecionada. Com isso, a cada domicílio da subamostra está associado um peso amostral ou fator de expansão que, atribuído às características investigadas pela POF, permite a obtenção de estimativas das quantidades de interesse para o universo de pesquisa” (IBGE, 2011, p. 27). da amostra, o total alcança quase 150 milhões de indivíduos.

São considerados, adicionalmente, os registros da POF referentes a gastos domiciliares com serviços domésticos, à caderneta coletiva (gastos alimentares) e à avaliação subjetiva das condições de vida da unidade de consumo. 5 5 Na ausência de dados mais adequados para mensurar a distância relativa às injunções da necessidade material, fez-se uso de três questões derivadas do registro de avaliação de condições de vida, tomadas, então, como indicadores (imprecisos) daquela condição. A primeira é: “Das afirmativas a seguir, qual aquela que melhor descreve a quantidade de alimentos consumido por sua família?”. As afirmativas são: “Normalmente não é suficiente”, “Às vezes não é suficiente”, “É sempre suficiente”. A segunda é: “Das afirmativas a seguir, qual aquela que melhor descreve o tipo de alimento consumido por sua família?”. Entre as respostas possíveis, encontramos: “Sempre do tipo que quer”, “Nem sempre do tipo que quer”, “Raramente do tipo que quer”. Àqueles que escolheram as duas últimas categorias de resposta, foi feita outra questão: “qual a razão de sua família não estar se alimentando do tipo que quer?”. Os respondentes puderam, então, escolher entre as seguintes respostas: “Porque a renda não permite”, “Os alimentos que a família quer não são encontrados no mercado”, “Outras razões”. Mais informações em biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/instrumentos_de_coleta_doc2623.pdf (consultado em 6/2/2018).

O método principal para análise e interpretação dos dados é a análise de correspondências múltiplas (ACM), por ser uma técnica estatística bastante útil para revelar padrões subjacentes à distribuição de dados categóricos. Podemos examinar as relações entre as categorias (ou modalidades) das variáveis incluídas na análise e, então, identificar os eixos que as separam relacionalmente, traçando com isso as distâncias ou proximidades relativas entre elas ( Bennett et al. , 2009BENNETT, T.; SAVAGE, M.; SILVA, E.; WARDE, A.; GAYO-CAL, M. & WRIGHT, D. (2009), Culture, class, distinction . Nova York, Routledge. ). Uma das principais vantagens dessa técnica está na minimização dos riscos de uma leitura substancialista da relação entre uma dada prática e uma dada categoria social (como, por exemplo, se o consumo de determinado alimento ou modo com que é consumido fosse sempre um indicador preciso de um pertencimento social específico). Em vez disso, e por permitir reconstruir indutivamente as principais divisões que estruturam o espaço social e o espaço simbólico, essa abordagem é mais adequada a uma leitura relacional (por meio da observação das proximidades ou distâncias relativas das modalidades no espaço de correspondências) do sentido e do valor, sempre mutáveis porque disputados, das propriedades e das práticas dos agentes.

Como o nosso objetivo principal é identificar os padrões subjacentes ao consumo alimentar, construímos um modelo em que as variáveis que mensuram aspectos das práticas alimentares (tipo de alimento consumido e forma de preparo) são inseridas como ativas , enquanto as variáveis de perfil do indivíduo (sexo e idade) ou de caracterização da unidade de consumo (por meio de indicadores de capital econômico e de capital cultural) são inseridas como suplementares , que não interferem no cálculo das distâncias relativas e na construção dos eixos.

Análise dos dados

Na segunda coluna na Tabela 1 podemos observar as proporções de indivíduos que consumiram um tipo de alimento e a forma com que foi preparado. Notamos que boa parte dos indivíduos na amostra registrou o consumo de arroz e feijão em três ou mais refeições em dois dias, indicando ser bastante comum a presença desses dois alimentos nas principais refeições diárias. Destacamos, ainda, o consumo de hortaliças (frutosas e folhosas), massas, pães, manteiga ou requeijão, frutas, sucos, bolachas, cafés, carne bovina e carne de frango. Diferentemente, há alimentos cujo consumo é relativamente mais raro, como os iogurtes, queijos, frios, pescados, carne de porco. Em relação às formas de preparo, predominam as frituras e o cozimento, em comparação com o consumo de alimentos crus, grelhados ou com molhos.

Tabela 1
Frequências Relativas e Contribuições das Modalidades Ativas da ACM

A ACM aplica-se a bases de dados de tipo I × Q, em que cada linha representa um indivíduo e cada coluna, uma variável, correspondendo, portanto, cada célula a um código numérico que representa uma categoria (a resposta do indivíduo a uma determinada questão). Como os dados na POF estão organizados de maneira diferente, na qual cada linha corresponde a um registro de consumo alimentar, procedeu-se a uma reestruturação do banco, seguida de uma recodificação das variáveis. O uso da ACM permite apreender padrões no consumo alimentar dos indivíduos, caso existam, e os fatores que estruturam os referidos padrões. Como nosso objetivo é o de identificar possíveis padrões no consumo alimentar, o modelo construído inclui as variáveis referentes ao consumo de alimentos e à forma de preparo como ativas ; as demais, como suplementares.

A ACM gera dois resultados principais, uma nuvem de modalidades (ou categorias) e outra de indivíduos. Podemos chamá-las também de “mapas relacionais”, porque a interpretação que fazemos dos significados das modalidades depende das posições relativas que elas ocupam. Quanto mais duas modalidades são escolhidas pelas mesmas pessoas, menor a distância relativa que as separa no espaço de correspondências . De forma similar, quanto mais próximos os padrões de resposta dos indivíduos, mais próximos estarão os pontos que os representam no espaço . Além disso, quanto menos frequente for uma modalidade ou um padrão de resposta, mais distante do centro da nuvem estará o ponto que representa a modalidade ou o indivíduo.

A representação gráfica das referidas nuvens depende da escolha dos eixos que serão retidos para interpretação. O número de eixos é calculado com base na seguinte fórmula: (K – Q), em que K é o número de modalidades ativas e Q, o número de variáveis ativas. O modelo aqui construído tem 93 modalidades ativas e 39 variáveis ativas. Nele, 54 eixos “cortam” as nuvens de modalidades e de indivíduos, que “explicam” uma porção variável da variância total das nuvens, que corresponde ao valor puro ( eigenvalue ) do eixo. A variância total das nuvens é dada pela seguinte fórmula: (K / Q – 1). Os critérios para retenção dos eixos são a proporção da variância total “explicada” por cada eixo, a “separação” entre eles (mensurada por meio do screetest ) 7 7 Esse teste representa graficamente os valores puros em ordem descendente de magnitude pelo número do fator e, então, determina entre quais fatores a linha que conecta tais valores está nivelada. e pertinência teórica das oposições apreendidas em cada um. Levando em conta esses critérios, este estudo considerará apenas os três primeiros eixos, que, considerados conjuntamente, incluem quase 80% da variância total ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Valores Puros (engenvalues) Modificados, Taxas Modificadas dos Valores Puros e Porcentagem Acumulada

O primeiro eixo ( Figura 1 ), que “explica” pouco mais de 50% da variância das nuvens, é estruturado por um conjunto de oposições entre o leve, o caro, o saudável, o diverso e o fácil de preparar, de um lado, e o pesado, o barato, gorduroso, o repetitivo, e de mais difícil preparação, de outro. 8 8 A descrição dos eixos considerará as contribuições e localizações relativas das modalidades ativas. Serão consideradas apenas aquelas com contribuição acima da média para a variância do eixo (100/93, neste caso, 1,075). Os resultados completos podem ser requisitados ao autor por e-mail. Acima do eixo, estão as modalidades indicativas do consumo de alimentos mais leves e/ou de fácil preparo, como queijos, iogurtes, frutas (banana, laranja, mamão, maçã), 9 9 Essas e outras modalidades podem ser visualizadas no plano dos eixos 1 e 2 como passivas. Para melhor visualização das oposições reveladas pelo eixo 1, optou-se por não as inserir na figura. Modalidades são inseridas como passivas – não sendo consideradas para a construção dos eixos e cálculo das distâncias relativas – ou porque são pouco frequentes (menos do que 5%), ou porque, quando inseridas como ativas, produzem um alargamento excessivo das nuvens, prejudicando, com isso, a observação das oposições, ou porque estão incluídas em categorias mais amplas já inseridas como ativas (neste caso, por exemplo, as categorias “bananas” ou “laranjas” estão incluídas na categoria mais ampla “frutas”). Embora as modalidades passivas não contribuam para a construção dos eixos e distâncias relativas, podem ajudar na interpretação das oposições observadas em cada eixo. Para isso, são consideradas duas medidas, localização e valores-teste. pães, as hortaliças folhosas (como rúcula ou alface), as conservas, os lanches, os sucos (entre as modalidades passivas, observamos a que indica o consumo de geleias e de gelatinas); as modalidades que indicam o consumo de alimentos grelhados e crus; a que indica o uso de adoçantes (entre as modalidades suplementares, o pão integral, alimentos light , leite desnatado), e também a modalidade indicativa do consumo de carnes “magras” (como picanha, filé mignon, maminha etc.). Nessa região do eixo, localizam-se também as modalidades que indicam menor consumo de arroz e feijão (em uma ou duas refeições diárias) e da ausência do consumo de cafés. No lado oposto do eixo, estão as modalidades que indicam maior consumo de arroz e feijão (ao menos três registros nos dois dias), o que provavelmente significa uma repetição de pratos similares nas principais refeições diárias, e também de maior quantidade de café. Vemos, ainda, as modalidades indicativas do consumo de carnes bovinas (com exceção das carnes magras, localizadas em região oposta do eixo) e ovos em duas ou mais refeições, do consumo de alimentos feitos a partir de farinhas (sobretudo da farinha de mandioca), o cuscuz e, sobretudo, de alimentos fritos, além do uso de açúcar. Observa-se, por fim, a ausência do consumo de alimentos de fácil preparo (queijo, frutas, suco, pães) e também de lanches (ou salgados).

Figura 1
Nuvem de Categorias que Mais Contribuem para o Eixo 1*

As oposições em termos das práticas alimentares antes descritas (quanto ao tipo e à forma de preparo dos alimentos) expressam provavelmente condições muito desiguais de existência marcadas pela distância maior ou menor à necessidade material, que podem levar os agentes, por meio das disposições incorporadas, a privilegiar a forma ou a função das refeições ( Bourdieu, 2008BOURDIEU, P. ([1979] 2008), A distinção: crítica social do gosto . Porto Alegre/São Paulo, Zouk/Edusp. ). No campo da alimentação, o gosto pelo necessário tende a levar os agentes a classificar os alimentos conforme sua capacidade de manter o corpo – visto como um meio ou instrumento para fins diversos – e a privilegiar aqueles que “dão sustentação” a ele, de acordo com as representações socioculturais existentes. Esse argumento pode ser evidenciado quando observamos como se distribuem, ao longo do primeiro eixo, as categorias referentes à percepção subjetiva quanto às condições de alimentação dos indivíduos ( Figura 4 ). Abaixo do eixo (onde estão as categorias que indicam “preferências” por alimentos mais pesados, gordurosos, de preparo mais demorado), encontram-se as modalidades que indicam que as famílias não têm acesso aos alimentos que desejam (“alimento–”) ou na quantidade que entendem suficiente (“suficiente+”) e que enfrentam muita dificuldade para satisfazer as demandas por alimentação familiar com a renda disponível (“difícil+”).

Contrariamente, a elevação da distância relativa à necessidade material tende a se expressar, no plano simbólico, através da autoimposição de um conjunto de proibições que levam à preferência por pratos relativamente leves, saudáveis, de fácil preparo, conforme as representações vigentes. Assim, vemos que, na região superior (onde estão as modalidades que indicam preferências desse tipo), estão as modalidades que indicam que as famílias têm acesso aos alimentos que desejam (“alimento+”), em quantidade suficiente (“suficiente–”) e que não consideram difícil satisfazer as necessidades de alimentação com a renda disponível (“difícil–”).

É provável também que as oposições observadas ao longo do primeiro eixo (leve × pesado; grelhado × frito; cru × cozido; saudável × gorduroso) sejam conformadas tanto por diferentes disposições em relação ao corpo , que impõem níveis variáveis de controle sobre a ingestão dos alimentos segundo os efeitos mais ou menos desejáveis que têm sobre o corpo, como por diferentes representações acerca das relações de gênero . Quando projetamos as variáveis referentes aos gastos (individuais) com cuidados pessoais (produtos ou serviços de higiene e cuidado pessoal) e aos gastos (familiares) com serviços domésticos (por exemplo, faxineira), observamos a existência de correlações positivas (da ordem, respectivamente, de 0,25 e 0,21) com o primeiro eixo ( Figura 4 ). 10 10 A direção da seta indica o sentido da correlação, quer dizer, os gastos com cuidados pessoais tendem a ser maiores entre aqueles que escolheram as categorias que estão acima do eixo; a amplitude da seta indica a magnitude da correlação. Ainda que a magnitude das correlações não seja elevada, o sentido delas aponta para uma correspondência entre preferências por alimentos leves, saudáveis, de fácil preparo e gastos mais elevados com cuidados de si e com serviços domésticos, sugerindo que a preferência por alimentos desse tipo está provavelmente associada a uma maior preocupação com os efeitos da ingestão dos alimentos sobre a saúde e forma corporais, bem como a uma certa divisão de trabalho entre os sexos, em que a mulher está relativamente mais liberada das tarefas relacionadas com a reprodução familiar (Bertoncelo, 2010).

No segundo eixo ( Figura 2 ), que “explica” pouco mais de 18% da variância total, há um conjunto de oposições entre uma dieta mais “rica” e outra mais “pobre” ou “escassa”, em termos da quantidade e variedade de alimentos. À direita do eixo, as categorias indicativas do consumo de cuscuz, sopas e também do consumo de arroz e feijão em, no máximo, uma única refeição diária. São também importantes para a caracterização do eixo as categorias que indicam a ausência do consumo de hortaliças folhosas ou frutosas, batatas, frutas (e de alimentos crus em geral), pães, carnes bovinas, e, por fim, de frituras. Do lado oposto, observamos as categorias indicativas do consumo mais frequente de arroz e feijão, provavelmente em duas refeições diárias, carnes bovinas e suínas em ao menos uma delas, carne de porco, hortaliças (frutosas, folhosas e/ou tuberosas, como as batatas), de alimentos cozidos e crus, além de frutas.

Figura 2
Nuvem de Categorias que Mais Contribuem para o Eixo 2

Figura 3
Nuvem de Categorias que Mais Contribuem para o Eixo 3

Figura 4
Nuvem de Categorias Suplementares (eixo 1)

Por fim, o terceiro eixo, que “explica” cerca de 10% da variância total, está estruturado em torno da oposição entre o consumo de refrigerantes, lanches, achocolatados, de alimentos fritos ou preparados com molhos (como o macarrão), além da ausência de consumo de cafés e frutas, de um lado, e o consumo de frutas, sopas, cafés, chás, pescados, alimentos feitos à base de farinhas (como o cuscuz), por outro.

Quando são projetadas as variáveis referentes às propriedades dos agentes (mensuradas ao nível individual ou familiar), 11 11 Diferentemente das ativas, as variáveis e modalidades suplementares não contribuem para a construção dos eixos ou para o cálculo das distâncias relativas. Diferentemente das modalidades passivas , elas têm uma função “explicativa”, ou seja, ajudam na investigação dos determinantes das oposições apreendidas em cada eixo. nota-se uma elevada correlação entre as oposições apreendidas pelo primeiro eixo e o volume de capital (econômico e cultural) possuído pelos agentes. 12 12 São consideradas significativas as distâncias entre as categorias das variáveis suplementares iguais ou superiores a 0,5. Nesse caso, pode-se dizer que existe uma correlação entre tais variáveis e o eixo considerado ( Le Roux e Rouanet, 2010 ). Mais do que isso, há evidências de que os padrões alimentares são conformados pela posição relativa que o agente ocupa no espaço social . Observamos uma distribuição monotônica, da parte inferior para a superior do eixo, das categorias de classe (operacionalizada a partir de dezessete agregados ocupacionais) 13 13 São elas: profissionais; professores universitários; empregadores com cinco ou mais empregados; empregadores com menos de cinco empregados; quadros superiores (diretores; executivos); quadros médios (gerentes; supervisores); professores; produtores artísticos e culturais; técnicos de nível médio; trabalhadores não manuais de rotina; supervisores de trabalho manual; trabalhadores manuais qualificados; trabalhadores manuais não qualificados; trabalhadores por conta própria urbanos; empregadores agrícolas; trabalhadores por conta própria no campo; trabalhadores rurais. e dos indicadores de capital econômico e cultural, como as categorias de escolaridade máxima no domicílio (considerando a escolaridade do/a chefe e a do/a cônjuge), 14 14 São elas: pós-graduação; superior completo e incompleto; médio completo e incompleto; fundamental 2 (ou equivalente) completo ou incompleto; fundamental 1 (ou equivalente) completo ou incompleto; não frequentou. renda domiciliar (em faixas de salários mínimos), as da posse de automóveis e aquelas do índice que mede a posse de bens no domicílio. 15 15 O índice possui cinco categorias (baixo, médio-baixo, médio, médio-alto, alto) e foi construído a partir de uma soma ponderada de diversos eletrodomésticos (geladeira, fogão, máquina de lavar roupa, máquina de lavar louça, rádio, ar condicionado etc.) e eletrônicos (computador, televisão etc.). Posteriormente, o índice foi recodificado em faixas. Em outros termos, conforme sobe a hierarquia social, medida em termos do volume de capital, tornam-se mais prováveis as preferências por refeições leves, magras, saudáveis, de fácil preparo. Vemos, ainda, que os pontos médios das categorias dos trabalhadores manuais agrícolas estão firmemente localizados na parte inferior do eixo, assim como aqueles das categorias dos trabalhadores manuais não qualificados e dos trabalhadores por conta própria urbanos. 16 16 O ponto médio representa exatamente a média das posições relativas dos indivíduos que formam uma subnuvem qualquer (por exemplo, profissionais) em um determinado eixo, quando ela é projetada sobre um plano qualquer. Ainda que constitua uma informação relevante, o ponto médio não nos diz muita coisa sobre a dispersão da subnuvem no plano formado por dois eixos. Próximo ao centro do eixo, estão os pontos médios das categorias dos trabalhadores manuais qualificados e dos supervisores de trabalho manual. Um pouco acima, os pontos médios das categorias de trabalhadores não manuais de rotina, quadros médios, técnicos, professores e artistas. Por fim, na parte superior, estão os pontos médios das categorias dos professores universitários, profissionais, empregadores com mais de cinco empregados e quadros superiores.

O segundo eixo, em que se observa uma oposição entre o “variado” e o “escasso”, tem alguma correlação com as variáveis referentes à região do país e à raça/cor autodeclarada. Do lado do eixo onde estão localizadas as categorias indicativas do consumo de cuscuz e alimentos à base de farinhas, sopas e o consumo menor de arroz e feijão, além da ausência do consumo de hortaliças de vários tipos, carnes bovina e suína e de frutas também se localizam os pontos médios das categorias que representam os indivíduos moradores das regiões Norte e Nordeste e daquela de indivíduos que se autodeclararam indígenas. Diferentemente, do outro lado, estão os pontos médios resultantes da projeção no plano bidimensional das subnuvens de indivíduos moradores de outras regiões e os pontos das subnuvens de indivíduos que se autodeclararam amarelos ou brancos ( Figura 5 ).

Figura 5
Nuvem de Categorias Suplementares (eixos 2 e 3)

Por fim, o terceiro eixo está fortemente correlacionado com idade. O consumo de lanches, refrigerantes, achocolatados, de alimentos fritos ou preparados à base de molhos, além da ausência do consumo de frutas e cafés é protagonizado pelos mais jovens, enquanto o consumo de cafés, chás, pescados, frutas e farinhas é mais provável entre os mais velhos.

Em suma, os resultados discutidos nos permitem evidenciar a existência de lógicas relacionais em operação na produção do consumo alimentar. A interpretação das oposições reveladas no primeiro eixo sugere um protagonismo de agentes dotados de maior volume de capital econômico e cultural (conforme os indicadores aqui construídos) na região do “mapa relacional” em que se concentram as categorias indicadoras do consumo de alimentos leves (como as frutas), magros (adoçantes, hortaliças folhosas) e de fácil preparo (alimentos crus ou grelhados), em comparação com os agentes privados dos capitais mais valorizados que se encontram na região do eixo que concentra as categorias indicadoras do consumo de arroz e feijão nas principais refeições diárias, além de carnes bovinas, ovos, farinhas e alimentos cujo preparo provavelmente envolve maior investimento de tempo (são mais frequentes então os registros do consumo de alimentos cozidos ou fritos em comparação com os alimentos crus e grelhados).

É provável, portanto, que os agentes com maior volume de capital econômico e cultural (entre eles, os profissionais, professores universitários, empregadores com mais de cinco empregados, quadros superiores ou médios no setor público ou privado) sejam os protagonistas na adoção de um consumo alimentar que não apenas incorpora as normas que se impõem como legítimas no campo da alimentação ( Santos, 2008SANTOS, Ligia (2008), O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais alimentares cotidianas a partir da cidade de Salvador – Bahia . Salvador, Edufba. ; Pulici, 2014PULICI, C. (2014), “A alimentação solene e parcimoniosa: práticas gastronômicas como fonte de distinção das elites brasileiras”. Revista Ecopós , 17 (3): 1-15. ) e dos cuidados corporais e da apresentação de si ( Bourdieu, 2008BOURDIEU, P. ([1979] 2008), A distinção: crítica social do gosto . Porto Alegre/São Paulo, Zouk/Edusp. ), mas também revela uma economia doméstica com divisão mais igualitária de poder entre os sexos, a qual envolve frequentemente a presença da figura da empregada doméstica no domicílio.

Para avançar na fundamentação empírica desse argumento, proponho a utilização complementar de técnicas de análise de correspondências múltiplas e de classificação hierárquica de cluster . Enquanto

[...] a utilização da ACM revela-se insubstituível pelas suas capacidades de descrição em forma de continuum [...] a utilização da classificação hierárquica permite ultrapassar algumas das dificuldades decorrentes da aplicação exclusiva da ACM, nomeadamente as que passam pela interpretação de proximidades geradas por fatores para além do plano principal e pela compressão excessiva e deformação dos dados ( Pereira, 2005PEREIRA, J. V. (2005), Classes e culturas de classe das famílias portuenses: classes e “modalidades de estilização da vida” na cidade do Porto . Porto, Afrontamento. , p. 198).

A referida combinação entre técnicas nos permite classificar os indivíduos em clusters ou agrupamentos, levando em conta suas coordenadas em todos os eixos da ACM . Os agrupamentos assim construídos delimitam zonas nos mapas relacionais, que podem ser entendidas, em função dos dados aqui utilizados, como diferentes regimes alimentares, quer dizer, combinações entre tipos e quantidades de alimentos/bebidas em diferentes refeições e de diferentes formas de prepará-los. 17 17 Isso não quer dizer que os clusters construídos esgotem a provável diversidade de regimes alimentares existentes na sociedade brasileira. Estivessem disponíveis outros indicadores (como respostas a questões sobre alimentos preferidos ou rejeitados, frequência com que come fora e que tipo de comida etc.), teríamos nuvens de modalidades e de indivíduos diferentes daquelas aqui apresentadas e, portanto, diferentes agrupamentos ou regimes alimentares. A observação do dendograma nos sugere cortes em 4, 6 ou 7 agrupamentos ( Figura 6 ). Será privilegiado um corte com seis agrupamentos em função do maior detalhamento que essa escolha nos oferece. 18 18 A opção de corte com sete agrupamentos resultava em dois clusters muito similares, por isso, escolhemos trabalhar com seis.

Figura 6
Dendograma da Análise de Classificação Hierárquica 20 20 Eventuais discrepâncias entre os percentuais exibidos no dendograma e os percentuais mencionados na descrição dos agrupamentos resultantes da ACH decorrem do procedimento de consolidação dos clusters. No dendograma, são exibidos os percentuais anteriores à consolidação; na descrição, são usados os percentuais após o procedimento. Neste caso, a consolidação ocorreu após a sétima iteração, pois o ganho relativo da inércia intercluster em relação à iteração anterior foi de apenas 0,062%.

O primeiro agrupamento ( Tabela 3 ), que inclui quase 14% da amostra, é fortemente caracterizado pelo consumo de alimentos crus e leves, como as frutas (banana, maçã, laranja, mamão etc.), as hortaliças folhosas ou frutosas (alface, couve, tomate), chá e as sopas, de alimentos magros (como o pão integral, leite desnatado, produtos light , adoçante, as carnes grelhadas, cereais), daqueles de fácil preparo (sucos, queijos, frios, pães, iogurte etc.) e/ou dos alimentos “saudáveis” (como os orgânicos). 19 19 Para a caracterização dos agrupamentos, foram consideradas as categorias ativas e suplementares com os maiores valores-teste ( t-values ), negativos ou positivos. Tais valores foram calculados a partir da diferença entre a proporção da categoria na amostra e a proporção dela no agrupamento. Valores-teste superiores a zero significam que a categoria (por exemplo, consumo de banana) está sobrerrepresentada em determinado agrupamento. De forma correlata, valores teste inferiores a zero implicam que a categoria está subrepresentada. Os valores-teste poderiam ser interpretados como coeficientes de correlação, ou seja, quanto maiores os valores, maior a correlação entre uma dada categoria e um agrupamento. São aqui considerados apenas as categorias com os maiores valores-teste, positivos ou negativos. Vemos, ainda, que o regime alimentar aqui caracterizado inclui o consumo de arroz e feijão em no máximo uma refeição diária (que se infere pela presença de até dois registros do consumo desses alimentos nos dois dias). Há, ainda, a “evitação” (entendida como ausência de registro de consumo) de açúcar, alimentos fritos, ovos, carnes processadas (como as salsichas), cuscuz e outros alimentos à base de farinhas e do consumo de arroz e feijão em mais do que uma refeição diária. Esse regime alimentar é marcado pela maior diversidade relativa em termos da quantidade de registros de alimentos diferentes consumidos, sobretudo no desjejum e no almoço, e pelo menor peso relativo de cada um. Ou seja, são consumidas porções menores de uma quantidade maior de alimentos .

Tabela 3
Lista de Categorias Caracterizadoras do Primeiro Agrupamento*

É provável que as escolhas alimentares dos indivíduos nesse agrupamento tenham como condição de possibilidade a distância relativa à necessidade material: são elevadas as proporções dos domicílios nos quais a quantidade de alimentos é considerada suficiente, se tem acesso aos alimentos desejados e a renda é percebida como satisfatória para as exigências do consumo alimentar da família. Quando esse agrupamento é caracterizado em termos do perfil demográfico e social dos indivíduos a ele pertencentes, nota-se um protagonismo de indivíduos e domicílios com volume elevado de capital econômico e cultural, conforme os indicadores aqui utilizados: são relativamente elevadas as proporções de domicílios com pertencimentos de classe, conforme a ocupação do/a chefe e/ou do/a cônjuge, entre os profissionais, professores, técnicos, quadros superiores e médios, e empregadores mais capitalizados (com mais de cinco empregados), de domicílios em que chefe e/ou cônjuge possuem pós-graduação ou ensino superior completo e com renda per capita acima de cinco salários mínimos. Destaca-se, ainda, em comparação com o perfil amostral, a presença de indivíduos do sexo feminino, brancos, com 35 anos ou mais e residentes nas regiões Sul e Sudeste.

O segundo agrupamento ( Tabela 4 ), que inclui pouco menos de 15% da amostra, é similar ao primeiro em termos da importância relativa do consumo de alimentos leves (grelhados, carnes magras, como o filé mignon, carne de frango) e daqueles de fácil preparo (conservas, queijos, frios, iogurtes, sucos), do consumo “moderado” de arroz e feijão (em uma refeição diária), além da menor presença na dieta de alimentos cozidos (indicando provavelmente menor investimento no trabalho de preparação de alimentos) e fritos, de alimentos à base de farinha (cuscuz) e ovos, bem como do consumo de arroz e feijão em mais do que uma refeição diária. Diferentemente do primeiro, no entanto, podemos observar maior importância do consumo de lanches e pizzas (sendo a fonte desses alimentos mais frequentemente externa ao domicílio) e a ausência do consumo de frutas e de cafés. Como o anterior, observa-se a presença relativamente elevada de indivíduos residentes em domicílios em que o/a chefe e/ou cônjuge tem, ao menos, o ensino superior completo ou incompleto, em que renda per capita é maior ou igual a cinco salários mínimos e com pertencimentos de classe bem delimitados (trabalhadores não manuais de rotina, profissionais, empregadores urbanos, quadros superiores e médios, técnicos e trabalhadores manuais qualificados). Há também um leve protagonismo de indivíduos brancos, jovens (até 24 anos), residentes em capitais.

Tabela 4
Lista de Categorias Caracterizadoras do Segundo Agrupamento

Ocupando posições relativas opostas aos agrupamentos anteriores no primeiro eixo, estão os agrupamentos 3 e 4, que caracterizam, por isso mesmo, regimes alimentares muito distintos ( Tabelas 5 e 6 ). 21 21 Tomando a figura 1 como referência (construída a partir dos eixos 1 e 2), os pontos médios dos agrupamentos 1 e 6 estão no quadrante superior esquerdo; aquele do agrupamento 2, no quadrante superior direito; aqueles dos agrupamentos 4 e 5, no quadrante inferior direito, e, por fim, o ponto médio do agrupamento 3 está localizado no quadrante inferior esquerdo. O terceiro agrupamento inclui cerca de 23% da amostra e caracteriza-se pelo consumo mais frequente de arroz e feijão nas principais refeições diárias (almoço e jantar), como se infere pela proporção de indivíduos que registraram o consumo de tais alimentos três ou mais vezes durante os dois dias de observação, respectivamente 96,3% (ante 43% na amostra) e 87,4% (ante 30% na amostra). Além disso, o agrupamento revela um regime alimentar baseado no consumo mais frequente de carnes bovinas, frango ou suína, ovos, algumas hortaliças tuberosas e frutosas (como as batatas e as abóboras) e alimentos fritos. São raros os registros de consumo de alimentos grelhados ou crus (como as frutas), com exceção de algumas hortaliças (tomate, alface), as massas, sopas, lanches, alimentos à base de farinhas, light ou integrais, aqueles de fácil preparação (queijos, iogurte, frios, cereais) e os lanches, revelando provavelmente uma economia doméstica marcada pelo maior investimento no preparo de alimentos . Quando se observa a quantidade de alimentos consumidos em diferentes horários, percebe-se que as duas principais refeições nesse regime alimentar tendem a ser o almoço (média de 8,17 registros de consumo alimentar ante 7,8 na amostra) e o jantar (média de 6,13 registros de consumo alimentar ante 4,96 na amostra), diferentemente do desjejum, que apresenta número médio de registros inferior à média amostral (5,3 ante 5,6). 22 22 Foram considerados como parte do desjejum os registros de consumo alimentar feitos entre 5 e 10 horas; almoço, entre 11 e 14 horas; jantar, entre 19 e 22 horas. Tal evidência indica que as diferenças entre regimes alimentares não estão apenas no tipo de alimento consumido, na forma de prepará-lo ou em sua fonte (se interna ou externa ao domicílio), mas, também, na quantidade de refeições feitas ao longo do dia e na importância que os indivíduos conferem a cada uma . Quando se observam as propriedades dos indivíduos e famílias incluídos neste agrupamento, nota-se que predominam os homens, pretos ou pardos, pertencentes a famílias com níveis baixos de capital econômico (renda per capita de 1 ou 1,5 salários mínimos) e cultural (no máximo, o equivalente ao fundamental 2 incompleto), chefiadas por trabalhadores agrícolas, trabalhadores manuais não qualificados ou trabalhadores por conta própria nas cidades. A respeito da percepção das condições de consumo alimentar, há proporções significativas de chefes de família neste agrupamento que relataram ter dificuldade na obtenção dos alimentos para satisfazer as necessidades familiares de consumo de alimentos e que estes nem sempre são do tipo que se deseja.

Tabela 5
Lista de Categorias Caracterizadoras do Terceiro Agrupamento
Tabela 6
Lista de Categorias Caracterizadoras do Quarto Agrupamento

O quarto agrupamento, localizado do lado oposto ao segundo eixo em relação ao agrupamento anterior, indica a existência de um regime alimentar compartilhado por quase 16% da amostra e caracterizado pela importância relativa do consumo de alimentos à base de farinhas (como o cuscuz), pescados, ovos, carnes processadas (como a carne seca), de alimentos fritos, pratos de culinária local (como o baião de dois), açúcar e de quantidade maiores de café (três ou mais registros nos dois dias), além do consumo de arroz e feijão em uma refeição diária. Em compensação, é raro o consumo de frutas ou hortaliças, de alimentos de fácil preparação (queijos, frios, iogurtes, pães, conservas), de alimentos grelhados, light , integrais ou crus. O protagonismo neste agrupamento cabe aos indivíduos residentes na região Nordeste, em meio rural, pertencentes a famílias com perfis muito fragilizados em termos da dotação de capital econômico ou cultural e com pertencimentos de classe bem delimitados entre os trabalhadores agrícolas, trabalhadores manuais não qualificados ou por conta própria urbanos. É relativamente elevada aqui a percepção entre as famílias de que não têm acesso aos alimentos que desejam e na quantidade desejada e de que a renda é insuficiente para atender às necessidades coletivas de consumo alimentar.

O quinto agrupamento ocupa posição relativa próxima ao anterior no plano formado pelo cruzamento dos eixos 1 e 2, mas se opõe a ele em relação ao terceiro eixo ( Tabela 7 ). Os indivíduos aqui agrupados, que somam quase 20% da amostra, compartilham um regime alimentar marcado pela escassez . Este agrupamento exibe as menores médias de quantidade de registros de consumo alimentar (média de 16 registros diários ante mais de 21 na amostra) e as maiores médias em termos do peso unitário do alimento. Ou seja, são consumidos maiores porções de uma menor quantidade ou variedade de alimentos . Neste agrupamento, o regime alimentar é marcado pelo consumo sobretudo de alimentos à base de farinhas e pescados, arroz e feijão (uma única vez nos dois dias observados), pratos de culinária local (baião de dois), sopas, além de castanhas e pequena quantidade de café. Por sua vez, o consumo de um grande conjunto de alimentos (carnes de vários tipos, com exceção de peixes e frango, frutas, hortaliças, ovos, macarrão, lanches etc.) é raramente observado. Este agrupamento é caracterizado pelos níveis mais baixos do capital econômico e cultural possuído pelas famílias, sendo relativamente frequentes os domicílios em que chefe e/ou cônjuge possuem, no máximo, o equivalente ao primeiro nível incompleto do ensino fundamental e com renda per capita de até ½ salário mínimo. Há um protagonismo de indivíduos do sexo feminino, com 45 anos ou mais, pretos ou pardos e residentes nas regiões Norte e Nordeste, em meio rural. As condições de acesso à alimentação são também precárias, como no agrupamento anterior, se considerarmos a percepção dos indivíduos sobre a quantidade e qualidade dos alimentos disponíveis para consumo familiar.

Tabela 7
Lista de Categorias Caracterizadoras do Quinto Agrupamento

Por fim, o sexto agrupamento inclui cerca de 12% dos indivíduos da amostra e caracteriza-se sobretudo pelo consumo de macarrão, carne bovina (um único registro nos dois dias de observação), de frango ou processadas (salsichas), de batatas, de alimentos de fácil preparação (manteiga, pães, queijos, frios, sucos e achocolatados), e pelo uso de açúcar ( Tabela 8 ). Ao mesmo tempo, é raro o consumo de arroz e feijão, frutas, pescados, cafés ou alimentos à base de farinhas. Neste agrupamento, há um elevado protagonismo de indivíduos brancos, jovens (até 34 anos de idade), residentes na região Sul do país e pertencentes a famílias com níveis intermediários de capital econômico (posse de um carro, renda per capita acima de 1,5 salários mínimos) e cultural (ensino médio completo ou incompleto) e com pertencimentos de classe menos claramente delimitados, embora com presença relativamente marcante de trabalhadores manuais qualificados ou não.

Tabela 8
Lista de Categorias Caracterizadoras do Sexto Agrupamento

Conclusão

A existência de “zonas” bem delimitadas nos mapas relacionais construídos, que correspondem a regimes alimentares bem diferentes entre si, questiona a pertinência do argumento acerca da individualização do consumo. De fato, as “zonas” descritas apontam a existência de padrões de consumo alimentar fortemente estratificados e socialmente diferenciados. A meu ver, as evidências sugerem que a hipótese das homologias apreende adequadamente os processos empíricos conectando consumo alimentar e pertencimento social . Vimos, por exemplo, que o regime alimentar descrito no primeiro agrupamento incorpora muitas das normas que se impõem como legítimas no campo da alimentação: o consumo de alimentos leves, magros ou de fácil preparo (revelando uma economia doméstica menos exigente em termos do investimento na preparação de alimentos), combinado com a valorização das primeiras refeições do dia (desjejum e almoço, como se infere pela maior quantidade de registros de consumo alimentar nos horários em que tais refeições são tipicamente consumidas), evitando provavelmente o consumo de refeições “pesadas” no jantar (evidenciado, entre outras coisas, pelo consumo de arroz e feijão em, no máximo, uma refeição diária), são fenômenos tão mais frequentes quanto mais subimos a hierarquia social e quanto maior a distância em relação às injunções da necessidade material . Esse regime alimentar ainda se diferencia socialmente porque encontra entre seus portadores típicos as mulheres, dando a ver como as representações do impacto dos alimentos sobre o corpo influenciam o quê, quanto e como se come.

Com o objetivo de evidenciar os argumentos apresentados, é exibida uma representação gráfica ( Figura 7 ) da nuvem de indivíduos e das subnuvens dos indivíduos em alguns dos agrupamentos antes descritos e daquelas dos agregados ocupacionais ( proxy de posição de classe). Vemos que as elipses se sobrepõem amplamente, sobretudo aquelas que representam os dois primeiros agrupamentos (cujos regimes alimentares mais se aproximam do que é recomendado pela “nova moral gastronômica”) 23 23 A “nova moral gastronômica” faz referência a certas disposições em relação à alimentação que são altamente valorizadas em manuais de etiqueta e, conforme uma pesquisa recente, em meios sociais altamente exclusivos: “alimentação parcimoniosa” em oposição ao “apetite voraz”; “comer nos conformes” em oposição ao “comer sem formalidades” ( Pulici, 2014 ). O emprego do conceito me parece útil neste ponto para chamar atenção ao fato de que o padrão de consumo alimentar observado entre conjuntos de agentes mais bem dotados de capital econômico e cultural (pertencentes às categorias de profissionais ou professores universitários) revela alguns traços dessa moral, especialmente sobre as preferências por alimentos (considerados) mais leves e por pratos menores (em termos do peso), sobretudo no jantar. e as de professores universitários e de profissionais. A elipse agrupando os empregadores capitalizados estende-se um pouco mais para baixo em relação ao primeiro eixo. 24 24 Uma elipse inclui aproximadamente 86% dos indivíduos de uma subnuvem. As referidas sobreposições constituem evidência adicional sustentando a hipótese das homologias, quer dizer, de que há correspondências entre as práticas dos agentes e suas posições relativas no espaço social.

Figura 7
Subnuvens de Indivíduos no Plano Formado pelos Eixos 1 e 2

Se o regime alimentar antes descrito parece favorecer uma orientação em relação à alimentação que privilegia o controle e a restrição, aquele descrito no terceiro agrupamento, ao contrário, ao que tudo indica oferece uma combinação de alimentos mais “pesados” (consumo mais frequente de arroz e feijão, carnes, ovos, frituras, açúcar) no almoço e jantar, que parecem ser as principais refeições diárias aqui (em virtude da quantidade de registros de consumo alimentar feitos nos horários correspondentes a tais refeições). Tal regime alimentar encontra entre seus portadores típicos os homens, pretos ou pardos, trabalhadores manuais menos qualificados do campo ou da cidade, sugerindo com toda probabilidade a existência de uma orientação em relação à comida que a valoriza naquilo que ela oferece em termos de energia e sustentação para o corpo que é, ao mesmo tempo, um instrumento de trabalho.

Cabe, por fim, destacar que há dois agrupamentos de indivíduos (o quarto e o quinto), somando mais ou menos 36% da amostra, cujos regimes alimentares são marcados em medida considerável por dificuldades elevadas no acesso ao consumo alimentar – ou, em outras palavras, pela proximidade à necessidade material – que caracterizam indivíduos e famílias muito fragilizadas tanto em termos da dotação de capitais como dos pertencimentos de classe (trabalhadores manuais não qualificados no campo ou na cidade), além de socialmente diferenciados em termos da inserção regional (Norte e Nordeste), territorial (rural) e da cor (pardos e pretos).

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  • WARDE, Alan. (1997), Consumption, food and taste. Londres/Thousand Oaks (CA), Sage.
  • 1
    Para uma crítica a esse estudo, ver Flemmen e Hjellbrekke (2016)FLEMMEN, M. & HJELLBREKKE, J. (2016), “Not so fast: a comment on Atkinson and Deeming’s Class and cuisine in contemporary Britain: the social space, the space of food and their homology ”. The Sociological Review , 64 (1): 184-193. . Para a réplica, ver Atkinson (2016)ATKINSON, W. (2016), “Class and cuisine in contemporary Britain reheated: a reply to Flemmen and Hjellbrekke.” The Sociological Review , 64 (1): 194-201. . Uma pesquisa recente realizada na Dinamarca chega a resultados similares (Flemmen, Hjelbrekke e Jarnes, 2018).
  • 2
    Como tentei mostrar em outro texto (2018), a “hipótese das homologias” e o argumento acerca do onivorismo cultural não são propriamente explicações alternativas ao consumo cultural (e, provavelmente, ao consumo alimentar). De fato, a chamada “abertura à diversidade”, princípio subjacente ao onivorismo cultural, não é muito distante da “capacidade tolerante”, descrita por Bourdieu, que privilegia a transposição da disposição estética para domínios e bens “vulgares” ou, pelo menos, para longe das práticas simbolicamente consagradas, capacidade essa distribuída de modo socialmente desigual. Por isso, não a insiro aqui como uma terceira perspectiva para se investigar o consumo. Além disso, como veremos adiante, a ausência de informações sobre preferências (que incluem também as aversões) por tipos de restaurante e determinados pratos nos impediria, de qualquer maneira, de operacionalizar adequadamente o referido princípio.
  • 3
    O domicílio constitui a unidade amostral da pesquisa. Conforme a definição empregada pelo IBGE, domicílio “é a moradia estruturalmente separada e independente, constituída por um ou mais cômodos, sendo que as condições de separação e independência devem ser satisfeitas.” A unidade de consumo ou família é a unidade básica de investigação, compreendendo “um único morador ou conjunto de moradores que compartilham da mesma fonte de alimentação, isto é, utilizam um mesmo estoque de alimentos e/ou realizam um conjunto de despesas alimentares comuns” (IBGE, 2011, p. 18).
  • 4
    “Cada domicílio pertencente à subamostra da POF representa um determinado número de domicílios particulares permanentes da população (universo) de onde a amostra original foi selecionada. Com isso, a cada domicílio da subamostra está associado um peso amostral ou fator de expansão que, atribuído às características investigadas pela POF, permite a obtenção de estimativas das quantidades de interesse para o universo de pesquisa” (IBGE, 2011, p. 27).
  • 5
    Na ausência de dados mais adequados para mensurar a distância relativa às injunções da necessidade material, fez-se uso de três questões derivadas do registro de avaliação de condições de vida, tomadas, então, como indicadores (imprecisos) daquela condição. A primeira é: “Das afirmativas a seguir, qual aquela que melhor descreve a quantidade de alimentos consumido por sua família?”. As afirmativas são: “Normalmente não é suficiente”, “Às vezes não é suficiente”, “É sempre suficiente”. A segunda é: “Das afirmativas a seguir, qual aquela que melhor descreve o tipo de alimento consumido por sua família?”. Entre as respostas possíveis, encontramos: “Sempre do tipo que quer”, “Nem sempre do tipo que quer”, “Raramente do tipo que quer”. Àqueles que escolheram as duas últimas categorias de resposta, foi feita outra questão: “qual a razão de sua família não estar se alimentando do tipo que quer?”. Os respondentes puderam, então, escolher entre as seguintes respostas: “Porque a renda não permite”, “Os alimentos que a família quer não são encontrados no mercado”, “Outras razões”. Mais informações em biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/instrumentos_de_coleta_doc2623.pdf (consultado em 6/2/2018).
  • 6
    O cadastro de produtos de consumo alimentar contém mais de 1600 itens. Para facilitar a leitura dos dados, foram construídas 83 categorias para agrupá-los. Por exemplo, foi criada a categoria “pescados” para incluir os registros de consumo de diferentes tipos de peixe e de frutos do mar.
  • 7
    Esse teste representa graficamente os valores puros em ordem descendente de magnitude pelo número do fator e, então, determina entre quais fatores a linha que conecta tais valores está nivelada.
  • 8
    A descrição dos eixos considerará as contribuições e localizações relativas das modalidades ativas. Serão consideradas apenas aquelas com contribuição acima da média para a variância do eixo (100/93, neste caso, 1,075). Os resultados completos podem ser requisitados ao autor por e-mail.
  • 9
    Essas e outras modalidades podem ser visualizadas no plano dos eixos 1 e 2 como passivas. Para melhor visualização das oposições reveladas pelo eixo 1, optou-se por não as inserir na figura. Modalidades são inseridas como passivas – não sendo consideradas para a construção dos eixos e cálculo das distâncias relativas – ou porque são pouco frequentes (menos do que 5%), ou porque, quando inseridas como ativas, produzem um alargamento excessivo das nuvens, prejudicando, com isso, a observação das oposições, ou porque estão incluídas em categorias mais amplas já inseridas como ativas (neste caso, por exemplo, as categorias “bananas” ou “laranjas” estão incluídas na categoria mais ampla “frutas”). Embora as modalidades passivas não contribuam para a construção dos eixos e distâncias relativas, podem ajudar na interpretação das oposições observadas em cada eixo. Para isso, são consideradas duas medidas, localização e valores-teste.
  • 10
    A direção da seta indica o sentido da correlação, quer dizer, os gastos com cuidados pessoais tendem a ser maiores entre aqueles que escolheram as categorias que estão acima do eixo; a amplitude da seta indica a magnitude da correlação.
  • 11
    Diferentemente das ativas, as variáveis e modalidades suplementares não contribuem para a construção dos eixos ou para o cálculo das distâncias relativas. Diferentemente das modalidades passivas , elas têm uma função “explicativa”, ou seja, ajudam na investigação dos determinantes das oposições apreendidas em cada eixo.
  • 12
    São consideradas significativas as distâncias entre as categorias das variáveis suplementares iguais ou superiores a 0,5. Nesse caso, pode-se dizer que existe uma correlação entre tais variáveis e o eixo considerado ( Le Roux e Rouanet, 2010LE ROUX, H. & ROUANET, H. (2010), Multiple correspondence analysis . Londres, Sage. ).
  • 13
    São elas: profissionais; professores universitários; empregadores com cinco ou mais empregados; empregadores com menos de cinco empregados; quadros superiores (diretores; executivos); quadros médios (gerentes; supervisores); professores; produtores artísticos e culturais; técnicos de nível médio; trabalhadores não manuais de rotina; supervisores de trabalho manual; trabalhadores manuais qualificados; trabalhadores manuais não qualificados; trabalhadores por conta própria urbanos; empregadores agrícolas; trabalhadores por conta própria no campo; trabalhadores rurais.
  • 14
    São elas: pós-graduação; superior completo e incompleto; médio completo e incompleto; fundamental 2 (ou equivalente) completo ou incompleto; fundamental 1 (ou equivalente) completo ou incompleto; não frequentou.
  • 15
    O índice possui cinco categorias (baixo, médio-baixo, médio, médio-alto, alto) e foi construído a partir de uma soma ponderada de diversos eletrodomésticos (geladeira, fogão, máquina de lavar roupa, máquina de lavar louça, rádio, ar condicionado etc.) e eletrônicos (computador, televisão etc.). Posteriormente, o índice foi recodificado em faixas.
  • 16
    O ponto médio representa exatamente a média das posições relativas dos indivíduos que formam uma subnuvem qualquer (por exemplo, profissionais) em um determinado eixo, quando ela é projetada sobre um plano qualquer. Ainda que constitua uma informação relevante, o ponto médio não nos diz muita coisa sobre a dispersão da subnuvem no plano formado por dois eixos.
  • 17
    Isso não quer dizer que os clusters construídos esgotem a provável diversidade de regimes alimentares existentes na sociedade brasileira. Estivessem disponíveis outros indicadores (como respostas a questões sobre alimentos preferidos ou rejeitados, frequência com que come fora e que tipo de comida etc.), teríamos nuvens de modalidades e de indivíduos diferentes daquelas aqui apresentadas e, portanto, diferentes agrupamentos ou regimes alimentares.
  • 18
    A opção de corte com sete agrupamentos resultava em dois clusters muito similares, por isso, escolhemos trabalhar com seis.
  • 19
    Para a caracterização dos agrupamentos, foram consideradas as categorias ativas e suplementares com os maiores valores-teste ( t-values ), negativos ou positivos. Tais valores foram calculados a partir da diferença entre a proporção da categoria na amostra e a proporção dela no agrupamento. Valores-teste superiores a zero significam que a categoria (por exemplo, consumo de banana) está sobrerrepresentada em determinado agrupamento. De forma correlata, valores teste inferiores a zero implicam que a categoria está subrepresentada. Os valores-teste poderiam ser interpretados como coeficientes de correlação, ou seja, quanto maiores os valores, maior a correlação entre uma dada categoria e um agrupamento. São aqui considerados apenas as categorias com os maiores valores-teste, positivos ou negativos.
  • 20
    Eventuais discrepâncias entre os percentuais exibidos no dendograma e os percentuais mencionados na descrição dos agrupamentos resultantes da ACH decorrem do procedimento de consolidação dos clusters. No dendograma, são exibidos os percentuais anteriores à consolidação; na descrição, são usados os percentuais após o procedimento. Neste caso, a consolidação ocorreu após a sétima iteração, pois o ganho relativo da inércia intercluster em relação à iteração anterior foi de apenas 0,062%.
  • 21
    Tomando a figura 1 como referência (construída a partir dos eixos 1 e 2), os pontos médios dos agrupamentos 1 e 6 estão no quadrante superior esquerdo; aquele do agrupamento 2, no quadrante superior direito; aqueles dos agrupamentos 4 e 5, no quadrante inferior direito, e, por fim, o ponto médio do agrupamento 3 está localizado no quadrante inferior esquerdo.
  • 22
    Foram considerados como parte do desjejum os registros de consumo alimentar feitos entre 5 e 10 horas; almoço, entre 11 e 14 horas; jantar, entre 19 e 22 horas.
  • 23
    A “nova moral gastronômica” faz referência a certas disposições em relação à alimentação que são altamente valorizadas em manuais de etiqueta e, conforme uma pesquisa recente, em meios sociais altamente exclusivos: “alimentação parcimoniosa” em oposição ao “apetite voraz”; “comer nos conformes” em oposição ao “comer sem formalidades” ( Pulici, 2014PULICI, C. (2014), “A alimentação solene e parcimoniosa: práticas gastronômicas como fonte de distinção das elites brasileiras”. Revista Ecopós , 17 (3): 1-15. ). O emprego do conceito me parece útil neste ponto para chamar atenção ao fato de que o padrão de consumo alimentar observado entre conjuntos de agentes mais bem dotados de capital econômico e cultural (pertencentes às categorias de profissionais ou professores universitários) revela alguns traços dessa moral, especialmente sobre as preferências por alimentos (considerados) mais leves e por pratos menores (em termos do peso), sobretudo no jantar.
  • 24
    Uma elipse inclui aproximadamente 86% dos indivíduos de uma subnuvem.
  • Errata.

    No artigo CLASSE SOCIAL E ALIMENTAÇÃO: Padrões de consumo alimentar no Brasil contemporâneo, DOI: 10.1590/3410005/2019, publicado no periódico Revista Brasileira de Ciências Sociais, 34(100): e3410005, ocorreram alguns erros:
    Na tabela 1, páginas 7 a 10, onde se lê “ao mesmo um registro”, leia-se “ao menos um registro”; onde se lê “bovina-”, leia-se “bovina- (nenhum registro)”; onde se lê “bovina+”, leia-se “bovina+ (ao menos um registro)”; onde se lê “bovina++”, leia-se “bovina++ (dois ou mais registros)”.
    Na tabela 2, página 11, onde se lê “engenvalues”, leia-se “eigenvalues”.
    Na página 12, onde se lê “(“suficiente+”)”, leia-se “(“insuficiente”). Onde se lê “(“suficiente-”)”, leia-se “(“suficiente+”)”.
    Na nota de rodapé 1, onde se lê “Jarnes”, leia-se “Jarness”.
    Na nota de rodapé 2, onde se lê “(2018)”, leia-se “(2019)”.
    Na página 26, onde se lê “BERTONCELO, E. R. E. (2018) “Consumo cultural e a manutenção das distâncias sociais no Brasil”, in C. Pulici e D. C. Fernandes (orgs.), As lógicas sociais do gosto: condicionantes das preferências, hierarquias simbólicas e legitimidades culturais, São Paulo, Edunifesp.”, leia-se “BERTONCELO, E. R. E. (2019) “Consumo cultural e a manutenção das distâncias sociais no Brasil”, in C. Pulici e D. C. Fernandes (orgs.), As lógicas sociais do gosto, São Paulo, Edunifesp.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2017
  • Aceito
    30 Ago 2018
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