Resumo
Este artigo investiga a agência dos movimentos sociais na elaboração do Programa Estadual de Sementes Crioulas do Rio Grande do Norte, a partir dos conceitos de regimes e subsistemas de políticas públicas articulados num modelo proposto por Rebeca Abers, Marcelo Silva e Luciana Tatagiba (2018). Foram analisadas informações disponíveis no site da Secretaria Estadual de Agricultura Familiar (Sedraf) e da Emater, além de entrevistas com os gestores do programa e representantes dos movimentos sociais. Constatamos que a elaboração do programa só foi possível com a entrada de representantes sensíveis às pautas do meio rural no Executivo estadual e no Legislativo, em 2019, além do protagonismo histórico dos movimentos sociais na defesa dessas pautas. Os movimentos agiram no sentido de intervir diretamente nas propostas de projetos de leis, trazendo experiências acumuladas em outras políticas, como o Programa Casa de Sementes da Articulação do Semiárido (ASA) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA sementes).
Palavras-chave: Movimentos sociais; Políticas públicas; Oportunidades políticas; Sementes crioulas; Rio Grande do Norte
Abstract
This article investigates the agency of social movements in the design of the “Crioulas” Seeds State Program of Rio Grande do Norte, based on the concepts of public policy regimes and subsystems articulated in a model proposed by Rebeca Abers, Marcelo Silva, and Luciana Tatagiba (2018). Information available on the website of the State Secretariat of Family Agriculture (Sedraf) and Emater were analyzed, as well as interviews with program managers and representatives of social movements. As results, we found that the elaboration of the Program was only possible with the entry of representatives sensitive to the agendas in the rural areas in the executive and legislative, in 2019, in addition to the historical protagonism of the social movements in the defense of these. The movements acted in the sense of directly intervening in the proposals of bills, bringing accumulated experiences in other policies, such as the Seed House Program of Articulaçao do Semiarido (ASA) and the Food Acquisition Program (PAA seeds).
Keywords: Social movements; Public policies; Political opportunities; “Crioulas” seeds
Introdução
Em reunião realizada em abril de 2021 entre representantes governamentais e da agricultura familiar do Rio Grande do Norte1, Alessandro Silveira, membro do Núcleo da Coordenação da Assessoria e Serviços e Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), comentou:
- Eu não sei se a gente tem ideia da dimensão que tem, mas um Programa de Sementes Crioulas tem um significado muito grande para a gente. Ele rompe com um paradigma histórico [de desenvolvimento]. O que o Nordeste está fazendo, o que o Rio Grande do Norte está fazendo em particular, é um passo muito importante de afirmação de que a produção de alimentos de qualidade adaptada à cultura alimentar da população e do povo do semiárido passa, necessariamente, por resgatar e valorizar a semente crioula2 como sinal de produção de alimentos, de soberania alimentar. […] Precisamos entender que é um movimento que não pode vir só do Estado e nem das leis. Precisamos da participação ativa da sociedade organizada, dos movimentos sociais, das comunidades, para fortalecer a autonomia.
Esse relato apresenta diversos elementos para uma análise sobre o Programa Estadual de Sementes Crioulas, especialmente no que se refere à segurança alimentar ou ainda sobre a luta dos agricultores familiares para manterem suas tradições culturais, ampliar sua autonomia socioeconômica e legitimar a agroecologia como modelo de desenvolvimento rural, buscando enaltecer seus saberes para garantir a produção saudável de alimentos.
A construção do programa tem sido acompanhada e articulada por diversos movimentos sociais do campo que passaram a construir propostas de inovações nas políticas públicas, aproveitando a conformação de governos mais permeáveis às pautas rurais. No caso do estado do Rio Grande do Norte, a configuração política estadual, sob a administração do Partido dos Trabalhadores (PT), desde 2019, tem apresentado uma importância significativa na “construção de oportunidades políticas para a estruturação e atuação das organizações comunitárias” (Silva, 2021, p. 1).
O Programa Estadual de Sementes Crioulas é uma ação estratégica da Secretaria de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar (Sedraf/RN), em parceria com a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte (Emater/RN), com o propósito de fortalecer a agricultura familiar e a convivência sustentável com o semiárido, através do estímulo à utilização de sementes localmente adaptadas à realidade ambiental e social dos(as) agricultores(as) familiares potiguares (Sedraf, 2020). Tem ainda por objetivos: garantir a preservação da diversidade de espécies de sementes crioulas no semiárido e os saberes associados a elas; ampliar a autonomia dos(as) agricultores(as) frente ao mercado de sementes convencionais e melhorar a renda destes, garantir a produção de alimentos saudáveis, contribuindo com a segurança alimentar e nutricional de produtores e consumidores. O programa tem se tornado uma referência política importante não apenas para a Região Nordeste, mas para organizações camponesas de outros países latino-americanos preocupadas com o avanço da privatização das sementes crioulas e com o desaparecimento de variedades culturalmente importantes (por eventos climáticos, por contaminação de transgênicos etc.), sobretudo daquelas que compõem a pauta alimentar das comunidades locais.
O programa resulta de uma demanda antiga dos movimentos sociais do campo e vem sendo construído pela Secretaria Estadual de Agricultura Familiar (Sedraf) com a participação destes e demais entidades representativas da agricultura familiar nos dez territórios do estado potiguar. Interessa-nos aqui analisar como vem se dando essa articulação e se comportando seus atores, como os movimentos sociais contribuíram com a política pública. Em suma, neste artigo, queremos compreender a agência dos movimentos sociais na elaboração do Programa Estadual de Sementes Crioulas do Rio Grande do Norte. Buscamos, a partir do modelo de análise proposto por Rebeca Abers, Marcelo Silva e Luciana Tatagiba (2018, p. 18) compreender “a agência dos movimentos sociais nas políticas públicas a partir de sua atuação na construção, proposição e defesa de modelos alternativos de políticas públicas”. Para tanto, são mobilizados os conceitos de regimes políticos e subsistemas de políticas públicas. Ao acompanhar o pensamento de Charles Tilly (2006), os regimes políticos podem ser entendidos como os momentos de interações fortes e articuladas entre os principais atores políticos, incluindo governos, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais, mídia, Igrejas e demais organizações da sociedade civil, ou seja, “a configuração das relações entre os atores politicamente relevantes, a qual condiciona o acesso às discussões e decisões governamentais” (Abers, Silva & Tatagiba, 2018, p. 17). Como subsistemas de políticas públicas, podemos compreender o lócus onde diferentes coalizões atuam para defender seus interesses e impor sua visão de mundo (Sabatier, 1988), para “cada setor de política pública [e] que confere aos movimentos sociais diferentes condições de acesso a esses setores e influência sobre eles” (Abers, Silva & Tatagiba, 2018, p. 17).
Ao reunir esses conceitos para abordar a participação dos movimentos sociais na elaboração do Programa Estadual de Sementes Crioulas, sustentamos que a agência dos movimentos sociais é determinada por suas atuações históricas no estado e, em grande medida, pela abertura oportunizada pelo regime político a novas coalizões de governantes que se orientam e defendem outros modelos de desenvolvimento rural.
Para compreender esse processo, utilizamos:
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i. análise de bibliografias secundárias (artigos, dissertações e teses) sobre o programa de sementes do semiárido, de iniciativa da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA);
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ii. trabalhos realizados pelos autores sobre o Programa Estadual de Compras da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Pecafes)3 e sobre a relação entre os movimentos sociais e a Sedraf, desde 2019;
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iii. documentos normativos sobre o programa;
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iv; entrevista com o coordenador estadual de Agroecologia e Convivência com o Semiárido;
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v. entrevista com a assessora técnica na Coordenação de Acesso a Mercados, Agroindústria e Cooperativismo da Sedraf;
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vi. entrevista com o atual secretário adjunto da Sedraf e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST);
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vii. duas entrevistas com representantes dos movimentos sociais potiguares que atuam no campo (ASA Potiguar e MST) e que participaram das reuniões de construção do programa, a convite da Sedraf, em 2019;
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viii. entrevista com liderança sindical municipal de Apodi, região que se destaca no desenvolvimento da política territorial e que tem uma forte organização social; e, por fim,
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ix. dados fornecidos pela Emater/RN e pela Sedraf sobre o número de agricultores familiares beneficiados com o programa, os valores repassados e o orçamento destinado.
Valemo-nos ainda das informações obtidas durante nossa participação nos seminários de sensibilização de agricultores e agricultoras, realizados pela Sedraf e Emater, entre maio e junho de 2021, nos dez territórios potiguares, com o objetivo de motivá-los a participar do programa. Vale destacar ainda as escutas durante as três reuniões de acompanhamento da execução do mesmo, realizadas com a participação do estado e das organizações sociais, durante o ano de 2022.
O papel dos movimentos sociais nas políticas públicas: oportunidades e subsistemas de políticas públicas
A literatura dos movimentos sociais tem cada vez mais buscado dialogar com o campo de análise das políticas públicas, com o propósito de compreender o nível de incidência dos movimentos sociais na elaboração e implementação de políticas públicas.
As sistematizações mais consolidadas a respeito das aproximações entre Estado e movimentos sociais se deram a partir das análises realizadas sobre os espaços participativos criados em 1988, com a Constituição Federal, com ênfase nos anos 1990 e 2000. Os trabalhos buscaram analisar o potencial da participação nesses espaços em especial, a forma como os movimentos dialogavam com representantes estatais nos conselhos gestores e orçamentos participativos. A partir de 2003, com a entrada do Partido dos Trabalhadores no governo federal, as lentes analíticas se voltaram à compreensão da relação entre sociedade e Estado, não só nos espaços participativos, mas especialmente na atuação dos movimentos sociais na formulação e implementação de políticas públicas. Assim como mostraram Abers, Serafim e Tatagiba (2014, p. 326), “movimentos sociais e atores estatais experimentaram criativamente [...] padrões históricos de interação Estado-sociedade e reinterpretaram rotinas de comunicação e negociação de formas inovadoras”. Nesse sentido, compreender a participação dos movimentos sociais na produção de políticas públicas passou a ser uma perspectiva explorada pela literatura e que atualmente tem se desenvolvido sob a égide de sustentar a ideia da mútua constituição entre Estado e sociedade (Gurza Lavalle et al., 2019).
No desenvolvimento dessas questões, Abers, Silva e Tatagiba (2018) propuseram um modelo analítico para refletir como os movimentos sociais incidem nas políticas públicas. A partir dele, abordaram a agência dos movimentos sociais, a considerar sua atuação na construção, proposição e defesa de modelos alternativos de políticas públicas. Os autores também enfatizaram o papel dos contextos políticos, que condicionariam a atuação dos movimentos sociais, mas que também são condicionados pelos próprios movimentos. Os autores argumentaram que os movimentos sociais não se relacionam a um
“contexto político” objetivado e externo que condiciona sua formação e ação, [mas] estão inseridos em relações de interdependência com os diversos atores e instituições com quem interagem rotineiramente, constituindo o que denominamos de estruturas relacionais (Abers, Silva & Tatagiba, 2018, p. 17).
Nesse sentido, o conceito de estruturas relacionais incorporado pelos autores tem como fundamento central a discussão profícua da sociologia relacional, especialmente a partir dos textos de Mustafa Emirbayer (1997), entendendo o mundo como sistema aberto de relações, processos e práticas. Conforme destaca Carla Tirelli (2014), citando Emirbayer (1997),
a agência não preexiste às relações, mas surge delas [...] trata-se de um processo dialógico que apresenta fatores internos e externos, pois não há como separar os atores do contexto no qual se encontram imersos e através do qual adquiriram a sua experiência e consciência do mundo (Tirelli, 2014, p. 26).
Para tanto, Abers, Silva e Tatagiba (2018) compreendem esses processos a partir de dois conceitos que estariam em diálogo constante com a abordagem relacional: os regimes políticos e os subsistemas de políticas públicas. Para os autores,
[...] os movimentos sociais operam simultaneamente em duas estruturas relacionais mais ou menos distintas na sua configuração: aquela formada pelos atores, interesses e arranjos institucionais estruturados em torno de determinada coalizão governante (regime); e aquela composta pelos atores, interesses e arranjos institucionais que caracterizam determinado setor de política pública (subsistemas) (Abers, Silva & Tatagiba, 2018, p. 23).
Os autores utilizam a ideia de regimes políticos, baseando-se na perspectiva proposta por Tilly (2006) sobre as condições políticas que poderiam oportunizar e/ou constranger a possibilidade de atores sociais, sem descolar o contexto político do próprio papel dos movimentos sociais. Neste sentido, os autores sustentam que o regime político pode ser entendido como “estrutura relacional constituída pelos atores estatais e não estatais que têm acesso às discussões e decisões governamentais” (Abers, Silva & Tatagiba, 2018, p. 31). Assim, os regimes, de acordo com sua configuração em diferentes contextos, podem dar possibilidade de acesso maior ou menor às interferências dos movimentos sociais nas definições das políticas públicas, e isso se deve ao fato de que “em cada momento existe uma coalizão governante que centraliza decisões do governo federal” (Abers, Silva & Tatagiba, 2018, p. 32). Para resumir, os autores definem que os regimes políticos seriam conformados por uma
estrutura das relações entre atores politicamente relevantes da sociedade e do Estado e destes com arranjos institucionais, regras e ideias instituídos pelos conflitos políticos e por políticas públicas do passado, e são liderados por coalizões governantes (Abers, Silva & Tatagiba, 2018, p. 33).
Com relação aos subsistemas, os autores baseiam-se na literatura da análise de políticas públicas, especialmente nos trabalhos de Paul A. Sabatier (1988), que construiu um modelo teórico que ao longo dos anos tem sido aprimorado e utilizado como base para as reflexões sobre a produção de políticas públicas em áreas específicas. Segundo o autor, a estrutura conceitual concentra-se no sistema de crenças de “coalizões de defesa” dentro de subsistemas de políticas públicas. Entende-se subsistema de políticas públicas como o lócus de interação de diferentes atores interessados em uma área da política. Para Sabatier (1988),
[...] os subsistemas vão além de grupos de interesse, órgãos governamentais e comissões do Legislativo, incorporam também jornalistas, analistas de políticas públicas, cientistas, pesquisadores, personalidades, entre outros que desempenham papéis importantes na geração, disseminação e avaliação de ideias políticas (Sabatier, 1988, p. 138).
Dentro de um subsistema
atores podem estar agregados em um número indefinido de coalizões de defesa compostas por pessoas de várias organizações que compartilham um conjunto de crenças normativas e causas, que frequentemente agem em conjunto (Sabatier, 1988, p. 133).
Cada uma dessas coalizões pode adotar uma ou mais estratégias, buscando promover seus objetivos na área temática em que se enfrentam. Em alguns casos, essas coalizões são mediadas por um terceiro grupo - os policy brokers - que tentam encontrar um meio termo entre as disputas, evitando o conflito mais intenso, ou seja, seriam agentes negociadores que buscam diminuir a tensão entre as coalizões. No caso do Brasil, poderíamos compreender que o Ministério Público cumpriria esse papel de mediador de conflitos.
As sementes crioulas na agenda governamental
A mecanização e industrialização da agricultura após a Segunda Guerra Mundial favoreceram uma nova relação sociedade-natureza, baseada na exploração intensiva dos recursos naturais, e justificada pela necessidade de produzir alimentos para um mundo em reconstrução. Esse processo - denominado de Revolução Verde - deu-se no Brasil por meio do projeto de modernização da agricultura, ocasionando diversas mudanças tecnológicas e organizacionais, alicerçadas no uso de agrotóxicos, fertilizantes, máquinas e implementos, técnicas de irrigação e novas variedades agrícolas.
Nesse cenário, as sementes foram sendo apropriadas pela indústria, considerando seu papel estratégico e essencial no processo agrícola. Os avanços da biotecnologia geraram sementes transgênicas, trazendo para o debate uma dicotomia entre conhecimento científico e conhecimento tradicional acerca das sementes e, ademais, impulsionaram a privatização das sementes pelas empresas, uniformizando-as e fazendo com que os agricultores e agricultoras dependessem da compra destas para manter sua produção (Pereira, López & Dal Soglio, 2017). A própria nomenclatura dada às sementes resultantes da biotecnologia tratava de reforçar a oposição entre elas e as de origem nativa ou crioulas. Ideias como sementes melhoradas, de alto rendimento operavam como elementos distintivos e qualificadores em contraposição ao que era nativo, concebido como local, inferior e sem importância. O ordenamento jurídico mundial sobre sementes é uma boa expressão da tentativa deste apagamento, conforme mostra Flávia Londres (2014):
na letra dessas leis, o conceito de sementes restringiu-se aos materiais desenvolvidos por especialistas, ao passo que as sementes crioulas foram excluídas do mundo formal, sendo classificadas como grãos, isto é, material sem qualidade para a multiplicação (Londres, 2014, p. 5).
A política de distribuição de sementes no Brasil ocorreu, portanto, em sintonia com as orientações do projeto de modernização, respondendo aos interesses de grandes corporações internacionais. Neste modelo, “os agricultores [são] tratados como simples produtores agrícolas e consumidores de sementes e de outros insumos agrícolas industrialmente produzidos” (Santilli, 2012, p. 461), dependentes das grandes corporações.
O impacto deste projeto do ponto de vista da autonomia produtiva, econômica e cultural dos agricultores foi intenso, mas não se deu de modo uniforme. Muitos agricultores familiares nunca deixaram de produzir as suas próprias sementes, buscando resgatar e conservar a agrobiodiversidade, vários deles impulsionados por redes de movimentos sociais que estavam à época preocupados com a proliferação de sementes geneticamente modificadas. Lucas Lima e Flavio dos Santos (2018) destacam esse aspecto:
Preocupados com a possibilidade de expansão dessas sementes para as pequenas propriedades de base familiar, alguns movimentos sociais e associações comunitárias, sob a organização da Articulação do Semiárido (ASA), têm tentado evitar a destruição das chamadas sementes crioulas. Também conhecidas como sementes da resistência, são símbolos de identidade com a terra e materializam a agrobiodiversidade (Lima & dos Santos, 2018, p. 193).
Flávia Londres (2014) mostra que a organização desse processo começou a ser feito ainda na década de 1970, pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), principalmente na Região Nordeste, com a organização dos Bancos de Sementes Comunitários (BSCs). Cimone Rozendo (2021) destaca que as experiências coletivas iniciais de conservação de sementes crioulas no Território do Apodi (RN) se fizeram através do Movimento de Educação de Base (MEB), vinculado à Igreja Católica, como resultado da resistência cotidiana de agricultores e agricultoras às condições de subalternidade impostas pelo regime militar, em especial, nos períodos de seca na Região Nordeste do Brasil, quando se instalavam as frentes de trabalho. Diversos são os relatos de que as frentes representavam, para a maioria da população, as únicas formas de obtenção de alguma renda e de um pouco de água para o consumo. Por isso, os MEBs passaram a estimular mobilizações dos agricultores para reivindicar o acesso à água, ao que posteriormente se somaram demandas de acesso às sementes, à terra, à assistência técnica etc. A abertura de um poço que beneficiou cerca de 100 famílias no território foi a prova principal do potencial da ação coletiva, intensificando ações que resultaram na consolidação de uma associação que criou os primeiros bancos de sementes comunitários. Tratava-se de
um espaço físico coletivo, onde agricultores e agricultoras mantinham estoques de sementes nativas, realizavam trocas de sementes entre eles e outras comunidades, num processo contínuo de experimentações (Rozendo, 2021, p. 3).
Essa questão é colocada pelo representante da ASA:
Isso surgiu nos territórios desde a época das Comunidades Eclesiais de Base, né? Os padres que saíam escondidos com a semente pra levar pra feira, porque os agricultores não podiam comercializar as sementes. Então surgiu a partir daí (Representante da ASA, entrevista concedida aos autores em 24 fev. 2021).
Outro entrevistado, liderança sindical de Apodi/RN, também relembra sua infância, quando o pai guardava sementes e havia uma questão simbólica envolvida nas trocas entre os guardiões:
Meu pai guardava em cima da meia parede um botijão com 6kg de sementes e aquela semente era sagrada, mesmo passando fome, ninguém tocava, porque era a garantia de que íamos passar pelo processo de escassez. [...] A semente, ela carrega um traço muito importante, tudo isso provoca organização, os agricultores que trocam sementes um com o outro, a autonomia das pessoas, esse intercâmbio, a história da semente carrega várias relações sociais (entrevista concedida aos autores em 24 fev. 2021).
Nota-se a importância dada naquele momento às sementes, uma história de tradição cultural relacionada à própria história do campesinato e que se resgata a partir do associativismo rural, que vai sendo proliferado nas diversas regiões do país nos anos 1980.
Londres (2014) destaca que ONGs e sindicatos rurais, impulsionados pela ASA, passaram a articular as experiências locais. Em entrevista concedida aos autores, o representante do sindicato rural de Apodi/RN também relembra esse fato:
A história com as sementes crioulas é uma coisa que não é recente pra nós. Ela remonta à luta sindical, ao sindicato de luta de verdade, àquele sindicato que não é pelego, [...] os agricultores já faziam isso e já guardavam as sementes como algo sagrado e muito valoroso. E aí a ASA vem nessa articulação toda de sindicatos. De repente, nós estamos descobrindo isso na ASA né? Que traz as federações de agricultura, que traz o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o movimento sindical, as cooperativas que atuam no meio rural, o Centro Feminista 8 de Março, que organiza as mulheres, a Marcha Mundial das Mulheres, a Central Única dos Trabalhadores e de repente estamos discutindo sementes com todo esse povo (entrevista concedida aos autores em 24 fev. 2021).
Neste sentido, percebemos que a partir da organização sindical no campo e da articulação da ASA, combinada à entrada de outros atores no diálogo sobre as questões referentes à reprodução da agricultura camponesa, iniciou-se a mobilização de agricultores e entidades a debaterem a importância das sementes crioulas para o desenvolvimento rural do país. As articulações para a execução da Política de Cisternas, mais especificamente da Segunda Água (P1 + 2) é um bom exemplo disso. Os projetos produtivos vinculados à sua implementação pressupunham a utilização de variedades adaptadas ao local, fomentando o debate sobre a importância das chamadas sementes crioulas. Começou-se então um processo de sistematização de experiências dos “guardiões das sementes” em todo o território nacional. Essas experiências foram a base para a construção de políticas públicas que buscassem fomentar a aquisição e a distribuição de sementes crioulas em âmbito federal. Conforme destaca Londres (2014), a experiência da Rede de Sementes da ASA-PB foi fundamental para que outras ações fossem desenvolvidas no âmbito de programa nacionais, como o caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), conforme detalhado pela autora:
À luz das dinâmicas de funcionamento e dos princípios que regem a experiência da Rede de Sementes da ASA-PB, envolvendo resgate, conservação, multiplicação e uso de sementes crioulas, foram descritas e analisadas as ações desenvolvidas no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), operacionalizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); do Programa de Sementes para a Agricultura Familiar, executado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) entre 2006 e 2010 e do Plano Brasil Sem Miséria, executado pelo MDA e pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) desde 2011 (Londres, 2014, p. 7).
Apesar da importância dada às sementes crioulas nos governos petistas, com a promulgação da nova Lei brasileira de Sementes e Mudas, em 2003 (Lei 10.711/2003), que possibilitou a distribuição de sementes produzidas por entidades associativas de agricultores familiares aos associados, sem inscrição no Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem), os interesses hegemônicos continuaram prevalecendo. Ou seja, observamos que os “dispositivos legais aprovados constituem apenas exceções em um sistema de controle sobre o setor de sementes inteiramente voltado ao favorecimento do agronegócio e das grandes empresas sementeiras” (Londres, 2014, p. 13).
Entretanto, vale ressaltar que a sociedade civil se mobilizou para que fossem reconhecidos pelo poder público a produção e o comércio das sementes crioulas:
o processo de elaboração nova lei pelo Poder Legislativo brasileiro sofreu a influência das organizações da sociedade civil, que se mobilizaram para tentar garantir a criação de dispositivos que reconhecessem a existência e o valor das sementes crioulas e da biodiversidade que elas encerram, permitindo sua produção, comércio e uso (Londres, 2014, p. 15).
Portanto, essa temática vai se tornando presente nos debates sobre políticas públicas, conforme visualizamos para o caso do Rio Grande do Norte nos últimos dois anos. No âmbito nacional, a ASA lançou, no ano de 2015, o Programa Sementes do Semiárido, para apoiar a criação de casas de sementes e reestruturar as já existentes.
O Estado junto aos movimentos no Rio Grande do Norte e os processos relacionais
A criação da Sedraf, em 2019, sinalizou a importância dada pela governadora Fátima Bezerra à agricultura familiar. Desde as primeiras articulações políticas para a disputa do governo estadual do Rio Grande do Norte, em 2018, os movimentos sociais do campo já haviam reivindicado atenção especial às suas demandas.
Conforme destacam Joana Moura, Marcos Silva Jr. e Winifred Knox (2021), ao perceberem a oportunidade que surgiu no contexto político do Rio Grande do Norte durante a eleição de 2018, diversos movimentos que atuam no campo encabeçaram um apoio massivo à candidatura de Fátima, uma vez que “ela abraçava as pautas da agricultura familiar” (Moura, Silva Jr. & Knox, 2020, p. 9). Em entrevista, a assessora de cooperativismo na Sedraf mostra o forte vínculo entre o governo e os movimentos sociais:
nós tivemos a bênção de ter o governo estadual ligado aos movimentos sociais e a demanda para uma secretaria da agricultura familiar já é antiga no estado, só que nenhum outro governo deu atenção especial (entrevista concedida aos autores, 29 jan. 2021).
Neste sentido, o peso dos atores relacionados aos movimentos sociais envolvidos na discussão da agricultura familiar foi central para a criação da Sedraf, até mesmo encabeçada por Alexandre Oliveira - atual secretário -, que ocupou anteriormente a secretaria executiva da ASA Potiguar e o Colegiado Nacional da ASA Brasil. De acordo com a entrevista realizada com o representante da ASA Potiguar, o atual secretário participou ativamente da criação da entidade no estado:
Um companheiro, inclusive que era da Terra Viva [uma ONG], foi um dos fundadores da ASA [...] que é Alexandre Oliveira, hoje secretário da Sedraf, e outro, o companheiro Fábio. Eles andaram o estado todinho criando as microrregionais da ASA, criando os fóruns da agricultura familiar, que a gente chamava ASA municipal, depois se tornou fórum da agricultura familiar (entrevista concedida aos autores em 24 fev. 2021).
Assim, percebemos a importância do papel de um gestor sensível às demandas da agricultura familiar que, mesmo em contextos excepcionais, como o caso atual da pandemia da Covid 19, vem tentando articular e mobilizar os territórios do Rio Grande do Norte a fim de possibilitar que as ações continuem sendo efetivadas nesses espaços. O coordenador de agroecologia da Sedraf mostra a importância da trajetória do secretário para buscar pautar na gestão a importância de políticas que fortaleçam as comunidades rurais e o debate agroecológico:
Alexandre tem e consegue articular e, se não fosse a pandemia, eu acho que a gente teria um avanço significativo, mas o trabalho com a questão da agroecologia e a convivência com o semiárido é um eixo relevante pela trajetória também do secretário. Como ele tem um trabalho já de militância e um trabalho acadêmico muito voltado para essa área, então ele tem muita compreensão dessa questão, que reflete muito na equipe e nos momentos de coordenação com a gente (entrevista concedida aos autores em 02 mar. 2021).
Nota-se que há uma trajetória explícita do atual secretário com temas relacionados às pautas dos movimentos sociais no campo e do secretário adjunto da Sedraf - Lucenilson Ângelo de Oliveira, indicado pelo MST -, mostrando com isso a abertura dada pela gestão petista aos movimentos sociais.
Neste novo formato da secretaria, há a tentativa de priorização de políticas que sejam construídas de maneira coletiva e em constante diálogo com representantes de partidos progressistas presentes na Casa Legislativa. Destaca-se a atuação da deputada estadual Isolda Dantas (PT), que tem elaborado projetos de lei que buscam beneficiar a agricultura familiar. Conforme destacam Moura, Silva Jr. e Knox (2020), com a trajetória marcada pelos vínculos com os movimentos sociais do campo, a deputada Isolda propôs, logo no início de seu mandato e em constante diálogo com os movimentos sociais do Rio Grande do Norte, o Programa Estadual de Compras Governamentais da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Pecafes). Segundo os autores, a deputada articulou as secretarias de agricultura dos municípios, bem como a Sedraf, para obter o apoio necessário para a aprovação do projeto de lei na Assembleia Legislativa. A entrevista com o secretário adjunto também reforça esse aspecto:
A deputada Isolda teve a iniciativa de encabeçar esse processo e inclusive com a parceria da recém-criada Sedraf [...] passamos a contribuir com esse processo no sentido de formulação da lei (entrevista concedida aos autores em 05 fev. 2020).
Atualmente o Pecafes tem se destacada em razão de sua política de referência no estado e no Nordeste como um todo. Essa política tem sido bastante debatida no Consórcio Nordeste, que dispõe de uma câmara técnica de agricultura familiar e, no Fórum Nordeste, de gestores da agricultura familiar.
Destacamos que a combinação entre integrantes dos movimentos vinculados à agricultura familiar, da atuação de pesquisadores (como é o caso do próprio secretário da Sedraf, oriundo da universidade pública), de alguns representantes eleitos de partidos progressistas no âmbito do Legislativo, dentre outras organizações da sociedade civil, conformam o que a literatura denomina de coalizão de defesa (Sabatier, 1988), preocupada em discutir sistemas agroalimentares sustentáveis no estado. Essa coalizão vem pautando diversas políticas e projetos de lei a fim de proporcionar a melhoria na qualidade de vida da população rural do Rio Grande do Norte.
Segundo o documento da Sedraf (2020) sobre o programa, a ASA ocupa um lugar central no fortalecimento de ações com vistas à conservação das sementes crioulas, seja sensibilizando os agricultores para o tema, seja fomentando tecnologias sociais, como no caso da implementação das casas de sementes, no ano de 2015, em vários territórios potiguares. De acordo com esse documento, a ASA tem realizado anualmente encontros territoriais e estaduais de agricultores e agricultoras que trabalham com a conservação das sementes crioulas para intercâmbios de saberes e de espécies. Nestes eventos são debatidas estratégias para a conservação das sementes, sobretudo em razão da contaminação por transgênicos, cada vez mais recorrente no estado, em especial das variedades de milho, como indicam os relatos dos agricultores e os testes de transgenia realizados pela Sedraf (Dantas, 2021).
A criação do programa, no ano de 2020, foi inspirada na experiência de articulação entre a Sedraf, a Cooperativa Central da Agricultura Familiar do Rio Grande do Norte (Cooafarn) e a organizações vinculadas à ASA, para concorrer ao edital do Programa de Aquisição de Sementes (PAA Sementes)4, em 2019. O apoio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) nesta operação foi fundamental. Foram aportados 492 mil reais na aquisição de sementes crioulas, distribuídas posteriormente para agricultores familiares da região.
A criação do Programa Estadual de Sementes Crioulas, no Rio Grande do Norte, nasce dessa relação entre agência dos movimentos sociais articulados com o poder público, entidades sindicais e ONGs, formando a coalizão de defesa que luta pela agricultura familiar no estado, condicionado pelo contexto político proeminente, a partir de 2019, mas também condicionando o programa.
Em entrevista para a ASP-TA, o atual secretário da Sedraf, Alexandre Lima, sinaliza a importância dada à agrobiodiversidade desde a construção de propostas para o governo de Fátima Bezerra:
A construção de um Programa de Sementes Crioulas era proposta que já fazia parte do programa de governo da Fátima Bezerra. Entendemos que o tema da agrobiodiversidade é parte central de uma estratégia para o desenvolvimento rural (ASP-TA, 2020).
Como dito anteriormente, o Programa de Sementes Crioulas Potiguar tem como objetivo principal garantir a preservação da biodiversidade das sementes crioulas no semiárido, a partir da distribuição para famílias rurais, proporcionando a autonomia das agricultoras e dos agricultores, a produção de alimentos saudáveis, a promoção da segurança alimentar e nutricional, bem como a inclusão e a geração de renda (ASP-TA, 2020).
O PAA sementes no ano de 2019 foi uma espécie de piloto para o programa atual e teve como área de atuação os territórios do Alto Oeste, Sertão do Apodi, Açu-Mossoró e Mato Grande, abrangendo 27 municípios e 74 comunidades, onde haviam sido implantadas as casas de sementes comunitárias organizadas pela ação da ASA Potiguar.
Com a execução do projeto, a articulação entre os movimentos e o governo do estado foi ampliada. Agricultores, agricultoras e suas organizações, entidades de assessoria, como o caso do Centro Feminista Oito de Março (CF8), definiram as espécies e variedades que entrariam no programa e trabalharam na mobilização das comunidades rurais responsáveis por multiplicar as sementes a serem adquiridas pelo governo. Segundo uma representante do CF8, além da participação da sociedade civil na elaboração e implementação da política, era fundamental que as mulheres tivessem visibilidade:
O principal aprendizado foi a construção coletiva entre sociedade civil e poder público. Isso precisa ser reconhecido e valorizado, especialmente quando lutamos tanto para a construção conjunta das políticas públicas. Tivemos várias organizações envolvidas [...] é muito importante também que as políticas garantam participação mínima das mulheres, porque seu trabalho nos roçados ainda é muito invisibilizado (ASP-TA, 2020).
Para garantir o alcance da meta, foi realizado o mapeamento dos estoques de sementes junto aos seus guardiões, conforme relata Ivi Dantas, representante do CF8:
Junto com o GT Biodiversidade da ASA, as organizações da sociedade, o poder público e as comunidades começamos a identificar onde havia volume de sementes, porque sabíamos que havia sementes domésticas, mas não sabíamos os volumes (ASP-TA, 2020).
O representante do MST também destacou que a participação dos movimentos sociais foi fundamental para esse mapeamento. A ideia era que em cada um dos dez territórios fossem eleitas dez experiências de produção agroecológica para que os técnicos da Sedraf e da Emater fizessem visitas para conhecer as realidades eleitas e apontando dentre essas experiências quais poderiam participar do programa. Essa abertura à participação foi estruturada pela coalizão governante (regime político) e possibilitou que os movimentos tivessem papel ativo na implementação da política, conforme relata o entrevistado do MST:
A gente participou da discussão lá no finalzinho de 2019, lá em São José do Mipibu, na escola de treinamento da Emater. E lá era o primeiro contato nosso, pra gente entender essa questão da articulação, né? Ver quais territórios participariam, os movimentos sociais, os escritórios da Emater, os sindicatos… E a gente levou pessoas que tinham tradição [de estocar sementes crioulas], porque a gente tem muito isso, né? (entrevista concedida aos autores em 28 abr. 2021).
Essa interlocução com atores que vivenciam as realidades dos territórios foi, e ainda é, fundamental para a implementação do programa. A partir dos diversos momentos de mapeamento, foi revelada uma grande diversidade de variedades e volume expressivo de sementes, mostrando que 45% da meta do programa já estava em estoque. Para promover a produção do restante da meta (55%), as organizações da sociedade civil se articularam em rede e implantaram 23 campos de multiplicação de sementes, envolvendo 41 famílias de agricultores familiares em 13 municípios do estado.
Essa organização da sociedade civil para vencer o desafio de multiplicação das sementes foi relatada pela representante do CF8 em entrevista à ASP-TA:
Não foi fácil, mas as pessoas aceitaram bem a proposta, pois já havia um processo de resgate das sementes a partir dos trabalhos da ASA. Os preços pagos pelas sementes eram justos e isso animou os agricultores e as pessoas que iriam receber as sementes. A universidade [Universidade Federal do Semiárido] apoiou os processos de formação. Depois veio o desafio de montar os campos de multiplicação, pois precisávamos aumentar o volume de sementes e as áreas de plantio precisavam ser irrigadas, porque o inverno [período das chuvas no semiárido] já tinha passado (ASP-TA, 2020).
Em sua primeira edição, agora como Programa Estadual de Sementes Crioulas, estabeleceu-se como meta a compra de 51 toneladas de sementes crioulas de cinco espécies de culturas - milho, feijão, sorgo forrageiro, arroz vermelho e castanha de caju - e 11 variedades, produzidas pela agricultura familiar. Segundo o secretário Alexandre Lima, alcançar essa meta de aquisição de sementes constituiu-se em grande desafio, só contornado com a participação expressiva da sociedade civil e com a parceria das universidades (ASP-TA, 2020).
A Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa) e a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) entraram na parceria e apoiaram atividades de formação sobre qualidade de sementes. A Ufersa realizou os testes de pureza, germinação e vigor das sementes e a UERN fez os testes de transgenia no milho.
Ao final, o Programa adquiriu 37.170 quilos de sementes crioulas, representando 73% da meta prevista. A contaminação de sementes de milho por transgênicos, verificada por meio de avaliação de transgenia, acarretou as maiores perdas de sementes, representando o principal obstáculo para o cumprimento da meta.
Com o Programa Estadual de Sementes Crioulas foi possível, na safra 2019-2020, a distribuição de sementes para 2.839 famílias rurais, localizadas em 36 municípios do estado. Com isso, as famílias puderam plantar as sementes crioulas, garantindo a preservação do patrimônio genético destas espécies, a ampliação do potencial de reprodução e aumento do volume de semente crioula existente e em posse dos agricultores e das agricultoras familiares no estado do Rio Grande do Norte. A distribuição de sementes crioulas possibilitou a manutenção do patrimônio genético pelos(as) agricultores(as) familiares, resultando no fortalecimento de sua autonomia frente à dependência das sementes industrializadas, permitindo a produção de sementes adaptadas ao semiárido e a preservação da agrobiodiversidade e da cultura alimentar da população local (Rozendo, 2021).
Em 2020, a Sedraf ampliou a ação com sementes em relação ao projeto piloto da safra 2019-2020 por meio do lançamento do edital 02/2020. Esse edital previa o aporte ao programa no valor de 900 mil reais com recursos próprios do estado, para a compra direta de 90 toneladas de sementes crioulas nos dez territórios organizados, visando atender seis mil famílias de agricultores(as) familiares com a distribuição de sementes.
Essa evolução quantitativa do programa demonstra o quanto se avançou a partir do mapeamento de sementes crioulas realizado pelos movimentos sociais por ocasião do projeto piloto e revela o grande potencial que existe para ampliar a diversidade de espécies crioulas cultivadas no semiárido, a partir do incentivo de políticas públicas como a do Programa Estadual de Sementes Crioulas.
Entretanto, em vários relatos foi possível identificar também que, mesmo sendo um programa concebido e implementado com base no apoio popular, existem ainda problemas estruturais que dificultaram o acesso de muitos agricultores. Especialmente no que se refere aos procedimentos necessários para concorrer ao edital, conforme destaca o entrevistado do MST:
Porque pra gente, do campo, fica difícil entender o que é um edital, né? Vai desde eu usar uma ferramenta aqui do computador, do telefone... [...] Não sei qual foi o problema do companheiro não ter conseguido acessar, mas, eu acredito que é: tu tem que fazer todo um projeto, né? (entrevista concedida aos autores em 28 abr. 2021).
Outro problema é a contaminação das sementes crioulas por transgênicos. Muitos agricultores acreditam que estão conservando e cultivando sementes crioulas, entretanto quando estas passam pelo teste de transgenia da Sedraf é identificada a contaminação, como mostrou Dantas (2021) em seu estudo.
Essas questões têm sido ainda um desafio para a Sedraf. Recentemente, o secretário da Sedraf e o coordenador de agroecologia da secretaria convidaram pesquisadores para ajudar a pensar uma proposta no mapeamento dos produtores de milho que estão ligados a uma das 74 casas de sementes5 crioulas localizadas pela ASA em quatro territórios do estado para qualificar e fazer a testagem dessa produção. O coordenador de agroecologia da Sedraf, em reunião com pesquisadores (incluindo os autores deste texto), afirma que foram comprados kits de avaliação da transgenia e que deverão ser usados a partir desse mapeamento. Segundo ele, é necessário “construir uma metodologia para dar conta desse desafio de avaliar a transgenia e proteger a sociobiodiversidade do Rio Grande do Norte”. No momento de elaboração deste texto, esse processo ainda estava em andamento, mas vale destacar que atualmente cada um dos dez territórios tem suas comissões que dialogam constantemente com a Sedraf para demandarem e contribuírem com a implementação da política. Mesmo que em algumas reuniões tenha havido algum esvaziamento, sobretudo pelas dificuldades de acesso dos agricultores à internet, Cícera, diretora da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (Fetraf), destaca a importância dessa escuta e a disposição dos dirigentes estaduais em conhecer as realidades de cada município e dialogar com as pessoas que estão na base para que a política realmente obtenha os resultados esperados:
A gente quer que os municípios trabalhem as casas de sementes crioulas, para que essa política seja contínua, por isso os parceiros são importantes. Temos que começar a focar nas problemáticas para pensar nos resultados. Todas as agendas construídas junto às comissões foram feitas. Os diálogos com as comissões [e a Sedraf] tem que estar muito bem amarrados (representante da Fetraf, em reunião no dia 05 jul. 2021).
Nesse sentido, a expectativa desse processo de articulação é que ele propicie a continuidade de um diálogo permanente entre o governo e a sociedade civil, no intuito de identificar as dificuldades e de planejar a atuação conjunta para a solução de possíveis entraves que possam vir a comprometer o alcance da meta de aquisição de sementes prevista pelo programa.
Evidentemente que os processos de coordenação entre atores não ocorrem sem conflitos. É de se imaginar que o paradigma dominante que orientou o projeto de modernização da agricultura segue paralelamente a toda essa experiência. As sementes modificadas continuam sendo distribuídas, muitas vezes pelas mesmas equipes técnicas responsáveis pela distribuição das sementes crioulas. Há até mesmo questionamentos por parte de alguns técnicos sobre a “real” importância da conservação das sementes crioulas. Trata-se de uma coalizão dominante conformada por representantes do agronegócio no estado do Rio Grande do Norte e que sempre pautou as políticas agrícolas no estado.
As equipes da Sedraf e da Emater são bastante reduzidas e a infraestrutura para todos os projetos em curso é insuficiente, aspectos superados apenas pelo grande engajamento de vários técnicos e da sociedade civil a buscarem a construção de saídas conjuntas.
Conclusão
Este artigo teve como principal objetivo analisar o papel dos movimentos sociais na construção e implementação do Programa Estadual de Sementes Crioulas do Rio Grande do Norte. A partir da abordagem desenvolvida por Abers, Silva e Tatagiba (2018) - especialmente utilizando os conceitos de regimes políticos e subsistemas de políticas públicas -, buscamos compreender as articulações entre sociedade civil e Estado explorando o potencial desse processo para configurar políticas públicas alternativas. Destacamos que as estruturas relacionais consubstanciadas nos regimes políticos e nos subsistemas fornecem um arsenal analítico importante para compreender a elaboração do programa de sementes crioulas do Rio Grande do Norte, especialmente porque nos permitiu entender que determinadas coalizões políticas interferem substancialmente na produção de políticas públicas. No nosso caso em específico, a gestão atual (2019-2022), conformada por representantes de partidos progressista, tem potencializado o diálogo com os movimentos sociais. Especificamente para o caso dessa política, a mudança na denominação da secretaria, passando de Secretaria de Reforma Agrária para Secretaria de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar tem um significado simbólico importante para a luta dos agricultores familiares do estado, que sempre demandaram uma secretaria que focasse nesse segmento.
Esses atores estão mobilizados em torno de uma agricultura alternativa para o estado, pautados ainda pela luta nacional e internacional acerca dos sistemas agroalimentares sustentáveis. Apesar dessa luta não ser nova, conforme apontamos no texto, ela tem sido restabelecida no contexto atual mediante o avanço do agronegócio e de retrocessos de políticas voltadas para a agricultura familiar. Assim, o Programa Estadual de Sementes Crioulas do Rio Grande do Norte surge com o objetivo de resgatar a importância da biodiversidade, estimular a produção de alimentos saudáveis, combater a pobreza e promover a segurança alimentar e nutricional. Destacamos, ainda, que essa política vem de um acúmulo de experiências exitosas da ASA e do PAA sementes.
O trabalho desenvolvido pela ASA em torno da preservação das sementes crioulas impulsionou a criação do Programa Estadual de Sementes Crioulas pelo governo do estado, a partir da organização e capacitação de agricultores(as) na implantação ou reestruturação de 74 casas de sementes.
A forma como o programa foi estruturado em articulação com os movimentos sociais demonstra um processo cíclico em que os agricultores precisam se organizar para reivindicar e propor políticas públicas a partir de sua realidade, ao mesmo tempo em que as políticas podem fortalecer as práticas tradicionais. Com o programa, os agricultores familiares potiguares têm a oportunidade de ter as suas sementes crioulas reconhecidas como sementes, a partir de uma política pública.
A participação da sociedade civil tem sido fundamental para a elaboração, mas também para a implementação da política no estado. As entrevistas realizadas com representantes dos movimentos sociais que atuam no estado têm mostrado que, desde o início da gestão da governadora Fátima Bezerra, há uma tentativa de aproximação entre o estado e a sociedade. As falas expressam a articulação participativa para a implementação do programa. Nas participações das reuniões nos dez territórios do Rio Grande do Norte, foram criadas comissões de apoio em cada jurisdição para pudessem organizar o levantamento de agricultores que fornecessem para o programa. Infelizmente, essas ações ainda têm sido tímidas e a Sedraf está tendo dificuldade de avançar na implementação da política, recorrendo a ajuda das universidades públicas presentes no estado, tanto para realizar o mapeamento de agricultores(as) familiares que guardam as sementes como para contribuir no processo de realização de testes de transgenia das sementes, principalmente do milho. Essas parcerias estão sendo construídas e precisam ser fortalecidas a fim de possibilitar o diálogo permanente entre a gestão pública e os espaços de produção da ciência, ainda mais em um contexto de disputas de narrativas que procuram secundarizar a importância de experiências como a descrita aqui e do negacionismo das pesquisas realizadas pelas instituições públicas brasileiras.
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1
Esta reunião foi gravada e disponibilizada aos autores como fonte de informação sobre a criação do programa.
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2
De acordo com Gilberto Schneider, da Via Campesina, “as sementes crioulas são todas as possibilidades que você tem de multiplicação de qualquer vegetal, seja através de grãos, de uma rama, folha, flor, fruto, da própria raiz, do caule. As sementes crioulas são todas as formas possíveis de multiplicação dos vegetais” (Brasil de Fato, 2020).
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3
O Pecafes foi criado mediante uma proposição da deputada estadual Isolda Dantas (PT) e sancionado pela atual governadora, Fátima Bezerra, em 2019, e tem como objetivo a garantia da aquisição direta e indireta de produtos agropecuários, extrativistas e resultantes da atividade pesqueira in natura e beneficiados, produzidos por agricultores e agricultoras, além de produtos da economia solidária.
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4
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) Sementes é uma modalidade dentro do PAA. Nesta modalidade, o governo federal, através da Conab, compra sementes de fornecedores e doa a famílias inscritas no Cadastro Único, que engloba mulheres, assentados, povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais.
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5
Existem outras casas de sementes crioulas, mas que não foram mapeadas nesse primeiro levantamento feito pela ASA. A Sedraf vem tentando levantar essas informações junto aos agricultores de todos os dez territórios do estado. Importante notar que as casas asseguram a preservação do patrimônio genético em casos de perdas provocadas pela seca, por exemplo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Jun 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
04 Jul 2022 -
Aceito
04 Nov 2022